RECURSO PER SALTUM
HOMICÍDIO
TENTATIVA
MEDIDA DA PENA
Sumário


I - O crime de homicídio constitui objecto de manifesta reprovação geral e gera um compreensível sentimento de insegurança, sendo certo que a frequência com que vem ocorrendo eleva as necessidades de prevenção geral.
II - Mostra-se justa e adequada uma pena de 5 anos e 8 meses de prisão, aplicada pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, p.p. pelos arts.  22.º, n.ºs. 1 e 2, al. b), 23.º, n.º 1, 26.º e 131.º, todos do CP, a arguido sem antecedentes criminais, que agiu com dolo eventual, sendo elevado o grau de ilicitude dos factos e significativa a gravidade das consequências da infracção.

Texto Integral

            Acordam, em conferência, neste Supremo Tribunal de Justiça:


 I. O arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi julgado e condenado, no Juízo central criminal……, J.., pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, p.p. pelos artºs 22º, nºs 1 e 2, al. b), 23º, nº 1, 26º e 131º, todos do Cod. Penal, na pena de 5 anos e 8 meses de prisão; na procedência do pedido cível formulado por AA, foi o arguido condenado a pagar-lhe, a título de ressarcimento por danos não patrimoniais, a quantia de 8.000 euros, acrescida de juros vencidos e vincendos, desde a data da notificação para contestar e até integral pagamento, bem como, a título de reparação por danos patrimoniais, a quantia que se vier a apurar em execução de sentença, relativo à cirurgia plástica a que o demandante venha a ser sujeito, até ao limite do valor peticionado; na procedência do pedido cível formulado pelo Centro Hospitalar Universitário......., foi o arguido e demandado condenado a pagar-lhe a quantia de 320,77 euros, acrescida de juros vencidos e vincendos, desde a data da sua notificação para contestar e até integral pagamento. Por fim, foi o arguido absolvido do crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo artº 86º, nº 1, al. d), da Lei 5/2006, de 23/2, com referência aos artºs 2º, nº 1, al. m), 3º, nº 2, al. f) e 8º, al. a) do mesmo diploma legal, por cuja autoria vinha acusado.


 Inconformado, recorreu o arguido, pugnando pela redução da pena de prisão para medida situada entre os 2 e os 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, e extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):

«1 – Vem o presente recurso, interposto do douto Acórdão proferido nos autos de processo 1/20.2JAPTM, do Tribunal Judicial da Comarca…, Juízo Central Criminal....... Instância Central ...... – Juiz .., no qual o Coletivo de Meritíssimos Juízes condenaram o arguido AA em autoria material, de um crime de homicídio, sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, n.º 1 e 2, al. b), 23.º, n.º 1, 26.º , 131 do Código Penal, na pena de 5 (cinco anos) e 8 (oito) meses de prisão.

2 - Não se conforma o arguido, ora Recorrente com o facto do Tribunal “a quo” não lhe ter aplicada uma pena próxima dos limites mínimos da moldura penal que é de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 4 meses, entendendo que, in casu, estão verificados os pressupostos de facto e de direito que permitem a referida redução.

3 – O douto Tribunal ao condená-lo nos moldes em que o fez, condenou o Recorrente em penas muito elevadas, podemos até dizer, sem margem para dúvidas, em pena deveras inflacionada, situando-se a mesma acima de ½ da moldura penal para o respetivo crime.

Neste sentido,

4 - O Tribunal “a quo” só valorou os elementos negativos e não atendeu aos aspetos positivos do arguido, não tendo atendido à pessoa na perspetiva de uma necessária e adequada reinserção social do Recorrente uma vez que, tem condições para se manter integrado social, profissional e familiarmente e se afastar da prática de novos delitos.

Também não foi atendido que:

5 - O Recorrente, é primário, e que a circunstância que deu lugar ao presente processo foi uma situação pontual pois, o arguido tem 44 anos e nunca teve qualquer problema com o sistema judiciário.

6 - Salvo o de devido respeito por opinião mais douta, o douto Tribunal “a quo” também não deu o devido realce às circunstâncias provadas nos autos designadamente que:

· O recorrente é uma pessoa trabalhadora, com hábitos de trabalho desde criança;

· Desempenhava funções de cantoneiro de limpeza, auferindo um vencimento de cerca de 700 euros, aos quais acrescentava 300 euros mensais, decorrentes de pequenos trabalhos executados em regime de biscates, na construção civil e em mecânica automóvel;

· No âmbito do presente processo, AA foi preso preventivamente, em 27 fev2020, data a partir da qual ficou impedido de trabalhar até 18nov2020, dia em que reiniciou a sua atividade laboral na mesma empresa, após respetiva autorização;

· AA regista um trajeto escolar com reduzida expressão, tendo abandonado a escola após a conclusão do 3.º ano do ensino básico, pressionado pela situação de carência económica do agregado familiar de origem e a consequente necessidade de iniciar uma atividade remunerada. Começou por executar trabalhos indiferenciados na lota ......., na construção e manutenção naval nos estaleiros ……, em ......., onde se manteve até à insolvência da empresa;

. Com cerca de 25 anos, AA contraiu matrimónio que manteve durante quinze anos. O casal integrou o agregado de origem do então cônjuge nos EUA, durante dezoito meses, onde o arguido trabalhou na construção civil. Porém, a dificuldade em encontrar um emprego fixo e estável foi a razão principal para regressar a Portugal;

· AA, à data dos factos, encontrava-se a exercer funções de cantoneiro de limpeza, com contrato de trabalho sem termo, na Empresa Municipal Águas e Resíduos....... (EMAR...), funções que exerce nesta empresa há cerca de 16 anos;

· Que o arguido é originário de um agregado familiar numeroso (doze elementos) de baixos recursos económicos. Descreve a sua adolescência como feliz, pese embora registe alguns episódios de violência doméstica do progenitor originados pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas;

· Atualmente, mantém contactos esporádicos com os irmãos, os quais têm conhecimento da sua situação jurídico-penal;

· O arguido tem beneficiado do apoio de amigos da sua comunidade cicinal que o visitam com regularidade e contribuem com bens de primeira necessidade;

· Foi descrito como bom profissional, voluntarioso, assíduo e com bom relacionamento com todos os colegas de trabalho, são referidas limitações físicas do arguido que impedem a realização de trabalhos mais pesados;

. No decurso das medidas de coação tem adotado uma conduta adequada ao seu estatuto coativo;

· O arguido estabelece um relacionamento colaborante e aquiscente com os técnicos da equipa de vigilância eletrónica e cumpre regras e obrigações inerentes à sua situação judicial;

· O arguido perspetiva no futuro, caso a sua situação judicial o permita, manter a atual atividade profissional e continuar a fazer biscates como mecânico, bem como constituir família.

7 - Neste sentido, e salvo o devido respeito por opinião mais douta, o douto Tribunal “a quo” valorou excessivamente a intensidade do dolo, grau de ilicitude e a gravidade dos actos ilícitos praticados pelo recorrente.

8 - Não tendo atendido ao facto, do mesmo estar inserido social familiar e profissionalmente e de ser primário.

9 – O facto de ser condenado numa pena efetiva de 5 anos e 8 meses irá retirá-lo do mercado de trabalho, e da sociedade onde está inserido, para colocá-lo numa “autentica escola do crime” pois, como todos nós sabemos uma pessoa vai presa pela prática de um determinado tipo de crime, nada sabendo da prática de outros contudo, quando termina a sua pena sai já doutorado em questões relacionadas com a prática dos mais variados ilícitos criminais.

10 – Além dos fatores negativos que já elencamos supra, a prisão efetiva do arguido trar-lhe-á outras consequências negativas designadamente, causar-lhe-á uma fratura a nível social, familiar, económica e a nível do mercado de trabalho.

11 - Este período de reclusão, impossibilitará a sua reinserção social, além de lhe causar graves problemas na sua integração no mercado de trabalho, atendendo à sua idade.

12 - Com o devido respeito, o acórdão em recurso atendeu excessivamente ao grau de ilicitude, intensidade do dolo, gravidade dos factos ilícitos praticados, o que levou à aplicação excessiva da pena de prisão.

13 -Dos factos provados tudo nos leva a crer, que o ora Recorrente desde muito jovem que tem hábitos de trabalho, além de nunca ter tido quaisquer problemas com a justiça, sendo uma pessoa com um percurso de vida difícil.

14 - Pelo que cumpre insistir, pela mais elementar cautela e dever de patrocínio que, a não ser entendido que a pena justa se situe dentro daquele limite de 2 a 3 anos, a pena fixada seja reduzida, atendendo à reinserção e reintegração do arguido na sociedade, à sua personalidade e a todos os motivos que atrás se enunciaram a favor do arguido, e que este venerando Tribunal face a situações análogas, entenda ser a pena , adequada, justa e proporcional ao caso em questão.

15 - O Tribunal “a quo”, no seu acórdão não valorizou o relatório social, o facto do arguido ser primário e de ser uma pessoa trabalhadora e bem acolhida na sociedade.

16 - Também deve ser tido em consideração que, posteriormente aos factos, o recorrente logo que lhe foi concedida autorização judicial para reiniciar a sua atividade laboral fê-lo, tentou reintegrar-se e adaptar-se à sua situação coativa, revelando um comportamento adaptado às normas vigentes, não havendo registo de incumprimento das mesmas.

17 - Considerando o comportamento anterior e posterior do ora Recorrente, às exigências de prevenção geral e especial, bem como a tudo o que foi narrado nos artigos anteriores, deverão as penas aplicadas serem substituídas por outras, obrigatoriamente inferiores, verificando-se assim o cumprimento do disposto no art.º 71º do Código Penal.

18 – Pelo que, a pena aplicada de 5 anos e 8 meses de prisão aplicada viola o preceituado nos art.ºs 40.º, n.ºs 1 e 2, e 71.º do Código Penal, sendo imperativa a sua redução para uma pena muito inferior, entre os 2 e os 3 anos de prisão, suspensa na sua execução uma vez que, a mesma se mostra adequada e suficiente a fazer face às finalidades da punição.

19 - Na determinação da medida da pena o douto Tribunal “a quo” deveria ter atendido todos os factos elencados no art.º 40.º e 71.º n.º 2 ambos do Código Penal, designadamente, a conduta anterior e posterior à prática do crime.

21 - Violou assim o douto Tribunal “a quo” o art.º 40º do Código Penal uma vez, que não considerou a necessidade de recuperação e inserção social do arguido, atendendo apenas, a uma perspetiva primitiva e degradante do delinquente enquanto Homem e Cidadão.

Tal como,

22 - Os Princípios da Adequação e Proporcionalidade, nos termos do art.º 71 do Código Penal, pelo que a pena aplicada é de todo desadequada a prosseguir o fim do processo penal por excessiva».


Também o Exmº Magistrado do Ministério Público na 1ª instância interpôs recurso do acórdão proferido, pugnando pela elevação da pena aplicada para 7 anos e 5 meses de prisão e extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (igualmente transcritas):

«1ª – O presente recurso vem interposto no seguimento do acórdão proferido no dia 17 de Dezembro de 2020, no Processo Comum, Tribunal Colectivo n.º 1/20.2JAPTM, que condenou o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio, sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, n.º 1 e 2, al. b), 23.º, n.º 1, 26.º, 131.º, todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão.

2.ª - O Ministério Público não se conforma com a pena de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão apicada pelo Tribunal recorrida, por não ser proporcional e adequada à gravidade dos factos praticados pelo arguido, não satisfazendo, em nosso entender, as necessidades de prevenção e a defesa do ordenamento jurídico.

3.ª – Foram dados como provados os seguintes factos:

3.1. No dia ... .01.2020, cerca das 19h45, o ofendido BB deslocou- se à Pastelaria ......, sita na Rua ........, no ........., juntamente com o seu tio CC, e ficaram em pé junto ao balcão.

3.2. Entretanto, o arguido AA, juntamente com o seu irmão DD, que aí também se encontravam, dirigiram-se ao ofendido BB e ao seu tio CC, tendo DD chamando a CC "….. do caralho" e dito "vou comer a tua mãe".

3.3. Nesse momento, o ofendido BB respondeu-lhes que não queria problemas e que apenas queria beber a sua cerveja, tendo sido novamente insultado por DD.

3.4. De seguida, o arguido DD desferiu uma pancada com a mão que atingiu a cara de CC, tio do ofendido BB, levando a que todos se envolvessem em agressões mútuas.

3.5. A dado momento da contenda física, quando o ofendido se preparava para fugir do local, o arguido AA retirou um canivete que trazia no bolso das calcas, abriu-o, aproximou-se do ofendido BB e, em movimentos rápidos, desferiu cinco golpes no corpo do ofendido, atingindo-o no lado direito e esquerdo da face, na cabeça e no pescoço.

3.6. Com receio de perder a vida, o ofendido BB fugiu do referido estabelecimento e caminhou a pé até à Rua ......., no ........., local onde foi encontrado a sangrar abundantemente, tendo sido de imediato conduzido ao Serviço de Urgências do CHU... - Unidade......., onde recebeu assistência médica.

3.7. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, o ofendido BB sofreu as seguintes lesões:

- No crânio: cicatriz de 3 cm na região medial e central da calota do crânio;

- Na face - Cicatriz na região médio-frontal de 3cm, vertical para baixo

- Cicatriz na região hemifacial direita, desde o olho direito até região inferior da orelha direita, curvilínea, com duas curvas de convexidade superior e inferior, com queloide e largura de 0,5 cm a 1 cm e de 11 cm de comprimento;

- Cicatriz na hemifacial esquerda, desde a narina esquerda até à região maxilar superior, a nível do osso zigomático, de 8 cm de comprimento e largura mínima de 0,4 cm e máxima de 1 cm;

- No pescoço: ferida incisa no pescoço a nível do 1/3 terminal, perto da clavícula e a nível da carótida direita, de 1 cm de comprimento.

Tais lesões determinaram, para consolidação das mesmas, um período de 60 dias de doença, com afetação da capacidade geral e profissional

Do evento resultaram consequências permanentes que se traduzem em cicatrizes, cujo aspecto poderá melhorar com intervenção de cirurgia plástica.

3.8. Os referidos ferimentos, para não deixar sequelas, necessitaram de cirurgia plástica.

3.9. Ao agir da forma descrita, desferindo golpes no rosto, na cabeça e no pescoço do ofendido, o arguido actuou representando a morte do ofendido como efeito necessário ou possível da sua conduta, efeito esse com o qual se conformou.

3.10. Com efeito, sabia o arguido AA que nas zonas da cabeça e do pescoço se alojam vasos sanguíneos vitais, tendo - ao desferir os supra referidos golpes com o canivete, objecto cuja natureza corto-perfurante conhecia - pretendido atingir o ofendido BB nas zonas corporais referidas, a fim de lhe causar a morte ou representando a mesma como possível, facto com o qual se conformou o que apenas não logrou conseguir por circunstâncias alheias à sua vontade, designadamente em virtude de não o ter atingido com a profundidade pretendida e de o ofendido ter sido rapidamente socorrido e assistido no Hospital ........

3.11. No dia .../02/2020, entre as 8h20 e as 8h30, na zona ribeirinha ...…, aquando de uma revista efectuada pela Polícia Judiciária ao arguido AA, este tinha na sua posse, no bolso inferior direito das calças, canivete de abertura manual, com cabo em madeira castanha de 9,5 em de comprimento, e com lâmina de 7,5 cm de comprimento, o qual foi apreendido.

3.12. No mesmo dia, entre as 08h45 e as 9h20, na sequência de busca domiciliaria efectuada à residência do arguido AA, sita no Beco ............., Lote ...., ………. - ........., foram apreendidos os seguintes objectos, que se encontravam no interior do seu quarto:

a) Um sabre com empunhadura de 22 cm de comprimento, e lâmina de 49 cm de comprimento, tendo o comprimento total de 71 cm;

b) Um sabre com empunhadura de 14 cm de comprimento, e lâmina de 31 cm de comprimento, tendo o comprimento total de 45 cm;

c) Um canivete de abertura manual, com cabo com forra exterior em madeira castanha de 8,5 cm de comprimento e com lâmina de 6,5 cm de comprimento.

3.13. Atentas as supra descritas características, os objectos referidos em a) e b) são idóneos a causar no corpo de quem por eles for atingido e dependendo da zona corporal em que tal suceda, lesões corto-perfurantes potencialmente graves ou, mesmo, letais.

3.14. Os canivetes eram usados pelo arguido na sua actividade de cantoneiro e os sabres detidos pelo arguido tratavam de objetos de colecção

3.15. Os sabres não estavam adstritos a práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, tratando-se de objetos de coleção.

3.16. Mais sabia o arguido AA que os ditos sabres tinham potencialidade para causar lesões, potencialmente graves, ou, mesmo, mortais, pelo que não lhe era lícito guardá-los, transportá-los, detê-los, trazê-los consigo, ou usá-los e, não obstante quis fazê-lo, agindo da forma descrita.

3.17. O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.

3.18. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

3.ª - No julgamento, o arguido prestou declarações, com um discurso incoerente, inverosímil, fantasioso, procurando alijar responsabilidades.

4.ª - Visionado o vídeo que filmou os acontecimentos no café, vê-se perfeitamente o arguido a abrir um canivete que retirou do bolso e, ao perceber que o arguido se prepara para fugir, vai no seu encalço, vindo a apanhá-lo junto à porta da pastelaria, onde lhe desfere vários golpes com o canivete que empunhava.

5.ª - O depoimento do Assistente BB revelou-se seguro, circunstanciado e coerente, não deixando no tribunal qualquer margem de dúvida quanto à forma como as mesmas aconteceram, particularmente ao facto de ter sido o arguido a desferir-lhe as facadas no rosto, cabeça e pescoço.

6.ª - BB nunca tinha visto o arguido e tinha-se cruzado uma vez com o seu irmão DD, em Setembro de 2019.

7.ª - A contenda teve início sem que para tal tivesse havido qualquer contribuição do assistente, que até procurou, desde logo suster os ímpetos do arguido e do seu irmão DD, dizendo-lhes que não queria problemas.

8.ª - O instrumento usado, cortante e apto a provocar lesões, e o local atingido, sendo comummente sabido que pelo pescoço passam veias e artérias, mormente as artérias carótidas e as veias jugulares nas zonas laterais do pescoço, que, se seccionados, provocam com rapidez a morte, revelam claramente intenção de causar lesões graves, potencialmente letais – tudo a apontar para uma possibilidade elevada de causação de dano morte, o que o arguido quis e sabia, sendo que o resultado não ocorreu por razões alheias à sua vontade, mormente por força da pronta assistência hospitalar.

9.ª - Tratando-se de um dia feriado, e estando a confraternizar com familiares, não se justificava que o arguido trouxesse consigo um canivete que pode ser sempre usado, como o foi, numa contenda a que deu azo.

10.ª Considerou o Tribunal recorrido que o grau de ilicitude dos factos é elevado, atendendo ao número de golpes desferidos, a revelar reiteração do intuito lesivo, sendo certo que o arguido atinge o ofendido quando este já fugia do local intercetando-o junto à porta da pastelaria.

11.ª - Impressiona também o modo gratuito como as agressões surgem, sendo o arguido e seus familiares que iniciam a altercação, sem que nada o justificasse, não se detendo mesmo perante a afirmação do ofendido de que não queria problemas.

12.ª – O dolo é menos intenso, porque eventual.

13.ª - As exigências de prevenção geral são elevadas, uma vez que a vida é o bem mais precioso da vivência em sociedade, sendo qualquer comportamento que atente contra este bem jurídico portador de uma forte carga emocional, criando sentimento de insegurança junto das populações, e apesar da prática frequente, perturba fortemente a paz social, pelo que cumpre evitar o efeito imitação, a sua banalização e que se instaure entre os membros da comunidade o sentimento de impunidade pela violação da ordem jurídica.

14.ª- No que concerne às exigências de prevenção especial, há que ter em consideração, por um lado, que o Arguido não tem antecedentes criminais, por outro lado o modo de actuação revela um desrespeito gritante pela vida do próximo.

15.ª - É nosso entendimento que não se pode contemporizar com actos que revelam uma fascinação pela pura e insensata violência, pelo que os actos praticados, nas circunstâncias em que o foram e pelos motivos que os ditaram, reclamam do Tribunal uma resposta firme e severa, de molde a, nos quadros da moldura penal em causa, inibir a repetição de eventos deste género que tanto chocam a sensibilidade dos cidadãos.

16.ª - Da matéria dada como provada ficou demonstrado que:

No primeiro dia do ano, o assistente e o seu tio, naturais da Guiné Bissau, deslocaram-se a um café onde se encontravam o arguido, o seu irmão e sobrinho e outro indivíduo caucasiano, sendo atendidos ao balcão; então, o irmão do arguido e este, sentindo-se incomodados com a presença daqueles dois indivíduos africanos, provocaram-nos com insultos acerca da cor da pele e, de seguida, agrediram-nos, tendo, nessa sequência, o tio do assistente se defendido do seu agressor e fugido do local.

17.ª – Todavia, o assistente, que estava a ser agredido pelo arguido, quando se dirigia em direcção à porta do estabelecimento para fugir, foi perseguido por este que, empunhando um canivete (que trazia oculto no bolso das calças), lhe desferiu cinco golpes, atingindo-o na cara, cabeça e na região supra clavicular direita (onde se aloja a artéria subclávia), com hemorragias activas.

18.ª – Num local público, perante terceiros, o arguido, que nunca tinha visto o assistente, animado de uma brutal intolerância, desferiu tais golpes de forma tão rápida e violenta quando o assistente, em pânico, fugia do local, atacando-o à traição e sem lhe dar hipóteses de opor uma defesa eficaz.

19.º - Este contexto, mesmo que o Tribunal recorrido não entenda como especialmente censurável, revela culpa em medida elevada, permitindo que a pena se fixe bem acima do ponto intermédio da moldura penal.

20.ª - No julgamento, o arguido não confessou a prática dos factos dados como provados, não mostrando o mínimo arrependimento pela sua conduta altamente censurável.

21.ª - Analisando os factos dados como provados, a fundamentação de facto, de direito e o dispositivo do acórdão recorrido, salvo melhor opinião, não podemos concordar com a decisão de condenar o arguido, pela prática, em autoria material, na forma tentada, de um crime de homicídio, sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, n.º 1 e 2, a1. b), 23.º, n.º 1, 26.º, 131.º do Código Penal, na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

22.ª - “A determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita, de acordo com o disposto no artº 71º do CP, em função da culpa e das exigências de prevenção, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, circunstâncias essas de que ali se faz uma enumeração exemplificativa e podem relevar pela via da culpa ou da prevenção. (Ac STJ, processo n.º 262/13.3PAPTM.E.1.S1)

23.ª – “À questão de saber de que modo e em que termos actuam a culpa e a prevenção responde o artº 40º, ao estabelecer, no nº 1, que «a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e, no nº 2, que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

24.ª - Assim, a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade. À culpa cabe a função de estabelecer um limite que não pode ser ultrapassado.

25.ª - Há uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto depena, pois “abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua função primordial”.

26.ª- Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)” actuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena.”

27.ª - Nos crimes de homicídio, as exigências de prevenção geral positiva são sempre intensas, pois que a violação do bem jurídico fundamental – a vida – fere enormemente os sentimentos ético-jurídicos das pessoas.

28.ª - O grau de ilicitude dos factos é elevadíssimo, porquanto o arguido visou a supressão de uma vida humana, através de uma agressão bárbara e de todo em todo injustificada.

29.ª - Os motivos e as circunstâncias subjacentes à prática da tentativa de homicídio são repugnantes: a com palavras acinosas e racistas, o assistente e o seu tio (a palavra é metade de quem a pronuncia intolerância e o racismo pois que o arguido e o seu irmão começam por provocar, e metade de quem a escuta, segundo Montaigne), e, depois, sem qualquer razão válida e de modo gratuito, agridem-nos.

30.ª- O modo de execução: o arguido agride o assistente de uma forma tão escusadamente bárbara, agredindo-o de forma persistente e bastante violenta: num primeiro momento com as mãos, e, num segundo momento, quando o assistente foge de si, com um canivete, desferindo-lhe cinco golpes na cara, cabeça e pescoço, sem que aquele consiga reagir, tal a surpresa, rapidez e eficácia do ataque, de modo que lhe provocou múltiplas e gravíssimas lesões no pescoço e na cabeça, onde se alojam órgãos vitais, que por sorte não lhe causou a morte em resultado das mesmas.

31.ª - O grau de sofrimento causado pelo arguido ao assistente, praticando os actos num café, onde se encontravam outras pessoas, que não serviu para o dissuadir da prática dos actos de violência contra o assistente.

32.ª - A personalidade evidenciada pelo arguido conduz ao aumento das exigências preventivas, atentas as características de frieza, a péssima formação, falta de empatia, auto-desculpabilização, egoísmo, ausência de sentimentos, reveladores de uma atitude indiferente perante os valores fundamentais

33.ª - Assim, as exigências de prevenção geral são de dimensão significativa, atenta a violência e a gratuidade dos actos praticados, a impor a necessidade de repor a confiança da comunidade na validade da norma violada - vida humana.

34.ª Em sede de exigências de prevenção especial, atenta a ausência de motivo válido, a especial violência, a persistência na consumação, a não interiorização da gravidade dos seus actos, sem denotar o mínimo arrependimento, e o carácter altamente censurável da sua conduta, impõe-se a necessidade de fazer sentir ao arguido o imperativo de absoluta irrepetibilidade dos actos por si praticados e da interiorização sobre os graves malefícios dos mesmos.

34.ª - Em nosso entender, resulta que a pena a aplicar ao arguido terá de se situar bem acima do mínimo aplicável e graduar-se no terço superior da pena abstractamente aplicável, só assim sendo de esperar que influencie positivamente o comportamento futuro do arguido.

35.ª - Tudo ponderado, e vista a moldura penal a considerar no caso (pena de 1 ano, 7 meses e 6 dias e 10 anos e 8 meses de prisão), temos como permitida pela culpa, suficiente e necessária para satisfazer as finalidades da punição a pena de 7 (anos) e 5 (cinco) meses de prisão pela prática do crime de homicídio, sob a forma tentada.

36.ª - Decidindo como decidiu, o tribunal a quo violou os artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º, 40.º, n.º 1 e 2, 71.º, n.º 1 e 2, todos do Código Penal».


 E o Ministério Público respondeu ao recurso do arguido, naturalmente pugnando pelo seu não provimento, e extraindo da sua resposta as seguintes conclusões (também transcritas):

«I – Por acórdão proferido no dia 17 de Dezembro de 2020, no Processo Comum, Tribunal Colectivo n.º 1/20.2JAPTM, o arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio, sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, n.º 1 e 2, al. b), 23.º, n.º 1, 26.º, 131.º do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão.

II - O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:

“1. No dia ... .2020, cerca das 19h45, o ofendido BB deslocou-se à Pastelaria ......, sita na Rua ........., no ........., juntamente com o seu tio CC, e ficaram em pé junto ao balcão.

2. Entretanto, o arguido AA, juntamente com o seu irmão DD, que aí também se encontravam, dirigiram-se ao ofendido BB e ao seu tio CC, tendo DD chamando a CC “preto do caralho” e dito “vou comer a tua mãe”.

3. Nesse momento, o ofendido BB respondeu-lhes que não queria problemas e que apenas queria beber a sua cerveja, tendo sido novamente insultado por DD

4. De seguida, o arguido DD desferiu uma pancada com a mão que atingiu a cara de CC, tio do ofendido BB, levando a que todos se envolvessem em agressões mútuas.

5. A dado momento da contenda física, quando o ofendido se preparava para fugir do local, o arguido AA retirou um canivete que trazia no bolso das calças, abriu-o, aproximou-se do ofendido BB e, em movimentos rápidos, desferiu cinco golpes no corpo do ofendido, atingindo-o no lado direito e esquerdo da face, na cabeça e no pescoço.

6. Com receio de perder a vida, o ofendido BB fugiu do referido estabelecimento e caminhou a pé até à Rua ........, no ........., local onde foi encontrado a sangrar abundantemente, tendo sido de imediato conduzido ao Serviço de Urgências do CHU... – Unidade ......., onde recebeu assistência médica.

7. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, o ofendido BB sofreu as seguintes lesões:

- No crânio: cicatriz de 3 cm na região medial e central da calota do crânio; - Na face:

- Cicatriz na região medio-frontal de 3cm, vertical para baixo;

- Cicatriz na região hemifacial direita, desde o olho direito até região inferior da orelha direita, curvilínea, com duas curvas de convexidade superior e inferior, com queloide e largura de 0,5 cm a 1 cm e de 11 cm de comprimento;

- Cicatriz na hemifacial esquerda, desde a narina esquerda até à região maxilar superior, a nível do osso zigomático, de 8 cm de comprimento e largura mínima de 0,4 cm e máxima de 1 cm;

- No pescoço: ferida incisa no pescoço a nível do 1/3 terminal, perto da clavícula e a nível da carótida direita, de 1 cm de comprimento.

Tais lesões determinaram, para consolidação das mesmas, um período de 60 dias de doença, com afetação da capacidade geral e profissional

Do evento resultaram consequência permanentes que se traduzem em cicatrizes, cujo aspecto poderá melhorar com intervenção de cirurgia plástica.

8. Os referidos ferimentos, para não deixar sequelas, necessitaram de cirurgia plástica.

9. Ao agir da forma descrita, desferindo golpes no rosto, na cabeça e no pescoço do ofendido, o arguido actuou representando a morte do ofendido como efeito necessário ou possível da sua conduta, efeito esse com o qual se conformou.

10. Com efeito, sabia o arguido AA que nas zonas da cabeça e do pescoço se alojam vasos sanguíneos vitais, tendo – ao desferir os supra referidos golpes com o canivete, objecto cuja natureza corto-perfurante conhecia – pretendido atingir o ofendido BB nas zonas corporais referidas, a fim de lhe causar a morte ou representando a mesma como possível, facto com o qual se conformou, o que apenas não logrou conseguir por circunstâncias alheias à sua vontade, designadamente em virtude de não o ter atingido com a profundidade pretendida e de o ofendido ter sido rapidamente socorrido e assistido no Hospital de ........

11. No dia …/02/2020, entre as 8h20 e as 8h30, na zona ribeirinha de …, aquando de uma revista efectuada pela Polícia Judiciária ao arguido AA, este tinha na sua posse, no bolso inferior direito das calças, canivete de abertura manual, com cabo em madeira castanha de 9,5 cm de comprimento, e com lâmina de 7,5 cm de comprimento, o qual foi apreendido.

12. No mesmo dia, entre as 08h45 e as 9h20, na sequência de busca domiciliária efcetuada à residência do arguido AA, sita no Beco ............., Lote …, …….. – ........., o foram apreendidos os seguintes objectos, que se encontravam no interior do seu quarto:

a) Um sabre com empunhadura de 22 cm de comprimento, e lâmina de 49 cm de comprimento, tendo o comprimento total de 71 cm;

b) Um sabre com empunhadura de 14 cm de comprimento, e lâmina de 31 cm de comprimento, tendo o comprimento total de 45 cm;

c) Um canivete de abertura manual, com cabo com forra exterior em madeira castanha de 8,5 cm de comprimento e com lâmina de 6,5 cm de comprimento.

13. Atentas as supra descritas características, os objectos referidos em a) e b) são idóneos a causar no corpo de quem por eles for atingido e dependendo da zona corporal em que tal suceda, lesões corto-perfurantes potencialmente graves ou, mesmo, letais.

14. Os canivetes eram usados pelo arguido na sua actividade de cantoneiro e os sabres detidos pelo arguido tratavam de objetos de coleção.

15. Os sabres não estavam adstritos a práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, tratando-se de objetos de coleção.

16. Mais sabia o arguido AA que os ditos sabres tinham potencialidade para causar lesões, potencialmente graves, ou, mesmo, mortais, pelo que não lhe era lícito guardá-los, transportá-los, detê-los, trazê-los consigo, ou usá-los e, não obstante quis fazê-lo, agindo da forma descrita.

17. O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.

18. O arguido não tem antecedentes criminais registados.”

III – Acompanhando o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 505/2003, de 28-10-2003, em DR, II-Série, n.º 3, de 05-01-204: A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Setembro de 1997, processo n.º 624/97).

IV – “Na realização dos fins das penas as exigências de prevenção geral constituem nos casos de homicídio uma finalidade de primordial importância.

A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando, decisivamente, as restantes finalidades da punição.” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Setembro de 1997, processo n.º 624/97

V - No caso, a ilicitude revela-se em elevado grau de intensidade, e o modo de execução é deveras desvalioso.

VI - O arguido afectou de forma intensa um valor essencial (a vida humana), desprezando o valor da vida e da dignidade da pessoa humana, cuja motivação se prende com a presença do ofendido numa pastelaria, atacando-o de modo particularmente violento, com uma faca, desferindo vários golpes na cara, pescoço e cabeça, acicatado pela raiva e ódio, sem possibilitar uma defesa idónea à vítima, pelo que se impõe uma pena com efeito dissuasor.

VII - A gravidade destes factos acentua a defeituosa personalidade do arguido, em absoluta desconformidade com valores essenciais, a qual se alcança dominada por desígnios de violência primária e insensibilidade moral, pelo que é evidente que o arguido carece de socialização.

VIII - Não se mostrou arrependido, nem assumiu a gravidade do que cometeu.

IX - É irrelevante no caso a ausência de antecedentes criminais, atento o tipo de crime em causa (crime de homicídio).

X - São prementes as necessidades de prevenção geral em ilícitos desta índole, provocando forte reprovação social, pelo que são elevadas as exigências de reafirmação da norma violada.

XI - Além disso, a alarmante frequência deste tipo de crimes apela para juízos de censura rigorosos.

XII - Perante a gravidade dos factos dos dados como provados e a postura de indiferença moral do arguido em julgamento, em nossa modesta opinião é impensável a cominação de uma pena na medida pretendida pelo recorrente, suspensa na sua execução, sendo nosso entendimento que a pena que Tribunal a quo aplicou não é excessiva.

XIII – Acresce que, por inadmissibilidade legal, não pode a pena de prisão imposta ao arguido ser suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.

XIV - Não foi violado o disposto nos artigos e 40º, 71º, do Código Penal».


 II. Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e concedido parcial provimento ao recurso interposto pelo MºPº, fixando-se a pena “um pouco acima do meio da moldura penal”.

 Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não se registaram respostas.


 III. Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência.

 São as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação que delimitam o âmbito do recurso - artº 412º, nº 1 do CPP.

 Em causa, em ambos os recursos, está a pena concretamente aplicada ao arguido: excessiva, na óptica do arguido, que peticiona a sua redução e a subsequente suspensão da sua execução; demasiado benevolente, na perspectiva do Exmº magistrado junto do tribunal recorrido, que entende que a mesma deve ser fixada em 7 anos e 5 meses de prisão.

  Estando em causa, nos dois recursos, a mesma concreta questão – medida concreta da pena a aplicar - não se estranhará certamente que façamos a apreciação dos mesmos em conjunto.


 A factualidade declarada assente em 1ª instância é a seguinte:

1. No dia … .01.2020, cerca das 19h45, o ofendido BB deslocou-se à Pastelaria ......, sita na Rua ......., no ........., juntamente com o seu tio CC, e ficaram em pé junto ao balcão.

2. Entretanto, o arguido AA, juntamente com o seu irmão DD, que aí também se encontravam, dirigiram-se ao ofendido BB e ao seu tio CC tendo DD chamando a CC “…… do caralho” e dito “vou comer a tua mãe”.

3. Nesse momento, o ofendido BB respondeu-lhes que não queria problemas e que apenas queria beber a sua cerveja, tendo sido novamente insultado por DD.

4. De seguida, o arguido DD desferiu uma pancada com a mão que atingiu a cara de CC, tio do ofendido BB, levando a que todos se envolvessem em agressões mútuas.

5. A dado momento da contenda física, quando o ofendido se preparava para fugir do local, o arguido AA retirou um canivete que trazia no bolso das calças, abriu-o, aproximou-se do ofendido BB e, em movimentos rápidos, desferiu cinco golpes no corpo do ofendido, atingindo-o no lado direito e esquerdo da face, na cabeça e no pescoço.

6. Com receio de perder a vida, o ofendido BB fugiu do referido estabelecimento e caminhou a pé até à Rua ........., no ........., local onde foi encontrado a sangrar abundantemente, tendo sido de imediato conduzido ao Serviço de Urgências do CHU… – Unidade......., onde recebeu assistência médica.

7. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, o ofendido BB sofreu as seguintes lesões:

- No crânio: cicatriz de 3 cm na região medial e central da calota do crânio;

- Na face:

- Cicatriz na região medio-frontal de 3cm, vertical para baixo;

- Cicatriz na região hemifacial direita, desde o olho direito até região inferior da orelha direita, curvilínea, com duas curvas de convexidade superior e inferior, com queloide e largura de 0,5 cm a 1 cm e de 11 cm de comprimento;

- Cicatriz na hemifacial esquerda, desde a narina esquerda até à região maxilar superior, a nível do osso zigomático, de 8 cm de comprimento e largura mínima de 0,4 cm e máxima de 1 cm;

- No pescoço: ferida incisa no pescoço a nível do 1/3 terminal, perto da clavícula e a nível da carótida direita, de 1 cm de comprimento.

Tais lesões determinaram, para consolidação das mesmas, um período de 60 dias de doença, com afetação da capacidade geral e profissional

Do evento resultaram consequência permanentes que se traduzem em cicatrizes, cujo aspecto poderá melhorar com intervenção de cirurgia plástica.

8. Os referidos ferimentos, para não deixar sequelas, necessitaram de cirurgia plástica.

9. Ao agir da forma descrita, desferindo golpes no rosto, na cabeça e no pescoço do ofendido, o arguido actuou representando a morte do ofendido como efeito necessário ou possível da sua conduta, efeito esse com o qual se conformou.

10. Com efeito, sabia o arguido AA que nas zonas da cabeça e do pescoço se alojam vasos sanguíneos vitais, tendo – ao desferir os supra referidos golpes com o canivete, objecto cuja natureza corto-perfurante conhecia – pretendido atingir o ofendido BB nas zonas corporais referidas, a fim de lhe causar a morte ou representando a mesma como possível, facto com o qual se conformou, o que apenas não logrou conseguir por circunstâncias alheias à sua vontade, designadamente em virtude de não o ter atingido com a profundidade pretendida e de o ofendido ter sido rapidamente socorrido e assistido no Hospital ........

11. No dia …/02/2020, entre as 8h20 e as 8h30, na zona ribeirinha ...…, aquando de uma revista efectuada pela Polícia Judiciária ao arguido AA, este tinha na sua posse, no bolso inferior direito das calças, canivete de abertura manual, com cabo em madeira castanha de 9,5 cm de comprimento, e com lâmina de 7,5 cm de comprimento, o qual foi apreendido.

12. No mesmo dia, entre as 08h45 e as 9h20, na sequência de busca domiciliária efcetuada à residência do arguido AA, sita no Beco ............., Lote ...., …… – ........., o foram apreendidos os seguintes objectos, que se encontravam no interior do seu quarto:

a) Um sabre com empunhadura de 22 cm de comprimento, e lâmina de 49 cm de comprimento, tendo o comprimento total de 71 cm;

b) Um sabre com empunhadura de 14 cm de comprimento, e lâmina de 31 cm de comprimento, tendo o comprimento total de 45 cm;

c) Um canivete de abertura manual, com cabo com forra exterior em madeira castanha de 8,5 cm de comprimento e com lâmina de 6,5 cm de comprimento.

13. Atentas as supra descritas características, os objectos referidos em a) e b) são idóneos a causar no corpo de quem por eles for atingido e dependendo da zona corporal em que tal suceda, lesões corto-perfurantes potencialmente graves ou, mesmo, letais.

14. Os canivetes eram usados pelo arguido na sua actividade de cantoneiro e os sabres detidos pelo arguido tratavam de objetos de coleção

15. Os sabres não estavam adstritos a práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, tratando-se de objetos de coleção.

16. Mais sabia o arguido AA que os ditos sabres tinham potencialidade para causar lesões, potencialmente graves, ou, mesmo, mortais, pelo que não lhe era lícito guardá-los, transportá-los, detê-los, trazê-los consigo, ou usá-los e, não obstante quis fazê-lo, agindo da forma descrita.

17. O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.

18. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

19. O demandante foi assistido na urgência do Centro Hospitalar ……, unidade de ......., e depois transportado para a Unidade......., onde beneficiou de tratamentos médicos/hospitalares urgentes, orçando as mesmas em 320,77€.

20. Com os ferimentos perpetrados pelo arguido, o assistente sofreu dor.

21. Além das dores o demandante teve dificuldade em ver, deslocar-se e dormir.

22. Desde o dia dos factos, o demandante tem vivido em constante estado de medo e pânico, uma vez que reside no ........., local onde reside o arguido e a família deste.

23. O demandante sente-se envergonhado com as marcas que possui no rosto, cabeça e pescoço, tendo passado a viver desanimado, receando pela vida, assustando-se com facilidade.

24. Deixou de ter o seu normal quotidiano para apenas fazer o trajecto casa-trabalho-casa.

25. Tem dificuldade em aceitar as marcas no corpo, o que o faz sentir-se revoltado, envergonhado perante as pessoas, principalmente quando o questionam sobre a origem das cicatrizes.

26. À data dos factos, AA vivia com a ex-companheira na atual residência, uma casa arrendada de reduzidas dimensões e com fracas condições de habitabilidade. Há cerca de quatro meses, já durante a execução da OPHVE, a relação marital do arguido terminou, continuando este a residir sozinho na mesma morada.

O arguido desempenhava funções de cantoneiro de limpeza, auferindo um vencimento de cerca de 700 euros, aos quais acrescentava de 300 euros mensais, em média, decorrentes de pequenos trabalhos executados em regime de biscates, na construção civil e em mecânica automóvel.

No âmbito do presente processo, AA foi preso preventivamente, em ... fev2020, data a partir da qual ficou impedido de trabalhar até ... nov2020, dia em que reiniciou a sua atividade laboral na mesma empresa, após respetiva autorização judicial.

O período de inatividade, levou à acumulação de dívidas, nomeadamente a renda da casa, 1200 euros referente a oito meses, 150 euros de dívida à empresa de telecomunicações, para além de cerca de 900 euros à Autoridade Tributária. O arguido tem beneficiado do apoio de amigos da sua comunidade vicinal que o visitam com regularidade e contribuem com bens de primeira necessidade.

O arguido é originário de um agregado familiar numeroso (doze elementos) e de baixos recursos económicos. Descreve a sua adolescência como feliz, pese embora registe alguns episódios de violência doméstica do progenitor originados pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas.

Atualmente, mantém contactos esporádicos com os irmãos, os quais têm conhecimento da sua situação jurídico-penal.

AA regista um trajeto escolar com reduzida expressão, tendo abandonado a escola após a conclusão do 3º ano do ensino básico, pressionado pela situação de carência económica do agregado familiar de origem e a consequente necessidade de iniciar uma atividade remunerada. Começou por executar trabalhos indiferenciados na lota de ......., na construção e manutenção naval nos estaleiros ......, em ......., onde se manteve até à insolvência da empresa.

Com cerca de 25 anos, AA contraiu matrimónio que manteve durante quinze anos. O casal integrou o agregado de origem do então cônjuge nos EUA, durante dezoito meses, onde o arguido trabalhou na construção civil. Porém, a dificuldade em encontrar um emprego fixo e estável foi a razão principal para regressar a Portugal.

AA, à data dos factos, encontrava-se a exercer as funções de cantoneiro de limpeza, com contrato de trabalho sem termo, na Empresa Municipal Águas e Resíduos ....... (EMAR…), funções que exerce nesta empresa há cerca de 16 anos. Foi descrito como bom profissional, voluntarioso, assíduo e com bom relacionamento com todos os colegas de trabalho, são referidas limitações físicas do arguido que impedem a realização de trabalhos mais pesados.

O arguido não sofre de problemas de saúde de relevo, registando limitações físicas ao nível dos membros inferiores e da coluna decorrentes de acidentes de viação, da condução de motorizada, encontrando-se a aguardar marcação de consulta para eventual cirurgia à coluna.

O arguido confirmou o consumo de haxixe em contexto de convívio grupal, que terá cessado há alguns anos. No que respeita a consumos de álcool, o arguido referiu beber às refeições e em ambiente de grupo, mas sem excessos.

Na DGRSP não existem registos de anteriores contactos de AA com o sistema de justiça penal.

 No âmbito do presente processo, encontra-se em OPHVE, desde ...abr2020, na sequência do desagravamento da medida de coação de prisão preventiva. No decurso das medidas de coação tem adotado uma conduta adequada ao seu estatuto coativo. O arguido estabelece um relacionamento colaborante e aquiescente com os técnicos da equipa de vigilância eletrónica e cumpre as regras e obrigações inerentes à sua situação judicial. Sente de forma penosa a atual restrição da sua liberdade, com impacto negativo principalmente a nível económico, referindo encontrar-se num período de reflexão do seu percurso vivencial, bem como de avaliação e fixação de prioridades.

O presente processo teve um impacto significativo no quotidiano do arguido que reconhece, em abstrato, o desvalor de condutas similares às descritas na acusação, bem como o impacto das mesmas em eventuais vítimas.

O arguido perspetiva no futuro, caso a sua situação judicial o permita, manter a atual atividade profissional e continuar e fazer biscates como mecânico, bem como constituir família.


 E o tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:

1. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritos em 1. Arguido disse ao Assistente “….. do caralho” e “vou comer a tua mãe”.

2.  O assistente para suportar as dores e conseguir dormir passou a tomar medicação.

3. Após os factos, o assistente tem sido acompanhado, mensalmente, em consultas médicas.

4. O arguido apenas se defendeu da agressão perpetrada pelo Assistente que o atacou com uma cadeira e, depois, com uma garrafa na face.


 IV. Decidindo:

 Em face do factualismo apurado, o tribunal a quo considerou verificada a prática pelo arguido, de um crime de homicídio na forma tentada, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 1 e 2, al. b), 23.º, n.º 1, 26.º, 131.º do Código Penal.

  Tal qualificação jurídica dos factos não se mostra questionada pelos recorrentes.

  E, na determinação da medida concreta da pena a aplicar, assim se decidiu no acórdão recorrido:

«O crime de homicídio na forma tentada previsto (nos artºs) 22.º, n.º 1 e 2, al. b), 23.º, n.º 1, 26.º, 131.º do Código Penal, é punido, em abstracto, com pena de prisão de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 4 meses (por força da redução dos limites mínimo e máximo operado com a atenuação especial aplicável à tentativa).

Atendendo a que o crime em causa é punível apenas com pena de prisão, não há que proceder à escolha da pena, nos termos do disposto no artigo 70.º, n.º 1, do Código Penal, passando-se, de imediato, à determinação da medida concreta daquela pena.

Ora, a determinação da concreta medida da pena de prisão, rege-se pelos critérios contidos nos artigos 40.º e 71.º, ambos do Código Penal.

 Nos termos do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.”

Assim, na determinação da medida concreta da pena, é preciso atender às finalidades próprias das penas, previstas no artigo 40.º do Código Penal. De acordo com o n.º 1 deste normativo, “a aplicação das penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

Deste modo, o julgador deve atender às finalidades de prevenção geral (sobretudo positiva), no sentido da defesa dos bens jurídicos e do ordenamento jurídico, assegurando a estabilização das expectativas contrafácticas da comunidade nas normas jurídicas violadas.

Além disso, deve também orientar-se por finalidades de prevenção especial, já que a pena visa igualmente a reintegração ou ressocialização do agente do crime, por forma a habilita-lo a adoptar, no futuro, condutas conformes com os valores e bens tutelados pelo direito.

 O n.º 2 do artigo 40.º do Código Penal dispõe ainda que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.”

O nosso sistema penal assenta no princípio unilateral da culpa, nos termos do qual, não pode haver pena sem culpa, ainda que possa haver culpa sem pena. Além disso, a culpa funciona como o limite inultrapassável da pena.

Nestes termos, na esteira da douta formulação do Professor Figueiredo Dias, in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Editora, 2001, página 65 e seguintes, que perfilhamos, na determinação da pena concreta deve seguir-se o modelo que comete à culpa a função de determinar o limite máximo da pena, cabendo à prevenção geral fornecer uma moldura cujo limite máximo é dado pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos, e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, cumprindo, por último, à prevenção especial encontrar o quantum exacto da pena dentro da referida moldura da prevenção, que melhor sirva as exigências de ressocialização do agente.

Assim, a culpa funciona como moldura de topo da pena, funcionando dentro dela as sub-molduras da prevenção, prevalecendo a geral sobre a especial. Para tanto, atender-se-á, nos termos do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, a “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente e contra ele”.

In casu, o grau de ilicitude dos factos é elevado, atendendo ao número de golpes desferidos, a revelar reiteração do intuito lesivo, sendo certo que o arguido atinge o ofendido quando este já fugia do local intercetando-o junto à porta da pastelaria.

Impressiona também o modo gratuito como as agressões surgem, sendo o arguido e seus familiares que iniciam a altercação, sem que nada o justificasse, não se detendo mesmo perante a afirmação do ofendido de que não queria problemas.

O dolo é menos intenso, porque eventual.

As exigências de prevenção geral são elevadas, uma vez que a vida é o bem mais precioso da vivência em sociedade, sendo qualquer comportamento que atente contra este bem jurídico portador de uma forte carga emocional, criando sentimento de insegurança junto das populações, e apesar da prática frequente, perturba fortemente a paz social, pelo que cumpre evitar o efeito imitação, a sua banalização e que se instaure entre os membros da comunidade o sentimento de impunidade pela violação da ordem jurídica.

No que concerne às exigências de prevenção especial, há que ter em consideração, por um lado, que o Arguido não tem antecedentes criminais, por outro lado o modo de actuação revela um desrespeito gritante pela vida do próximo.

Face ao exposto, ponderadas as exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, limitados pela culpa manifestada no cometimento dos factos, considera-se justo e adequado aplicar ao Arguido a pena de 5 (anos) anos e 8 (oito) meses de prisão pela prática do crime de homicídio na forma tentada, apenas justificado pela ausência de antecedentes criminais e dolo eventual apurado o que nos leva a fixar a dosimetria da pena um pouco abaixo do meio da moldura».


Uma primeira observação:

  Contrariamente ao referido pelo Exmº magistrado do MºPº nas conclusões que extrai da sua motivação de recurso, não resultou provado que o arguido, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar supra referidas, se tenha sentido incomodado com a presença, no café, dos dois indivíduos africanos (um dos quais o ofendido) e que os tenha provocado com insultos acerca da cor da pele.

 O que, distintamente, provado ficou é que tais insultos terão sido proferidos pelo irmão do arguido, DD, num primeiro momento dirigidos ao tio do ofendido e, num segundo, a ambos.

 O tribunal colectivo fez, aliás, questão de incluir no rol dos factos não provados que «nas circunstâncias de tempo e lugar descritos em 1. Arguido disse ao Assistente “preto do caralho” e “vou comer a tua mãe”».

 Carece, pois, de suporte fáctico a pretensa elevação da culpa invocada pelo Exmº magistrado do MºPº na conclusão 19º do recurso que interpôs, a reclamar, em seu entendimento, “que a pena se fixe bem acima do ponto intermédio da moldura penal”.


 Aqui chegados:

  O crime de homicídio simples, na forma tentada, é punível com prisão de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses (no acórdão recorrido refere-se, pensamos que por mero lapso, sem expressão relevante na determinação da medida concreta da pena, um limite máximo de 10 anos e 4 meses) – artºs 23º, nº 2, 73º, nº 1, als. a) e b) e 131º, todos do Cod. Penal.

 A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artºs 40º, nºs 1 e 2 do Cod. Penal.

 No que concerne à determinação da medida da pena, estatui-se no artº 71º do Cod. Penal que a mesma é feita “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente (nº 2) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências (al. a)), a intensidade do dolo ou da negligência (al. b)), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (al. c)), as condições pessoais do arguido (al. d)), a sua conduta anterior e posterior ao facto (al. e)) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, quando a mesma deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f)).

 Como refere Germano Marques da Silva, “Direito Penal Português”, III, 130, “a determinação definitiva e concreta da pena é a resultante de um sistema pluridimensional de factores necessários à sua individualização. Um desses factores, fundamento, aliás, do próprio direito penal e consequentemente da pena, é a culpabilidade, que irá não só fundamentar como limitar a pena. (…) Mas para além da função repressiva, medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas – de protecção de bens jurídicos – e de reintegração do agente na sociedade”.

O crime de homicídio constitui objecto de manifesta reprovação geral e gera um compreensível sentimento de insegurança, sendo certo que a frequência com que vem ocorrendo eleva as necessidades de prevenção geral.

 Como correctamente se assinala no Ac. deste STJ de 13/12/2018, Proc. 83/17.4GAARC.P1.S1, da 5ª secção, “a criminalidade contra a vida tem um efeito devastador e potencialmente desestruturante da tranquilidade social comunitária. Os crimes de homicídio constituem um dos factores que maior perturbação e comoção social provocam, designadamente em face da insegurança que geram e ampliam na comunidade. As exigências de prevenção geral são pois de acentuada intensidade”.

 E a vida – como todos, por certo, o reconhecemos - é o bem jurídico mais valioso, aquele de cuja preservação dependem todos os outros.

 Simas Santos e Leal-Henriques, “Noções Elementares de Direito Penal”, 2ª ed., 169, escrevem:

  “(…) a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção negativa, de intimidação, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da regra infringida”.

De outro lado, o arguido não possui antecedentes criminais e reconhece, “em abstrato, o desvalor de condutas similares às descritas na acusação, bem como o impacto das mesmas em eventuais vítimas”.

 Porém, em concreto, não revela idêntico juízo autocrítico: como resulta da fundamentação da convicção evidenciada pelo tribunal recorrido, “o arguido prestou declarações, revelando discurso incoerente, inverosímil, com um propósito claro de aligeirar as suas responsabilidades. Com efeito, apesar de ter admitido que esteve nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, negou ter agredido o ofendido BB com faca, alegando antes que foi ele próprio agredido primeiro com uma faca nas costas, com uma cadeira e uma garrafa na cabeça por um individuo de raça negra que não conhece, nem tão pouco sabe se era o ofendido ou a testemunha CC”.

 Assumem aqui, também por isso, natural expressão as necessidades de prevenção especial.

 No ensinamento de Taipa de Carvalho, “Direito Penal, Parte Geral”, Publicações Universidade Católica, 87 - na determinação da medida e espécie da pena o “critério da prevenção especial não é absoluto, mas antes duplamente condicionado e limitado: pela culpa e pela prevenção geral. Condicionado pela culpa, no sentido de que nunca o limite máximo da pena pode ser superior à medida da culpa, por maiores que sejam as exigências preventivo-especiais (…). Condicionado pela prevenção geral, no sentido de que nunca o limite mínimo da pena (ou a escolha de uma pena não detentiva) pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores juridíco-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima. Em síntese: a prevenção geral constitui o limite mínimo da pena determinada pelo critério da prevenção especial”.

 O arguido agiu com dolo eventual, daí que de menor intensidade. Ainda assim, porém, não deixa de impressionar a forma como o arguido atentou contra a vida do ofendido, desferindo-lhe 5 golpes com um canivete, em zonas do corpo (faces, pescoço e cabeça) onde é do conhecimento generalizado (e, por isso, também do conhecimento do arguido) que se alojam vasos sanguíneos vitais e que, por isso, poderia provocar a morte do ofendido, conformando-se com esse resultado. Essa indiferença perante a possibilidade de retirar a vida a um ser humano, na sequência de uma altercação já com fim à vista (porquanto o ofendido iniciava a fuga do local), não pode deixar de ser tomada em conta na determinação da medida concreta da pena a aplicar.

  É intenso o grau de ilicitude dos factos, expresso na forma como foi cometido: como referido, com recurso, repetido, a um canivete, que utilizou para desferir 5 golpes na face, cabeça e pescoço do ofendido.

 São graves as consequências da infracção: o ofendido teve dores e dificuldade em ver, deslocar-se e dormir; tem vivido em constante estado de medo e pânico, sente-se envergonhado com as marcas com que ficou; deixou de ter o seu normal quotidiano para apenas fazer o trajecto casa-trabalho-casa e tem dificuldade em aceitar as marcas no corpo, o que o faz sentir-se revoltado, envergonhado perante as pessoas, principalmente quando o questionam sobre a origem das cicatrizes.

  O arguido tem estabilidade profissional, é descrito como bom profissional, voluntarioso, assíduo e com bom relacionamento com todos os colegas de trabalho e conta com o apoio de amigos que o visitam com regularidade e contribuem com bens de primeira necessidade.

 Ponderado todo este circunstancialismo, entendemos por adequada uma pena fixada pouco abaixo do ponto médio da pena abstractamente aplicável. E assim entendendo, temos por justa e equilibrada a pena de 5 anos e 8 meses de prisão, encontrada pelo tribunal a quo, que é de manter.

E porque assim é, revendo-nos na pena aplicada em 1ª instância, resta concluir pelo não provimento dos recursos interpostos.


  V. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento aos recursos interpostos pelo arguido e pelo Ministério Público, confirmando integralmente o douto acórdão recorrido.

 Pagará o arguido taxa de justiça que se fixa em 6 UC’s – artº 513º, nº 1 do CPP e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


 Lisboa, 14 de Abril de 2021 (processado e revisto pelo relator)

           

 Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)

 Atesto o voto de conformidade da Exmª Srª Juíza Conselheira Ana Maria Barata de Brito