RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ASSISTENTE
PENA DE PRISÃO
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
INTERESSE EM AGIR
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
PENA PARCELAR
DUPLA CONFORME
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
INADMISSIBILIDADE
PENA ÚNICA
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
INDEMNIZAÇÃO
PEDIDO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DIREITO AO RECURSO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário


I - Considerando a necessidade de demonstração de interesse processual pelo assistente, verificamos que este é, no presente caso, demonstrado em diversos pontos: os assistentes não só aderiram integralmente à acusação do Ministério Público assim demonstrando claramente o seu interesse na condenação e punição da arguida, como intervieram, nomeadamente através de mandatário, não só aquando do debate instrutório como também aquando da audiência de discussão e julgamento, e responderam ao recurso interposto pela arguida para o Tribunal da Relação; além disto, o assistente, tendo tido uma intervenção ativa ao longo de todo o processado, deve igualmente poder alegar nulidades ou irregularidades da decisão que delibera sobre factos que contra ele foram perpetrados, e nessa medida constituindo um recurso de uma decisão que o afeta. Conclui-se, pois, pela legitimidade do assistente, nos termos do art. 401.º, n.º 1, al. b), do CPP, para interpor o recurso apresentado.
II - Concluindo pela confirmação da condenação da arguida pelos diversos crimes — tentativa de homicídio qualificado — e tendo ocorrido um desagravamento da responsabilidade criminal e uma dupla conforme in mellius, entende-se não ser admissível o recurso por força do disposto nos arts. 432.º, n.º 1 al. c), e 400.º, n.º 1, al. f), ambos do CPP, em tudo o respeitante aos crimes por que foi condenada.
III - Sabendo que, por acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi atribuída a indemnização civil aos demandantes LT e MM, e que por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não só foi absolvida a demandada do pedido de indemnização civil de LT, mas também foi alterada a indemnização atribuída ao demandante MM, entende-se, nesta parte, ser recorrível o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, por força do disposto no art. 400.º, n.º 3, do CPP, e arts. 629.º, e 671, n.º 1 e 3 (a contrario), ambos do CPC.
IV - Se é certo que, por um lado, o dever de fundamentação não se impõe irrestritamente a todos e a quaisquer atos judiciais (ou do MP), mas somente aos “atos decisórios”, nos quais se compreendem, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do citado artigo, os acórdãos, as sentenças e os despachos judiciais que decidam questões interlocutórias ou que ponham termo ao processo mas sem conhecer do mérito da causa; por outro lado, todos os restantes atos processuais dos juízes, assumam ou não um cunho decisório, não se encontram subordinados ao dever de fundamentação, como, por exemplo, os atos ou as decisões de mero expediente, ou seja, aquelas que se limitam a ordenar ou a regular a marcha processual, mas sem interferir com os direitos ou com os interesses juridicamente protegidos dos sujeitos processuais envolvidos no processo (aliás, o art. 205.º, n.º 1, da CRP, afasta expressamente o dever de fundamentação quanto às decisões de mero expediente).
V - A fundamentação dos atos judiciais não deve ser compreendida como uma finalidade em si mesma, mas antes como um instrumento ou como uma exigência inscrita em nome dos direitos e das garantias de todos sujeitos processuais, mais particularmente do arguido, que logo cede e deixa de ter sentido quando esse ato não seja suscetível de interferir com a resolução do litígio.
VI - A parte final do citado n.º 5 do art. 97.º, do CPP, explicita que o dever de fundamentação se desdobra quer na fundamentação de facto, quer na fundamentação de direito, prendendo-se a primeira com a prova ou com a falta dela, com todos os motivos que levaram o tribunal a considerar provados determinados factos em detrimento de outros que não ficaram demonstrados, enquanto que a fundamentação de direito se relaciona com a argumentação jurídica de que o tribunal se socorreu (ou se deve socorrer) para encontrar a solução concreta para o caso ou, dito por outras palavras, o enquadramento jurídico que foi encontrado pelo juiz para o quadro factual que foi objeto de julgamento no processo.
VII - Da conjugação art. art. 97.º, n.º 5, do CPP, com os demais atinentes aos atos decisórios dos juízes, muito em particular com os arts. 118.º, n.ºs 1 e 2, 123.º, n.ºs 1 e 2, 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. a), e 425.º, n.º 4, todos do CPP, resulta inequívoco que o dever de fundamentação não assume exatamente a mesma extensão consoante o ato decisório seja um simples despacho interlocutório, uma sentença de um tribunal singular ou um acórdão de um tribunal ou coletivo de 1.ª instância ou, ao invés, um acórdão de um tribunal de superior grau hierárquico, proferido em sede de recurso.
VIII - As sentenças e os acórdãos que conheçam do objeto da causa estão feridos de nulidade, caso não explicitem os motivos de facto e de direito da decisão, como decorre expressamente da conjugação do disposto nos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP; ao invés, a falta de fundamentação dos demais atos decisórios dos juízes constitui, por princípio, uma simples irregularidade, em resultado da aplicação do regime geral das invalidades dos atos processuais previsto nos arts. 118.º, n.ºs 1 e 2, e 123.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPP.
IX - Ainda que possamos afirmar que as exigências em matéria de fundamentação dos acórdãos proferidos em sede de recurso não sejam tão intensas quanto as relativas aos acórdãos proferidos em 1.ª instância, ainda assim entendemos que os acórdãos proferidos em recurso têm que fundamentar de forma explícita e completa os alicerces da sua decisão e da sua divergência (quando for o caso) relativamente ao acórdão de 1.ª instância; a imposição constitucional de fundamentação das decisões exige que a diferente decisão do tribunal de recurso esteja suficientemente explicada para que todos os intervenientes processuais possam entender (e dessa forma mais facilmente aceitar) a nova decisão.
X - Numa moldura entre os 6 anos de prisão e os 25 anos, sabendo que se trata de uma delinquente primária, entendemos que a pena única deverá ficar claramente abaixo da metade da moldura penal; sabendo que o meio da moldura penal se situa aproximadamente nos 15 anos, consideramos que, atentas as fortes exigências de prevenção especial, a pena de 13 anos de prisão é a adequada, necessária e proporcional de acordo com uma análise global dos factos e da personalidade da arguida neles refletida.
XI - Compulsado o acórdão recorrido e as conclusões ali transcritas do recurso interposto pela arguida para o Tribunal da Relação, verifica-se que do recurso apresentado não resulta qualquer impugnação do acórdão do Tribunal de 1.ª instância quanto às indemnizações arbitradas — após alegar que as indemnizações civis arbitradas o foram com base em factos que não estão dados como provados, em parte alguma apresenta pedido para que o valor das indemnizações seja alterado, nomeadamente, em parte alguma se insurgindo contra os concretos montantes arbitrados, não havendo, pois, qualquer impugnação destes montantes.
XII - O Tribunal a quo alargou âmbito do pedido (formulado no recurso), tal como foi apresentado pela recorrente; o pedido foi alterado, foi ampliado, tendo o Tribunal se pronunciado sobre questão de que não podia tomar conhecimento — arts. 425.º, n.º 4 e 379.º, n.º 1, al. c), do CPP; a simples análise dos montantes indemnizatórios sem que o tema faça parte do pedido no recurso apresentado pela arguida constitui excesso de pronúncia, sendo o acórdão recorrido nulo, por força do disposto nos arts. 425.º, n.º 4, e 379.º, n.º 1 al. c), ambos do CPP.
XIII - Atenta a nulidade do acórdão recorrido, nos termos do art. 379.º, n.º 2, do CPP, deve (nos termos da lei) o Tribunal de recurso supri-la; porém, consideramos que tal só é admissível quando, por um lado, o Tribunal de recurso tenha todos os elementos que lhe permitam suprir a nulidade e, por outro lado, quando em consequência de tal suprimento não fique limitado um eventual direito de recurso.
XIV - O direito de recurso poderia ter sido exercido impugnando os montantes indemnizatórios atribuídos caso falecesse a outra impugnação (o que não aconteceu), pelo que a recorrente não exerceu o (seu) direito a recurso nesta parte; o conhecimento do recurso quanto à matéria civil ficou prejudicado por o âmbito do direito de recurso ter sido voluntariamente restringido pelo exercício que dele se fez.

Texto Integral




Proc. n.º 214/19.0JDLSB.L1. S1

I

Relatório

1. No Tribunal Judicial da Comarca ....... (Juízo Central Criminal ….... — Juiz …), por acórdão de 20.07.2020, a arguida AA foi julgada e condenada

«pela prática, em autoria material e em concurso real de infracções, das seguintes penas parcelares:

 - 7 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada (1.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas a), c), e j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal;

- 7 anos e 3 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada (2.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas a), c), e j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal;

- 7 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada (3.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas a), c), i) e j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal;

- 7 anos e 9 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada (4.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas a), c), i) e j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal;

- 8 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada (5.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas a), c), i) e j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal;

- 8 anos e 3 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada (6.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas a), c), i) e j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal; e

- 8 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada (7.º episódio), p. e p., nos artigos nos artigos 132.º n.º 1 e n.º 2 alíneas a), c), i) e j), por referência ao 131.º n.º 1, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal.»

Em cúmulo jurídico, foi condenada na pena de prisão de 17 anos.

Foi ainda condenada, quanto aos pedidos de indemnização civil apresentados,

- «a pagar ao demandante BB, representado pelo seu pai CC, a quantia de € 300.000,00 (trezentos mil euros), a título de danos não patrimoniais»;

- «a pagar ao demandante CC a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais»;

- «a pagar à demandante "Centro Hospitalar ……, E.P.E." a quantia de € 2.477,85 (dois mil quatrocentos e setenta e sete euros e oitenta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 4% e devidos desde a data de notificação do pedido de indemnização cível até integral pagamento.»;

- «a pagar à demandante "Centro Hospitalar Universitário ......, E.P.E." a quantia de € 20.137,52 (vinte mil cento e trinta e sete euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 4% e devidos desde a data de notificação do pedido de indemnização cível até integral pagamento.»

Foi ainda decidido:

- «Não condenar a arguida AA na pena acessória da proibição de contacto com a vítima BB» e

- «Declarar a incompetência material do tribunal criminal para apreciar e decidir da inibição do exercício do poder paternal da arguida AA em relação ao menor BB.»

2. Inconformada, a arguida interpôs recurso para o Tribunal da Relação …….. que, por acórdão de 02.12.2020, decidiu:

«a) Em confirmar a condenação da recorrente por sete crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, com a qualificação jurídica feita pelo acórdão recorrido, mas fixando a pena parcelar por cada um desses crimes em seis (6) anos de prisão;

b) Em condenar a recorrente, em cúmulo jurídico dessas penas, na pena única de dez (10) anos de prisão;

c) Em absolver a arguida/demandada, do pedido de indemnização formulado pelo demandante CC;

d) Em reduzir a indemnização arbitrada ao demandante BB, representado pelo seu pai CC, para €100.000 (cem mil euros);

e) Em confirmar o acórdão recorrido no restante».

3. Inconformados com tal decisão, o assistente e demandante CC [em seu nome, e na qualidade de progenitor e representante legal do filho (menor de 16 anos)] e o assistente e demandante BB vieram interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo terminado o recurso com a apresentação das seguintes conclusões:

«A) – Quanto à dosimetria da pena de prisão aplicada/reduzida à arguida:

1ª – O TR.... falhou no processo de fundamentação que, neste conspecto, lhe era exigido desenvolver e concretizar, violando as disposições conjugadas do artigo 205º, n.º 1 da CRP, com o artigo 97º, nºs 2 e 5 do CPP, inquinando o acórdão recorrido de nulidade, nos termos do n.º 2 do artigo 374º, e do n.º 1-a)-1ª parte e c)-1ª parte do artigo 379º (ex vi artigo 425º, n.º 5), todos do CPP.

2ª – Tal vício torna, nesta parte, a decisão proferida inválida e a carecer de sanação/supressão – desiderato que, versando questão unicamente de direito, está perfeitamente ao alcance deste STJ (evitando o reenvio do processo) – artigo 434º do CPP –, enquanto investido de amplos poderes para o efeito, defendendo-se que tal sanação/supressão terá de ser feita com a “repristinação” da decisão proferida pela Primeira Instância.

3ª – Com efeito, ao incorrer na denunciada nulidade, e, paralelamente a esse quadro invalidante, ao decidir como decidiu, convolando o comportamento da arguida para a categoria do dolo eventual; e reduzindo, substancialmente, quer todas as penas parcelares para 6 (seis) anos de prisão, concretamente aplicadas a cada um dos 7 episódios criminosos, quer a pena única final para 10 (dez) anos de prisão, o TR.. violou os seguintes grupos de normativos:

a) Artigo 205º, n.º 1 da CRP, artigo 97º, nºs 2 e 5 do CPP, artigo 374º, n.º 2 do CPP, por referência ao artigo 379º, n.º 1-a)-1ª parte e c)-1ª parte do CPP, ex vi artigo 425º, n.º 5, do mesmo Código;

b) Do Cód. Penal: artigo 14º, n.º 2 (por omissão), artigo 132º, n.ºs 1 e 2-a), c), i) e j), em conjugação com os artigos 131º, n.º 1, 22º, 23º, 70º, 71º, 73º e 77º;

c) Da CRP: 24º, n.º 1, 25º, n.º 1, 69º, n.º 1, e artigo 20º, nºs 1, 4 e 5;

d) E artigos 2º, 3º-a) e b) e 8º, n.º 1 da Lei de Política Criminal, e artigo 67º-A do CPP.

4ª – Essa violação decorreu, precisamente, da circunstância:

4.1ª – De, na específica operação de redução das penas parcelares e da pena única final, ter omitido as exigências de fundamentação impostas pelo grupo de normativos indicados na alínea a) da conclusão 3ª.

4.2ª – De, paralelamente a esse quadro invalidante, ter interpretado e aplicado os normativos indicados nas alíneas b), c) e d) da conclusão 3ª, por referência à matéria de facto provada, no sentido de que:

4.2.1ª – O comportamento da arguida deveria ser integrado na categoria do dolo eventual;

4.2.2ª – Se apresenta como adequada, proporcional e necessária ao fins das penas a redução operada na pena de prisão.

5ª – Deveria tê-los interpretado em sentido contrário. Justamente no sentido de que, à sua luz:

5.1ª – Os factos provados são subsumíveis à categoria do dolo necessário, mormente se atentarmos à conduta da arguida descrita nos PONTOS: 3, 4, 5, 12, 13 e 14 (1º episódio); 15, 16 e 17 (por referência à aquisição de produto tóxico letal, com o propósito específico e único de o ministrar ao filho: 1 litro de clorofórmio); 19 e 20 (2º episódio); 26, 27, 28 e 29 (3º episódio); 32 (4º episódio); 34 (5º episódio); 40 (6º episódio); 42 (7º episódio); 47, 58, 128 e 135 (consequências patológicas/clínicas da conduta para a saúde do Recorrente BB); 54, 55, 56, 57, 58, 59, 61 e 62 (elementos intelectual e volitivo, enraizados na conduta).

5.1.1ª – Efectivamente, a arguida sabia que, ao afogar o filho numa piscina, fazendo-o perder a consciência, por asfixia, a morte seria uma consequência certa, ou quase certa da sua conduta.

5.1.2ª – O mesmo se diga sobre à circunstância de lhe ter tapado a cabeça com um lençol, provocando-lhe perda de conhecimento, com paragem cardiorrespiratória.

5.1.3ª – A arguida também sabia que, ao ministrar ao filho clorofórmio, provocando-lhe, em cada ocasião, invariavelmente, paragens cardiorrespiratórias e o grave colapso do normal funcionamento dos seus órgãos vitais, infligindo nestes, sucessivamente, sérias lesões e sequelas, a morte seria uma consequência certa, ou quase certa, da sua conduta.

5.1.4ª – Mesmo cogitando, por mera hipótese, ter a arguida agido sob dolo eventual, o desagravamento da culpa, reflectido na redução da pena única para 10 anos de prisão, não seria admissível, face:

5.1.4.1ª – À reiteração e sucessiva repetição da conduta, bem como à diversificação desta, desde o primeiro momento (havendo todos os sinais de que não iria cessar o comportamento criminoso voluntariamente);

5.1.4.2ª – À variedade dos meios e dos “esquemas” empregues, que revelam refinamento do comportamento e desses meios, que acompanharam aquele, com intensiva e persistente premeditação e reflexão na concretização de cada um dos episódios, objectivando sempre colocar o seu filho num estado em que a morte seria uma consequência certa, ou quase certa, da sua conduta, o que ela sabia e quis – conhecimento e vontades estes que se encontram projectados nesse modo de agir repetitivo e sempre com o mesmo padrão de consequências para o filho, nunca tendo havido qualquer atenuação destas, nem da conduta subjacente;

5.1.4.3ª – À não retroacção, arrependimento, “rebate de consciência” e/ou acto sério de contra-motivação relativamente ao mal que foi infligindo ao filho, dia-após-dia, tortuosa e penosamente, sobre ele.

5.1.4.5ª – Pelo contrário, constata-se uma escalada de grande violência física infligida no filho, sórdida, tenebrosa e maquiavélica, em total desprezo pela integridade física e vida da criança, e aproveitando-se da sua vulnerabilidade, fragilidade e incapacidade de se defender (em virtude dessa idade, do ascendente e do domínio que ela, como mãe, naturalmente, detinha sobre ele).

5.1.4.6ª – Não podendo olvidar-se que o acto de corte do resultado morte ficou entregue “à sorte”, ao mero acaso.

5.2ª – E conformemente aos critérios mais avalizados da doutrina e da jurisprudência em matéria da punição do concurso de crimes, prevista no citado artigo 77º do Cód. Penal, e condescendendo que não deverá haver uma graduação distintiva, agravadora, de crime-para-crime (como fez o Tribunal de Primeira Instância) das penas a aplicar, em concreto, a cada um dos 7 ilícitos (valorizando, precisamente, o problema psicopatológico diagnosticado à arguida), se apresenta como adequado, proporcional e necessário aos fins de prevenção especial e geral, e à validade e eficácia da norma penal (seja na perspectiva da arguida, seja na perspectiva do BB – “princípio da bilateralidade”), o sancionamento de cada um dos crimes com a pena de 7 (sete) anos de prisão, com manutenção da pena única de 17 (dezassete) anos fixada pela Primeira Instância, consonantemente com os referidos pressupostos – decompondo:

a) Pena concreta mais grave, correspondente a 1 crime = 7 anos;

b) 1/3 de 7 anos = 1 ano e 8 meses, correspondente aos restantes 6 crimes;

c) 6 crimes x (1 ano e 8 meses) = 10 anos e 8 meses;

d) Somando a pena indicada na alínea a) com o rationale da precedente alínea c), obteríamos 17 anos e 8 meses, não ferindo, por isso, que, em revogação do acórdão recorrido, deva ser, por este STJ, repristinada a aplicação daquela pena única de 17 anos de prisão à arguida – o que se requerer.

B) – Quantos aos PIC formulados pelos Recorrentes:

6ª – Ao decidir como decidiu, recusando reconhecer o direito compensatório ressarcidor dos danos não patrimoniais do Recorrente CC e depreciando o valor compensatório fixado pela Primeira Instância relativamente aos danos não patrimoniais sofridos pelo ofendido BB, o TRL incorreu:

6.1ª – No que se refere, em concreto, ao Recorrente CC: na violação dos artigos 70º, n.º 1, 483º, n.º 1, 496º, n.ºs 1 e 4-1ª parte, 562º e 566º, n.º 2 do Cód. Civil, singularmente considerados e na sua conjugação:

6.1.2ª – Com os artigos 493º-A, n.º 3 e 201º-B do mesmo Código, e, outrossim, com os artigos 387º e 388º do Cód. Penal;

6.1.3ª – Bem como com o artigo 10:301 dos Princípios do Direito Europeu de Responsabilidade Civil; tudo de acordo com a melhor interpretação e aplicação – numa perspectiva actualística, que acompanhe a evolução da realidade e da Ordem Jurídica, à luz do regime do artigo 9º, n.º 1 do Cód. Civil –, dos pressupostos fundamentadores do AUJ n.º 6/2014, e em respeito do princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13º da CRP, na comparação dos âmbitos de protecção entre a normas dos artigos 70º, n.º 1, 483º, n.º 1, 496º, n.ºs 1 e 4-1ª parte, e dos artigos 493º-A, n.º 3 e 201º-B do Cód. Civil (aliados aos também citados artigos 387º e 388º do Cód. Penal).

6.2ª – No que concerne, em concreto, ao ofendido BB: na violação dos artigos 132º, n.ºs 1 e 2-a), c), i) e j) e 131º, n.º 1, do Cód. Penal, dos artigos 24º, n.º 1 e 25º, n.º 1 da CRP, e dos artigos 70º, n.º 1, 483º, n.º 1, 496º, n.ºs 1 e 4-1ª parte, 562º e 566º, todos dos Cód. Civil, estes últimos em conjugação com o artigo 129º do CPP.

7ª – Essa violação decorreu da circunstância de ter interpretado tais normativos no sentido de, à sua luz:

7.1ª – Por um lado, excluir a admissibilidade legal e jurisprudencial relativamente ao reconhecimento do direito compensatório reivindicado pelo Recorrente CC, a título de danos não patrimoniais, subtraindo-lhe o valor de € 25.000,00 arbitrado pela Primeira Instância.

7.2ª – Por outro lado, determinar a redução da compensação arbitrada ao ofendido BB para € 100.000,00.

8ª – Deveria tê-los interpretado em sentido contrário. Justamente no sentido de que, à sua luz e de harmonia com os factos provados mormente nos PONTOS 1 a 47, 58 e 108 a 135, cada um dos valores fixados e arbitrados pela Primeira Instância, respectivamente, de € 25.000,00 e € 300.000,00, foram-no de forma legítima, lícita, correcta, justa e equitativa.

9ª – Desde já se suscitando a inconstitucionalidade dos artigos 70º, n.º 1, 483º, n.º 1, 496º, n.ºs 1 e 4-1ª parte, todos do Cód. Civil, na sua conjugação e comparação com os artigos 493º-A, n.º 3 e 201º-B do mesmo Código, por violação do artigo 13º da CRP, na medida em que sejam interpretados em sentido contrário ao que se defende no presente recurso (cfr. Subtítulo 1 do Título II).

10ª – Com fundamento no exposto, apela-se, também quanto à temática do PIC, à revogação do acórdão recorrido e à sua substituição, por outro, a prolatar por este STJ, que, em repristinação da decisão proferida em Primeira Instância:

10.1ª – Reconheça ao Recorrente CC o direito de ser compensado, a título de ressarcimento por danos não patrimoniais sofridos, no montante de € 25.000,00, declarando a condenação da arguida no correspectivo pagamento.

10.2ª – Reconheça ao ofendido BB o direito de ser compensado, a título de ressarcimento por danos não patrimoniais sofridos (contemporâneos aos vários episódios vivenciados, imediatamente subsequentes aos mesmos, presentes e futuros), no montante de € 300.000,00, declarando a condenação da arguida no correspectivo pagamento.»

4. O recurso foi admitido por despacho de 13.01.2021.

5. A arguida respondeu, tendo apresentados as seguintes conclusões[1]:

«64º — Quanto à matéria penal da decisão recorrida, deve o recurso ser rejeitado, uma vez que o recorrente/assistente carece de interesse em agir, mantendo-se a pena aplicada pelo douto acórdão do Tribunal da Relação …...

65º — O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público relativamente à medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.

66º — O que, apesar dos esforços desenvolvidos pelo Assistente/Recorrente, não logrou alcançar.

67º — Atente-se na jurisprudência obrigatória fixada pelo STJ, Assento nº 8/99,

68º — Assim como, na decisão proferida pelo Tribunal Constitucional no Processo n.º 372/00, 3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa.

69º — É certo que o recurso, por despacho de fls.... foi admitido, mas, porque tal despacho não constitui caso julgado formal nada impede que nesta fase processual nos termos do art. 414º nºs 2 e 3, e 420º nº 1, al. b) do CPP seja o mesmo rejeitado por via da invocada ilegitimidade do assistente para recorrer da medida da pena aplicada á arguida.

70º — Assim, considerando o preceituado nos vários acórdãos citados, mais concretamente no acórdão de fixação de jurisprudência, no Acórdão proferido pelo TRL no Proc. 1654/15.9PBFUN.L2-9 de 16-05-2019 (entre muitos outros), e o disposto no art.º 401º, nº2 do C.P.P. requer-se a V/Exª que decida pela rejeição do presente recurso no que respeita à matéria criminal.

71º — Ainda, conforme sumário do Acórdão de 8-10-2008, sumário retirado da CJ (STJ), T3, pág. 200:

“O interesse em agir consiste na necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção para tutelar um direito; se os recorrentes não alcançam com o recurso qualquer efeito útil não têm interesse em agir.

A possibilidade de recurso autónomo por banda do assistente - artigo 69.º, n.º 2, c), do CPP - refere-se, pois, e tão só, às situações processuais em que aquele é directamente afectado, a decisão directamente o desfavorece, enfim, atinge algum «concreto próprio interesse» seu, digno de protecção e é, nessa medida, contra si proferida, o que, sem estar inteiramente arredado na acção penal por crime público, naturalmente com mais frequência, terá oportunidade de acontecer quando o procedimento criminal é instaurado nos termos dos artigos 49.º e (ou) 50.º, do CPP, citados.

O que tudo vale para concluir que, na qualidade de assistente, carece de legitimidade para o recurso que interpôs, limitado que é o objecto deste à mera discordância relativa à quantificação concreta da pena aplicada, com a qual se conformaram o Ministério Público e o próprio arguido.”

72º — Quanto à matéria dos PIC, subscreve-se e aceita-se integralmente a decisão do tribunal a quo.

73.º — Quanto ao demandante CC, entende a defesa que o mesmo é terceiro em relação à acção ilícita, não tendo sofrido um dano próprio causado directamente por este, mas apenas e somente danos reflexos não susceptíveis de indemnização, não podendo terceiros reclamar a sua reparação em caso de a vítima directa ter sofrido lesão corporal não fatal (art.º 496, n.º 3 CC).

74.º — Constitui jurisprudência dominante que o direito a ser indemnizado depende da existência de danos graves com implicações directas e significativas no relacionamento familiar.

75.º — O que in casu não sucede, pelo que deverá também nesta matéria ser mantida a douta decisão recorrida.

76º — Relativamente ao PIC apresentado pelo demandante BB, aceita-se integralmente a decisão proferida pelo tribunal a quo, a qual está perfeitamente harmonizada com a jurisprudência dos tribunais superiores.

77.º —Termos em que a decisão quanto a este PIC deverá manter-se.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO E SEMPRE COM O MUI DOUTO SUPRIMENTOS DE V/EXAS., DEVERÁ MANTER-SE O DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO NOS EXACTOS TERMOS EM QUE FOI PROFERIDO, FAZENDO V.EXAS. A COSTUMADA JUSTIÇA!»

6. Uma vez subidos os autos, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Supremo Tribunal de Justiça proferiu parecer, quanto à matéria criminal, considerando, em súmula apertada, que:

- o recurso interposto pelos assistentes é admissível tendo em conta o exposto no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 22.01.2015 (no proc. n.º 520/13.7PHLSB.L1.S1[2], cuja Relatora foi a aqui Relatora, tendo sido Adjunto o Senhor Juiz Conselheiro Nuno Gomes da Silva), e no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2020 (que decidiu que «O assistente, ainda que desacompanhado do Ministério Público, pode recorrer para que a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado fique condicionada ao pagamento, dentro de certo prazo, da indemnização que lhe foi arbitrada[3]), concluindo que reconhece aos assistentes “legitimidade e interesse em agir para recorrer da decisão relativa à determinação da pena e respectiva medida”; e por isto concluiu que:

«Sufragamos o entendimento da jurisprudência e doutrina citada, que vem atribuindo ao assistente e à vítima um reforço da sua posição processual e o reconhecimento de que tem um interesse próprio e concreto na resposta punitiva do Estado e por isso lhe reconhece, para além de legitimidade, interesse em agir para recorrer da decisão relativa à determinação da pena e respectiva medida.

 7- Em conformidade, entendemos que, no caso dos autos, o assistente tem legitimidade e interesse em agir, devendo ser admitido o recurso por si interposto, que deverá ser julgado em conferência, nos termos do disposto no art. 419, n.º 3, do CPP.»

- deve ser rejeitado o recurso, por força do disposto dos arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), ambos do Código de Processo Penal (CPPP), na parte em que recorre das penas parcelares aplicadas a cada um dos crimes imputados à arguida, por verificação de dupla conforme in mellius;

- a pena única de 10 anos aplicada à arguida não é adequada, não é proporcional e “não reflecte o elevado grau de culpa, mesmo considerando que a arguida actuou com dolo eventual”, pelo que deve ser fixada em medida mais elevada.

7. Notificada a recorrente, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), não respondeu.

8. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

A. Matéria de facto

Na decisão recorrida são dados como provados os seguintes factos:

«Da acusação/pronúncia

1. O ofendido BB nasceu em …... de Maio de 2012 e é filho da arguida AA, tendo residindo com a mesma na Rua ........., n.º ...., ........, em .........

2.   No período temporal compreendido entre o mês de Abril de 2019 e 25 de Junho de 2019, o ofendido BB deu entrada, várias vezes, em urgência pediátrica de hospitais.

3.   Em 17 de Abril de 2019, nas instalações da empresa "CENTRO DE MERGULHO J…………. – Actividades Marítimas, Lda.", sita na Rua ......................, em ..............., após o almoço, quando se encontrava sozinha com o filho BB, num momento em que este se encontrava sentado num sofá e distraído com o telemóvel, a arguida puxando-o pelos pés, arrastou-o pelo chão para o tanque de treino de mergulho com três metros de profundidade ali existente que se encontrava cheio de água e empurrou-o para dentro.

4.   O ofendido BB caiu dentro do tanque com água, com três metros de profundidade, completamente vestido, ali permanecendo por tempo indeterminado, e só quando se encontrava inconsciente foi retirado da água pela arguida.

5.   O ofendido BB vomitou, entrou em paragem cardiorrespiratória tendo então a arguida procedido a manobras de reanimação e suporte básico de vida, tendo conseguido a sua reversão, após o que substituiu ao menor a roupa exterior molhada por outra seca e chamou o INEM para o local, alegando que o menor estava com alterações do estado da consciência, tinha vomitado e apresentava dificuldades respiratórias.

6.   Quando os enfermeiros do INEM chegaram ao local, cerca das 13 horas e 30 minutos o ofendido BB encontrava-se consciente, agitado, chorando, apresentando a pele fria, tinha as cuecas molhadas de água, apresentava-se em situação de hipotermia com temperatura rectal de 33.º e com sinais de hipoperfusão ( diminuição do aporte sanguíneo aos tecidos periféricos e consequente falta de oxigenação das células), o que determinou a aplicação de máscara de oxigénio e a condução de BB de imediato para o Hospital ................

7.   O ofendido BB deu entrada no serviço de urgência pediátrica do Hospital ..............., chegando prostrado e com dificuldade em falar, apresentando um quadro grave, decorrente de paragem cardiorrespiratória.

8.   Nesta primeira circunstância, os clínicos do Hospital .............. que observaram o ofendido BB administraram adrenalina IM (2ex) e soro EV quente por suspeitaram de quadro anafiláctico ao frio.

9.   O ofendido BB foi ainda observado por cardiologia pediátrica no Hospital ................, em ...……, não evidenciando causa cardíaca óbvia para a situação.

10. O ofendido BB teve alta clínica ao 7.º dia de internamento, com observação à data de alta sem quaisquer alterações, medicado com adrenalina injectável (Epipen 0,3 mg) para situações de urgência – SOS.

11. O ofendido BB quando chegou ao Hospital ............... verbalizou ao seu pai que a mãe o tinha empurrado para a piscina com água, informação relatada à equipa médica daquele hospital, que a desvalorizou por poder ser atribuída a uma reacção de confusão associada a hipotermia ou hipoxemia.

12. A arguida quis praticar tais factos bem sabendo que a sua conduta era susceptível de provocar a morte por afogamento e paragem cardiorrespiratória do seu filho com sete anos de idade, o que representou e aceitou conformando-se com a mesma.

13. A morte do menor só não aconteceu por motivos alheios à vontade da arguida.

14. Sabia a arguida que a sua conduta era proibida por lei.

15. No dia 2 de Maio de 2019, a arguida AA, após ter efectuado uma pesquisa na internet sobre produtos "químicos/clorofórmio/compra", adquiriu uma embalagem de um litro de clorofórmio e três embalagens de luvas descartáveis na empresa "L………", sita na ..................., n.º .., fracção .., em ......................., em ....., empresa dedicada à comercialização de reagentes e material de laboratório, tendo como clientes empresas, faculdades, indústria farmacêutica, indústria com laboratório de controlo de qualidade e também particulares

16. Fê-lo com intenção de administrar aquele produto tóxico ao filho.

17. Sabia que a ingestão, inalação ou contacto dérmico de tal substância tóxica, dependendo da dose, pode causar a morte e provocar lesões graves na saúde, nomeadamente, alteração nos ritmos respiratórios e cardíaco, paragens cardiorrespiratórias, hipotensão, náusea, vómito, lesões hepáticas e renais, entre outras.

18. A arguida efectuou o pagamento em dinheiro, gastando € 83,83 (trinta e três euros e oitenta e três cêntimos) indicando o número de identificação fiscal, morada e conta de correio electrónico de DD, aluna do curso de mergulho ministrado pela empresa "CENTRO DE MERGULHO J............. – Actividades Marítimas, Lda.", onde a arguida trabalhava.

19. Na noite do dia 11 e madrugada de 12 de Junho de 2019, tendo o filho BB ao seu cuidado na sua residência, sita na .................., n.º .., ….., em ........, a arguida AA, quando o mesmo já se encontrava deitado, dirigiu-se ao mesmo e tapou-lhe a cabeça com o lençol, segurando-o com as mãos por detrás da cabeça do menor, fazendo-o com força por tempo indeterminado.

20. O menor vomitou e teve perda de conhecimento, com paragem cardiorrespiratória.

21. A arguida administrou-lhe então a adrenalina que tinha na sua posse e que lhe tinha sido receitada no hospital para situações de emergência, para reverter os efeitos da paragem cardiorrespiratória provocada por ela e para fazer crer que o filho tinha sido acometido de novo episódio, de causas inexplicadas, semelhante ao ocorrido em 17 de Abril de 2019.

22. O ofendido BB foi transportado para o Hospital ............... com diagnóstico de provável convulsão, à admissão apresentava-se consciente, com febre, baixa oxigenação, frequência cardíaca alta e glicémia alta, no decurso do dia 12 de Junho de 2019, foi avaliado pela cardiologia pediátrica do hospital ………. em .....…., não apresentando sinais de síncope de causa cardíaca, sugerindo investigação neurológica.

23. A equipa médica não conseguiu diagnosticar a causa da paragem cardiorrespiratória verificada.

24. No dia 13 de Junho de 2019, o ofendido BB foi transferido para o Hospital ……….., em ….., para internamento e estudo, estando vígil e orientado no espaço e tempo, tendo sido feitos uma bateria alargada de exames de natureza cardiovascular e neurológica, electroencefalograma e TAC craneoencefálica, não tendo sido detectado qualquer problema susceptível de constituir a causa da doença que o menino vinha apresentando.

25. Face às melhoras registadas no seu estado de saúde a equipa médica informou a arguida deste facto, referindo-lhe ainda a forte possibilidade de o filho vir a ter alta médica no dia seguinte.

26. No dia 13 de Maio de 2019, pelas 23 horas e 20 minutos, a arguida AA administrou clorofórmio ao filho, usando uma seringa que acoplou ao cateter, o que provocou alterações do estado hemodinâmico do ofendido BB, tendo ido depois dar o alerta e informar os médicos que o seu filho estava com dificuldades respiratórias.

27. A equipa médica encontrou a criança BB em paragem cardiorrespiratória, inconsciente, em hipotermia e com vómito alimentar/biloso, sendo necessária a colocação de sonda nasogástrica.

28. Os médicos realizaram manobras de reanimação com administração de adrenalina, revertendo a situação, tendo feito TAC craneoencefálica, que não mostrou alterações relevantes.

29. O ofendido BB seria depois transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos do Hospital, internado num quarto individual - cama 1, em coma induzido, tendo-se observando na sonda conteúdo escuro compatível com sangue, sinal de provável hemorragia digestiva e efectuada entubação, iniciou sangramento pulmonar abundante.

30. Foi algaliado com saída de urina escura, com teste positivo para sangue e bilirrubina.

31. Com dificuldades, a equipa médica conseguiu restabelecer novamente o ofendido BB, registando-se melhoras progressivas nos dias seguintes.

32. Porém, no dia 16 de Junho de 2019, cerca das 3 horas e 30 minutos, a arguida AA interrompendo uma evolução positiva do quadro clínico, usando uma seringa que acoplou ao cateter, efectuou nova administração de clorofórmio ao filho, produzindo a sintomatologia evidenciada nos episódios anteriores, com diminuição da frequência cardíaca e hemorragia pulmonar, seguida por hemorragia digestiva e presença de sangue na urina.

33. E voltou a informar os médicos que o seu filho BB estava com dificuldades respiratórias, tendo o mesmo voltado a entrar em paragem cardiorrespiratória.

34. No dia 18/06/2019, usando uma seringa que acoplou ao cateter, efectuou nova administração de clorofórmio ao filho BB, tendo sido, cerca das 11 horas, detectado que o prolongamento de cateter de acesso intravenoso colocado no braço direito de BB apresentava uma coloração diferente do habitual (mais baça), e um cheiro a cola, sustentado as suspeitas junto dos médicos que o agravamento do estado de saúde da criança teria de ser motivado por qualquer intervenção de terceiros, através da administração de qualquer substância tóxica que causava os sucessivos agravamentos do estado de saúde da criança.

35. Perante estes indícios, por decisão da equipa médica, o ofendido BB foi transferido do quarto individual - cama 1, para um quarto múltiplo – cama 5, próximo do local de permanência do pessoal clínico e sujeito a maior vigilância.

36. No dia seguinte, 19 de Junho de 2019, a Polícia Judiciária, através da "Secção de Homicídios" é alertada para estas ocorrências e inicia as diligências relativas à investigação das circunstâncias relacionadas com os sucessivos agravamentos do estado de saúde da criança.

37. A arguida AA não demonstrava muita preocupação com o estado de saúde do filho e sobretudo com a origem dos problemas sucessivos.

38. O cateter com coloração diferente foi recolhido e apreendido, tendo sido submetido a perícia de natureza toxicológica pelos serviços do Laboratório da Polícia Científica, que vieram a determinar a presença de uma substância com características macroscópicas semelhantes às de um polímero (plástico/borracha) que provocou o entupimento do cateter e que terá entrado na circulação sanguínea da vítima antes da ocorrência do entupimento.

39. Nos dias seguintes o ofendido BB voltou a recuperar relativamente ao estado de saúde bastante débil em que ficara.

40. No dia 21 de Junho de 2019, pelas 20 horas e 40 minutos, aproveitando a pausa para jantar do pessoal de enfermagem, quando a vigilância era menor, a arguida efectuou novamente a administração de clorofórmio ao filho provocando novo episódio de paragem cardiorrespiratória a BB, que durou três minutos, com novo surgimento de sangue no conteúdo gástrico (vómito), na urina e também nas fezes.

41. Foi feita a recolha de amostra do conteúdo gástrico expelido pelo vómito e da sua análise pelos serviços de "toxicologia" do Laboratório da Polícia Científica veio a ser possível determinar que o "PH" do conteúdo gástrico da criança apresentava um valor alcalino de 9, quando o normal se situa entre 3 e 4 pelo que tinha sido administrado à criança, por via oral, uma substância tóxica que teria provocado o agravamento do estado de saúde com a ocorrência de paragem cardiorrespiratória.

42. No dia 25 de Junho de 2019, a hora não concretamente apurada, a arguida que se encontrava no quarto com o seu filho, administrou-lhe novamente clorofórmio através de uma seringa, que acoplou ao cateter colocado no pé esquerdo do filho, que originou que o menor entrasse em braquicardia.

43. A arguida atirou a seringa para o caixote do lixo do quarto do ofendido BB.

44. Foi detectado pelos elementos clínicos que o prolongamento colocado no cateter do pé esquerdo de BB apresentava uma cor branca estranha, tendo sido removido de imediato.

45. Questionada a arguida a mesma disse que tinha ministrado ao filho "soro abençoado".

O ofendido BB, de 7 anos de idade, esteve internado 44 dias e teve alta hospitalar no dia 14 de Agosto de 2919, com indicação de continuar os tratamentos no Hospital …………., em regime ambulatório, não sendo ainda previsíveis o tempo de doença ou as consequências que advirão dos actos violentos a que foi sujeito.

47. Do exame médico legal de clínica forense de fls. 427-437, consta:

"...2 episódios de alteração do estado de consciência (Abril de 2019 e 12/6) associadas a hipotermia e vómitos + 2 episódios de paragem cardiorrespiratória em contexto hospitalar (14.6 e 21.6) hemorragia pulmonar/alveolar (justificando agravamento) respiratório e necessidade de ventilação invasiva – aspiração de secreções hemáticas arejadas no TET; hemorragia renal, gástrica e rabdomiolise – aspiração de secreções hemáticas pela SNG e TET, hematúria macroscópica. Recuperação total entre os episódios. Observado e discutido por varias especialidades destaca-se: - Rx. tórax com hipotransparência heterogénea no campo pulmonar dto – cardiologia – ... não se identifica causa cardíaca, o que se reforça mais ainda neste episódio, que foi presenciado por Enf. e Med. ... sem alteração do ritmo cardíaco ou da morfologia do QRS (apenas bradicardia e agora taquicardia) – Angio -TAC pulmonar (14.6.2019) – "hidropneumotorax sob tensão á dta, que condiciona desvio do mediastino para o lado contralateral. Marcada redução do volume do pulmão dto. Este pulmão assim como o esquerdo, apresentam no seu parênquima varias áreas de consolidação dispersas, poupando apenas parte da língula. Esta distribuição torna pouco provável aspectos pós aspiração. Estão em mais provável relação com contexto clínico de hemorragia pulmonar. Pequena lâmina de ascite perihepatica dta... RM cerebral sem alterações significativas. EEG (Abril de 2019) sem alterações... EEG prolongado (24.6.2019) – períodos de aplanamento de provável etiologia medicamentosa, sem actividade paroxística durante o período de registo. ... - criança sedada com Midazolan... Alfentanil... rocuronio... tem reflexo de tosse e reage à dor... conectado a prótese ventilatoria, hemodinamicamente estável, pupilas mióticas, simétricas, pouco reactivas à luz ...." ... Rx. Torax – agravamento do pneumotórax com colapso quase total do pulmão esquerdo..." No dia 18/07/2019, a signatária do presente exame pericial, constatou em termos de exame externo, que BB de 7 anos, internado na UCIP do Hospital ………….., encontrava-se com drenagem de pneumotórax à esquerda e sonda nasal bilateral para aporte de O2".

Concluiu o relatório que os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre os episódios clínicos referenciados na documentação clínica com a administração do clorofórmio e que do evento resultou, em concreto, perigo para a vida do menor BB.

49. Viria a ser recolhida, no balde do lixo do quarto de internamento, uma seringa envolta por uma luva, e na sala dos pais, no interior do cacifo que estava afecto à arguida e onde a mesma guardava os respectivos pertences, um frasco de vidro que estava dentro de um saco térmico, contendo um líquido incolor que submetido a exame no Laboratório de Polícia Científica foi identificado como "clorofórmio", substância esta, susceptível de provocar no menor todos os sintomas acima descritos e que o menor apresentava.

50. Submetida a exame pericial a seringa encontrada no caixote do lixo revelou a presença de clorofórmio.

51. Na seringa encontrada no caixote do lixo do quarto do ofendido BB foi obtido um perfil único idêntico ao da arguida AA.

52. Foi identificado um vestígio palmar da mão esquerda da arguida AA no plástico preto que envolvia o frasco de clorofórmio que se encontrava no cacifo que lhe estava afecto no Hospital ......................

53. A arguida foi sujeita a exame pericial psiquiátrico que revelou um quadro psicopatológico enquadrável numa perturbação factícia por procuração (síndrome de Munchausen por Procuração) numa estrutura de personalidade de características estadolimite (Borderline) estando presentes os pressupostos médico-legais de imputabilidade.

54. A arguida administrou o clorofórmio ao filho BB enquanto este esteve internado no hospital por via oral e intravenosa, usando uma seringa que acoplava aos cateteres, alternado o acesso, não o fazendo sempre no mesmo local para evitar suspeitas.

55. A arguida tinha perfeita noção das consequências da administração do clorofórmio, tendo pesquisado na internet sobre os efeitos e decidido pela sua aquisição.

56. A arguida sabia e conhecia os efeitos daquela administração, consubstanciando paragens cardiorrespiratórias.

57. Sabia que a ingestão, inalação ou contacto dérmico de tal substância tóxica, dependendo da dose, pode causar a morte, alteração nos ritmos respiratórios e cardíaco, hipotensão, náusea, vómito, lesões hepáticas e renais, entre outras.

58. Em consequência das condutas acimas descritas, a arguida causou graves problemas de saúde ao seu filho, cardiorrespiratórias, pneumotórax com colapso quase total do pulmão esquerdo, hemorragia pulmonar/alveolar, hemorragia renal, gástrica e rabdomiolise, que lhe provocaram doloroso sofrimento e intervenções clínicas graves, dolorosas e invasivas que que se não tivessem sido revertidas a tempo teriam originado a morte da criança.

59. A arguida quis praticar os actos acima descritos, bem sabendo que destes poderia resultar a morte do filho, e mesmo assim não se absteve de os prosseguir, sabendo de cada vez que os repetia, aumentava o perigo para a vida do filho, tanto mais que se tratava de uma criança, com um organismo mais frágil.

60. A arguida queria atrair sobre si a atenção das pessoas que lhe estavam mais próximas pois sabia que de cada vez que BB era acometido de um agravamento súbito do estado clínico se sentia valorizada como mãe.

61. A arguida sabia que a sua conduta podia provocar a morte do filho, mas tal não a demoveu de praticar os factos descritos, possibilidade que representou e quis e com a qual se conformou e que só não aconteceu por motivos alheios à sua vontade.

62. A morte do ofendido BB só não ocorreu porque assistido clinicamente foi possível reverter a situação clínica.

63. Sabia a arguida AA que BB era seu filho de menor de idade, e que ao praticar os factos da forma descrita o fazia em completo desrespeito daquele e da relação familiar que os unia e une.

64. Mais sabia que tinha o dever de respeitar o seu filho, com quem residia, pessoa particularmente indefesa em razão da idade e que ao tratá-la do modo supra descrito, o impedia de ter um crescimento saudável e harmonioso, o que conseguiu.

65. A arguida actuou livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei Penal.

Factualidade relativa à inserção familiar, socioprofissional e antecedentes criminais da arguida.

66. O processo de desenvolvimento da arguida foi condicionado negativamente pela disfuncionalidade do sistema familiar de origem.

67. Com apenas 9 meses de vida, a arguida, filha única do casal, é entregue aos cuidados dos avós, em virtude de os progenitores se encontrarem em ruptura conjugal e a mãe ter decidido ir trabalhar para a ……, à procura de melhores condições de vida.

68. A partir de então, a arguida divide-se entre a casa dos avós paternos e maternos e as viagens que fazia ao estrangeiro para se encontrar com a progenitora.

69. Os pais, só anos mais tarde é que terminam a relação que culminou com a separação dos mesmos em 1999.

70. O clima era conflituoso, caracterizado por episódios de agressividade do progenitor para com a mãe da arguida.

71. A relação com a mãe é próxima e cúmplice apesar da distância geográfica e distante com o progenitor, chegando a estar mais de três meses sem o ver apesar de viver a 800 metros de distância, traduzindo assim o desinvestimento afectivo e educativo desta figura parental.

72. Aos seis anos de idade iniciou o percurso escolar que prosseguiu até ao 12.º ano de escolaridade, com inúmeras participações pró-sociais, com a sua integração em grupos desportivos, religiosos e de voluntariado, sendo disso exemplo facto de ter sido……, ter frequentado aulas de surf, ser catequista e voluntária no Hospital ............... e, posteriormente, no Bombeiros.

73. Terminou o ensino secundário e iniciou Curso ……. no Instituto Politécnico …… – Pólo ..............., que frequentava em regime nocturno, trabalhando de dia num……, à revelia do progenitor que pretendia que a mesma se dedicasse somente aos estudos.

74. Abandonou os estudos superiores com o nascimento do filho.

75. À revelia do progenitor, com quem sempre manteve uma relação distante e conflitual, voluntariou-se para ……. e, posteriormente, casou-se com o pai de seu filho.

76. Por volta dos 14-15 anos de idade, a mãe da arguida apercebeu-se da primeira manifestação de mal-estar da arguida, quando vai passar as férias com a mãe e viajaram juntas para ……, tendo a arguida tentado atirar-se de um ponto alto, em ……, tendo sido agarrada pela progenitora.

77. Pouco tempo depois, antes de passado um ano, a arguida foi localizada num apartamento de que a mãe é proprietária, com uma carta escrita e com a intenção de se suicidar, planeando atirar-se do 7.º andar.

78. É neste contexto que começa a ser acompanhada pelos Serviços de Psicologia e Orientação……, com quem a mãe ia contactando regularmente.

79. Estes episódios perpetuaram-se no tempo e eram mais frequentes e com um início mais precoce do que a família considerava, situando-os por volta dos 10-11 anos, quando engoliu um cocktail hemorrágico para controlar pragas de roedores, tendo vomitado de seguida.

80. No ano em que completou 18 anos de idade, inscreveu-se nos Bombeiros ........, tendo frequentado ao longo de um ano o Curso de Formação para Ingresso na Carreira ……...

81. Nesse período mantinha uma relação marital há um ano que veio a terminar e pouco tempo depois iniciou relacionamento afectivo com o pai de seu filho, dez anos mais velho, com quem foi viver pouco tempo depois.

82. Um ano após o nascimento do filho, o companheiro……, cansado de "ver situações limite" demonstra vontade de mudar de vida.

83. É neste contexto que viajam para a ……. com o filho à procura de emprego, durante 15 dias, no período de férias da Páscoa.

84. O companheiro não conseguiu encontrar trabalho, atendendo à baixa escolaridade do mesmo e à barreira linguística.

85. Por seu turno, quando planeavam regressar, sua mãe, conseguiu emprego para a arguida, como …… em casa…….

86. A arguida decide aceitar este trabalho, já depois de terem regressado a Portugal.

87. Assim, inicia actividade laboral na ……, em casa de um casal que têm uma filha recém-nascida, trabalhando por períodos de 15 dias e folgando 4 dias, que aproveitava para os gozar em Portugal, junto do companheiro e filho.

88. Três meses depois, em Agosto, a família decide ir viver para a ……, passando a arguida a ser …… a tempo inteiro, mediante contratualização da prestação de serviços com o patrão, viajando regularmente com esta família para……, o que a motivou a iniciar o curso ………

89. Ao longo dos dois anos seguintes, exerceu actividade …, junto desta família.

90. O seu companheiro nunca se adaptou ao estrangeiro, não conseguindo manter as actividades laborais que surgiram, passando períodos cada vez maiores em Portugal, com o filho de ambos.

91. O conflito conjugal aumenta e é nesta fase que o casal decide regressar definitivamente a Portugal, tendo a arguida mantido a sua actividade laboral ……, regressando ao trabalho por períodos de 15 dias com pausas de 4 dias em Portugal.

92. Um ano depois, em 2016, separam-se.

93. Após esta data o filho passa a viver uma semana em casa de cada progenitor, situação que se manteve aquando da regulação do poder paternal após o divórcio em 2017.

94. É nesta etapa do seu ciclo de vida que inicia …… numa empresa……, cujo sócio-gerente é amigo da família e padrinho do filho da arguida.

95. É neste período também que reencontra EE, um colega de liceu e inicia relacionamento afectivo com o mesmo, classificando a relação, nos primeiros tempos, como muito gratificante e que depois se vai deteriorando até que EE decide, em Abril de 2019, terminar a relação contra a vontade da arguida.

96. À data dos factos, a arguida vivia com elevados níveis de stress que começaram com a gestão administrativa da empresa……, com a gestão dos períodos que tinha de viajar em trabalho para a……, desempenhando a actividade ……. durante as viagens de férias do casal com quem sempre trabalhou no estrangeiro, da gestão dos períodos em que seu filho vivia consigo e da ansiedade de poder vir a terminar a relação com EE.

97. A arguida encontra-se ininterruptamente presa, no Estabelecimento Prisional …..., desde o dia 26/06/2019.

98. Após um período de internamento no serviço de psiquiatria do Hospital Prisional ..................., por tentativa de suicídio, ocorrido no segundo dia de reclusão, tem vindo a ser acompanhada, desde a sua entrada no sistema prisional, regularmente nas valências de psiquiatria e psicologia, com boa adesão à prescrição psicofarmacológica.

99. A arguida considera que o apoio psicológico tem sido essencial para o seu equilíbrio psicoemocional.

100. De acordo com os serviços da DGRSP, em termos pessoais, a arguida "aparenta revelar uma tendência para estabelecer relações superficiais, mostrando-se como uma pessoa extrovertida, sociável e amigável, omitindo, todavia, emoções/sentimentos negativos (em termos relacionais), parecendo procurar alguma desejabilidade social".

101. E, "o seu discurso denota capacidade de compreensão e de adaptação a situações diversas, revelando um raciocínio pragmático e funcional".

102. A situação de reclusão da arguida é conhecida pela população local.

103. Para além da projecção nacional que a situação em causa teve, a nível local, os habitantes ........ conhecem a família, não só por ser um meio relativamente pequeno como também pela actividade ……… que a arguida desempenhava.

104. A arguida tem alguma dificuldade em projectar-se no futuro, contudo, refere que gostaria de refazer a sua vida e que o filho a perdoasse, receando poder ser proibida de o contactar ainda que na presença de terceira pessoa, facto que a angústia.

105. A arguida conta com o apoio da mãe a quem telefona diariamente, sendo um importante elo de estabilidade psicoemocional.

106. A separação do filho, e, por conseguinte, do seu projecto de vida, é-lhe penosa, não deixando, no entanto, de se apresentar conformada à situação em que se encontra, bem como ao diagnóstico que resultou da perícia, parecendo vivê-la com resignação.

107. A arguida não tem antecedentes criminais.

Factualidade referente ao pedido de indemnização cível do demandante CC.

108. Entre 17/04/2019 e 25/06/2019, período de tempo em que o seu filho BB deu entrada por várias vezes, em urgência, pediátrica de hospitais, CC presenciou esses factos, impotente, desesperado e aterrado, por temer pela vida do seu filho, tanto mais que as próprias equipas médicas não conseguiam descobrir o motivo das perdas de conhecimento, reincidentes paragens cardiorrespiratórias e agravamento do seu estado de saúde.

109. Após receber alta, do primeiro internamento no Hospital..............., BB ficou aos cuidados do pai, regressando às suas rotinas habituais sem que houvesse nenhum problema.

110. No dia 10/06/2019, ao final do dia, depois de uma semana ao seu cuidado, o demandante BB entregou BB na casa da arguida, sendo que a criança estava bem e apresentava um comportamento normal em relação à progenitora.

111. No dia 11/06/2019, por volta das 21 horas, o demandante CC recebeu diversos telefonemas da arguida informando que BB estava deitado, mas apresentava-se irrequieto.

112. Por volta das 23-24 horas, o demandante CC recebeu urna chamada da arguida, que aos gritos dizia que estava a acontecer um novo episódio idêntico ao de Abril e que não sentia o pulso do BB.

113. O demandante CC telefonou de imediata para a .........., informando o sucedido e procurando obter ajuda o mais rápido possível para o seu filho, que se encontrava em paragem respiratória na casa da mãe, em ……, .........

114. De seguida deslocou-se para a casa da arguida acompanhado pelo ………, encontrando o seu filho agonizante e a arguida transtornada aos gritos.

115. Perante este cenário o demandante CC ficou muito nervoso, aflito e com medo de que o seu filho pudesse morrer.

116. No dia 13/06/2019, o demandante CC recebeu um telefonema da arguida a informá-lo que BB tivera um episódio de paragem cardiorrespiratória, apresentando-se a arguida extraordinariamente calma e tendo inclusive dito que só tinha feito o telefonema pois tinha estado a acalmar-se.

117. O demandante CC deslocou-se ao Hospital .................. constatando que o seu filho se encontrava ventilado, sedado e a fazer medicação, havendo indicação de que iria realizar um conjunto de exames.

118. Face a esta situação o demandante CC não conseguia deixar de estar preocupado e simultaneamente ansioso, nervoso e receoso, com medo de que o seu filho tivesse uma doença muito grave.

119. Situação que se iria agravar ainda mais, quando o demandante CC foi informado, cerca de quarenta e oito horas depois, que o seu filho tinha feito uma nova paragem cardiorrespiratória.

120. O demandante CC teve conhecimento que a equipa médica tinha conseguido reverter a situação, embora com muitas dificuldades, sendo que a situação que o seu filho apresentava era idêntica à das situações anteriores, com diminuição da frequência cardíaca e hemorragia pulmonar, seguida por hemorragia digestiva e presença de sangue na urina.

121. No dia 18/06/2019, durante urna visita ao filho, o demandante CC observou que o cateter de acesso intravenoso colocado no braço de BB apresentava uma coloração esbranquiçada diferente do habitual, tendo abordado uma enfermeira estagiária que também achou estranho e chamou outra enfermeira que inicialmente pensou tratar-se de um fenómeno de cristalização do medicamento, tendo-o substituído por outro e recolhido o referido acesso de cor esbranquiçada.

122. Transmitiu o que se tinha passado à arguida, ficando esta impassível perante o que tinha acabado de suceder.

123. No dia 22/06/2019, o demandante CC foi, de novo, informado que o seu filho tinha sido de novo acometido de uma paragem cardiorrespiratória, com graves consequências para a seu estado saúde, com surgimento de sangue no conteúdo gástrico (vómito), na urina e também nas fezes.

124. Situação que aumentou a ansiedade do demandante CC.

125. No dia 25/06/2019, o demandante CC foi informado que o seu filho tinha tido outro episódio de características idênticas aos anteriores, tendo entrado em bradicardia.

126. Durante o período de internamento no Hospital ....................., o demandante CC, enquanto pai, passou por um enorme sofrimento psicológico, porquanto viu o seu filho padecer em consequência de uma doença que as equipas médicas não conseguiam descobrir as causas, chegando mesmo a pensar que podia morrer, o que lhe causou depressão, tristeza e desespero.

127. Durante os 44 dias em que o seu filho esteve internado, o demandante CC passou a andar ansioso, transtornado, em virtude da preocupação e com insónias, deixando de conseguir dormir, e quando isso sucedia devido ao cansaço, logo acordava subitamente, o que acontecia frequentemente a meio da noite.

128. BB era uma criança saudável, com toda uma vida a viver pela frente. mas que em consequência dos actos violentos a que foi sujeito não é possível prever as consequências ou sequelas que daí poderão advir.

129. Tudo isso causa um enorme desgosto ao demandante CC, pai de BB.

Factualidade referente ao pedido de indemnização cível do demandante BB.

130. A arguida ao atirar o filho para o tanque provocou-lhe um enorme sofrimento físico e psíquico.

131. Ao agir como agiu a arguida provocou um enorme sofrimento físico e psíquico a BB.

132. A arguida planeou os actos atentatórios da vida e saúde de BB e cometeu-os conscientemente, com frieza de ânimo, motivada por um objectivo fútil.

133. Em consequência das agressões de que foi vítima, BB passou por um enorme sofrimento físico em consequência dos tratamentos e intervenções clínicas, dolorosas e invasivas a que foi sujeito, suportando intensas e fortes dores.

134. BB passou por um enorme sofrimento psicológico, pois, com excepção do período passado no hospital, estava consciente do que lhe estava a acontecer.

135. BB era uma criança saudável, com toda uma vida a viver pela frente. mas que em consequência dos actos violentos a que foi sujeito não é possível prever as consequências ou sequelas que daí poderão advir.»

A. Matéria de direito

1. Analisando o recurso interposto, são as seguintes as questões a analisar:

a) legitimidade do assistente para recorrer da decisão quanto às penas aplicadas a cada um dos crimes e quanto à pena única conjunta aplicada;

b) nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação (nos termos dos arts.  425.º, n.º 5, 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al.s a) e c), do CPP, e do arts. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e do art. 97.º, n.ºs 2 e 5 do CPP) quanto às penas aplicadas, e ainda erro quanto ao entendimento de que a arguida atuou com dolo eventual [entendimento que segundo o recorrente viola o disposto no art. 14.º, n.º 2, do Código Penal (CP) e os arts. 132.º, n.ºs 1 e 2, als. a), c), i) e j) em conjugação com os arts. 131.º, n.º 1, 22.º, 23.º, 70.º, 71.º 73.º e 77.º, todos do CP, bem como os arts. 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, 69.º, n.º 1 e 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, todos da CRP, e arts. 2.º, 3.º, als. a) e b), 8.º, n.º 1, da Lei de Política Criminal e art. 67.º-a, do CP], considerando que atuou com dolo necessário;

c) recurso quanto à medida das penas parcelares (entendendo que a arguida deveria ser punida por cada um dos crimes com a pena de 7 anos de prisão) e quanto à pena única conjunta (considerando que devia ser mantida a pena aplicada pelo Tribunal de 1.ª instância de 17 anos de prisão);

d) recurso quanto às indemnizações atribuídas a ambos os assistentes (entendendo que deviam ter sido mantidas as indemnizações arbitradas pelo Tribunal de 1.ª instância).

2. Da legitimidade e do interesse em agir do assistente para interpor o recurso relativo a matéria criminal

Tal como este Supremo Tribunal de Justiça afirmou em anterior acórdão[4]

«O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/99 (DR, I série-A, 10.08.1999, p. 5192 e ss) veio uniformizar jurisprudência no sentido de admitir que o assistente, autonomamente, tem legitimidade para interpor recurso restrito à medida e espécie da pena, sempre que “demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”. E entendendo que sempre que o assistente não apresente este interesse concreto e próprio “um seu pedido de agravação da pena (...) tem um cunho, ou, pelo menos, apresenta tê-lo, de regresso à vindicta privada” (idem, p. 5194); embora tenha também aduzido como argumento do seu raciocínio o facto de o assistente, naquele processo, para além do recurso em matéria de medida e espécie da pena, ter juntado um recurso referido ao quantum indemnizatório.

Comparando este aresto como um outro posterior — acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 5/2011 (DR, I série- A, 11.03.2011, p. 1410 e ss), onde se fixou que «Em processo por crime público ou semipúblico, o assistente que não deduziu acusação autónoma nem aderiu à acusação pública pode recorrer da decisão de não pronúncia, em instrução requerida pelo arguido, e da sentença absolutória, mesmo não havendo recurso do Ministério Público» — vemos que, embora referindo-se a situação diferente, os argumentos para afirmar a legitimidade do assistente para a interposição de recurso são também diversos, considerando-se, no entanto, relevantes para a questão aqui a decidir:

começou por se considerar que o assistente tem poderes autónomos, e entre eles o de interpor recurso, nos termos do art. 401.º, n.º 1, al. c), do CPP, e no âmbito do processo é colaborador do MP; assim sendo, qualquer interesse do assistente tem que estar subordinado ao interesse público, pelo que quando atua com base num interesse particular, este (e fazendo suas as palavras de Damião da Cunha, em «A participação dos particulares no exercício da acção penal (alguns aspectos)», RPCC, 1998, p. 638) ”só assume relevância (processual) na medida em que contribua para uma melhor realização da administração da justiça (ou, no caso concreto, um melhor exercício da ‘acção penal’).»;

por isso se diz naquele acórdão que “o assistente, sendo imediata ou mediatamente atingido com o crime, adquire esse estatuto em função de um interesse próprio, individual ou coletivo; porém, a sua intervenção no processo penal, sendo embora legitimada pela ofensa a esse interesse, que pretende afirmar, contribui ao mesmo tempo para a realização do interesse público da boa administração da justiça, cabendo-lhe, em função da ofensa a esse interesse próprio, o direito de submeter à apreciação do tribunal os seus pontos de vista sobre a justeza da decisão, substituindo o Ministério Público, se entender que não tomou a posição processual mais adequada, ou complementando a sua actividade, com o que, por isso, se não desvirtua o carácter público do processo penal” (idem, p. 1414).

Neste acórdão de fixação de jurisprudência nº 5/2011, considerou-se ainda que o assistente tem legitimidade para interpor o recurso quando tem interesse em agir; ora, “o interesse em agir do assistente, em sede de recurso, remete para a necessidade que ele tem de lançar mão desse meio para reagir contra uma decisão que comporte para si uma desvantagem, que fruste a sua expectativa ou interesses legítimos. (...) O assistente tem interesse em pugnar pela modificação de uma decisão que não seja favorável às suas expectativas” (ob. e loc. cit.). E concluindo:

“Deste modo (...) para o assistente poder recorrer, não há que fazer lhe outras exigências para além das que o artigo 401.º, n.º 1, al. b), comporta: que a decisão seja relativa a um crime pelo qual se constitua assistente (legitimidade) e seja contra ele proferida (interesse em agir)” (idem, p. 1415). 

Acresce um último argumento: fazendo suas as palavras de Cláudia Santos (em «Assistente, recurso e espécie e medida da pena», RPCC, 2008, p. 159-160) afirma “«o assistente tem um interesse próprio e concreto na resposta punitiva que é paralelo ao interesse comunitário na realização da justiça», sendo nessa «coincidência (ainda que apenas relativa e tendencial)» entre o «interesse da comunidade na administração da justiça penal» e o «interesse concreto do assistente em que a justiça penal encontre uma resposta adequada para a ofensa que lhe foi causada» que deve ser encontrado o «fundamento para a possibilidade de recurso autónomo do assistente em matéria penal».” (p. 1415).

Sabemos assim que o assistente atua no âmbito do processo penal não só defendendo um interesse coletivo como um interesse particular, havendo uma coincidência entre o interesse particular e o interesse coletivo na administração da justiça penal.

Porém, o art. 401.º, n.º 1, al. c), do CPP, impõe que o assistente só possa interpor o recurso relativamente a decisões contra ele proferidas.  

Pelo que temos que perguntar como se pode afirmar que uma certa punição do agente é contra o assistente? O ius puniendi não é exclusivo do poder estadual?

Poderemos dizer que ainda existe um interesse próprio do assistente quando este questiona apenas a espécie e medida da pena, quando o recurso interposto não é orientado diretamente para um seu interesse particular, mas para um interesse que é o da comunidade no sentido da prevenção do crime?

 Entendemos que o assistente, que viu os seus bens jurídicos lesados com a prática do crime, tem também um interesse próprio na resposta punitiva dada pelo Estado.

Se podemos dizer, por um lado, que há um interesse da coletividade na resposta ao crime, há, por outro lado, um interesse concreto do assistente em uma resposta punitiva que entenda como justa tendo em conta os bens jurídicos que foram ofendidos. Na verdade, “enquanto assistente, ele tem o poder de procurar conformar a resposta à questão penal, que engloba quer a questão da culpa, quer a questão da pena. Logo, se através da operação de determinação da medida da pena em sentido amplo o Tribunal chegar a uma decisão contrária à pretensão manifestada pelo assistente no processo e que ofenda o seu concreto interesse na justeza da punição (...), dessa decisão deverá o assistente ter a faculdade de recorrer de forma autónoma” (Cláudia Santos, ob. cit., p. 165). Considerando-se que existe legitimidade e interesse em agir sempre que a decisão seja contra “pretensões fundadamente manifestadas pelo assistente durante o processo e quando essa resposta [ofenda] de forma não insignificante o seu interesse na determinação de uma sanção para o agente que considere justa” (idem).

E assim devemos entender a exigência imposta pelo acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/99 — o assistente deverá demonstrar que tem um interesse concreto e próprio em agir. O que não constitui uma interpretação inconstitucional por limitadora do direito ao recurso pelo assistente, e portanto, uma possível violação do disposto no art. 32.º, n.º 7, da CRP. Na verdade, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 205/01 veio expressamente afirmar que a exigência imposta pelo acórdão uniformizador apenas veio cominar “um específico ónus de demonstração de um particular interesse” — “desde que mostre que da concreta escolha da medida da pena aplicada ao arguido lhe decorre específica e concreta lesão de interesses pessoais relevantes”.

Assim sendo, o assistente deve apresentar elementos que permitam concluir que aquela pena em que o arguido foi condenado lesa de forma não insignificante o seu interesse na atribuição de uma pena justa ao agente.»

E, nesta mesma linha de entendimento, o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 2/2020 (e citado supra) veio considerar que:

«Poder-se-á, pois, concluir, sem esforço, que a possibilidade legal de subordinar a suspensão ao cumprimento do dever de o condenado pagar, total ou parcialmente, a indemnização devida ao lesado, para além da realização de finalidades da pena, visa, sem dúvida, a protecção dos interesses deste, em ordem à reposição da situação em que se encontraria se não tivesse sido praticado o crime.

Daí que não possa ser-lhe negado o seu interesse processual em pugnar, por meio de recurso, pela imposição ao arguido desse dever como condição da suspensão. (...) A legitimidade de recurso autónomo do assistente para questionar a falta de subordinação da suspensão da pena de prisão de cumprimento ao dever de pagar, dentro de certo prazo a indemnização a ele devida enquanto lesado é, de resto, a que melhor se coaduna com a outra realidade do crime, a dos interesses da vítima, cuja importância tem vindo a ser reconhecida em crescendo, sendo que, embora a figura da vítima se não confunda com a do assistente (este, enquanto sujeito processual), ambas as figuras coexistem, as mais das vezes, na mesma pessoa.

Refira-se, sumariamente, que por força do direito comunitário  a Lei n.º 130/2015, de 04.09, ao transpor a Directiva 2012/29/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25.10.2012, deu foros de cidadania à “vítima”, aprovando o respectivo Estatuto e aditando à sistemática do CPP um novo título sob a epígrafe “vítima” composto pelo art.º 67.º-A (art.º 4.º, n.º 2) em cujo n.º 4, além do mais, se afirma o direito de “participação activa no processo penal”, o que vai de encontro à possibilidade de o assistente enquanto vítima/lesado/ofendido poder, sem peias, lançar mão do recurso, em situações como a que temos entre mãos, em que o assistente tem não só legitimidade para o recurso, como interesse em agir.

Isso mesmo reconheceu o Ac. do STJ de 20.11.2014 quando referiu que se tem assistido quer na doutrina, quer na jurisprudência a um reforço da posição processual do assistente a partir de novo enfoque sobre a figura do ofendido/lesado “olhando a outra margem do crime, ao nível do resultado, do ofendido, não apenas do seu autor, mas da vítima”.

Ora, considerando a necessidade de demonstração de interesse processual pelo assistente, verificamos que este é, no presente caso, demonstrado em diversos pontos: os assistentes não só aderiram integralmente à acusação do Ministério Público (cf. ref. 25379939) assim demonstrando claramente o seu interesse na condenação e punição da arguida, como intervieram, nomeadamente através de mandatário, não só aquando do debate instrutório (realizado a 12.03.2020, cf. ata, ref. 395242907) como também aquando da audiência de discussão e julgamento (a 26.06.2020, cf. ata ref. 397119223, a 08.07.2020, cf. ata ref. 397452130, e a 20.07.2020, aquando da leitura do acórdão, cf. ata ref. 397819584), e responderam ao recurso interposto pela arguida para o Tribunal da Relação (cf. acórdão recorrido). Além disto, um dos fundamentos do recurso aqui apresentado é a nulidade do acórdão por falta de fundamentação. Sem que analisemos agora da viabilidade (ou não) deste fundamento, o certo é que o assistente, tendo tido uma intervenção ativa ao longo de todo o processado, deve igualmente poder alegar nulidades ou irregularidades da decisão que delibera sobre factos que contra ele foram perpetrados, e nessa medida constituindo um recurso de uma decisão que o afeta. Acresce que, conferindo o Código de Processo Penal uma intervenção ativa da vítima no processo penal (cf. art. 67-A, n.º 4), entendemos que é de admitir o recurso interposto, considerando existir legitimidade nos termos do art. 401.º, n.º 1, al. b), do CPP.

Mas vejamos em que medida o acórdão do Tribunal da Relação …….. é recorrível.

3.1. Da recorribilidade da decisão relativa a matéria penal

A arguida foi condenada por 7 tentativas de crime de homicídio qualificado, tendo havido confirmação in mellius destas; assim, no Tribunal da Relação …….. foram aplicadas 7 penas de prisão de 6 anos por cada uma das tentativas de homicídio qualificado e uma pena única de 10 anos de prisão (que na decisão do Tribunal de 1.ª instância havia sido de 17 anos de prisão).

Ora, tendo em conta o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, onde apenas se admite (a contrario) o recurso de acórdãos da Relação que, confirmando decisão anterior, apliquem pena de prisão superior a 8 anos, e sabendo que, ainda que a pena única seja superior a 8 anos de prisão, se analisa a recorribilidade do acórdão relativamente a cada crime individualmente considerado, necessariamente temos que concluir não ser admissível o recurso das condenações, relativas a cada crime, do Tribunal da Relação, em pena de prisão superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos de prisão, quando haja conformidade com o decidido na 1.ª instância.

Dito de outro modo: apenas é admissível o recurso de uma decisão do Tribunal da Relação relativamente aos crimes aos quais se tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos e não superior a 8 anos quando não haja “dupla conforme”, e de uma decisão da Relação relativamente a todos os crimes cuja pena seja superior 8 anos, ainda que haja “dupla conforme”.

Como vem sendo jurisprudência desta instância, em caso de concurso de crimes, e havendo dupla conforme, o Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer de tudo o referente aos crimes parcelares punidos com pena de prisão inferior a 8 anos, apenas podendo conhecer do respeitante aos crimes que concretamente tenham sido punidos com pena de prisão superior a 8 anos, e do respeitante ao concurso de crimes (para além de poder conhecer oficiosamente dos vícios previstos nos art. 410.º, n.º 2, do CPP, quando a partir do texto da decisão sejam evidentes).

Neste sentido se tem pronunciado este Tribunal, como por exemplo, e entre muitos outros, no acórdão de 24.03.2011, no processo n.º 322/08.2TARGR.L1.S1[5] e no acórdão de 11.11.2010, no processo n.º 117/09.6JAGRD.C1.S1[6].

Aliás, em sentido idêntico se tem pronunciado o Tribunal Constitucional que, no acórdão n.º 186/2013, entendeu “não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do art. 400.º, do Código de Processo penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão” (e isto mesmo foi já entendido perante a redação do CPP dada pela Lei n.º 20/2013 — assim, no acórdão n.º 269/2014[7]). Isto sem referir jurisprudência anterior do mesmo tribunal, como o acórdão n.º 649/2009, onde se concluiu que não ser inconstitucional o art. 400.º, n.º 1 al. f) do CPP interpretado no sentido de que “no caso de concurso de infrações tendo a Relação confirmado, em recurso, decisão de 1.ª instância que aplicou pena de prisão parcelar não superior a 8 anos, essa parte não é recorrível para o STJ” nos termos daquele dispositivo. Acrescentando:

 «Quer dizer: o direito ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça só poderia considerar-se violado se, por via da cisão, ao Supremo Tribunal de Justiça nada restasse, a final, para apreciar, no recurso perante este tribunal interposto e admitido.

Tal, porém, não sucede. É possível ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar a matéria do cúmulo jurídico e as questões relativas à pena única aplicada, sem concomitante apreciação das questões relativas às penas parcelares, como o demonstra o regime do artigo 78º do Código Penal: decorre, na verdade, deste preceito que é possível aplicar uma pena única tendo já transitado em julgado a decisão respeitante à pena parcelar, o que, em virtude do caso julgado desta decisão, inviabiliza a reapreciação das questões relativas a esta pena parcelar aquando da ponderação daquele cúmulo.»[8].

No presente caso, não só se manteve inalterada a qualificação jurídica dos factos — tentativa (dolosa) de homicídio qualificado —, tendo apenas sido alterada a imputação subjetiva dos factos — considerando-se, a partir da matéria de facto provada, que a arguida atuou com dolo eventual e não com dolo necessário e, consequentemente, foram diminuídas as penas aplicadas. Tratou-se de uma alteração in mellius.

Ou seja, estamos perante um caso em que há uma confirmação da punição em medida mais favorável à arguida. Ora, assim sendo, o acórdão do Tribunal da Relação…….. constitui um acórdão condenatório, que confirmou in mellius a condenação anterior da arguida.

Na verdade, tem sido jurisprudência uniforme deste Tribunal o entendimento de que uma confirmação in mellius da condenação em primeira instância cabe ainda dentro do conceito de dupla conforme pressuposto pelo art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP. Tal como se afirmou no acórdão de 26.02.2014 (proc. n.º 851/08.8TAVCT. G1. S1, relator: Maia Costa), “a confirmação não significa nem exige a coincidência entre as duas decisões. Pressupõe apenas a identidade essencial entre as mesmas, como tal devendo entender-se a manutenção da condenação do arguido, no quadro da mesma qualificação jurídica, e tomando como suporte a mesma matéria de facto.” E esta confirmação admite “a redução da pena pelo tribunal superior; ou seja, haverá confirmação quando, mantendo-se a decisão condenatória, a pena é atenuada, assim se beneficiando o condenado.” (ac. cit.)  E a identidade na qualificação jurídica abrange “não só a manutenção da mesma pelo tribunal superior, como também a desagravação da imputação penal, por meio da desqualificação do tipo agravado para o tipo simples do mesmo crime. Já não haverá confirmação se for imputado ao condenado um tipo de crime diferente.” (idem).

E tem sido considerado por este Supremo Tribunal de Justiça que a “confirmação não pressupõe a coincidência ou identidade absoluta entre as duas decisões, mas apenas a sua identidade essencial. Por isso que, citando-se o acórdão de 18-05-2016, proferido no processo n.º 653/14.2TDLSB.E1.S1 – 3.ª Secção, «no caso de condenação, se verifica, em nosso entender, confirmação (in mellius), quando o tribunal da relação, sem alterar a decisão sobre a matéria de facto, desagrava a responsabilidade do arguido, absolvendo-o de um dos crimes por que ia condenado ou reduz uma das penas parcelares e, consequentemente, a pena conjunta».[9]  E em sentido idêntico, em acórdão de 2012, entendeu-se que “confirmação não pode confundir-se com coincidência ou identidade absoluta entre as duas decisões. “Confirmação” significa uma identidade essencial, mas não necessariamente total, entre as duas decisões. (...) não é necessária a identidade da fundamentação da condenação, ou seja, a mesma e precisa decisão pode ser fundamentada em termos diferentes. Também não deixará de haver confirmação quando o tribunal superior desagrave, quer por absolvição de algum dos crimes imputados ao recorrente, quer por desqualificação do crime imputado (com ou sem modificação da matéria de facto), quer ainda por redução de alguma pena parcelar ou da pena única, a situação do condenado. Em qualquer destes casos, melhorando a posição do condenado, é confirmada a condenação na parte subsistente. (...) Em síntese, a confirmação in mellius, ou seja, a que confirma, melhorando, a situação penal do condenado é relevante para os efeitos da al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP.»[10]

Ora, também no presente caso se assistiu, sem alteração da matéria de facto, a um desagravamento da responsabilidade criminal da arguida, e consequentemente, foram diminuídas as penas.

Nestes termos, concluindo pela confirmação da condenação da arguida pelos diversos crimes — tentativa de homicídio qualificado — e tendo ocorrido um desagravamento da responsabilidade criminal e uma dupla conforme in mellius, entende-se não ser admissível o recurso por força do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, em tudo o respeitante aos crimes por que foi condenada tendo sido confirmada in mellius a punição em pena de prisão de 6 anos por cada uma das sete tentativas de homicídio qualificado. Assim sendo, fica prejudicado o conhecimento de todas questões relativas àqueles, procedendo-se apenas à análise da pena única aplicada, ou seja, fica prejudicado o conhecimento da alegada nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação quanto à aplicação das penas parcelares (não sendo possível o recurso desta parte da decisão, esta poderia ter sido arguida no tribunal recorrido) e erro de julgamento quanto ao entendimento de que a arguida atuou com dolo eventual. Apenas se analisará a alegada nulidade do acórdão recorrido quanto à falta de fundamentação na determinação da pena única e a determinação da medida concreta da pena única atribuída.

Assim, concluindo pela conformidade entre o acórdão de 1.ª instância e o acórdão do Tribunal da Relação ……, e sabendo que as penas aplicadas são inferiores a 8 anos de prisão, concluímos pela inadmissibilidade do recurso interposto, quer quanto aos crimes individualmente considerados quer quanto às penas aplicadas (a cada crime), por força do disposto nos arts. 432.º, n.º 1, al. c), 400.º, n.º 1, als. f), do CPP.

3.2. Da recorribilidade da decisão relativa a matéria civil

Os assistentes recorreram ainda da parte da decisão que alterou o valor indemnizatório atribuído pelo Tribunal de 1.ª instância. Entendem os recorrentes que deveria ter sido mantida a indemnização por danos não patrimoniais atribuída ao demandante CC (pai), e que a indemnização por danos não patrimoniais atribuída ao demandante BB era a mais adequada.
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 48/2007, de 29.08, e com a alteração ao art. 400.º, n.º 3, do CPP, procedeu-se a uma alteração do regime de admissibilidade dos recursos para o STJ quanto às decisões sobre o pedido de indemnização civil enxertado no processo penal, isto é, a admissibilidade de recurso para o STJ, restrito à matéria civil, passou a ser avaliada de acordo com os critérios próprios de recorribilidade adotados pelo Código de Processo Civil (CPC).
Ao estabelecer no n.º 3 do art. 400.º do CPP que “mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”, o legislador fez apelo, até por força do estatuído pelo art. 4.º do CPP, para o regime de admissibilidade dos recursos, interpostos para este Supremo Tribunal dos acórdãos proferidos em recurso pelo Tribunal da Relação, que se mostrava previsto para os processos de natureza exclusivamente civil.
Por isto, o recurso para este Supremo Tribunal passou a dever obediência ao regime jurídico do recurso de revista previsto no CPC, na medida em que o legislador processual penal, ao introduzir o n.º 3 ao citado art. 400.º, não definiu normas próprias de admissibilidade de recurso para a parte da sentença relativa ao pedido de indemnização civil, o que deve levar o julgador a socorrer-se dos pertinentes normativos do processo civil, assim se estabelecendo um mesmo regime de admissibilidade do recurso referente a pedidos de indemnização civil, quer sejam processados por apenso ao processo penal, quer o sejam em separado. Ou seja, a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão que incida sobre a matéria civil passou a ser regulada, subsidiariamente, pelo regime jurídico vertido no CPC, já que se abandonou, nesta sede, a indexação aos critérios de recorribilidade da matéria criminal.
Assim, no que diz respeito à admissibilidade de recurso para o STJ dos acórdãos (ou dos seus segmentos decisórios) que versem matéria civil, procurou estabelecer-se uma igualdade entre a ação civil enxertada em processo penal e aquela que se mostra deduzida, de modo autónomo, em ação de cunho exclusivamente civil, de modo a que a diferente forma de dedução (enxertada ou autónoma) do pedido de indemnização civil não venha a ter qualquer influência nas legítimas expectativas dos sujeitos processuais no que diz respeito às possibilidades de acesso, em sede de recurso, aos tribunais hierarquicamente superiores.
Assim sendo, sabendo que, por acórdão do Tribunal Judicial da Comarca ......., foi atribuída a indemnização civil aos demandantes CC e BB, e que por acórdão do Tribunal da Relação …….. não só foi absolvida a demandada do pedido de indemnização civil de CC, mas também foi alterada a indemnização atribuída ao demandante BB, entende-se, nesta parte, ser recorrível o acórdão do Tribunal da Relação ...…..., por força do disposto no art. 400.º, n.º 3, do CPP, e arts. 629.º, e 671, n.º 1 e 3 (a contrario), ambos do CPC.

4. Da nulidade por falta de fundamentação na determinação da pena única

Os recorrentes alegam falta de fundamentação do acórdão recorrido por entenderem que existe um “vazio na justificação e fundamentação de todo o percurso lógico-silogístico feito pelo TR.., entre o “ponto de partida” que são as penas parcelares de 6 anos e o “ponto de chegada” que é a pena única de 10 anos”, pese embora considerem que “não fere que se tenha estabelecido uma moldura igual para cada um dos crimes”. Sabendo que o conhecimento da alegação está limitado à nulidade por falta de fundamentação quanto à pena única (cf. supra), iremos analisar a decisão.

O dever de fundamentação, expressamente consagrado no art. 97.º, n.º 5, do CPP, impõe que sejam especificados os motivos de facto e de direito da decisão, impondo, por um lado, que se descreva expressamente os factos provados e a motivação de facto e, por outro lado, que se exponha os motivos de direito — subsunção do caso à previsão legal, argumentação jurídica, justificação de um certo sentido da interpretação da lei — que estiveram na base da decisão tomada. Este dever de fundamentação é, ao longo de todo o Código de Processo Penal, invocado em inúmeros atos processuais. É o que acontece na sentença (cf. art. 374.º, n.º 2, do CPP), mas também, por exemplo, na aplicação de medidas de coação privativas da liberdade e como forma de demonstrar o cumprimento do princípio da subsidiariedade em matéria de medidas de coação (cf. arts. 193.º, n.ºs 2 e 3, 201.º, n.º 1 e 202.º, n.º 2, do CPP), ou quando se procede à apreciação da prova (cf. art. 365., n.º 3, do CPP). E o mesmo se aplicando aos acórdãos proferidos em sede de recurso, por força do art. 425.º, n.º 4, do CPP.

Se é certo que, por um lado, o dever de fundamentação não se impõe irrestritamente a todos e a quaisquer atos judiciais (ou do MP), mas somente aos “atos decisórios”, nos quais se compreendem, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do citado artigo, os acórdãos, as sentenças e os despachos judiciais que decidam questões interlocutórias ou que ponham termo ao processo mas sem conhecer do mérito da causa; por outro lado, todos os restantes atos processuais dos juízes, assumam ou não um cunho decisório, não se encontram subordinados ao dever de fundamentação, como, por exemplo, os atos ou as decisões de mero expediente, ou seja, aquelas que se limitam a ordenar ou a regular a marcha processual, mas sem interferir com os direitos ou com os interesses juridicamente protegidos dos sujeitos processuais envolvidos no processo (aliás, o art. 205.º, n.º 1, da CRP, afasta expressamente o dever de fundamentação quanto às decisões de mero expediente).

Portanto, a fundamentação dos atos judiciais não deve ser compreendida como uma finalidade em si mesma, mas antes como um instrumento ou como uma exigência inscrita em nome dos direitos e das garantias de todos sujeitos processuais, mais particularmente do arguido, que logo cede e deixa de ter sentido quando esse ato não seja suscetível de interferir com a resolução do litígio.

Assim compreendida, a fundamentação justifica-se para que os sujeitos processuais percecionem com facilidade o sentido da decisão, para que possam conscientemente optar pela sua aceitação ou pela sua impugnação, se necessário for, dela interpondo recurso para um outro tribunal, mas também para que a autoridade judiciária avalie convenientemente as vantagens e as desvantagens de seguir por um determinado caminho, de modo ponderado, longe do livre e do puro arbítrio.

Ou, conforme se afirmou, muito a este propósito, no acórdão do STJ, de 27.01.2009, Proc. n.º 3978/08 - 3.ª Secção, Relator: Cons. Armindo Monteiro:

a motivação das sentenças judiciais é um dos Direitos do Homem, constante do art. 6.º, § 1, da CEDH, reputada como o direito do acusado a um processo justo, consagrado no art. 20.º, n.º 4, da CRP, e é considerada como o remédio essencial contra o arbítrio, através dela prestando o juiz contas, aos sujeitos processuais e à colectividade, dos critérios adoptados e dos resultados adquiridos. Não tem que consistir na análise aprofundada de todas as deduções das partes nem num exame pormenorizado de todos os elementos do processo, não tem que apresentar uma extensão “épica” (observa o Juiz Franz Matsher, citado no estudo de Lopes Rocha, in Documentação e Direito Comparado, BMJ n.ºs 75/76, págs. 99 e ss.), convertendo a motivação num complexo processo escrito e por vezes contraditório, satisfazendo-se com um raciocínio justificativo mediante o qual o juiz mostra que a decisão se funda em “bases racionais idóneas” para a tornarem aceitável, credível.”

Além disto, a parte final do citado n.º 5 do art. 97.º, do CPP, explicita que o dever de fundamentação se desdobra quer na fundamentação de facto, quer na fundamentação de direito, prendendo-se a primeira com a prova ou com a falta dela, com todos os motivos que levaram o tribunal a considerar provados determinados factos em detrimento de outros que não ficaram demonstrados, enquanto que a fundamentação de direito se relaciona com a argumentação jurídica de que o tribunal se socorreu (ou se deve socorrer) para encontrar a solução concreta para o caso ou, dito por outras palavras, o enquadramento jurídico que foi encontrado pelo juiz para o quadro factual que foi objeto de julgamento no processo.

Da conjugação deste normativo, com os demais atinentes aos atos decisórios dos juízes, muito em particular com os arts. 118.º, n.ºs 1 e 2, 123.º, n.ºs 1 e 2, 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. a), e 425.º, n.º 4, todos do CPP, resulta inequívoco que o dever de fundamentação não assume exatamente a mesma extensão consoante o ato decisório seja um simples despacho interlocutório, uma sentença de um tribunal singular ou um acórdão de um tribunal ou coletivo de 1.ª instância ou, ao invés, um acórdão de um tribunal de superior grau hierárquico, proferido em sede de recurso.

Tanto assim é que são diferentes as consequências da falta de fundamentação.

As sentenças e os acórdãos que conheçam do objeto da causa estão feridos de nulidade, caso não explicitem os motivos de facto e de direito da decisão, como decorre expressamente da conjugação do disposto nos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP. Ao invés, a falta de fundamentação dos demais atos decisórios dos juízes constitui, por princípio, uma simples irregularidade, em resultado da aplicação do regime geral das invalidades dos atos processuais previsto nos arts. 118.º, n.ºs 1 e 2, e 123.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPP.

Aliás, como é facilmente compreensível, o despacho judicial que decida uma questão interlocutória, por mais relevante que ela seja, não se encontra sujeito às mesmas exigências de fundamentação de facto e de direito de um acórdão que avalie, em primeira mão, toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, que pondere, em toda a extensão, os argumentos apresentados pela acusação e pela defesa e que decida a causa sob o ponto de vista jurídico, as quais, por seu turno, não são equivalentes às exigências de fundamentação de facto e de direito de um acórdão proferido em fase de recurso, quando se pede ao tribunal hierarquicamente superior que reaprecie a decisão do tribunal de 1.ª instância.

Como se defendeu no acórdão do STJ de 07.02.2013, Proc. n.º 727/10.9GGSNT. L1. S1 - 5.ª Secção (Relator: Cons Arménio Sottomayor), as exigências de fundamentação da sentença, prescritas no art. 374.º, n.º 2, do CPP, não são diretamente aplicáveis aos acórdãos proferidos pelos tribunais superiores, por via de recurso, mas tão-só por via de aplicação correspondente do art. 379.°, ex vi art. 425.°, n.º 4, do mesmo diploma legal, razão pela qual aquelas decisões não são elaboradas nos precisos termos previstos para as sentenças proferidas em 1.ª instância, o que bem se compreende, visto que o seu objeto é a decisão recorrida e não diretamente a apreciação de todo o objeto do processo.

Mas, ainda que possamos afirmar que as exigências em matéria de fundamentação dos acórdãos proferidos em sede de recurso não sejam tão intensas quanto as relativas aos acórdãos proferidos em 1.ª instância, ainda assim entendemos que os acórdãos proferidos em recurso têm que fundamentar de forma explícita e completa os alicerces da sua decisão e da sua divergência (quando for o caso) relativamente ao acórdão de 1.ª instância. A imposição constitucional de fundamentação das decisões exige que a diferente decisão do tribunal de recurso esteja suficientemente explicada para que todos os intervenientes processuais possam entender (e dessa forma mais facilmente aceitar) a nova decisão.

Ora, o acórdão recorrido, embora de forma sintética, explica o que o motivou a alterar a pena única aplicada à arguida.

Depois de afastar a prática dos atos a título de dolo necessário e considerando que a arguida deveria ser punida como tendo atuado com dolo eventual (de acordo com os factos provados 12, 59, 61, e 65, onde se deu como provado que a arguida quis praticar os atos e representou como possível o resultado e se conformou com ele), o Tribunal procede a uma análise global dos factos praticados.

Na determinação da pena única conjunta, entendeu igualmente que o quadro psicológico da arguida determinava a aplicação de uma pena única inferior à que havia sido determinada, considerando que aquele era determinante para que não se atribuísse um efeito agravante à repetição dos factos. No entanto, não deixa de alertar para o facto de que numa redução da pena “não pode ser visto qualquer juízo de menorização da gravidade da conduta em causa, reconhecida como uma forma gravíssima de violência sobre uma criança” (p. 52 do ac. recorrido). Para melhor esclarecimento foi a seguinte a fundamentação:

«Na determinação da pena única importa ponderar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art.77, nº 1, CP).

O elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário.

Na avaliação da personalidade, como refere o Prof. Figueiredo Dias, “…revelará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.

No caso, a repetição aconteceu sem qualquer alerta à arguida que dificultasse nova resolução criminosa, facilitada pelo quadro psicopatológico de que padecia, o que justifica que não seja atribuído efeito agravante à repetição dentro da moldura penal conjunta, no caso, 6 a 25 anos de prisão (art.77, nº 2, CP).

Ponderando todos estes fatores, a pena única de 17 anos de prisão fixada pelo tribunal recorrido, com o devido respeito, apresenta-se algo exagerada, ultrapassando o limite consentido pela culpa (foi fixada considerando o dolo necessário, quando a arguida agiu com dolo eventual e ignorou o quadro psicopatológico da arguida como facilitador da resolução criminosa), apresentando-se adequada e proporcional a uma avaliação global dos factos, a pena única de dez anos de prisão.

Esta pena de dez anos de prisão, representa já um castigo severo para uma mulher próximo dos trinta anos de idade (assim evidenciando o adequado juízo de reprovação), ao mesmo tempo que, não esquecendo a pessoa do agente afetado por um quadro psicopatológico facilitador da ação e carente de adequado tratamento (na adolescência terá beneficiado de acompanhamento de Serviços de Psicologia e Orientação, na sequência de episódios suicídas – nºs76 a 79 dos factos provados, o que não terá sido suficiente para evitar o quadro psicopatológico agora apresentado), se adequa a pena à personalidade que nos factos se revelou, por forma que a mesma contribua para a reintegração do agente na sociedade, como estatui o art.40, nº 1, do Código Penal.

Nesta redução da pena, face à fixada em 1ª instância, não pode ser visto qualquer juízo de menorização da gravidade da conduta em causa, reconhecida como uma forma gravíssima de violência sobre uma criança, com ofensa de direitos constitucionalmente protegidos (arts.24 e 69, CRP), cuja defesa incumbe aos tribunais assegurar (art.202, nº2, CRP), mas tão só a necessidade de individualização da pena considerando o concreto condenado, o que também constitui um direito e uma garantia fundamentais num Estado de Direito.

Estão em conflito as necessidades de proteção de bens jurídicos (apontando para uma punição severa) e as necessidades de reintegração do agente na sociedade, para o que o tratamento do quadro psicopatológico da arguida se apresenta essencial, impondo-se na gestão deste conflito a prevalência do juízo de culpa, porque, como vimos, em caso algum a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa. Não pode ser ignorado, ainda, que o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da culpa impedem que o agente sirva de instrumento, numa lógica de bode expiatório, para intimidar e combater a criminalidade através de penas exemplares e desproporcionais em relação à sua culpa em concreto.

Acresce que, no caso, não se reconhece qualquer risco de continuação da atividade criminosa, ou perigo para a vítima, pois quando a arguida recuperar a liberdade depois do cumprimento da pena agora imposta, já a vítima não terá a fragilidade (decorrente da idade) que permitiu a execução do crime.» (p. 51-52 do ac. recorrido).

Concorde-se (ou não) com a fundamentação apresentada, não restam dúvidas de que esta existiu na medida estritamente necessária para ser perceber o raciocínio que esteve subjacente à decisão, pelo que o acórdão recorrido não padece de nulidade por falta de fundamentação, o que faz improceder o recurso nesta parte.

5. Da pena única aplicada

A determinação da pena tem como limite máximo o admitido pela culpa de cada arguido — a culpa de cada um é individualizável e insuscetível de equiparação entre os diversos arguidos, pois estes participam de forma diferente e de modo diverso nos diferentes factos praticados, assim revelando uma atitude particular contra o direito —, e como limite mínimo o determinado pelas exigências de prevenção geral impostas pela comunidade de acordo com os crimes praticados; será dentro destas balizas que em função das exigências de prevenção especial de cada arguido que se determinará a medida concreta da pena, necessariamente diferente consoante as distintas exigências que cada um impõe.

A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º, do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela dos bens jurídicos em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade da pessoa do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever-se-á ter em conta todas as circunstâncias que depuseram a favor ou contra o arguido, nomeadamente os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenham sido tomadas em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).

Acresce que o nosso sistema de reações criminais é claramente caracterizado por uma preferência pelas penas não privativas da liberdade ─ cf. art. 70.º do CP ─ devendo o tribunal dar primazia a estas quanto se afigurem bastantes para que sejam cumpridas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

Mas, a determinação da medida da pena, em sede de concurso de crimes, apresenta especificidades relativamente aos critérios gerais do art. 71.º do CP.

Nos casos de concurso de crimes (e em obediência ao princípio constitucional da legalidade criminal, a pena única apenas pode ser aplicada caso estejam verificados os seus pressupostos de aplicação, isto é, caso estejamos perante uma situação de concurso efetivo de crimes), a determinação da pena única conjunta tem que obedecer (para além daqueles critérios gerais) aos critérios específicos determinados no art. 77.º, do CP. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem, todavia, exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).

A partir desta moldura, é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º, ambos do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1, do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados, deve proceder se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique”. Na avaliação da personalidade, ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade, sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever-se-á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva).

São estes os critérios legais estabelecidos para a determinação da pena e, em particular, para a determinação da pena única conjunta.

Nos termos do art. 77.º, n.º 2, do CP, a pena única conjunta, a aplicar a um caso de concurso crimes, é determinada a partir de uma moldura que tem como limite mínimo “a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”, e como limite máximo “a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Pelo que as penas concretas aplicadas a cada crime constituem os elementos a partir das quais se determina aquela moldura.

Nestes termos, no presente caso, a moldura do concurso de crimes a partir da qual deve ser determinada a pena concreta a aplicar tem como limite mínimo 6 anos de prisão (a pena concreta mais elevada) de prisão, e como limite máximo 25 anos (correspondente ao limite máximo permitido pelo disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).

Analisando globalmente os factos, e verificando que todos ocorreram num período bastante curto (entre 17.04.2019 e 25.06.2019), e sabendo que a arguida não tem antecedentes criminais (facto provado 107), não podemos concluir estarmos perante uma tendência para a prática de crimes. Foi ainda considerado que nenhum dos factos provados poderiam ser tidos como casos de desistência da tentativa (cf. acórdão recorrido ponto 5, p. 47-48) e que a arguida era imputável (facto provado 53 e não contrariado pelo acórdão recorrido).

É elevada a gravidade dos factos; porém, tendo sido a arguida condenada pela tentativa de homicídio qualificado contra o filho, não poderemos agora novamente valorar esta circunstância, sob pena de violação do princípio da dupla valoração. Acresce que a culpa da arguida, enquanto atitude contra o dever-ser jurídico penal, assume alguma importância, embora atenuada pelo facto de a arguida ter praticado os ilícitos num quadro de perturbação (cf. facto provado 53) sem que, todavia, lhe tivesse retirado o entendimento quanto à ilicitude das condutas realizadas (cf. facto provado 65). Porém, não se pode deixar de realçar o facto de a arguida considerar que “tem sido essencial para o seu equilíbrio psicoemocional” (facto provado 99) o apoio psicológico, que lhe tem sido prestado no estabelecimento, e ainda a sua adesão à medicação prescrita (facto provado 98). Além disto, tem demonstrado capacidade de “compreensão e de adaptação a situações diversas” (facto provado 101), e demonstra interesse em refazer a sua vida, desejando o perdão do filho, e demonstrando a angústia e receio quanto a uma eventual proibição de contacto com o filho (facto provado 104). A arguida mantém bom contacto com a mãe que a apoia (facto provado 106). Os factos causaram algum alarme social dada a projeção que tiveram (facto provado 103).

Atentos todos estes elementos, as exigências de prevenção geral e as de prevenção especial são significativas. Se, por um lado, a debilidade psíquica da arguida decorrente do seu estado psicopatológico (cf. facto provado 53) não determinou a inimputabilidade da arguida[11], por outro lado, esta mesma debilidade altera de forma significativa as exigências de prevenção geral. Na verdade, ainda que se pretenda demonstrar que as normas permanecem em vigor e que a sua violação determina consequências para quem as viola, estas exigências são fortemente atenuadas quando se analisa o contexto em que a arguida atuou. E este mesmo contexto acaba por impor fortes exigências de prevenção especial de modo que se aplique uma pena que de algum modo ainda permita uma recuperação social da arguida; a arguida, ao tempo dos factos, tinha 28 anos de idade (a arguida nasceu a 03.04.1991).

Assim, numa moldura entre os 6 anos de prisão e os 25 anos, sabendo que se trata de uma delinquente primária, entendemos que a pena única deverá ficar claramente abaixo da metade da moldura penal. Sabendo que o meio da moldura penal se situa aproximadamente nos 15 anos, consideramos que, atentas as fortes exigências de prevenção especial, a pena de 13 anos de prisão é a adequada, necessária e proporcional de acordo com uma análise global dos factos e da personalidade da arguida neles refletida.

6. A decisão recorrida no que respeita à matéria civil

6.1. Comecemos por apreciar o acórdão recorrido quanto a uma eventual nulidade, de conhecimento oficioso, nos termos dos arts. 425.º, n.º 4 e 379.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.

Compulsado o acórdão recorrido e as conclusões ali transcritas do recurso interposto pela arguida para o Tribunal da Relação, verifica-se que do recurso apresentado não resulta qualquer impugnação do acórdão do Tribunal de 1.ª instância quanto às indemnizações arbitradas. Porém, o acórdão recorrido refere expressamente que:

- “a recorrente insurge-se contra os montantes fixados, alegando que foram fixados de forma arbitrária” (cf. p. 53), e

- salientando que “A recorrente manifesta discordância contra a decisão relativa a estes pedidos civis nas motivações, omitindo qualquer referência a essa questão nas conclusões, contudo, optou-se por não proferir despacho de aperfeiçoamento, o que só retardia o conhecimento do recurso e é de evitar em processo de natureza urgente, tendo-se com conta o alegado apenas nas motivações.” (nota 19 da p. 53)

  Entendemos, tal como o Tribunal a quo, que é admissível o conhecimento de matéria impugnada expressamente na motivação, sem que se convide ao aperfeiçoamento das conclusões quando este convite possa determinar um retardamento do conhecimento do recurso em processo urgente.

Porém, compulsada toda a motivação do recurso (para o Tribunal da Relação) apresentado pela arguida, verifica-se que em parte alguma do pedido a arguida se insurge contra os montantes fixados; na verdade, a arguida contesta sim, de forma expressa, a base factual subjacente à responsabilidade civil.   

Ou seja, o recurso da decisão quanto à matéria civil restringe-se a uma impugnação da matéria de facto, sem que desta impugnação sejam retiradas quaisquer consequências, em matéria indemnizatória, quanto a um eventual deferimento da impugnação apresentada. E nesta parte, na parte relativa à matéria de facto provada, o recurso foi julgado improcedente e nada da matéria de facto provada (nem o respeitante à matéria penal nem o respeitante à matéria civil) foi alterado. A matéria de facto provada manteve-se exatamente a mesma que havia sido fixada pelo Tribunal Judicial da Comarca  ......

Aliás, a arguida nem mesmo no que respeita à matéria civil faz o mesmo raciocínio que apresenta em matéria penal. Nesta, após alegar que a prova produzida não permite chegar às conclusões a que Tribunal chegou, considerando que há erro notório na apreciação da prova[12], e referindo-se expressamente aos factos provados que entende erradamente provados tendo em conta a prova produzida[13], e depois de ter alegado desistência da tentativa[14] e ausência de dolo da arguida, refere, sem conceder, que “caso se entenda a existência de dolo, pelos motivos já mencionados, o mesmo sempre teria que ser eventual, nos termos do art.º 14.º n.º 3 do CP” (ponto 65.º da motivação do recurso apresentado ao Tribunal da Relação[15]), e assim concluindo “pela inexistência de dolo ou pela verificação de dolo eventual, o que nos parece óbvio e necessário, a pena sempre terá que ser ajustada.” (idem). Ou seja, no que respeita ao recurso quanto à matéria penal a recorrente termina alegando que ainda que assim se considerem infundadas as anteriores alegações, nomeadamente quanto à impugnação da matéria de facto e ao erro notório na apreciação da prova, as penas devem ser “ajustadas”.

Mas, atuação similar não ocorre aquando da impugnação da matéria civil —após a impugnação da matéria de facto subjacente não conclui que, ainda que se entenda de forma diferente (da arguida), devem os montantes indemnizatórios ser alterados. Na verdade, após alegar que as indemnizações civis arbitradas o foram com base em factos que não estão dados como provados, em parte alguma apresenta pedido para que o valor das indemnizações seja alterado, nomeadamente, em parte alguma se insurgindo contra os concretos montantes arbitrados, não havendo, pois, qualquer impugnação destes montantes. No que respeita às indemnizações arbitradas é a seguinte a motivação (sem que haja qualquer outra referência nas conclusões):

«67° — O douto acórdão a quo fundou a decisão de fixar o quantum indemnizatório no montante de € 300.000,00 e 25.000,00 respectivamente ao BB e ao assistente CC, considerando provados os pontos 115, 118, 124, 126, 127, 129, 130 a 135 e atendendo a diversos factores que de seguida se analisam:

68° — Quanto à gravidade do sofrimento psicológico do demandante/assistente CC, o mesmo não apresenta qualquer suporte quer testemunhal ou documental, resultando apenas das suas declarações em 26 de Junho de 2020 com início às 12.22h, mais concretamente ao Minuto 19:37 das mesmas- “... a dada altura ter um filho internado nos cuidados intensivos sem saber o que é que ele tem, não é? e que entra esporadicamente em paragem é lógico que qualquer pessoa fica transtornada, sem chão...”.

69° — Ora, apenas tal afirmação, sem mais, não chega para quantificar os danos não patrimoniais sofridos pelo demandante, sendo que também nessa parte o douto acórdão é omisso limitando-se a fazer considerações de carácter geral.

70° — No que respeita à gravidade do sofrimento psicológico e físico do BB, não foi feita qualquer prova que indicie o estado de saúde actual do menor, não foi junto qualquer relatório que especifique quer os danos físicos quer os danos morais, ou sequer essas matérias foram abordadas na prova testemunhal. Assim, quando o douto tribunal funda o montante indemnizatório neste pressuposto, fá-lo de forma arbitrária sem que haja prova das lesões presentes e futuras infligidas ao menor.

71° — Em momento algum da audiência de julgamento foi abordada a questão do medo eventualmente sentido pelos demandantes, e consequentemente não foi realizada qualquer prova que permita a verificação desse item.

72° — Ademais, não se vislumbra quais possam ser as lesões físicas passadas, presentes e futuras do demandante CC, uma vez que tal tema não faz parte dos factos provados, nem essas lesões foram abordadas em sede de audiência de discussão e julgamento.

73° — No que respeita às alterações da vida de BB provocadas pelo comportamento da arguida, e confrontando com o ponto 135 dos factos provados que refere expressamente que “não é possível prever as consequências ou sequelas que daí poderão advir”, não se entende como pode relevar esse critério para efeitos de determinação do montante indemnizatório.

74° — Ainda quanto à capacidade de ganhos futuros da arguida, estamos perante um conceito absolutamente indeterminável, face à conjuntura económica constantemente alterável e ao tempo que mediará entre a presente decisão e a libertação da arguida.

75° — Assim, também no que respeita aos pedidos de indemnização civil supra referidos, também o douto tribunal a quo julgou ao arrepio da prova produzida.»

Ou seja, não fazia parte do pedido uma alteração dos montantes atribuídos, a não ser o decorrente apenas de uma (eventual) alteração da matéria de facto; e "a forma arbitrária" a que a recorrente se refere é quanto à apreciação da prova daqueles factos (considerando a prova insuficiente para dar como provados os factos) e não quanto aos montantes indemnizatórios. Todavia, o Tribunal da Relação assumiu os factos provados[16] e a partir deles interpretou o direito de forma distinta e para além do pedido (formulado no recurso). Considerando que a matéria de facto provada não foi alterada, qualquer análise dos montantes atribuídos constitui uma apreciação além do pedido formulado.

Aquilo que levou o Tribunal a quo a apreciar os montantes indemnizatórios foi, tal como refere, o facto de a recorrente se ter insurgido contra os montantes arbitrados — “Condenada a pagar ao demandante BB, representado pelo seu pai CC, a quantia de €300.000,00, a título de danos não patrimoniais e ao demandante CC a quantia de €25.000,00, a título de danos não patrimoniais, a recorrente insurge-se contra os montantes fixados, alegando que foram fixados de forma arbitrária” (p. 53 do ac. recorrido).  Porém, tal não resulta, minimamente, das alegações do recurso interposto.

Conhecendo do modo como se propôs fazer e o fez, o Tribunal a quo alargou âmbito do pedido (formulado no recurso), tal como foi apresentado pela recorrente; o pedido foi alterado, foi ampliado, tendo o se Tribunal pronunciado sobre questão de que não podia tomar conhecimento — arts. 425.º, n.º 4 e 379.º, n.º 1, al. c), do CPP. Note-se que a indicada disposição, em todas as suas alíneas, pressupõe a existência de um pedido do recorrente nesse sentido, o que neste caso não sucedeu.

Acresce que o Tribunal a quo não faz depender a reapreciação dos montantes indemnizatórios de uma imputação dos factos (geradores de responsabilidade civil) meramente a título de dolo eventual.

Senão vejamos, foi a seguinte a fundamentação apresentada:

«7. Condenada a pagar ao demandante BB, representado pelo seu pai CC, a quantia de €300.000,00, a título de danos não patrimoniais e ao demandante CC a quantia de €25.000,00, a título de danos não patrimoniais, a recorrente insurge-se contra os montantes fixados, alegando que foram fixados de forma arbitrária[17].

É indiscutível a verificação dos pressupostos de responsabilidade civil extracontratual (art.483, do Código Civil), em relação ao pedido formulado pelo BB.

Contudo, em relação ao pedido do CC, a verificação desses pressupostos não é líquida.

Com exceção das situações previstas nos nºs 2 a 4 do art.496, e no art.495, o Código Civil não dispõe de uma regra geral que delimite expressamente o círculo de sujeitos a quem cabe a titularidade do direito à indemnização pelos danos decorrentes de um facto lesivo.

O critério para determinar essa titularidade tem sido elaborado pela doutrina, no sentido de que apenas pode peticionar uma indemnização o lesado que sofreu danos diretos na sua própria esfera jurídica e que é titular do direito violado ou interesse legalmente protegido (art.483, CC)[18].

Ou seja, o direito à reparação cabe, em regra, apenas aos designados lesados imediatos.

Esta regra é válida para danos patrimoniais e danos não patrimoniais, razão por que em relação a estes, em regra, não podem terceiros reclamar a sua reparação em caso de a vítima direta ter sofrido lesão corporal não fatal, pois a lei só prevê a reparação de danos não patrimoniais de terceiros em caso de morte e a favor das pessoas enunciadas no citado art.496, nº3, CC.

No caso, o demandante CC, enquanto pai do lesado imediato, é terceiro em relação à ação ilícita, não tendo sofrido um dano próprio causado diretamente pelo ato ilícito, mas danos reflexos que a doutrina e jurisprudência tradicionais têm entendido não serem suscetíveis de indemnização.

O argumento mais frequente consiste na invocação do elemento histórico de interpretação. Vaz Serra, no Anteprojeto do CC, propôs uma disposição legal referente às situações em que o lesado imediato sobrevivia, apesar de sofrer uma lesão corporal, prevendo essa disposição a ressarcibilidade dos danos dos familiares do lesado, solução legislativa que não passou para a redação definitiva do Código Civil, levando a que os defensores desta tese afirmassem que foi intenção do legislador prever o direito de indemnização dos familiares da vítima direta em caso de morte desta, mas não em caso de sobrevivência da mesma[19].

Invoca-se também o argumento literal, segundo o qual a letra da lei não prevê a reparação dos danos não patrimoniais dos familiares do lesado imediato que não falece, ao contrário do previsto para os familiares do lesado falecido, no nº 3, do citado art.496.

Argumenta-se, ainda, que sendo os regimes daqueles arts.495 e 496 excecionais, não podem ser aplicados analogicamente (art.11, CC), nem alvo de uma interpretação extensiva[20].

Esta orientação tradicional tem vindo a ser posta em causa quanto a situações particulares, nomeadamente pelo Cons. Abrantes Geraldes, defendendo a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais dos familiares mais próximos da vítima de lesão corporal grave, em caso de lesão do relacionamento familiar ou de lesão do relacionamento conjugal, referindo que, para fundamentar a indemnização, pode recorrer-se às normas gerais que tutelam a personalidade (art.70) ou que regem as relações familiares (arts.1672 e 1878) e às normas constitucionais que protegem a família, designadamente as relações de casamento ou de filiação (arts.36, nº 5 e 67, CRP)[21].

Esta solução, de ser merecedor de proteção o sofrimento da pessoa que mantém uma relação de muita proximidade e afetividade com a vítima, tem em determinados casos merecido acolhimento nos nossos tribunais superiores, sendo de destacar o AUJ nº 6/2014 (Diário da República n.º 98/2014, Série I de 2014-05-22), que decidiu «Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave».

O Pleno das Secções Cíveis do STJ situou a problemática no âmbito da responsabilidade civil e dos danos não patrimoniais, afastando, desde logo, o argumento da separação de poderes: “Este Tribunal, contudo, está a mover-se dentro do círculo de abrangência traduzido pelas várias interpretações possíveis das normas vigentes – concretamente do nº 1 do artigo 483º e do nº 1 do artigo 496º – e não a criar “ex novo” norma que tutele o direito da autora”, referindo que, naquele caso concreto (a vítima sofreu amputação de um membro inferior, que lhe determinou uma i.p.p. de 80%, passou a padecer de stress pós-traumático, diminuição da autoestima, oscilações de humor, diminuição da capacidade de relacionamento afetivo conjugal, a esposa que o ajudava diariamente peticionou uma indemnização por danos não patrimoniais devido ao sofrimento e alteração da sua vida quotidiana como decorrência do acidente), era necessária uma interpretação atualística, no sentido da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais sofridos pela A., pois “Casos há, efetivamente, em que a relação entre o dano provocado a uma pessoa que se mantém viva e o sofrimento também infligido a outra é tão estreita, que se pode dizer que o atingimento desta tem lugar, se não necessariamente, pelo menos em regra”.

O acórdão do TRL de 26-01-2017 (Relator Jorge Leal, Pº 2922/14.2TBOER.L1-2, acessível em www.dgsi.pt), reconheceu direito a indemnização a um filho pelos danos não patrimoniais sofridos em virtude do estado de saúde do pai, que após um acidente grave ficou em estado semivegetativo, não conseguindo, posteriormente, reconhecer o próprio filho, considerando que “… a visão dita tradicional está desajustada face ao espírito e às necessidades atuais…”, tendo exposto algumas considerações sobre a proteção da família a nível legal e constitucional, entendendo que tal proteção se deve ao facto de os vínculos familiares constituírem a base estrutural da identidade do ser humano e do seu desenvolvimento, podendo até dizer-se que a paternidade/maternidade e a filiação se albergam na cláusula geral de proteção da personalidade consagrada no art.70º. Acrescentou ainda: “… a lesão grave de um pai ou de um filho, comprometendo séria e irremediavelmente essa dimensão essencial da vivência da pessoa, constitua, em regra, um dano direto, a lesão de direito absoluto ou interesse juridicamente tutelado, que, verificados que estejam os restantes pressupostos da responsabilidade civil, merece ser compensado, a título de dano não patrimonial, ao abrigo do disposto nos artigos 483º nº 1 e 496º nº 1 do Código Civil.”

No mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/10/2015 (Relator Jorge Arcanjo, Pº 335/09.7TBNLS.C1, acessível em www.dgsi.pt), salientou a necessidade de ultrapassar a categoria tradicional de dano moral, de forma a abranger não apenas a simples dor ou perturbação emocional, mas erigindo “(...) um novo modelo centralizado no “dano pessoal” correspondendo ao “dano ao projeto de vida”, como núcleo do “dano existencial”, reconhecendo à esposa do lesado direto de ato grave o direito a ser indemnizada por dano próprio integrador do seu direito de personalidade.

Em todos estes casos estão em causa danos graves com implicações relacionamento familiar ou conjugal.

No caso, os danos não patrimoniais alegados pelo demandante CC e provados (nºs 108 e segs, dos factos provados) reconduzem-se ao sério sofrimento de um pai que vê o filho padecer por doença ou lesão grave provocada por outrem (sentimento de impotência face à situação evidenciada pelo filho, desespero, aterrado por temer pela vida do seu filho, ficou muito nervoso, aflito, passou a andar ansioso, transtornado, com insónias, deixando de conseguir dormir).

É inegável o sofrimento do demandante, como é próprio de um pai normal que sofre com os infortúnios e se regozija com os êxitos do filho.

Contudo, nada se provou que permita admitir que o sofrimento do demandante tenha ído além do que é próprio de um pai que vê o filho afetado por doença grave de prognóstico reservado e que depois se sente aliviado pela cura, sofrimento suscetível de integrar a categoria tradicional de dano moral, mas insuficiente para ser reconhecido como dano próprio integrador do seu direito de personalidade por afetação da sua relação de parentalidade com o lesado direto.

Ultrapassados os factos, a relação do demandante com o filho continuou idêntica à que era antes, constituindo os factos para o demandante um obstáculo na vida do filho (sem dúvida muito sério e com implicações na personalidade e desenvolvimento do menor), mas que ele viu ultrapassado e que não tem implicações na afirmação do demandante como pai, nem na sua relação com o filho, relação essa que só pode ter ficado mais forte e próxima.

Não se reconhece, assim, um dano próprio do demandante CC, equiparável aos verificados nos últimos acórdãos citados, que justifique reparação em virtude da atuação ilícita da demandada.

Em relação aos danos sofridos pelo demandante BB, os mesmos decorrem dos terríveis atos que suportou descritos nos factos provados e inerente sofrimento, agravado pela circunstância de terem sido perpetrados pela própria mãe, com os consequentes traumas que o afetarão ao longo da vida.

A lei impõe a fixação do respetivo montante segundo critérios de equidade, mas esta, sem prejuízo de algum grau de subjetividada e da ponderação prudencial e casuística das circunstâncias do caso, não dispensa a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uniformização de critérios, com ponderação de critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adotados, de modo a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade[22].

Ora, com o devido respeito, tendo em conta estes critérios e as decisões publicadas dos nossos tribunais superiores, o valor fixado pelo tribunal recorrido apresenta-se exagerado.

Não questionando que os danos não patrimoniais sofridos pelo menor BB possam ser valorados em valor superior ao habitualmente atribuído pelo dano morte[23], o valor de €300.000 é manifestamente desproporcional face aos critérios adotados pelos nossos tribunais superiores[24].

8. (...) A doutrina tem-se pronunciado no sentido de apenas poder peticionar uma indemnização o lesado que sofreu danos diretos na sua própria esfera jurídica e que é titular do direito violado ou interesse legalmente protegido, prevendo a lei a reparação de danos não patrimoniais de terceiros só em caso de morte da vítima direta (art.496, nº 3, CC).

A jurisprudência, em especial após o AUJ nº 6/2014 (Diário da República n.º 98/2014, Série I de 2014-05-22), tem vindo a admitir a reparação de danos não patrimoniais de terceiros familiares próximos da vítima de lesão corporal grave não fatal, mas tão só em caso de lesão do relacionamento familiar ou de lesão do relacionamento conjugal.

O demandante CC, enquanto pai do lesado direto BB, sofreu pelo que viu o menor padecer, mas esse sofrimento, não tendo afetado a normal relação de parentalidade, não constitui um dano próprio e direto em consequência do ato ilícito da demandada que justifique reparação.

A fixação equitativa da indemnização, sem prejuízo de algum grau de subjetividada e da ponderação prudencial e casuística das circunstâncias do caso, deve ter presente a necessidade de uniformização, respeitando critérios jurisprudenciais generalizadamente adotados, de modo a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.» (p. 53-58 e 60 do ac. recorrido)

Na verdade, as diferentes indemnizações atribuídas pelo Tribunal da Relação têm por fundamento um outro entendimento quanto à possibilidade de indemnização de danos reflexos — no que diz respeito à indemnização atribuída a CC —, e um outro entendimento quanto aos valores arbitrados na indemnização concedida a BB por entenderem ser exagerados comparando com outros atribuídos pelos Tribunais, em outras situações.

Ora, nada disto foi alegado no recurso interposto pela arguida, nada disto consta do seu pedido. Nem mesmo na resposta ao recurso apresentado pelos assistentes — estes limitaram‑se a contra-alegar considerando que havia prova nos autos e concluindo que o Tribunal recorrido havia decidido bem quanto ao arbitramento da indemnização civil (podendo até ter decidido por valor superior quanto ao assistente BB, atentos os rendimentos da arguida, mas sem que apresente qualquer pedido para alterar o valor atribuído)[25].  

Assim sendo, a simples análise dos montantes indemnizatórios sem que o tema faça parte do pedido no recurso apresentado pela arguida constitui excesso de pronúncia, sendo o acórdão recorrido nulo, por força do disposto nos arts. 425.º, n.º 4, e 379.º, n.º 1 al. c), ambos do CPP. Cumpre, porém, salientar que os poderes de cognição do Tribunal estavam e estão limitados pelo pedido — o pedido restringia-se a uma alteração da matéria de facto, e só se se tivesse julgado procedente (o pedido) se poderia ter reanalisado (a partir de uma nova matéria factual) os montantes indemnizatórios atribuídos.

Atenta a nulidade do acórdão recorrido, nos termos do art. 379.º, n.º 2, do CPP, deve (nos termos da lei) o Tribunal de recurso supri-la. Na verdade, considera-se que é de conhecimento oficioso esta nulidade — “Quanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento do n.º 2, estabelece que «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas», o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. A letra da lei é unívoca: «as nulidades da sentença devem ser... conhecidas em recurso» .”[26] Na verdade, as nulidades da sentença, por força do disposto no art. 379.º, n.º 2, do CPP, são uma exceção[27] relativamente às restantes nulidades dado que “podem ser conhecidas mesmo sem serem arguidas” (Germano Marques da Silva).

Porém, consideramos que tal só é admissível quando, por um lado, o Tribunal de recurso tenha todos os elementos que lhe permitam suprir a nulidade — como nos casos em que a decisão recorrida se pronunciou sobre questões que não podia conhecer — e, por outro lado, quando em consequência de tal suprimento não fique limitado um eventual direito de recurso.

No presente caso, verifica-se que o suprimento da nulidade relativa à apreciação da matéria civil pelo Tribunal da Relação é admissível, dado que não irá importará qualquer limitação do direito ao recurso.

Em primeiro lugar, cabe referir que o recurso interposto pela arguida quanto à matéria civil foi apresentado considerando que a decisão deveria ser alterada porquanto “também no que respeita aos pedidos de indemnização civil supra referidos, também o douto tribunal a quo julgou ao arrepio da prova produzida” (ponto 75 da motivação então apresentada). Tendo em conta o pedido, a arguida fez depender o recurso interposto da alteração da matéria de facto. A apreciação da matéria de facto é da competência do Tribunal da Relação que dela conheceu e decidiu pela improcedência do recurso; tendo igualmente decidido pela improcedência da alegação da existência de erro notório na apreciação da prova. Ou seja, a matéria de facto manteve-se inalterada. Por outro lado, o direito de recurso poderia ter sido exercido impugnando, igualmente, os montantes indemnizatórios atribuídos caso falecesse a outra impugnação — o que não aconteceu—, pelo que a recorrente não exerceu o (seu) direito a recurso nesta parte. Assim sendo, o conhecimento do recurso quanto à matéria civil ficou prejudicado por a matéria de facto ter sido mantida inalterada, e o âmbito do direito de recurso ter sido voluntariamente restringido pelo exercício que dele se fez.  

Atenta esta conclusão, o Tribunal de recurso pode suprir a nulidade constante do acórdão recorrido e nessa medida, dado que não ocorreu qualquer alteração da matéria de facto e estando o recurso em matéria civil interposto para o Tribunal da Relação dependente da procedência desta impugnação, o que não ocorreu, o recurso quanto à matéria civil é julgado improcedente, ficando prejudicado o conhecimento quanto à (eventual) alteração dos montantes indemnizatórios, e mantendo-se a decisão prolatada em 1.ª instância.

Acresce referir que a decisão prolatada em matéria de indemnização civil é já uma decisão conhecida da arguida e relativamente à qual exerceu o direito ao recurso, tendo tido oportunidade de apresentar quaisquer alegações quanto à matéria de facto ou de direito capazes (ou não) de influenciar a decisão quanto ao objeto da causa.

6.2. O recurso agora interposto pelos assistentes/demandantes pretende, tal como é referido nas conclusões, que:

«10ª – Com fundamento no exposto, apela-se, também quanto à temática do PIC, à revogação do acórdão recorrido e à sua substituição, por outro, a prolatar por este STJ, que, em repristinação da decisão proferida em Primeira Instância:

10.1ª – Reconheça ao Recorrente CC o direito de ser compensado, a título de ressarcimento por danos não patrimoniais sofridos, no montante de € 25.000,00, declarando a condenação da arguida no correspectivo pagamento.

10.2ª – Reconheça ao ofendido BB o direito de ser compensado, a título de ressarcimento por danos não patrimoniais sofridos (contemporâneos aos vários episódios vivenciados, imediatamente subsequentes aos mesmos, presentes e futuros), no montante de € 300.000,00, declarando a condenação da arguida no correspectivo pagamento.»
Assim sendo, e dada a conclusão anterior, fica prejudicado o conhecimento do recurso interposto em matéria civil.

III

Conclusão

Termos em que, pelo exposto, acordam os Juízes da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em

a) conceder parcial provimento ao recurso, aplicando à arguida AA a pena única de 13 (treze) anos de prisão;

b) no mais, quanto à matéria penal, manter o acórdão do Tribunal da Relação ……..;

c) julgar improcedente o recurso interposto, pela Demandada civil para o Tribunal da Relação, quanto ao pedido de indemnização civil, mantendo-se, quanto aos pedidos de indemnização civil, a decisão prolatada em 1.ª instância, anulando, nesta parte, o acórdão recorrido, nos termos do art. 379.º, n.º 2, do CPP;

d) de acordo com o decidido em c) fica prejudicado o conhecimento do recurso quanto à matéria civil interposto pelos Demandantes Civis.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 6 de maio de 2021   


As Juízas Conselheiras,



Helena Moniz(Relatora)


Margarida Blasco

_______________________________________________________

[1] Transcreve-se com a numeração original, sendo que a anterior integra a motivação da resposta.

[2] In http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9e3e76a2774f4a9f80257dd900363786?OpenDocument

[3] In https://dre.pt/application/file/a/130699814

[4] Acórdão de 22.01.2015 citado supra.

[5] Consultável aqui: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2efc55609a9f3132802578d5005357ca?OpenDocument

[6] Consultável o sumário aqui: http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal2010.pdf

[7] Acessível aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140269.html

[8] Consultável aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20090649.html

[9] Ac. do STJ, de 14.10.2020, proc. n.º 74/17.5JACBR.C1.S1, Relator: Cons. Manuel Augusto Matos, in www.dgsi.pt  

[10] Ac. do STJ, de 08.03.2012, proc. nº 625/06.0PELSB.L2.S1, Relator: Cons. Maia Costa, in  www.dgsi.pt; no mesmo sentido, ac. do STJ, de 26.02.2014, no proc. n.º 851/08.8TAVCT.G1.S1, Relator: Cons. Maia Costa, in  www.dgsi.pt, e ac. do STJ, de 18.01.2018, proc. n.º 239/11.3TALRS.L1, Relator: Cons. Lopes da Mota, in www.dgsi.pt“Há confirmação quando, mantendo-se a decisão condenatória, a pena é atenuada, o que se traduz na chamada confirmação in mellius. No que respeita à qualificação jurídica, precisa-se que a identidade de qualificação abrange não só a sua manutenção pelo tribunal superior, mas também a desqualificação do tipo agravado para o tipo fundamental do mesmo crime, não havendo confirmação se for imputado ao condenado um tipo de crime diferente a identidade de facto não é ofendida quando a alteração é juridicamente irrelevante ou tem apenas como consequência a desagravação da qualificação dos factos, assim beneficiando o condenado.”

[11] Foi assim concluído em termos médico-legais (cf. facto provado 53), o que, no entanto, não obstaria a uma conclusão diferente em termos jurídicos-penais dado que o juízo de imputabilidade é um juízo normativo; porém dada a inadmissibilidade do recurso quanto aos crimes em particular, a decisão aqui prolatada ter-se-á que cingir ao anteriormente já sedimentado.

[12] Não tendo sido reconhecida a existência deste erro pelo Tribunal da Relação — cf. ponto 2, p. 38-41 do acórdão recorrido.

[13] O que foi analisado pelo Tribunal a quo (apesar de a recorrente não ter sido “rigorosa no cumprimento das especificações exigidas”, p. 41, do ac. recorrido) e concluindo-se pela improcedência da impugnação da matéria de facto — cf. ponto 3, p. 41-43.

[14] Tendo o Tribunal da Relação considerado que não havia desistência relevante — cf. ponto 5,  p. 47-48 do ac. recorrido.

[15] O Tribunal decidiu considerando que a arguida atuou com dolo eventual — cf. ponto 4, p. 43-47.

[16] O que é claro quando se afirma ”os danos não patrimoniais alegados pelo demandante CC e provados (nºs108 e segs, dos factos provados)” — cf. ac. recorrido, p. 56 — e quando afirma “Em relação aos danos sofridos pelo demandante BB, os mesmos decorrem dos terríveis atos que suportou descritos nos factos provados” — ­ cf. ac. recorrido p. 57

[17] [no original nota 19] A recorrente manifesta discordância contra a decisão relativa a estes pedidos civis nas motivações, omitindo qualquer referência a essa questão nas conclusões, contudo, optou-se por não proferir despacho de aperfeiçoamento, o que só retardia o conhecimento do recurso e é de evitar em processo de natureza urgente, tendo-se com conta o alegado apenas nas motivações.

[18] [no original nota 20] ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, p.620; PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p.498. 

[19][no original nota 21] Neste sentido, cfr. voto de vencido do Conselheiro Silva Salazar ao AUJ nº 6/2014 (Diário da República n.º 98/2014, Série I de 2014-05-22): “(…) apenas poderia ter lugar uma interpretação extensiva atualista, no sentido de incluir familiares de lesado direto sobrevivente no número dos titulares de direito a indemnização por danos não patrimoniais indiretos, se o próprio legislador tivesse manifestado abertura nesse sentido, o que não se verificou, nem mesmo aquando de alteração feita em 2010 ao disposto no dito art.º 496º, altura que podia ter aproveitado para o efeito se fosse essa a sua intenção, pelo que não se pode concluir que uma tal interpretação fosse de encontro ao espírito, mesmo atual, da lei.”.

[20] [no original nota 22] Neste sentido decidiu o Ac. do STJ de 26-06-2003, Relator Duarte Soares “III- O universo das pessoas não lesadas directamente com direito à indemnização por danos morais são apenas as previstas na norma do nº. 2 do artº. 496º do CC e apenas no caso de morte da vítima. Não pode aplicar-se essa norma, extensivamente, ou por analogia, a outras situações para além da morte da vítima porque a restrição em vigor constitui uma opção consciente do legislado”, assim como o Ac. do TRP de 19-03-2012, Relator Ana Paula Amorim Amorim “Atento o disposto no art. 496°/2 CC, não assiste à Autora o direito de reclamar da ré-seguradora a indemnização peticionada a título de danos morais, pois a indemnização não resulta de danos próprios, uma vez que se reporta aos danos sofridos em consequência do padecimento do autor, seu cônjuge e pelo facto de o acompanhar e assistir ao sofrimento que padeceu durante o período em que esteve em tratamento e recuperação”, acessíveis em www.dgsi.pt.

[21] [no original nota 23] Temas da responsabilidade civil – Indemnização dos Danos Reflexos, pág.87.

[22] [no original nota 24] Ac. do STJ de 05-11-2009 - Revista n.º 381/2002.S1 -7. ª Secção – Relator Cons. Lopes do Rego, acessível em www.stj.pt.

[23] [no original nota 25] Como decidiu o Ac. do STJ de 28-02-2008 ( Revista n.º 388/07 - 7.ª Secção – Relator Custódio Montes, sumário acessível em www.stj.pt) “I - Nada impede que, em face do caso concreto, se arbitre indemnização por danos não patrimoniais, a uma vítima sobrevivente de um acidente de viação, superior ao montante médio atribuído pela jurisprudência ao dano morte”.

[24] [no original nota 26] Em relação ao direito à vida os nossos tribunais não se têm afastado muito dos critérios apresentados pelo Provedor de Justiça para indemnização dos danos causados pela tragédia da queda da ponte de Entre-os-Rios, que apontou para um valor de €50.000 (v. Resolução do Conselho de Ministros n.º 29-A/2001, DR, I-B, de 9 de Março de 2001 e Anúncio n.º 50/2001, da Secretaria-geral do Conselho de Ministros, DR, II, de 24 de Abril de 2001). Mais recentemente, o Ac. do STJ de 24Out.19 (Proc. n.º 4258/17.8JAPRT.S1G1.S1 - 5.ª Secção Carlos Almeida), fixou em € 80 000 é um valor adequado para compensar a perda do direito à vida de uma pessoa de 42 anos de idade.

[25] Cf. conclusões da resposta apresentada transcritas na p. 13-14 do ac. recorrido.

[26] Oliveira Mendes, Nota 4 ao art. 379.º, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar e outros, Coimbra: Almedina, 2.ª ed., 2016, p. 1133.

[27] Também assim, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português — do procedimento (marcha do processo), vol. III, Lisboa UCP, 2014, p. 327 e 285.