TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
REINCIDÊNCIA
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
MEDIDA DA PENA
ÂMBITO DO RECURSO
Sumário


I - No tráfico, as condutas gravemente ilícitas elegeram-se em razão da perigosidade abstrata para o bem ou bens jurídicos protegidos com a incriminação.
II - O direito penal da UE estabeleceu a necessidade de uma moldura penal agravada quando “a infração envolva drogas que causam maiores danos à saúde”. Nestas situações a conduta deve ser sancionável “com pena máxima de prisão com uma duração de, no mínimo, entre cinco e dez anos” – art. 4.º, n.º 2, al. b), da Decisão-Quadro 2004/757/JAI.
III - Interpretação normativa que coloque no mesmo patamar todos os estupefacientes, desrespeita não só o regime interno como o direito europeu e convencional universal nesta matéria.
IV - O traço marcante do privilegiamento do tráfico de estupefacientes advém da consideravelmente diminuída da ilicitude da conduta típica.
V - O legislador fornece, exemplificativamente, alguns indicadores de que podem apontar para a diminuição considerável da ilicitude - os meios utilizados; a modalidade da ação; as circunstâncias da ação; a qualidade das plantas, substâncias ou preparações; e a quantidade dos estupefacientes -, conferindo à jurisprudência a tarefa de acrescentar outros indicadores.
VI - De entre as circunstâncias que obstam à “desqualificação” do tráfico contam-se as circunstâncias que agravam a punição previstas no art. 24.º, do DL n.º 15/93.
VII - Assim, a verificação em cada caso de uma circunstância agravante obsta a que possa ter-se por consideravelmente diminuída a ilicitude da mesma atividade.
VIII - As vendas de heroína efetuadas pelo arguido a menos de 50 metros do estabelecimento de ensino frequentado por crianças dos 6 aos 12 anos de idade, visíveis no receio do local onde efetuou as transações, exclui que possa ter-se por consideravelmente diminuída a ilicitude do tráfico assim exercido.
IX - Na confeção da pena concreta o juiz não pode considerar circunstâncias que fazem parte do tipo de crime –art. 71.º, n.º 2, do CP. Nisto se traduzindo a proibição da dupla valoração das mesmas circunstâncias.

Texto Integral


O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em conferência, acorda:


I. RELATÓRIO:

1. a condenação:

No Juízo Central Cível e Criminal ...... - Juiz ..., no processo em epigrafe, mediante acusação do Ministério Publico, imputando-lhe a prática, em como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. p. artºs 21º e 24º, al.ª h) do DL n.º 15/93, foi julgado o arguido:

- AA, de 26 anos e os demais sinais dos autos,

e, por acórdão de 24/04/2020, condenado – no que aqui releva -, pela prática, como reincidente nos termos dos arts. 75° e 76°, n° l, do Cód. Penal, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º, aI. ª a), do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à Tabela I-A anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão.

O Ministério Público impugnou o acórdão do Tribunal coletivo, recorrendo perante a 2ª instância. Peticionou a alteração da qualificação jurídica dos factos para o crime de tráfico “base” e a consequencial elevação da medida da pena.

O Tribunal da Relação ……, por acórdão de 19/11/2020, concedendo provimento ao recurso, revogou a decisão recorrida na parte respeitante à qualificação jurídica dos factos provados condenado o arguido, como reincidente, pela prática, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. art°. 21° nº 1 do DL nº 15/93 de 22/1, na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

2.   o recurso:

Inconformado com o agravamento da condenação, o arguido recorre, agora perante o Supremo Tribunal de Justiça.

Remata a alegação com as seguintes conclusões (em síntese):

1 - Perante os factos dados por provados decidiu o Tribunal da 1ª Instância, e bem, que o crime praticado pelo arguido foi o previsto e punido pelo artigo 25º, al a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, isto é, tráfico de menor gravidade.

2 - Decidiu o Tribunal a quo, no douto Acórdão recorrido, perante a mesma factualidade assente, que o arguido deve ser condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artigo 21º, nº 1, do D. L. nº 15/93, de 22/1.

3 - Tem razão o Tribunal da 1ª Instância na subsunção que faz dos factos ao direito, decisão suportada quer pela doutrina, quer pela jurisprudência actual e sedimentada do Supremo Tribunal de Justiça, ali transcrita, ao invés do Tribunal a quo, uma vez que na análise que faz, levou em consideração factos que não integram do tipo legal do crime, e são externos ao objecto dos autos, no que ao tipo de crime respeita.

4 - É sobre a conduta criminal submetida a julgamento e de acordo com os factos provados, que cumpre apreciar a ilicitude aquando da subsunção dos factos ao direito, o mesmo será dizer, à qualificação jurídica dos factos.

5 - Outros factos – desde que alegados e provados nos presentes autos, o que não é o caso – anteriores ou posteriores àqueles que estão em causa nos autos, não serviriam para a qualificação jurídica, mas sim para a determinação da medida da pena e da reincidência, tal como decidiu o Tribunal a quo, sob pena de existir uma dupla valoração dos mesmos factos: no preenchimento do tipo legal de crime e na moldura penal, quanto à reincidência.

6 - O período de traficância é curto, as transações apontadas e confirmadas são de pequeno número, as quantidades do estupefaciente apreendido são de pequena monta e a quantia apreendida de pouco valor (€ 55,00), sendo, por isso, o lucro diminuto.

7 - Não andou bem o Tribunal a quo, ao decidir revogar o Acórdão da 1ª Instância, e condenar o recorrente pelo crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelo artigo 21º, nº 1 do D. L. 15/93, de 22/1, na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

8 - Ao assim decidir incorreu em erro de julgamento e violou o disposto nos artigos 21º, nº 1 e 25º, al. a) do D.L. 15/93, de 22/1.

9 - Nesta conformidade, a repristinação da decisão da qualificação jurídica efectuada pela 1ª Instância, implicara, também, a repristinação da decisão quanto à medida da pena.

10 - Deve ser revogado o douto Acórdão recorrido, por sofrer dos vícios apontados, e julgar-se o recurso procedente, repristinando-se integralmente a decisão da 1ª Instância.

3.    resposta do Ministério Público:

A Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação responde, pugnando pela improcedência do recurso. Argumenta que a facticidade provada não traduz considerável diminuição da ilicitude e que a reincidência não foi duplamente valorada.

4.   parecer do Ministério Público:

A Digna Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, aderindo à resposta do Ministério Público no Tribunal recorrido pronuncia-se, doutamente, pela improcedência do recurso argumentando (em síntese) que a “avaliação global” da atividade do arguido “não poderá justificar uma diminuição da ilicitude da [sua] conduta”, atendendo “à frequência e à persistência no prosseguimento” do tráfico “à proximidade que tinha com os consumidores, ao tipo de estupefacientes comercializados, e à sua danosidade para a saúde (já que se tratava de uma droga dura), à quantidade do estupefaciente comercializado que não poderá ser considerada diminuta, ao período de tempo em que desenvolveu esta actividade, e ao facto de não lhe ser conhecida qualquer outro meio de subsistência”, “tendo colocado em perigo, ainda que num grau médio, os bens jurídicos protegidos pela sua incriminação”.

5.   contraditório:

Observado o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPP, o arguido nada disse.


«»


Dispensados os vistos, o processo foi à conferência.

Cumpre decidir.

II - OBJETO DO RECURSO:

São as seguintes as questões para julgar:

- qualificação jurídica do tráfico;

- violação do princípio da proibição da dupla valoração.

III – FUNDAMENTAÇÃO:

1. os factos:

Vêm provada a seguinte matéria de facto:

1. Desde pelo menos o verão de 2019 e até 26 de novembro do mesmo ano, o arguido decidiu entregar substâncias estupefacientes, nomeadamente heroína, a todos os indivíduos que o contactassem para o efeito, obtendo como contrapartida um montante pecuniário;

Parte de tais encontros ocorriam, mormente, no Largo .........., em .........., ......., local esse que dista a menos de 50 metros da escola EB1/J1 de ....... - .........;

Assim, o arguido adquiria produto estupefaciente a fornecedor cuja identidade não foi apurada, e após ser contactado pelos consumidores, para o número …………72, fazia-lho chegar em troca do pagamento de dinheiro ou outra contrapartida de natureza patrimonial;

No período compreendido entre o verão de 2019 e 20.11.2019, na zona ..........., em ......., .......... ou então junto ao estabelecimento comercial "........" que se localiza ali próximo, mas na rua principal, o arguido vendeu heroína a BB, com periodicidade quase diária, pelo preço unitário de €20,00;

Durante cerca de 2 meses, entre meados de setembro de 2019 e meados de novembro do mesmo ano, na zona ..............., em .........., o arguido vendeu a CC, pelo menos 2 a 3 vezes por semana, e de cada vez, meio grama de heroína, pelo preço unitário de €20,00;

No período compreendido entre finais de setembro de 2019 e 25 de novembro do mesmo ano, na zona ..............., em .........., o arguido vendeu, com cadência diária, 2 pacotes de heroína, a DD, recebendo como contrapartida a quantia de €20,00 por cada uma das vendas;

No dia 26,11,2019, pelas 8h30, no Largo ........., em ......., ........, o arguido trazia consigo heroína dividida em 10 panfletos com o peso líquido de 4,709 gramas, 1 telemóvel Alcatel com o IMEI ………56 e a quantia de €55,00 (cinquenta e cinco euros);

Nas mesmas circunstâncias temporais, o arguido mantinha no interior da sua residência sita na rua ........, n°. ..., em .........., mais exatamente no guarda-fatos do seu quarto, 10 panfletos de heroína com o peso líquido de 4,988 gramas e 1 faca de cozinha;

À data dos factos, o arguido encontrava-se desempregado, não lhe sendo conhecida qualquer atividade remunerada lícita;

O telemóvel aprendido era usado pelo arguido para combinar com os consumidores as entregas do estupefaciente;

A quantia monetária apreendida foi obtida pelo arguido como contrapartida da venda a terceiros de substâncias estupefacientes;

O arguido destinava o produto estupefaciente que lhe foi apreendido a ser vendido, a um número indeterminado de consumidores, obtendo uma contrapartida monetária ou outra de natureza patrimonial, e assim, concomitantemente, o respetivo lucro;

O arguido efetuava parte das vendas em local próximo de um estabelecimento de ensino frequentado por crianças entre os 6 e os 12 anos de idade, do que tinha perfeito conhecimento pois estas, de tal local, são visíveis quando se encontram no recreio;

O arguido dedicou-se à venda de tais produtos, através da respetiva contrapartida monetária ou outra de natureza patrimonial e desenvolveu esta atividade, não obstante conhecer as características estupefacientes das substâncias que transacionava, assim como as consequências nefastas e aditivas que as mesmas provocavam nas pessoas que as consumiam;

O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal;

2. Por sentença proferida no âmbito do processo n°.1231/13........ do Juízo Local Criminal ........ - Juiz ..., transitada em julgado a 9.5.2014, o arguido foi condenado pela prática no período compreendido entre o início de janeiro de 2013 até ao dia 12 de setembro de 2013, de um crime tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos art°s. 21°, nº 1 e 25°, als.a) e b) do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e subordinada a regime de prova;

A pena suspensa veio a ser revogada a 30 de janeiro de 2017, tendo o arguido cumprido pena de prisão efetiva com início a 28 de abril de 2017 e termo a 27 de fevereiro de 2019;

Por acórdão proferido no âmbito do processo nº 157/15 ......... do Juízo Central Criminal de ......... - Juiz ..., confirmado por acórdão do Tribunal da Relação ...…., transitado em julgado a 27.10.2016, o arguido foi condenado pela prática, no período compreendido entre inícios de 2015 e 2.11.2015, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelos art°s 21°, nº.1 e 25°, al. a), do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de janeiro, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão efetiva;

Para efeitos de liquidação da pena de prisão efetiva proferida no âmbito do processo n° 157/15…..., o início da pena ocorreu a 5.12.2015 e o seu termo a 29.2.2020;

O arguido encontrou-se ininterruptamente privado da liberdade desde 5.12.2015 até 3.4.2019, altura em que o Tribunal de Execução de Penas lhe concedeu a liberdade condicional;

Resulta do exposto que o arguido prosseguiu com a sua atividade criminógena, praticando crime da mesma natureza daqueles que anteriormente acabaram por determinar a sua condenação em prisão efetiva;

Dos factos expostos, constata-se que as condenações anteriores não serviram de suficiente advertência contra o crime;

Resulta do relatório social e do CRC do arguido:

3.  a).  AA, com 26 anos de idade, é o mais velho de uma fratria de dois elementos, nascido no seio de um agregado familiar de precária condição socioeconómica e cultural. A infância decorreu no seio deste agregado, constituído pelos pais e pelo irmão. O pai encontra-se desempregado da área ....... e a mãe é empregada........, igualmente, desempregada. O arguido terá tido o seu processo de crescimento e desenvolvimento envolto numa dinâmica familiar desestruturada em razão do consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do progenitor, hábito aditivo que desencadeou um ambiente conflituoso e violento, que viria a culminar na separação dos pais quando aquele tinha cerca de 17 anos de idade. O pai já cumpriu pena de prisão pela prática de dois crimes de condução em estado de embriaguez. Era precária a situação económica vivenciada, recorrendo, muitas vezes, o agregado familiar a apoio social, nomeadamente, do banco alimentar contra a fome. AA integrou o sistema de ensino em idade própria, no entanto, manifestou, precocemente, dificuldades ao nível da aquisição de conhecimentos e consequente absentismo, o que acabou por comprometer o seu percurso escolar, uma vez que apenas ficou habilitado com o 5° ano de escolaridade. Abandonou o sistema de ensino aos 16 anos de idade, integrando o mercado de trabalho. À data dos factos (26.11.2019), o arguido integrava, o núcleo familiar de origem, constituído pelo progenitor, EE (com 51 anos de idade, desempregado da área ......., habilitado com o 6° ano de escolaridade), pelo irmão, FF (de 24 anos de idade, desempregado, com problemática de toxicodependência, habilitado com o 5° ano de escolaridade) e pela companheira do irmão, GG (com 19 anos de idade, igualmente, desempregada). A dinâmica familiar é tida como minimamente estável, dado o progenitor ter deixado de consumir bebidas alcoólicas. A habitação, cedida pelo Estado, dispõe de boas condições de habitabilidade. O arguido nunca efetivou um percurso laboral regular, tendo desempenhado tarefas indiferenciadas na área ............ (com o progenitor que trabalhava por conta própria), na recolha de sucata, e em época de verão, costuma trabalhar na montagem de palcos para eventos festivos. Em 11.11.2019, através da AQE, iniciou atividade profissional na Junta de Freguesia……., na execução ........ e manutenção de espaços, no âmbito do Programa FIOS (Formar, Inserir e Ocupar Socialmente), que visa a participação de beneficiários do rendimento social de inserção, que se encontrem desempregados, em programas de ocupação que favoreçam a inserção no mercado de trabalho ou satisfaçam necessidades sociais, comunitárias ou ambientais, bem como o desenvolvimento de atividades no âmbito das instituições de solidariedade social. No entanto, em 27.11.2019 foi preso preventivamente, no âmbito dos presentes autos, tendo cessado o referido programa em 25.11.2019. Segundo o Presidente da Junta de Freguesia…...., AA encontrava-se a realizar um bom percurso profissional. A satisfação das necessidades básicas do agregado familiar, até o arguido ter sido preso preventivamente, era assegurada através do subsídio de desemprego recebido pelo progenitor e de apoios sociais recebidos pelo arguido e cunhada, nomeadamente, pelo Rendimento Social de Inserção (RSI). Não obstante a separação dos progenitores, AA vinha a beneficiar do suporte de ambos, essencialmente, por parte da mãe, no que diz respeito à cobertura das necessidades básicas por intermédio do RSI. Ocupava os tempos livres em casa a ver televisão e em jogos de índole informático e com o seu grupo de pares. Apurou-se que este grupo, alguns dos quais seus familiares (primos), da sua faixa etária, são toxicodependentes. O arguido terá iniciado com cerca de 19 anos de idade o consumo de canabinoides, em contexto de frequência de espaços de diversão noturna, chegando a experienciar o consumo de heroína. Não assume qualquer dependência a este nível, mas sim ao nível do consumo abusivo de bebidas alcoólicas, razão pela qual já esteve com acompanhamento clínico por parte da Associação Regional ……. (AR…) no âmbito de dependência alcoólica. Em contexto prisional estará a realizar, somente, a toma de ansiolítico. No âmbito de acompanhamento por parte desta Equipa, em que foi condenado em pena de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova, foi sujeito a realização de testes não só ao álcool, como também, a produtos estupefacientes, tendo os últimos testes de alcoolemia sido efetuados em 28.10.2019 e cujo resultado foi de 0,00g/1 de Taxa de Álcool no Sangue e a produtos estupefacientes em 29.09.2019, encontrando-se os mesmos negativos. O arguido teve o primeiro contacto com o sistema formal de justiça em 2014, já tendo sido condenado em duas penas de multa substituídas por trabalho a favor da comunidade e a uma pena de prisão de seis meses, substituída por trabalho a favor da comunidade, todas pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo todas decorrido dentro da normalidade. Posteriormente, veio a ser condenado a 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, tendo a mesma sido revogada, por ter sofrido nova condenação pela prática do mesmo tipo de crime (tráfico de estupefacientes de menor gravidade). Cumpriu, igualmente, 2 anos e 6 meses de pena de prisão efetiva. Já foi sujeito, a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica. Encontrava-se em liberdade condicional no âmbito do Processo 1918/15......, quando foi preso preventivamente no âmbito dos presentes autos. Face aos factos que lhe são imputados, denotou-se uma ausência de consciência crítica.

Revelou-se recetivo a uma eventual reação penal, encarando a possível perda da liberdade com alguma tranquilidade. AA tende a revelar dificuldades de descentração e não revela interiorização do desvalor da sua conduta, manifestando tendência para atribuir a responsabilidade dos seus comportamentos a fatores externos, sem antecipar as consequências dos seus atos. Pese embora tente analisar o desvalor da sua conduta criminal, identifique alguns fatores de risco e verbalize desejo de mudança, realiza-o de uma forma pouco consistente, indiciando um discurso manipulativo. Assim, AA, com 26 anos de idade, é um jovem nascido no seio de um agregado familiar desestruturado e de precária condição socioeconómica e cultural, marcado pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do progenitor, hábito aditivo que desencadeou um ambiente conflituoso e violento. Trata-se de um jovem com algum grau de desajustamento social, revelando-se incapaz de manter um percurso de vida autónomo, estruturado e socialmente integrado agravado pelo facto de encontrar-se inserido num contexto familiar que não se revela eficaz ao nível da supervisão e contenção de determinados comportamentos de risco, nomeadamente a ligação ao consumo de produtos estupefacientes e álcool, a baixa escolaridade, o desemprego e consequente precariedade económica;

b). o arguido foi condenado:

· por decisão de 31.3.2014, por factos integradores do crime de tráfico de menor gravidade, na pena de prisão suspensa na sua execução;

· por decisão de 7.4.2014, por factos integradores do crime de condução de veículo em estado de embriagues, na pena de multa;

· por decisão de 11.4.2014, por factos integradores do crime de condução de veículo em estado de embriagues, na pena de multa;

· por decisão de 30.6.2014, por factos integradores do crime de condução de veículo em estado de embriagues, na pena de prisão substituída por trabalho a favor da comunidade;    

· por decisão de 12.5.2016, por factos integradores do crime de tráfico de menor gravidade, na pena de prisão; e

· por decisão de 31.1.2017, por factos integradores do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, na pena de multa;

Factos não provados:

Que o arguido não se coiba de transacionar estupefaciente à vista dos alunos da escola próxima do local onde fazia as entregas.

2. o direito:

Tendo a questão da admissão do recurso foi colocada nos autos, deve assinalar-se, ainda que sumariamente, que o aresto da Relação é recorrível perante o STJ, ao abrigo do disposto nos arts. 432º n.º 1 al.ª b) e 400º n.º 1 al.ª f) do CPP, porque não se trata de acórdão meramente confirmatório. Não só alterou a qualificação jurídica para crime mais gravemente punido como – decisivamente - a medida da penal judicial, foi fixada em 5 anos e 4 meses de prisão.

a) da qualificação jurídica do tráfico:

i. argumentação do recorrente:

Insurge-se contra a alteração da qualificação jurídica para o crime de tráfico p. e p. pelo art. 21º do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, operada pelo acórdão recorrido. Reclama a reversão à incriminação decidia na 1ª instância. Alega que em traficou por curto período de tempo, efetuando pequeno número de transações confirmadas, sendo de pequena monta as quantidades do estupefaciente que lhe foi apreendido, de pouco valor (€. 55,00) o numerário apreendido e o lucro obtido diminuto.

ii. na decisão recorrida:

O Tribunal recorrido, na procedência do recurso do Ministério Público, subsumiu os factos provados, cometido pelos arguidos, ao crime de tráfico “base”. Motivou a agravação expendendo (em síntese)

“(…) está em causa (…) - heroína -  de forte potencial aditivo, e grave perigosidade para a saúde dos consumidores, e (…) para a saúde pública, o bem jurídico tutelado, o que à partida tende a deixar a ilicitude da acção acima dos patamares  mínimos.

(…) o arguido vinha procedendo, pelo menos desde o Verão e até 26 de Novembro de 2019, diariamente, à venda de heroína a número indeterminado de indivíduos consumidores que o contactavam para tal, telefónica ou directamente - e não apenas os três relativamente aos quais se apurou ter feito, pelo menos 2 a 3 vezes por semana, e de cada vez, venda de meio grama. Detinha consigo, quando interceptado, e guardava na sua casa, no seu conjunto, cerca de 10 gramas de heroína, dividida em panfletos que destinava integramente à venda (não é consumidor), venda a que procedia como actividade única, pois não se dedica a qualquer outra”.

(…) as vendas aqui em causa se situam num quadro de actividade única de obtenção de meios de vida, não podem encarar-se os factos cometidos pelo arguido numa perspectiva redutora, de pequenas vendas de menor ilicitude.

A venda diária e regular, ainda que de doses individuais, de heroína (droga dura) a consumidores, assumida como actividade constante a que o arguido se dedica (…) ainda que distante das grandes transacções, não é, exactamente pela constância da introdução do estupefaciente no tecido social, conduta de menor ilicitude.

Não pode assim reputar-se a conduta em causa nos autos como de ilicitude consideravelmente diminuída, como exige o preceito, não podendo enquadrar-se no tipo privilegiado (…)”.

iii. o privilegiamento:

A incriminação do tráfico (de estupefacientes e precursores) e outras atividades ilícitas visa proteger a saúde pública, “a segurança e a qualidade de vida dos cidadãos”. Ainda que não seja objeto imediato da proteção penal, visa também proteger “a economia legal, a estabilidade e a segurança do Estado”.

Proclama-se no preambulo da Convenção Única de 1961 sobre Estupefacientes que “a toxicomania é um flagelo para o indivíduo e constitui um perigo económico e social para a humanidade” que “incumbe de prevenir e de combater”. Tanto assim que se tem empreendido esforços no sentido da criação de um direito penal universal sobre o tráfico ilícito de estupefacientes ou pelo menos de uma forte harmonização dos regimes sancionatórios nacionais, neste âmbito.

Portugal, em linha com o direito penal internacional convencional nesta matéria e também na senda do direito penal europeu com idêntica incidência material, tipifica o ilícito criminal fundamental na repressão do tráfico de estupefacientes e outras atividades ilícitas no artigo 21.º n.º 1, do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, estipulando:

1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.

Com abrangência tão vasta, não é excessivo concluir que qualquer atividade, não autorizada pelas entidades competentes, que incida sobre produtos estupefacientes constantes das referidas tabelas, preenche este tipo de crime.

Excetua-se o consumo. E também “a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas do DL n.º 15/93, que não excedam “a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias” – Lei n.º 30/200 de 29/11.

Apesar da amplitude da moldura penal, o legislador, em linha com o estabelecido na Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 20 de Dezembro de 1988 [1] entendeu que “a graduação das penas aplicáveis ao tráfico tendo em conta a real perigosidade das respetivas drogas afigura-se ser a posição mais compatível com a ideia de proporcionalidade. O que não implica necessária adesão à distinção entre drogas duras e leves (…).

Simplesmente, a decisão de uma gradação mais ajustada tem de assentar na aferição científica rigorosa da perigosidade das drogas nos seus diversos aspetos, onde se incluem motivações que ultrapassam o domínio científico, para relevarem de considerandos de natureza sócio-cultural não minimizáveis.”

De certo modo, na lógica deste ideário e também em conformidade com o estipulado na Convenção referida –art. 3º n.º 4 al. ª a) -, criou tipos, privilegiados e agravados – adequados à dimensão da ilicitude das diversas modalidades da ação ou, na expressão de J. Figueiredo Dias, que “contendem com a maior ou menor gravidade do crime como um todo[2].

Entre os primeiros – tipos privilegiados -, sobressai (para a economia deste recurso) o crime de tráfico de menor gravidade previsto no art.º 25º do DL n.º 15/93, estatuindo:

Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.”

O traço marcante do privilegiamento advém da consideravelmente diminuída da ilicitude da conduta típica.

Esta norma que desgradua a punição do tráfico de menor entidade sucedeu à que anteriormente – o art.º 24º do DL n.º 430/83 de 13/12 -, punia o tráfico de quantidades diminutas. Com, além do mais, uma importante diferença: aquela norma fornecia o conceito legal de quantidades diminutas que podia determinar-se com suficiente precisão, como, em certa medida, se pode extrair atualmente do disposto na Portaria n.º 94/96 de 26 de março – art.9º e respetivo mapa anexo.

Na vigente incriminação do tráfico de menor gravidade, o legislador limitou-se a fornecer, exemplificativamente, alguns indicadores de que pode resultar essa modalidade consideravelmente diminuída da ilicitude do tráfico de estupefacientes - os meios utilizados; a modalidade da ação; as circunstâncias da ação; a qualidade das plantas, substancias ou preparações; e a quantidade dos estupefacientes -, conferindo à jurisprudência a tarefa de acrescentar outros indicadores que possam servir para emprestar ao tráfico uma considerável diminuição da ilicitude. Exige-se, todavia, que o labor jurisprudencial resulte no estabelecimento de parâmetros gerais e uniformes, de modo a salvaguardar que situações comparáveis não sejam tratadas de forma diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de modo igual, a menos que tal tratamento seja objetivamente justificado por uma particular e especial circunstância, irrepetível, que só pode ocorrer num determinado caso.

Nessa tarefa de clarificação dos indicadores que podem desgraduar a responsabilidade penal dos traficantes de quantidades menores, a jurisprudência tem apontado outras circunstâncias que podem também diminuir consideravelmente a ilicitude do tráfico, designadamente: atuação individual ou em pequena entreajuda; sem que sejam utilizados meios sofisticados; que não seja exercido como modo de vida; ausência de lucros ou vantagens; os proventos obtidos servirem para financiar consumos do próprio e de familiares ou equiparados; pequena “carteira” de compradores ou consumidores; curto período de tempo; ocasionalidade do tráfico; não implicação de familiares; não se servir de colaboradores; pequena e circunscrita territorialidade da atividade; inexistência de contactos internacionais[3], que não concorram circunstâncias que possam agravar o crime.

A jurisprudência sustenta que uma destas circunstâncias, por si só, regra geral, não é suficiente para diminuir consideravelmente a ilicitude do tráfico. O que releva, decisivamente, é a imagem global da concreta atividade de tráfico desenvolvido pelo agente.

Sustenta-se no citado Ac. de 2/10/2019, deste Supremo Tribunal que “estas circunstâncias devem ser avaliadas globalmente. Dificilmente uma delas, com peso negativo, poderá obstar, por si só, à subsunção dos factos a esta incriminação, ou, inversamente, uma só circunstância favorável imporá essa subsunção. Exige-se sempre uma ponderação que avalie o valor, positivo ou negativo, e respetivo grau, de todas as circunstâncias apuradas e é desse cômputo total que resultará o juízo adequado à caracterização da situação como integrante, ou não, de tráfico de menor gravidade”.

“É a imagem global do facto, ponderadas conjuntamente todas as circunstâncias relevantes que nele concorrem, que permitirá a identificação de uma situação de ilicitude consideravelmente diminuída, ou seja, uma situação em que o desvalor da ação é claramente inferior ao padrão ínsito no tipo fundamental de crime – o tráfico de estupefacientes previsto no art. 21º[4].

Alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal sustenta também que não pode ter-se a ilicitude por consideravelmente diminuída quando no caso ocorrer alguma das circunstâncias que, nos termos do art.º 24º, agravam o crime de tráfico. Assim, no Ac. de 28/10/2015 sustentou-se[5]:ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art. 24.º, do DL 15/93.

O legislador do direito penal da União Europeia (EU) nesta matéria – Decisão-Quadro 2004/757/JAI - considerou que “para determinar o nível das sanções, deverão ser tomados em conta elementos de facto, tais como as quantidades e o tipo de drogas traficadas e a circunstância de a infração ter ou não sido cometida no âmbito de uma organização criminosa”.

E quanto ao tipo de drogas traficadas estabeleceu a necessidade de uma moldura penal agravada quando “a infração envolva drogas que causam maiores danos à saúde”. Nestas situações a conduta deve ser sancionável “com pena máxima de prisão com uma duração de, no mínimo, entre cinco e dez anos” – art. 4º n.º 2 al.ª b) da cit. Decisão-Quadro.

As drogas psicotrópicas ou psicoactivas, assim como as drogas estimulantes, criam adição e, por isso, são especialmente daninhas para a saúde dos consumidores e, reflexamente, para a saúde pública.

Uma das substâncias psicoativas é heroína. É um opioide que desenvolve tolerância com grande rapidez”, obrigando a aumentar a quantidade autoadministrada, “com o fim de conseguir os mesmos efeitos que antes eram conseguidos com doses menores, o que conduz a uma manifesta dependência. Passadas várias horas da última dose, o viciado necessita de uma nova dose para evitar a síndrome de abstinência provocada pela falta dela. “Devido aos seus potentes efeitos eufóricos e à intensidade da sintomatologia de abstinência, geram um alto grau de dependência. Há milhares de pessoas no mundo inteiro que tentam tratar a dependência destas substâncias” – pag. web do SICAD. Tratamento consiste em terapia comportamental e medicação.

Estima-se que em 2015 houvesse em todo o mundo 17 milhões de consumidores de opiáceos como a heroína[6]. No mesmo ano, os opioides foram a causa de 122 000 mortes[7].

A heroína é uma droga associada a graves problemas sociais e de saúde. O heroinómano acaba desligado da realidade social, com problemas familiares e profissionais e muitas vezes envereda pela criminalidade.

A heroína constitui o eixo, em valor (não assim em quantidade), do narcotráfico nacional e internacional.

“Os opiáceos, sobretudo a heroína ou os seus metabolitos, frequentemente em combinação com outras substâncias, estão presentes na maioria das overdoses fatais notificadas na Europa”. “A heroína foi a terceira substância mais comum nos casos de intoxicações agudas relacionadas com droga monitorizados pela Euro-DEN Plus, em 2018 [8]..

iv. no caso:

Vejamos, a esta luz, o caso dos autos.

Está assente nos factos provados que o recorrente durante cerca de 3 meses (de setembro a novembro de 2016) traficou heroína. Estupefaciente que adquiria, guardava, acondicionava e vendia aos consumidores que o procurassem para o efeito, em “pacotes”, “panfletos” ou meia grama, ao preço de €20,00.

Identificaram-se 3 compradores e quem vendeu, dois deles diariamente e ao outro 2 a 3 vezes por semana, em cada transação meia grama de heroína.

As encomendas e os locais de transação eram combinados, habitualmente, através de comunicação via telemóvel.

Ao arguido foram apreendidas 9,697 gramas de heroína, já dividida em 20 “panfletos”, prontos para venda e entrega.

A factualidade assente, plasma a situação de um “pequeno” traficante de heroína, retalhista distribuidor de rua que vende a quem o procura ou ocasional ou habitualmente aparece. Vendas que efetuava essencialmente nas imediações – a menos de 50 metros - de um estabelecimento de ensino de crianças de 6 a 12 anos de idade.

Não sendo consumidor, vendia com intenção lucrativa, de modo a obter rendimentos que lhe permitissem subsistir sem trabalhar.

Circunstancialismo fáctico provado que não permite concluir pela considerável diminuição da ilicitude do tráfico exercido pelo arguido, como bem conclui o Tribunal da Relação no acórdão recorrido.

E não admite por três razões essenciais:

A primeira, de peso, - convocada na decisão recorrida -, resulta da qualidade do estupefaciente traficado: heroína.

Como se assinalou, a qualidade do estupefaciente é uma das circunstâncias que o legislador catalogou para ajuizar do grau da ilicitude consideravelmente diminuída do tráfico. Se o legislador manda atender a esse facto, não pode o interprete desconsiderar a indicação legislativa e conferir igual tratamento a todo e qualquer estupefaciente. O aplicador do direito não pode adotar interpretação que desconsidera a letra da lei.

Acresce, como se referiu, que o direito penal internacional e o direito penal europeu consideram circunstância agravante da punibilidade, a qualidade do estupefaciente traficado.

 Interpretação normativa que coloque no mesmo patamar todos os estupefacientes, desrespeita não só o regime interno como os direitos europeu e convencional universal nesta matéria.

A segunda razão reside em que não sendo consumidor, o arguido -  conforme resulta dos factos provados - traficava como “profissão”, sendo com os proventos dessa atividade que custeavam as suas despesas. Não se apura que estivesse empregado ou tenha exercido qualquer atividade profissional lícita, com caráter permanente e remunerado. Também não se lhe conhecem outras fontes de rendimentos com que pudesse governar-se e adquirir a heroína. Era, pois, esta a sua ocupação e modo de vida.

A terceira e decisiva razão, porque traficou – vendeu heroína - nas imediações de uma escola frequentada por crianças de 6 a 12 anos de idade. Sendo o arguido perfeitamente conhecedor dessa circunstância até porque do local onde efetuou entregas as crianças “são visíveis quando se encontram no recreio” – facto julgado provado.

Vender estupefacientes a menos de 50 metros de um estabelecimento de ensino em local visível das crianças no recreio é, inquestionavelmente, traficar nas suas imediações. Circunstância que o legislador, sem mais exigências, elencou como tipicamente agravante do tráfico - art. 24º al.ª h) do DL n.º 15/93 citado.

No recente Ac. de 6/01/2021, deste Supremo Tribunal – 3ª secção –, sustenta-se: “Na tarefa de clarificação dos indicadores que podem desgraduar a responsabilidade penal dos traficantes de quantidades menores, a jurisprudência tem apontado circunstâncias que podem diminuir consideravelmente a ilicitude do tráfico, designadamente: (…) que não concorram circunstâncias que podem agravar o crime[9]”.

Nesta linha jurisprudencial, se poderá, no limite, admitir-se que o tráfico rudimentar e de muito baixa escala, cometido em alguma das circunstâncias catalogadas como agravantes do tipo de ilícito, pode punir-se aplicando a moldura do crime “base”, também se entende que a verificação de uma qualquer dessas circunstâncias obsta a que possa ter-se por consideravelmente diminuída a ilicitude da mesma atividade. Entendimento diverso corporiza dupla valoração da mesma “circunstância fáctica”: primeiramente para desagravar a ilicitude; uma segunda vez para privilegiar o mesmo facto ilícito típico. Em outro registo: num primeiro momento o mesmo facto provado influi no desagravamento da punibilidade; num segundo momento ignora-se o elemento agravante provado para desqualificar a ilicitude do mesmo comportamento humano gravemente ilícito.

No tráfico, as condutas gravemente ilícitas elegeram-se em razão da perigosidade abstrata para o bem ou bens jurídicos protegidos com a incriminação. “Nos crimes de perigo abstrato o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição. Quer dizer, neste tipo de crimes são tipificados comportamentos em nome da perigosidade típica para um bem jurídico, mas sem que ela necessite de ser comprovada no caso concreto: há como que uma presunção inelidível de perigo e, por isso, a conduta do agente é punida independentemente de ter criado ou não perigo efetivo para o bem jurídico.[10]

Outro tanto sucede com a agravação e também com o desagravamento da punição, em função da escala de gravidade da perigosidade abstrata do facto. Nas duas incriminações – a agravada e a de menor gravidade -, o legislador guiou-se exclusivamente por razões da ilicitude, sem ter em mente considerações atinentes ao elemento subjetivo do tipo.

Com todo o respeito que tributamos a entendimento diverso, consideramos grave entorse à interpretação da lei e ao espírito do legislador nela expressamente plasmado, convocar o desvalor do resultado - como não raramente se vê suceder -, e considerações atinentes à culpa. Na primeira situação, adicionando o resultado como elemento do tipo, subverte-se o tráfico de crime de perigo abstrato -, em crime de perigo concreto. Na segunda situação em frontal negação da inultrapassável literalidade das normas dos artigos 24º e, especialmente, do art. 25º, na qual o legislador foi taxativo, socorrendo-se propositadamente da expressão “ilicitude consideravelmente diminuída”.

Do que vem de dizer-se decorre que o tráfico exercido pelo arguido a menos de 50 metros do estabelecimento de ensino frequentado por crianças dos 6 aos 12 anos de idade, que do local onde efetuou as vendas eram visíveis no recreio, obsta à que possa ter-se por consideravelmente diminuída a ilicitude desta sua atividade, ainda que os meios utilizados para traficar não fossem sofisticados, nem tivesse resultado provado que de uma só vez tenha comprado ou vendido quilogramas de heroína ou obtido lucros consideráveis.

Assim, o conjunto das circunstâncias enunciadas e, com maior densidade, a referida em último lugar, sempre impediria de julgar que a ilicitude se apresenta degrada a um patamar tão inferior ao normal que possa qualificar-se de consideravelmente diminuída.

Ainda que sem dados científicos, socorrendo-nos, portanto, apenas das regras da experiência comum, podemos concluir que os vulgarmente ditos traficantes de rua são um elo absolutamente indispensável e, por conseguinte, muito importante na fileira que se encadeia desde a produção ao consumo. Sem estes, os produtores, os fabricantes e os grossistas não conseguiriam facilmente alcançar um elevado número de compradores. Acresce que os “traficantes de rua” não se limitam à mera intermediação na circulação do produto até ao consumidor final. Quase sempre manipulam os estupefacientes adicionando-lhe substâncias usualmente ditas de “corte” que não deixam de os tornar, muitas vezes, ainda mais prejudiciais para a saúde dos consumidores.

Por outro lado, não basta que o desvalor da conduta se situe ao nível inferior do barómetro da ilicitude do crime de tráfico (matricial). Para que o tráfico possa integrar o tipo privilegiado previsto no art.º 25º do DL n.º 15/93 de 22/01, exige-se uma “degradação” bem mais acentuada, é indispensável que a ilicitude se apresente com uma diminuição de tal ordem que deva, na expressão da lei, ter-se por consideravelmente diminuída. Se assim não se apresentar, o grau mais baixo da ilicitude do tráfico influirá na determinação da medida da pena, naturalmente dentro da moldura penal do crime de tráfico do art.º 21º, mas não permite subsumi-lo ao tráfico de menor gravidade.

É assim que se apresenta a realidade histórica demonstrada pelos factos provados. O grau de ofensividade à lei e as circunstâncias da ação, estão longe de configurar ilicitude consideravelmente diminuta.

Bem andou o Tribunal da Relação corrigindo a decisão da 1ª instância porque o tráfico exercido pelo recorrente contém, sem dúvida, circunstancias que não permitam subsumi-lo à previsão do art.º 25º al.ª a) citado. Os factos provados, cometidos pelo arguido, preenchem o crime de tráfico previsto no art.º 21º do DL 1/93, de 22 de janeiro.

Improcede, por isso, esta pretensão do recorrente.

b) da dupla valoração de circunstâncias:

i. argumentação do recorrente:

Argumenta que a sua atividade pretérita foi considerada na qualificação dos factos e ao mesmo tempo para o punir como reincidente.

ii. no acórdão recorrido:

O Tribunal da Relação, motivou a alteração da qualificação jurídica dos factos, acrescentando ao supra se transcrito (sumariamente), o seguinte:

como se infere das suas condenações anteriores, há muito a ela se vinha dedicando - desde o ano de 2013 - sofrendo condenações, nomeadamente em penas de prisão que foi cumprindo, sendo que quando é colocado em liberdade volta a vender, só interrompendo essa actividade quando privado de liberdade. (…)

A venda diária e regular, ainda que de doses individuais, de heroína (droga dura) a consumidores, assumida como actividade constante a que o arguido se dedica sempre que está em liberdade, ainda que distante das grandes transacções, não é, exactamente pela constância da introdução do estupefaciente no tecido social, conduta de menor ilicitude.

iii. proibição de dupla valoração:

O arguido foi condenado como reincidente. Condenado, anteriormente, por duas vezes, pela prática do crime de tráfico de menor gravidade cumpriu penas de prisão. Concedida liberdade condicional em 3.04.2019, volvidos menos de cinco meses estava outra vez a traficar. Concluiu-se na decisão condenatória “que as condenações anteriores não serviram de suficiente advertência contra o crime” (no caso, contra o mesmo tipo de crime doloso).

Resulta do exposto que pelo tráfico pretérito – que exerceu entre o início de janeiro e setembro de 2013; e entre os inícios de 2015 e 2.11.2015 -, foi o arguido anteriormente condenado e que o cumprimento de pena de prisão então aplicada (pressupostos formais), fundamentou a prova do pressuposto substantivo da reincidência (no caso, homótropa).

Reincidência que é uma circunstância modificativa agravante da punição – elevando a moldura mínima - em razão da culpa agravada do agente pela rápida (nos 5 anos seguintes à libertação) sucumbência na reiteração criminosa.

Por determinação expressa do legislador penal, na confeção da pena concreta o juiz não pode considerar circunstâncias que fazem parte do tipo de crime –art. 71º n.º 2 do Cód. Penal. “Não apenas os elementos do tipo-de-ilícito em sentido estrito, mas todos os elementos que tenham sido relevantes para a determinação legal da pena[11]. Sumariamente, nisto se traduzindo a proibição da dupla valoração das mesmas circunstâncias.

Neste conspecto, o trafico desenvolvido pelo arguido entre 2013 e 2 de novembro de 2015, não pode legitimar a alteração da qualificação jurídica e, simultaneamente (duplamente valorada), fundamentar a sua punição como reincidente.

Se neste segmento a argumentação do recorrente se apresenta consistente, todavia, como supra se expôs, a confirmação da qualificação jurídica decidida no acórdão recorrido, resultou corrigida, excluindo-se dos motivos justificadores da subsunção da matéria de facto provado ao tipo de ilícito aplicado, a atividade de tráfico pela qual o arguido foi condenado entre o início de janeiro de 2013 e 2 de novembro de 2015. Mesmo o motivo atinente à atividade “profissional”, acima considerada, circunscreveu-se aos cerca de 4 meses nos quais o arguido abraçou o tráfico como única atividade da qual obtinha proventos para prover às suas despesas.

Por conseguinte, ainda que lhe assistisse razão em tal argumento, contudo, retificado que resultou, não tem qualquer efeito prático sobre o resultado final do respetivo recurso. No acórdão recorrido considerou-se, também a qualidade do estupefaciente, a pluralidade de compradores a quem o arguido vendeu e e atividade ainda que desde o início de 2013. Aqui confirma-se a alteração da qualificação jurídica em razão da qualidade do estupefaciente traficado, da atividade como modo de vida, mas com restrição do período considerado nos factos provados e, sobretudo, em razão de se ter provado que traficou a menos de 50 metros de estabelecimento de ensino frequentado por crianças dos 6 aos 12 anos, de local de onde se viam no recreio.

Pelo que, embora por razões não totalmente coincidentes com as enunciadas no acórdão recorrido. Improcede o recurso do arguido.

c) da medida da pena:

O recorrente não obteve procedência na desqualificação do crime de tráfico. Não questiona a dosimetria da pena judicial para a hipótese de não proceder a reclamada reversão da qualificação jurídica para o crime de tráfico de menor gravidade. Pelo que não haveria que conhecer de questão que não suscita.

De qualquer modo, em razão da punição como reincidente, o mínimo da moldura penal do crime de tráfico por que vem condenado eleva-se para 5 anos e 4 meses de prisão – art.º 77º do Cód. Penal.

Como o arguido está condenado em pena igual ao limiar mínimo da moldura penal do crime de tráfico p. e p. pelo art.º 21º n.º 1, não é possível rebaixá-la. Não admite, pois, intervenção corretiva. 


IV. DECISÃO:

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça -3ª secção criminal-, decide:

a) julgar improcedente o recurso do arguido, confirmando-se o acórdão recorrido;


*


Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs – art. 513º n.º 1 do CPP, art.º 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das CustasProcessuais.


Supremo Tribunal de Justiça, 14 de abril de 2021.


Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

Atesto o voto de conformidade da C.ª Juíza Conselheira Maria Teresa Féria de Almeida – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[12] .

Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira adjunta)

________

[1] Artigo 3º n.º 4 al.ª a)  “As Partes tornam a prática de qualquer das infrações estabelecidas de acordo com o n.º 1 deste artigo passível de sanções proporcionais à sua gravidade, tais como pena de prisão ou outras penas privativas de liberdade, multa e perda de bens”.
[2] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, noticias editorial, pag. 199/200.
[3] Ac. STJ de 2-10-2019, proc. 2/18.0GABJA.S1, www.dgsi.pt.
[4] Ibidem.
[5] Proc.  411/14.4PFVNG.P1.S1, in www.dgsi.pt
[6] «Statistical tables». World Drug Report 2016 (pdf). Vienna, Austria: [s.n.] Maio de 2016. p. xii, 18, 32. ISBN 978-92-1-057862-2.
[7] GBD 2015 Mortality and Causes of Death, Collaborators. (8 de outubro de 2016). «Global, regional, and national life expectancy, all-cause mortality, and cause-specific mortality for 249 causes of death, 1980-2015: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2015.». Lancet. 388 (10053): 1459–1544. PMID 27733281. doi:10.1016/s0140-6736(16)31012-1
[8] Na CE vd. Relatório Europeu sobre Drogas, 2020, Questões Chave, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência
[9] Proc. n.º 2/19.3PBPTM.S1, in www.dgsi.pt.
[10] J. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Coimbra editora, pag. 309.
[11] Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, cit., pag. 234.
[12]   Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.