SOCIEDADES COMERCIAIS
ORGÃO SOCIAL
DEVER DE PRESTAR CONTAS
DELIBERAÇÃO SOCIAL
Sumário

I - Os membros da administração da sociedade devem elaborar e submeter pontualmente aos órgãos competentes da sociedade (regra geral, a assembleia geral de sócios) o relatório de gestão, as contas do exercício e a demais documentação de prestação de contas previstos na lei, relativos a cada exercício anual (artigo 65º, n.ºs 1 e 5, do Código das Sociedades Comerciais).
II - Este dever de prestar contas por parte dos administradores, é correlativo do direito dos sócios a essa prestação de contas e não se confunde com o direito de informação dos sócios ou com o direito de consulta de documentos societários.
III - O dever de prestar contas mostra-se cumprido mediante a elaboração das contas e dos respectivos documentos e subsequente submissão pontual das contas ao órgão competente para sobre elas deliberar.
IV - Resultando demonstrado nos autos que as contas dos exercícios dos anos de 2017 e 2018, apesar de levadas a registo comercial, não foram submetidas à apreciação pelo órgão competente da sociedade, verificam-se os pressupostos erigidos pelo artigo 67º, n.º 1, do CSC para o deferimento do inquérito judicial, tendente à prestação dessas contas e consequente submissão das mesmas a apreciação pelo competente órgão, ou seja, pela assembleia geral de sócios, que deverá ser convocada para esse fim.

Texto Integral

Processo n.º 8194/19.5.T8VNG.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto
- Juízo de Comércio de VN Gaia – J 6.
Juiz Relator: Jorge Seabra
1º Juiz Adjunto: Desembargador Pedro Damião da Cunha
2º Juiz Adjunto: Desembargadora Maria de Fátima Andrade
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Sumário (da responsabilidade do Relator):
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I. RELATÓRIO:
1. B…, residente na Rua…, n.º .., no Porto, veio requerer a realização de inquérito judicial contra a sociedade C…, Lda., com sede no …, n.ºs .. e .., …. - … no Porto, e contra os gerentes D…, residente na Rua…, n.º .., Maia, e E…, residente na Rua…, n.º …, Matosinhos, onde concluiu pedindo que, ouvidos os gerentes, seja fixado num prazo não superior a 15 dias para que as contas relativas aos exercícios de 2017 e 2018 sejam apresentados, ao abrigo do dever de relatar a gestão e apresentar contas, seguindo-se os demais termos dos artigos 65.º e ss. do Código das Sociedades Comerciais.
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2. Citados, os Requeridos deduziram oposição.
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3. Foi realizada tentativa de conciliação, que não teve sucesso.
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4. Em seguida, considerando que os autos continham os elementos necessários à decisão, foi proferida sentença em cujo dispositivo foi decretado:
“ Defere-se a realização do inquérito judicial nomeando-se como gerente O Sr. Dr. F…, com endereço na Rua…, …, …. - … …, Amarante, com a função de, no prazo de 60 dias, elaborar o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos aos exercícios de 2017 e 2018, e de os submeter à assembleia geral da sociedade C…, Lda., que deverá convocar, com vista à sua aprovação. “
Posteriormente, em substituição do Sr. Dr. F…, foi nomeado como gerente e para os fins antes assinalados, o Sr. Dr. G…, com domicílio profissional na Rua…, n.º …, ….-… Porto.
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5. Inconformados com tal decisão, vieram os Requeridos interpor recurso de apelação, no qual oferecem alegações e aduzem, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
1 – O dever de relatar a gestão e apresentar contas, tal como previsto no artigo 65º do CSC, é distinto do direito à informação consagrado no artigo 214º do CSC; aquele dever é perfeitamente alheio a qualquer realidade creditícia, que se contenha na esfera de qualquer sócio, sendo configurado, ao invés, como vínculo típico dos membros dos órgãos da administração e devendo ser encarado como sujeito activo a própria sociedade comercial.
2 – Essa diferença acarreta os consequentes reflexos sob o ponto de vista adjectivo, constituindo dois processos especiais diferentes - por um lado, o inquérito judicial à sociedade, previsto no artigo 1048º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e o inquérito judicial, previsto no artigo 67º, n.º 1, final, do Código das Sociedades Comerciais, sendo certo que não são cumuláveis entre si.
3 – O órgão competente a quem se deverá submeter o relatório, as contas e os documentos de prestação de contas, é por regra a assembleia geral (artigos 246º, n.º 1, alínea e), início, 247º, n.º 1, parte final, e 263º, n.º 1, parte final, todos do CSC).
4 - Quando o requerente de inquérito judicial desencadeia o mecanismo processual previsto no artº 1479º do CPC, e tem por fim apenas a realização de inquérito por falta do relatório de gestão, das contas do exercício e demais documentos de prestação de contas, sem seguir a tramitação regulada no artº 67º do CSC, para o qual o nº 3 do artº 1479º do CPC expressamente remete, ocorre erro na forma do processo, que o tribunal deverá conhecer oficiosamente.
5 – Se o requerente cumular no mesmo processo pedidos que correspondem a formas de processo diferentes, ocorre cumulação ilegal de pedidos, que é uma exceção dilatória atípica, de conhecimento oficioso.
6 – Do documento n.º 1 da p.i. - certidão permanente da sociedade requerida - constam inscritas as prestações de contas a que o Recorrido se refere.
7 - O Recorrido confunde a apresentação das contas com a circunstância de as mesmas não lhe terem, alegadamente, sido exibidas - Ou seja, o que o Recorrido alega é que a si, pessoalmente, não lhe foram apresentadas as contas e os relatórios de gestão.
8 – Nos termos do artigo 65º, nº 1, do CSC, a quem devem ser submetidas é ao órgão competente da sociedade e não individualmente a cada um dos sócios.
9 - Para além da ambiguidade sobre qual dos inquéritos judiciais o Recorrido teve em vista – se o do artigo 1048º do Código de Processo Civil, fundado num direito subjectivo à informação; se o do artigo 67º do Código das Sociedades Comerciais, fundado num direito à elaboração do relatório de gestão e das contas de exercício, de alcance algo difuso por visar proteger a comunidade de todos os agentes que interagem com a sociedade a verdade é que a petição inicial apresentada sempre se mostraria inadequada a alicerçar um qualquer deles, precisamente por carência de facto, reveladora dos requisitos essenciais para a sua viabilidade, fosse de um, fosse do outro.
10 - O inquérito judicial à sociedade requerido carece dos pressupostos de que legalmente depende.
TERMOS EM QUE, E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS. SUPRIRÃO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, REVOGANDO-SE A SENTENÇA RECORRIDA E, EM CONSEQUÊNCIA, O PEDIDO DE INQUÉRITO JUDICIAL À SOCIEDADE SER INDEFERIDO, POR INFUNDADO, COM A CONSEQUENTE ABSOLVIÇÃO DA RÉ DO PEDIDO.
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6. Não foram oferecidas contra-alegações.
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7. Foram observados os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
Considerando que são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto e o âmbito da actividade jurisdicional do Tribunal hierarquicamente superior, a questão que importa dirimir e decidir é saber se ocorrem os fundamentos para o deferimento do inquérito judicial peticionado pelo Requerente.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
1. O requerente é sócio da sociedade requerida C…, Lda., com uma quota social de €5.000.00, num capital social de €15.000.00.
2. O requerente não foi convocado para qualquer assembleia de aprovação de contas e do relatório de gestão, relativas aos exercícios de 2017 e 2018, que não se realizaram, não tendo, por isso, sido elaboradas as respectivas atas.
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III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
Como resulta das conclusões do recurso é uma única a questão a decidir, qual seja a de saber se ocorrem os pressupostos de que legalmente depende o deferimento do inquérito judicial à sociedade Requerida.
Em ordem a conhecer deste tema a primeira referência que se impõe fazer é que, como se alcança das conclusões do recurso, os apelantes não colocam em crise a factualidade julgada provada na decisão recorrida e que acima se transcreveu.
Portanto, não ocorrendo aquela impugnação da factualidade provada, tem este Tribunal da Relação que aceitar a dita factualidade para efeitos definição da solução jurídica aplicável ao caso dos autos.
O inquérito judicial à sociedade é um processo de jurisdição voluntária (Título XV do CPC) e encontra-se inserido no capítulo XIV daquele título atinente ao exercício de direitos sociais.
Sobre o dito processo dispõe o artigo 1048º, o seguinte:
“ 1- O interessado que pretenda a realização de inquérito judicial à sociedade, nos casos em que a lei o permita, alega os fundamentos do pedido de inquérito, indica os pontos de facto que interesse averiguar e requer as providências que repute convenientes.
(…)
2 – Quando o inquérito tiver como fundamento a não apresentação pontual do relatório de gestão, contas do exercício e demais documentação de prestação de contas, seguem-se os termos previstos no artigo 67º do Código das Sociedades Comerciais. “
Resulta deste normativo uma divisão essencial ao nível dos fundamentos susceptíveis de conduzir ao pedido de inquérito judicial à sociedade, cabendo, pois, neste conspecto, distinguir o inquérito judicial requerido ao abrigo do preceituado no n.º 1 do citado artigo 1408º (que depende da verificação no caso sob apreciação de algum dos “ casos em que a lei o permita “) e do inquérito requerido ao abrigo do disposto no n.º 3 do mesmo artigo, pois que este último apenas é possível quando o inquérito tenha por fundamento “ a não apresentação pontual do relatório de gestão, contas do exercício e demais documentos de prestação e contas… “.
Esta distinção não é despicienda, pois, que nos casos previstos no n.º 1 do citado artigo 1048º, o processo especial segue os termos previstos nos artigos 1049º a 1052º, do CPC, ao passo que, no caso do n.º 3, o processo segue já os termos específicos previstos no artigo 67º, do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
Como assim, o processo especial previsto no n.º 3 do artigo 1048º do CPC utiliza-se quando o inquérito judicial tenha por fundamento a omissão da pontual apresentação, ou seja a omissão da apresentação no prazo previsto no artigo 65º, n.º 5, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), do relatório de gestão, contas do exercício e demais documentos de prestação de contas.
Por seu turno, o processo especial previsto no n.º 1 do artigo 1048º utiliza-se nos demais casos em que a lei, como sucede por exemplo no artigo 181º ou 216º, faculta ao interessado inquérito judicial à sociedade por recusa de informações que o sócio tem direito a obter ou por prestação de informações falsas, incompletas ou não elucidativas.
Nesta última hipótese, como tem sido reiteradamente sustentado na jurisprudência, em conformidade com o disposto no citado n.º 1 do artigo 1048º, o sócio tem que alegar os fundamentos do pedido (recusa de informação; ou a prestação de informação presumivelmente falsa; ou a prestação de informação incompleta/não elucidativa) e tem, ainda, que indicar os exactos pontos atinentes à gestão da sociedade de que pretende ser informado.
Neste sentido, como se refere no AC STJ de 29.10.2013, “ O pedido de inquérito judicial deve fundar-se em factos, concretamente alegados, pelo requerente sobre a falsidade da informação solicitada ou a sua insuficiência, como factos constitutivos do seu direito, cuja demonstração lhe cabe efectuar “ ou, como também se salienta no AC desta Relação de 22.10.2001, “ O direito de pedir inquérito à sociedade depende da prova de recusa ilícita de informação ou da sua prestação falsa, incompleta ou não elucidativa, cujo ónus impende sobre o requerente. “ [1]
No caso dos autos, sustentou-se na decisão recorrida que o pedido de inquérito deduzido pelo Requerente – sócio da Requerida (sociedade por quotas) – se estriba apenas no citado n.º 3, do artigo 1048º, do CPC.
Nas conclusões de recurso, aparentemente, os Recorrentes sustentam que o Requerente cumulou ilegalmente os dois pedidos (ou seja, o pedido de inquérito deduzido à luz do n.º 1, do citado artigo 1048º e o pedido de inquérito à luz do n.º 3 do mesmo normativo), o que conduziria à procedência da respectiva excepção dilatória (cumulação ilegal de pedidos, atenta a forma especial a que ambos estão sujeitos), excepção de conhecimento oficioso – Vide conclusão 5.
Por outro lado, ainda, segundo sustentam, uma vez que o requerente desencadeou o mecanismo processual do citado artigo 1479º [trata-se de evidente lapso de transcrição, pois que o citado artigo corresponde ao actual artigo 1048º, do CPC, aqui aplicável], mas tem em vista a realização de inquérito por falta de relatório de gestão, das contas do exercício e demais documentos de prestação de contas ocorre erro na forma de processo (pois que tal inquérito segue a forma prevista no artigo 67º, do CSC), excepção que também é de conhecimento oficioso – Vide conclusão 4.
Com o devido respeito, a este nível os Recorrentes limitam-se a “ colar “ ou a adaptar nas alegações e nas conclusões do presente recurso excertos do douto Acórdão da Relação de Guimarães que citam nas suas alegações [2], quando, de facto, a situação que ali estava em apreço é distinta da que ora tratamos, pois que no dito processo o pedido de inquérito baseava-se no pedido de informações por parte do sócio, ou seja, referia-se claramente à previsão do n.º 1 do anterior artigo 1479º, do CPC anterior (correspondente ao n.º 1, do actual artigo 1048º).
Dito isto, resulta do que já antes se expôs que a norma do artigo 67º do CSC (e do n.º 3 do artigo 1048º, do CPC) é especial relativamente à norma do artigo 1048º, n.º 1, do CPC.
A primeira norma é relativa ao inquérito judicial no caso de falta de elaboração e/ou apresentação do relatório de gestão, das contas do exercício e demais documentos da prestação de contas; A segunda é relativa ao inquérito judicial requerido com base no incumprimento ou cumprimento defeituoso do direito do sócio a obter e a ser inteirado de determinadas informações, direito de informação este que se mostra acolhido, para além do mais, nos artigos 181º, para as sociedades em nome colectivo, 216º, para as sociedades por quotas, como é o caso dos autos, e 292º, para as sociedades anónimas, todos do CSC.
Nesta perspectiva, o inquérito judicial previsto no n.º 1 do artigo 1048º, do CPC constitui o meio processual próprio a que o sócio deve recorrer para conseguir que a informação lhe seja prestada em caso de recusa expressa ou presumida, ou ainda em caso de prestação de informação presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa por parte da gerência, do conselho de administração ou direcção da sociedade – cfr. artigos 181º, n.ºs 1 e 6, 216º, n.º 1, 292º, n.ºs 1 e 6, todos do mesmo CSC.
Nesta hipótese, como resulta, aliás, do n.º 1 do artigo 1048º, o Requerente tem, enquanto fundamentos do pedido de inquérito, que fazer prova da sua qualidade de sócio, da recusa da prestação pedida ou da prestação de informação falsa, incompleta ou não elucidativa, indicar os pontos de factos que interessa averiguar (os aspectos concretos da gestão a averiguar ou os documentos a analisar para esse efeito) e, ainda, facultativamente, as providências que repute convenientes.
Este inquérito judicial (o previsto no n.º 1 do artigo 1048º) comporta duas fases:
- Uma primeira que se destina à apreciação pelo juiz dos fundamentos invocados pelo requerente e, após contraditório, haja ou não reposta dos requeridos, decide se há razões bastantes para proceder ou não ao inquérito (artigo 1049º, n.º 1, do CPC);
- Uma segunda fase, se na fase anterior for ordenada a realização do inquérito, em que o juiz fixa os pontos que a diligência deve abranger (em função dos fundamentos invocados pelo Requerente), nomeando, se tal se mostrar necessário, perito ou peritos que deverão realizar a investigação, aplicando-se o disposto quanto à prova pericial e, depois de concluída esta fase investigatória/instrutória, fixando a factualidade provada e decidindo sobre as providências requeridas (artigo 1049º, n.ºs 2 e 3 e 1051º, ambos do CPC).
Por seu turno, o n.º 3 do artigo 1048º, como já se referiu, está previsto apenas para a realização de inquérito baseado na não elaboração e/ou na não apresentação pontual do relatório de gestão, das contas de exercício e demais documentação de prestação de contas, os quais devem ser apresentados nos dois meses seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 5 do artigo 65º do CSC (artigo 67º, n.º 1), e para que o tribunal determine a sua apresentação. [3]
O inquérito nestes casos segue a tramitação específica do artigo 67º do CSC, ou seja, o juiz, ouvidos os gerentes ou administradores e considerando procedentes as razões invocadas para a falta de apresentação das contas, fixa um prazo adequado, segundo as circunstâncias, para que eles as apresentem, nomeando, no caso contrário, um gerente ou administrador para elaborar o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação e contas e os submeter ao órgão competente da sociedade, podendo a pessoa judicialmente nomeada convocar a assembleia geral, se for este o órgão competente, para efeitos de aprovação ou não das contas apresentadas.
Os autos poderão, ainda, prosseguir se essas contas não vierem a ser aprovadas pelo órgão competente, em conformidade com as várias hipóteses contempladas nos n.ºs 3, 4 e 5, do mesmo artigo 67º.
Note-se que, nesta hipótese, o fim do inquérito judicial não é obter informações por parte do sócio (pois que, para tanto, o processo aplicável seria o que se mostra previsto no n.º 1, do artigo 1048º), mas apenas o de obter a elaboração das contas e a sua apresentação ao órgão competente para a sua apreciação com vista à subsequente aprovação pelos sócios e, em última instância, à sua aprovação ou recusa pelo juiz, tudo em conformidade com o disposto no artigo 67º, n.ºs 3 e 5, do CSC.
Feitas estas considerações genéricas sobre o campo de aplicação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 1048º, do CPC e a respectiva tramitação processual, cumpre, pois, conhecer das concretas questões antes assinaladas.
Vejamos.
Em primeiro lugar, não existe, segundo cremos, erro na forma de processo.
Com efeito, o Requerente, fazendo expressa menção ao preceituado no artigo 1048º, n.º 3, do CPC (vide cabeçalho da petição inicial) [4], veio requerer a realização de inquérito judicial à sociedade “C…, Lda. “ invocando, em termos de causa de pedir ou fundamentos daquela sua pretensão, a circunstância de ser sócio daquela (vide artigo 1º da petição inicial) e de não ter a Ré procedido à elaboração do relatório de gestão, à elaboração das contas do exercício e dos demais documentos atinentes à prestação de contas relativos aos anos de 2017 e 2018 e, ademais, não procedido à apresentação das contas daqueles exercícios ao órgão competente, ou seja, a assembleia geral, mediante a convocação da respectiva assembleia geral de sócios, que não teve lugar - vide artigos 2º a 5º da petição inicial.
Portanto, o fundamento do inquérito estriba-se na hipótese do artigo 67º do CSC (falta de apresentação das contas e de deliberação sobre elas pelo órgão social competente).
E em consonância com estes fundamentos, concluiu, a final, o Requerente peticionando que, sendo ouvidos os gerentes, seja fixado um prazo não superior a 15 dias, para que as contas dos exercícios de 2017 e 2018 sejam apresentadas ao abrigo do dever de relatar a gestão e apresentar as contas, seguindo-se os demais termos do artigo 65º do CS Comerciais.
Digamos, pois, que o presente inquérito judicial – atentos os seus fundamentos e pedido formulado – se situa, em termos expressos e tal como delineado pelo Requerente, no preceituado no artigo 1048º, n.º 3, do CPC, conjugado com o disposto no artigo 67º, do CSC (por falta de elaboração das contas dos exercícios dos anos de 2017 e 2018 e sua apresentação ao órgão competente), sendo certo, aliás, que o Tribunal de 1ª instância, nessa consonância, deu cumprimento à tramitação prevista no artigo 67º, n.º 2, do CSC, tendo decidido, após contraditório dos demais gerentes, determinar a nomeação de um gerente para elaboração do relatório de gestão, das contas dos exercícios de 2017 e 2018 e dos demais documentos de prestação de contas, tendo em vista a sua posterior apresentação à assembleia geral dos sócios para deliberação.
Não se vislumbra, assim, face à causa de pedir e ao pedido formulado pelo Requerente, qualquer erro na forma de processo empregue pelo Requerente, sendo certo, aliás, que, ainda que assim fosse, sempre incumbiria ao Tribunal corrigir esse erro, praticando os actos necessários para que o processo seguisse os trâmites previstos na lei, em conformidade com que rege o artigo 193º, n.ºs 1 e 3, do CPC.
E, ainda, também não se vislumbra, com o devido respeito, uma situação de cumulação ilegal de pedidos para efeitos do preceituado no artigo 37º, n.º 1 ex vi do artigo 555º, n.º 1, ambos do CPC, uma vez que, tal como se mostra decidido pelo Tribunal de 1ª instância e se concorda, no caso dos autos o único pedido formulado pelo Requerente na petição inicial contende apenas com a elaboração e apresentação das contas dos exercícios dos anos de 2017 e 2018 ao órgão competente para sobre elas deliberar e não, como defendem os Apelantes, com qualquer informação não prestada ou prestada de forma defeituosa ao Requerente por parte dos gerentes da sociedade requerida.
Dirimidas, assim, estas questões, mantêm-se, todavia, a questão essencial, qual seja saber se ocorrem os pressupostos legais para o deferimento do inquérito judicial, nos termos decretados pelo Tribunal de 1ª instância.
Neste conspecto, prevê o artigo 65º, n.º 1, do CSC, que “Os membros da administração devem elaborar e submeter aos órgãos competentes da sociedade o relatório da gestão, as contas do exercício e demais documentação de prestação de contas previsto na lei, relativos a cada exercício anual. “
Por outro lado, ainda, o n.º 2 do mesmo artigo prevê que “A elaboração do relatório de gestão, das contas do exercício e dos demais documentos de prestação de contas deve obedecer ao disposto na lei; o contrato de sociedade pode complementar, mas não derrogar, essas disposições legais. “
Assim, como referem ANA MARIA RODRIGUES/RUI PEREIRA DIAS, os ditos normativos estabelecem como encargo dos membros da administração, para além do dever de elaborar os aludidos documentos, o dever de submeter estes documentos à apreciação dos órgãos competentes da sociedade, ou seja, ao grémio social, usualmente reunido em assembleia geral. [5]
Este dever de elaborar e prestar contas da gestão da sociedade, como salientam os mesmos Autores, é correlativo de um direito dos sócios a essa prestação de contas, direito este que pode ser distinguido do direito de informação ou de consultar documentos societários.
Em concretização daquele dever de prestação de contas (mediante a elaboração e submissão dos respectivos documentos à assembleia geral dos sócios para deliberação) e do correlativo direito do sócio a essa prestação de contas, prevê o citado artigo 67º, n.º 1, do CSC, que “ Se o relatório de gestão, as contas do exercício os demais documentos de prestação de contas não forem apresentados nos dois meses seguintes ao termo do prazo fixado no artigo 65º, n.º 5 [três ou cinco meses], pode qualquer sócio requerer ao tribunal que se proceda a inquérito.
Digamos, pois, na esteira dos Autores antes citados, op. cit., pág. 855, que o direito em causa (de requerer a realização de inquérito para aqueles fins) é um direito conferido a qualquer sócio e supõe a falta de apresentação dos documentos de prestação de contas ao órgão competente, e não a sua aprovação pelos sócios, que é um passo ulterior e que pressupõe a prévia apresentação daqueles documentos àquele órgão, ou seja, à assembleia geral de sócios.
Ora, neste contexto, mostrando-se confessado pela Requerida (vide acta de tentativa de conciliação realizada) e provado (sem impugnação) que, de facto, os documentos de prestação de contas relativos aos exercícios do ano de 2017 e 2018 não foram apresentados e submetidos a deliberação da assembleia geral de sócios da sociedade Requerida e que, por isso, não existem sequer actas de tais assembleias, em nosso ver mostra-se demonstrados os pressupostos que o n.º 1 do artigo 67º, do CSC consigna como constituindo fundamento para o decretamento do inquérito requerido pelo sócio da ora Requerida.
Note-se, ainda, nesta sede, que, apesar de concedido prazo para os gerentes da Requerida apresentarem as contas em falta atinentes a tais exercícios, ainda assim os mesmos não as apresentaram.
E contra isto não depõe, segundo julgamos, a circunstância de se encontrar levado ao registo comercial a prestação de contas daqueles exercícios de 2017 e 2018 (vide documento n.º 1, junto com a petição inicial), pois que a inscrição no registo comercial de tais prestações de contas para efeitos de cumprimento das obrigações declarativas de natureza contabilística, fiscal e estatística (cfr. artigo 70º, do CSC) não desonera, nem dispensa a administração/gerência da sociedade do dever de submissão oportuna de tais documentos de prestação de contas dos exercícios anuais à apreciação da assembleia geral de sócios, enquanto, repete-se, direito dos sócios a essa prestação de contas e que se mostra imperativamente consagrado no artigo 65º, n.ºs 1 e 5 do CSC.
Na verdade, a ser assim, segundo julgamos, o simples registo das contas em termos de registo comercial dispensaria sempre o cumprimento pelos gerentes ou administradores da sociedade da obrigação que se lhe mostra legalmente atribuída no artigo 65º, n.ºs 1 e 5, do CSC, em prejuízo do direito de qualquer sócio em conhecer as contas da sociedade e de as ver apreciadas em assembleia geral para efeitos da sua aprovação ou não pelo universo dos sócios.
Destarte, em nosso ver, mostrando-se, no caso dos autos, demonstrado que, a despeito de terem sido levadas ao registo comercial as contas dos exercícios de 2017 e 2018, essas mesmas contas não foram submetidas à apreciação do órgão competente, a assembleia geral de sócios da Requerida, mostram-se reunidos os pressupostos que o artigo 67º, n.º 1, do CSC estabelece como condição do deferimento do inquérito judicial ora em apreço e que tem em vista apenas a elaboração das prestações de contas daqueles exercícios e a sua posterior submissão à assembleia geral dos sócios, que deverá ser convocada para esse efeito, tendo em vista a sua aprovação (ou não).
Diferente seria, naturalmente, a decisão a proferir se, mostrando-se efectuado o registo dessas prestações de contas relativos aos anos de 2017 e 2018, existissem também as actas da assembleia geral de sócios que traduzissem a submissão e deliberação do universo de sócios quanto a tais contas, pois que, em tal hipótese, de facto, falharia um dos pressupostos do artigo 67º, n.º 1, do CSC, qual seja a não submissão das contas dos exercícios em causa à apreciação pelo órgão competente.
Todavia, repete-se, não é o que se verifica no caso dos autos, na estrita medida em que se mostra confessado e provado que as contas dos exercícios de 2017 e 2018 nunca foram apresentadas à assembleia geral de sócios da sociedade Requerida, que nunca foi convocada e reuniu para esse fim.
Em conclusão, verificando-se os pressupostos previstos no artigo 67º, n.º 1, do CSC, para a realização do inquérito judicial deduzido pelo sócio e Requerente, improcedem os argumentos invocados pelos Recorrentes, sendo, por isso, de julgar improcedente a apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
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IV. DECISÃO:
Em conclusão, pelos fundamentos antes expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
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Custas pelos apelantes, pois que ficaram vencidos – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 10.05.2021
(O acórdão que antecede não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
Jorge Seabra
Pedro Damião da Cunha
Fátima Andrade
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[1] AC STJ de 20.10.2013, relator Sr. Juiz Conselheiro Hélder Roque e AC RP de 22.10.2001, relatora Sr.ª Juíza Desembargadora Amélia Ribeiro; Vide, ainda, no mesmo sentido, por todos, AC STJ de 16.03.2011, relator Sr. Juiz Conselheiro Oliveira Vasconcelos, AC RL de 17.05.2012, relator Sr. Juiz Desembargador José Augusto Ramos, AC RL de 28.02.2019, relator Sr. Juiz Desembargador Adeodato Brotas, AC RG de 23.04.2013, relator Sr. Juiz Desembargador Beça Pereira, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Na doutrina, vide, no mesmo sentido, A. MENEZES CORDEIRO, “ Direito das Sociedades ”, II volume, 2017, pág. 309 e C. LOPES do REGO, “ Comentários ao CPC ”, II volume, 2ª edição, pág. 329.
[2] AC RG de 23.01.2014, Processo n.º 114/12.4TBPTL.G1, relatora Sr.ª Juíza Desembargadora Helena Melo, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Vide, neste sentido, A. MENEZES CORDEIRO, “ Direito das Sociedades ”, I volume, 3ª edição, pág. 1082-1083.
[4] No cabeçalho da petição consta o seguinte: “ B… (…) vem requerer nos termos do artigo 1048º, n.º 3, do Código de Processo Civil, INQUÉRITO JUDICIAL à sociedade … ”.
[5] ANA MARIA RODRIGUES, RUI PEREIRA DIAS, (Coord. JORGE M. COUTINHO de ABREU), “ Código das Sociedades Comerciais em Comentário ”, I volume, 2ª edição, pág. 833.