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PROCESSO ESPECIAL
ACIDENTE DE TRABALHO
JUNTA MÉDICA
PODERES DO TRIBUNAL
Sumário
I– Não estamos face a uma mera ação declarativa do foro e tramitação cíveis mas movemo-nos antes no seio de uma ação emergente de acidente de trabalho com processo especial, que se acha regulada nos artigos 99.º e seguintes do C.P.T. e que possui características próprias – v.g., urgência dos atos a praticar, tramitação oficiosa, início da instância e princípios da gestão processual e do inquisitório – assim como uma tramitação muito particular (fase conciliatória, dirigida pelo Ministério Público e fase contenciosa, já presidida pelo juiz do tribunal do trabalho ou equiparado).
II– Não estamos face a um processo de partes e onde meramente se debatem interesses individuais e privados, mas antes perante ações em que, ao lado daqueles, são prosseguidos também interesses de ordem pública, dado o evento originador dos correspondentes direitos – que possuem natureza irrenunciável e indisponível, constituindo direitos de existência e exercício necessários -, ser um acidente de trabalho ou uma doença profissional, com reflexos permanentes no plano físico e/ou psicológico e emocional do sinistrado ou doente ou na vida futura dos seus familiares, que deles estavam economicamente dependentes, bem como a um nível mais global, na esfera social, económica e financeira da comunidade em geral, das entidades responsáveis e do Estado.
III– Tal cenário habitual reclama, naturalmente, a prestação de cuidados médicos e clínicos destinados a curar as referidas lesões, de maneira a reparar e restaurar total ou até onde for possível, o organismo e o espírito do sinistrado e, nessa medida, a integral ou parcial capacidade funcional e de desenvolvimento futuro da correspondente profissão ou de outra.
IV– As incapacidades permanentes de diversa natureza que se mostram legalmente previstas na LAT/2009 são atribuídas aos trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho com base na Tabela Nacional de Incapacidades, que se mostra publicada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro.
V– Tal panorama muito particular e especial reflete-se também na prevalência e proeminência que é dada, processualmente, à prova pericial, de cariz médico-legal e não só – cf. o número 4 do artigo 21.º da LAT/2009 – e que relativamente às questões de cariz clínico, é mesmo a prova rainha, conforme facilmente ressalta dos artigos 105.º a 107.º e 138.º a 140.º do Código de Processo do Trabalho.
VI– Todas as perícias, em que se traduzem, designadamente, os exames médicos, efetuadas no quadro nas ações emergentes de acidente de trabalho, estão sujeitas à livre apreciação do julgador, independente da sua ordem lógica e cronológica e do seu carácter singular ou plural, não impondo ao tribunal, nessa medida e apesar de o exame ser plural e/ou final, a desvalorização por si atribuída, dado a mesma não se sobrepor às demais fixadas nos autos.
VII– O juiz de trabalho não está vinculado, em termos de estrutura e sequência processuais obrigatórias, a finalizar (ainda que essa seja a normalidade dos casos que lhe passam pelas mãos) a fase instrutória da ação ou incidente relativo a acidente de trabalho com o exame por junta médica, quando a ele haja lugar, pois como ressalta com clareza do número 7 do artigo 139.º do Código do Processo do Trabalho, o julgador pode ordenar, após a concretização do exame por junta médica e antes de proferir o despacho, a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos.
VIII– O magistrado judicial tem, nomeadamente, nos termos do artigo 21.º, número 4, da Regulamentação do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais, a faculdade de solicitar parecer prévio de peritos especializados – prévio à decisão, obviamente – quando estiver em causa, designadamente, uma situação de eventual IPATH.
IX– O julgador conhece aqui um certo grau de discricionariedade, justificado e orientado pelo exclusivo propósito de formar, correta e fundadamente, a sua convicção a partir dos diversos elementos, de natureza médica ou não, que, estando juntos aos autos, se mostrem relevantes para o julgamento das aludidas questões.
X– O Exame por Junta Médica, que foi efetuado no apenso para fixação de incapacidade e sobre o qual se funda a sentença aqui em apreciação, não só não emitiu o seu parecer em face de todos os elementos clínicos disponíveis, pois houve alguns deles que já foram juntos aos autos após tal exame e que, embora notificados a dada um dos peritos em termos individuais, não mereceram da sua parte uma nova reunião colegial e a emissão de um novo parecer também consubstanciado sobre o teor dos mesmos, como peca por ser, em termos de conteúdo, insuficiente, tecnicista, conclusivo e muito pouco esclarecedor, em termos factuais e médicos legais, acerca das questões antes suscitadas nos autos [data da alta - 29/11/2019 ou 28/10/2018 - e divergência das opiniões médico-legais quanto à incapacidade de que sofre o sinistrado e que se situa entre 16,08% e os 00,00%], impondo-se, em nosso entender, uma postura diversa por parte do tribunal recorrido, quer através de uma sua segunda convocação de tal Junta Médica, quer mediante a efetuação de exames complementares de natureza clínica ou outros que se imponham como relevantes e necessários.
XI– Não se nos afigura que a mera reapreciação por este Tribunal da Relação de Lisboa da prova verbal – declarações do perito, do sinistrado e depoimentos testemunhais - carreada para a Audiência Final – e onde nem sequer foram chamados para esclarecimentos complementares os peritos médicos intervenientes na Junta Médica, conforme permitido pelo artigo 134.º do Código de Processo do Trabalho – seja suficiente para ultrapassar, de uma forma objetiva, segura, rigorosa e científica as divergências existentes entre as partes e que ressaltam dos autos.
XII– Este Tribunal da Relação de Lisboa entende que pode e deve anular a decisão proferida na 1.ª instância, por considerar que existe deficiência e obscuridade quanto a algum dos factos dados como provados [Ponto 5., alíneas a), b) e c) dos Factos dados como Assentes e alíneas a) e b) dos Factos dados como Não Provados] e que se radicam na aferição da data efetiva da alta do sinistrado, da verificação da existência ou não de sequelas permanentes resultantes do acidente de trabalho dos autos, por força, designadamente, da aplicação do regime do artigo 11.º da LAT/2009 e da inerente e eventual fixação de incapacidade ao recorrente, sem perder de vista as divergências periciais existentes a esse nível.
XIII– O quadro factual e jurídico deixado traçado implica, em nosso entender, a anulação da sentença, nos termos do artigo 662.º, números 1, 2 e 3, alíneas c) do Novo Código de Processo Civil, por força do número 1 do artigo 87.º do Código do Processo do Trabalho, com vista a suprir tais deficiência e obscuridade dos referidos Pontos de Facto Provados e Não Provados acima identificados, mediante as diligências probatórias de cariz pericial [médico-legal] que, para o efeito, se revelarem necessárias.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Texto Integral
Acordam Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
I–RELATÓRIO
Os autos de ação emergente de acidente de trabalho de onde emerge o presente recurso de Apelação, tiveram a sua origem no acidente de trabalho ocorrido em 27/09/2018 e que, participado, no dia 10/1/2020, por Auto de Notícia levantado perante a Procuradora da República do Tribunal do Trabalho de Ponta Delgada e assinado pelo sinistrado, afetou AAA, nascido em …. e residente na 1… Ponta Delgada, quando o mesmo desempenhava funções de motorista de pesados e manobrador de máquinas, por conta e sob as ordens, direcção e fiscalização da sua entidade patronal BBB… com sede na … Ponta Delgada, tendo esta empresa transferido a sua responsabilidade infortunística laboral para a Seguradora CCC, com sede na Rua … Lisboa [fls. 1 a 23]
*
Procedeu-se à realização do competente exame médico (fls. 54 a 56 e 83 a 85), no qual foi considerado o sinistrado afetado de uma IPP de 16,08%, desde 29/11/2019, sendo certo que os serviços clínicos da seguradora haviam considerado inexistir nos autos um nexo de causalidade entre as lesões e o acidente que afetou o trabalhador (fls. 36).
Realizada, nos dias 22/10/2020 [fls. 96 e 97] e 2/11/2020, a tentativa de conciliação sob a presidência da Exma. Magistrada do Ministério Público, a fls. 101 a 103 verso, sinistrado, entidade empregadora e seguradora prestaram as seguintes declarações, face à proposta de acordo apresentada pela referida Magistrada:
«[…] No dia 27 de Setembro de 2018, pelas 12:00 horas, no concelho de Santa Cruz das Flores, o sinistrado, trabalhava por conta e sob autoridade, direção e fiscalização da empregadora “BBB, … Ponta Delgada, com a categoria profissional de Motorista de pesados e manobrador de máquinas, ao sair da giratória com que estava a trabalhar, o pé escorregou e ficou suspenso pelo braço direito.
Em consequência direta e necessária do acidente de trabalho descrito, advieram para o sinistrado as lesões descritas e examinadas nos autos de perícias médicas legais de fls. 54, 55, 83 a 85 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, sendo que de acordo com o laudo médico elaborado pelo Exmo. Sr. Perito Médico deste Tribunal, ao mesmo foi atribuída a incapacidade permanente parcial (I.P.P.) de 16,08% a partir de 29-11-2019 (data da alta).
À data do acidente auferia as seguintes componentes salariais:
- Retribuição base: 1.043,69 € x 14M;
- Subsídio de alimentação: 126,50 € x 11M;
- Prêmio de produtividade 1.465,00 € x 1 Ano;
- Retribuição por trabalho suplementar: 3.034,53€ x 1 Ano;
A que corresponde uma retribuição anual bruta no valor de 20.502,69 €.
À data do acidente encontram-se totalmente transferidas para a entidade seguradora, as componentes acima descritas, mediante contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 204722873.
Notificado do resultado deste exame médico o sinistrado manifestou a sua concordância com a I.P.P. que lhe foi atribuída.
Mais refere que tem despesas a reclamar da seguradora, no valor de 35,24 € em medicamentos, 32,05 € de análises, 28,00 € taxa moderadora 20,00 € de consultas e 30,00 € de fisioterapia.
Declara ainda o sinistrado que nada recebeu a título de indemnizações legais até à data da alta, pela entidade seguradora, uma vez que nunca lhe foram fixados quaisquer períodos por incapacidades temporárias.
Com base nos pressupostos acima referenciados e ao abrigo da legislação em vigor a Magistrada do Ministério Público propõe que:
A Seguradora pague ao sinistrado:
- O capital de remição a calcular com base numa pensão anual no montante de 2.307,78 € com início em 30-11-2019.
A Empregadora nada pague ao sinistrado, uma vez que pelo mesmo foi confirmado que o valor auferido a título de ajudas de custo se destinavam a pagar o acréscimos de despesas com alimentação resultante da sua deslocação nas ilhas Flores e Corvo, sendo que o referido valor atribuído era inferior ao valor por si efetivamente despendido com a mencionada alimentação.
Daí resulta que tal verba consubstanciando uma genuína ajuda de custa não integra a definição de retribuição para efeitos de reparação de acidente de trabalho.
*****
Pelo legal representante da entidade seguradora foi dito que:
-Não reconhece o acidente dos autos como de trabalho;
-Não reconhece o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente;
-Não reconhece a data da alta;
-Não reconhece a responsabilidade emergente do acidente em função da retribuição supra mencionada, apesar de aceitar a existência de uma apólice válida mediante a qual se mostra transferida a retribuição anual no montante de 20.502,69 €;
- Não concorda com a incapacidade permanente fixada pelo perito médico deste Tribunal;
- Não aceita a conciliação nos termos propostos pelo Ministério Público, nem o pagamento das quantias das despesas reclamadas.
Pela entidade empregadora foi dito nada a ter acrescentar.
Pelo sinistrado foi também dito que:
-Reconhece a verificação e circunstâncias do acidente acima indicadas;
-Reconhece as lesões indicadas pelo Sr. Perito;
-Reconhece a retribuição e seus componentes;
-Concorda com a incapacidade permanente fixada pelo perito médico deste Tribunal;
-Aceita a conciliação nos termos propostos pelo Ministério Público
-Reclama da seguradora o pagamento das quantias acima indicadas.
*****
Seguidamente por ela, Sra. Procuradora da República, foi proferido o seguinte:
DESPACHO
Considerando a capacidade e a legitimidade das partes e as posições por elas assumidas, considero as mesmas não conciliadas, determinando que os autos sejam remetidos à seção onde deverão aguardar a propositura da ação pelo sinistrado.
Extrai certidão de fls. 1 a 3, 29 a 37, 54, 55, 73 verso, 78, 83 e 85 e do presente auto, a fim de constituir P.A. tendo em vista a propositura da ação no patrocínio oficioso do sinistrado.»
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Os presentes autos de ação emergente de acidente de trabalho, nesta sua fase contenciosa, foram instaurados, a fls. 131 e seguintes e no dia 14/12/2020, por AAA com o patrocínio oficioso do Ministério Público e com pedido de isenção de custas, contra a Seguradora CCC, peticionando, a final, o seguinte:
«Nestes termos e nos do disposto nos artigos 1.º, 2.º, 8.º, 10.º, 23.º, alínea b), 47.º, n.º 1, als. a) e c), 48.º, n.º 1 e n.º 3, als. c), d) e e) e n.º 4, 50.º, 71.º, n.ºs 1, 2 e 3, 72.º, n.º s 1, 2 e 3 e 75.º, n.º1 da Lei n.º 98/09 de 4/09, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e por via dela ser reconhecido o acidente dos autos como acidente de trabalho e a existência de nexo causal entre esse acidente e as lesões de que o sinistrado parece e em consequência: I - Ser a Ré condenada a pagar ao Autor o capital de remição a calcular com base na pensão anual no valor de 2.307,78 € devida a partir de 30/11/2019. II - Ser a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de 145,29 € de despesas médicas, medicamentosas e tratamentos. III - Ser ainda a Ré condenada a pagar ao Autor juros de mora à taxa legal em vigor desde a data do vencimento de cada uma das prestações até integral pagamento».
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Alega o Autor, muito em síntese, que:
-Em 27 de Setembro de 2018, trabalhava por conta de BBB, no exercício de funções de “motorista de veículos pesados”/“manobrador de máquinas”;
-Nessa data, no exercício das suas funções, ao sair de uma máquina, escorregou e ficou suspenso pelo braço direito, sofrendo lesões traumáticas que lhe determinaram, após a sua consolidação, uma incapacidade permanente parcial, com o coeficiente de 16,08%;
-Tendo ainda necessidade de suportar despesas médicas, medicamentosas e com tratamentos;
-Na altura, a empregadora tinha a sua “responsabilidade por acidente de trabalho” transferida para a Ré.
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A Ré CCC foi, na sequência do despacho judicial de fls. 143, citada através de carta registada com Aviso de Receção [fls. 151], tendo vindo apresentar a contestação de fls. 152 e seguintes, onde alegou, muito em síntese, que as queixas do Autor resultam de lesões já pré-existentes, e não de qualquer evento que possa ser configurado como acidente de trabalho, não sendo possível o estabelecimento do nexo causal.
Pede a Ré a improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido.
Formulou pedido de realização de Exame por Junta Médica, assim como prova pericial nos termos dos arts. 467.º e seguintes do Código de Processo Civil, tendo- o feito nos seguintes moldes e formulado os quesitos abaixo transcritos:
«15.- A ora contestante não aceita o resultado do exame médico efetuado pela Exma. Perita do Tribunal, pelo que requer, ao abrigo do disposto nos arts. 129º-1-a) e 138.º-1 do C. Processo do Trabalho, que o autor seja submetido a exame por junta médica, 16.- E, ao abrigo do disposto nos arts. 467.º e segs. do Código de Processo Civil, que o autor seja submetido a perícia médica para determinação do nexo de causalidade entre as lesões referidas nesse exame médico e o alegado acidente de trabalho. Nestes termos, e nos mais de direito, - deve ser julgada improcedente a presente ação e a contestante absolvida do pedido, com as consequências legais. Requer que o autor seja submetido a exame por junta médica para fixação de incapacidade, para o que oferece os seguintes quesitos: 1.- Quais as lesões que o autor sofreu em consequência do incidente referido nos autos? 2.- Curaram essas lesões, sem sequelas? 3.- Em caso negativo, qual a natureza e o grau de desvalorização que lhe deve ser fixado de harmonia com a T.N.I.?
MEIOS DE PROVA:
PERICIAL:
Requer, ao abrigo do disposto nos arts. 467.º e seguintes do Código de Processo Civil, que o Autor seja submetido a perícia médico-legal, para o que oferece os seguintes quesitos: 1.- As lesões descritas no exame médico singular efetuado pelo perito médico do Tribunal são consequência do incidente alegado nos autos? 2.- Ou são devidas a doença natural? 3.- Ou são, antes, devidas ao traumatismo que o autor sofreu cerca de 5 anos antes do incidente referido nos autos? Declara desde já não se opor a que este exame pericial seja realizado pelos mesmos médicos que vierem a compor a junta médica acima requerida e na mesma ocasião. Para a efetivação desta perícia médica deverão ser facultados aos médicos que a realizarem todos os elementos clínicos cuja junção infra se requer.»
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Citado também para o efeito e a fls. 144 o INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL DOS AÇORES, IPRA (ISSA) veio o mesmo pedir, a fls. 145 e seguintes, a condenação da demandada no reembolso da quantia devida por conta do subsídio de doença pago ao Autor por força do período de baixa compreendido entre 1 de Outubro de 2018 e 9 de Janeiro de 2021, com acréscimo das prestações que vierem a vencer-se e dos juros de mora.
A Ré Seguradora foi notificada de tal pedido de reembolso deduzido pelo INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL DOS AÇORES, IPRA (ISSA) mas não lhe veio responder dentro do prazo legal.
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Foi proferido despacho saneador, no qual se considerou válida e regular a instância, se atribuiu o valor de € 31.106,47 à ação e se procedeu à fixação da matéria de facto assente (Alíneas A) a D)] e à enunciação dos temas de prova em número de sete, vindo ainda a ser ordenado o desdobramento do processo, com a organização do competente apenso para fixação da incapacidade do sinistrado.
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Foi ainda, a fls. 163 e a 14/2/2021, proferido despacho judicial a admitir os róis de testemunhas das partes, assim como depoimento de parte do Autor bem como a marcar data para a realização da Audiência Final, que seria objeto de gravação.
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Esse apenso para fixação de incapacidade seguiu a sua normal tramitação, não tendo sido fixada ao sinistrado qualquer incapacidade, no âmbito do Exame por Junta Médica que aí se realizou, não sendo, contudo, proferida a sentença prevista no número 2 do artigo 140.º do CPT, por o juiz do processo, a fls. 33 do apenso ter relegado para final, «com a prolação da sentença após a produção da prova na audiência de julgamento no processo principal, a apreciação da eventual desvalorização do Autor, nada mais havendo a determinar nestes autos apensos».
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Procedeu-se, no dia 02/03/2021, à realização da Audiência de Discussão e Julgamento com observância do legal formalismo, tendo a prova aí produzida sido objeto de registo-áudio (fls. 164 a 166 verso).
A Ré, no início de tal de tal diligência, fez a seguinte declaração:
«De forma prévia à abertura da audiência de julgamento, no âmbito da tentativa de conciliação das partes, pelo Mm.º Juiz foi dada a palavra ao ilustre mandatário da Ré, que no seu uso declarou: 1- A Ré reconhece a existência de acidente de trabalho com os factos aqui em causa; 2- A Ré reconhece que, como consequência deste acidente de trabalho, o Autor sofreu a lesão e ficou sujeito ao período de incapacidade temporária absoluta indicados pelos peritos intervenientes no exame por junta médica já realizado; 3- A Ré ainda reconhece as despesas apresentadas pelo Autor com referência a este período de ITA (nos valores de € 7,21 + € 32,05).»
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O Juízo do Trabalho de Ponta Delgada proferiu, com a data de 3/03/2021 e a fls. 116 a 169 verso, sentença judicial que, a final, decidiu o seguinte:
“Pelo referido, atentas as orientações atrás explanadas, e ponderados todos os princípios e normas jurídicas que aos factos apurados se aplicam, julga o Tribunal a ação nos seguintes termos:
a)-Fixa, em favor do Autor, AAA, uma indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta (ITA), no valor de € 1.179,60; b)-Condena a Ré, Companhia de Seguros CCC, a pagar ao Autor a indemnização fixada em a), com acréscimo dos juros de mora devidos sobre esta prestação, calculados à taxa legal, desde a data do respetivo vencimento até definitivo e integral pagamento; c)-Condena a Ré a pagar ao Autor as quantias de € 7,21 + € 32,05, a título de despesas com exames clínicos e aquisição de medicamentos, com acréscimo dos juros de mora devidos sobre esta prestação, calculados à taxa legal, desde a data do respetivo vencimento até definitivo e integral pagamento; d)-Julga parcialmente procedente o pedido de reembolso apresentado por INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL DOS AÇORES, IPRA, condenando a Ré a pagar a este último o valor entregue ao Autor, a título de subsídio de doença, no período de 30 dias de ITA fixado a partir de 28 de Setembro de 2018 (até 27 de Outubro seguinte), com acréscimo dos juros de mora, calculados à taxa legal, sem prejuízo da dedução dos valores a pagar ao Autor (a liquidar em sede de execução de sentença).
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Custas a cargo do Autor, da Ré e do ISSA, na proporção do decaimento.
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Valor: € 1179,60.
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Registe e notifique.”
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A Fundamentação de direito de tal sentença foi a seguinte:
«No caso em apreciação, e face aos factos dados como provados, não oferece qualquer dúvida: o Autor, reconhecidamente, sofreu um acidente de trabalho, ao abrigo do art.º 8.º, n.º 1, da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, ocorrido em 27 de Setembro de 2018.
Vejamos as consequências.
A partir do dia seguinte ao sinistro, o Autor, com a lesão então sofrida, esteve sujeito a uma incapacidade temporária absoluta (ITA), por 30 dias, tendo alta no dia 27 de Outubro seguinte (com referência ao término deste período de ITA). E não se apurou, como consequência deste acidente e da lesão resultante do mesmo, a necessidade de qualquer tratamento, muito menos se determinando, com a alta, qualquer grau de desvalorização. Assim, ao Autor é devida, tão só, a indemnização relativa a este período de incapacidade temporária, de 30 dias, calculada nos termos do art.º 48.º, n.º 3, alínea d), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, no valor de € 1179,60, assim como os valores despendidos com a realização de exames clínicos e a aquisição de medicamentos, € 7,21 + € 32,05.
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Por fim, quanto ao pedido formulado pelo ISSA (cfr. art.º 16.º da Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto), tendo como referência o pagamento de subsídio de doença a partir de 1 de Outubro de 2018, o mesmo só é julgado parcialmente procedente, sendo a Ré apenas responsável pelo pagamento do valor entregue ao Autor, a título de subsídio de doença, no tal período de 30 dias de ITA a partir de 28 de Setembro de 2018 (até 27 de Outubro seguinte), a liquidar em sede de execução de sentença, e tudo isto sem prejuízo da dedução dos valores a pagar ao Autor.
No mais, não se apurando qualquer outro período de ITA a partir de tal data, este pedido improcede.»
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O Autor, inconformado com tal decisão judicial, veio, a fls. 172 e seguintes, interpor recurso do mesmo, que foi admitido pelo tribunal recorrido como de Apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (despacho de fls. 187, datado de 28/4/2021).
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O Apelante apresentou, a fls. 172 e seguintes, alegações de recurso e formulou as seguintes conclusões:
(…)
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Pelas razões que deixamos expostas, entendemos que o presente recurso merece provimento.
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Deverá, após a requerida reapreciação da prova gravada, ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que reconheça a existência de uma situação de predisposição patológica do Autor agravada pela ocorrência do acidente dos autos e, por força do disposto no artigo 11º nº 1 e 2 da Lei 98/09 de 4/9, condene a Ré a proceder ao pagamento do capital de remição a calcular com base numa IPP de 16,08% devida desde 30/11/19 e ainda ao pagamento da indemnização por ITA desde o dia seguinte ao acidente até à data em que foi considerada a consolidação de tais lesões.
Porém, Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores decidirão como for de JUSTIÇA!”
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A Ré Seguradora, na sequência da respetiva notificação, veio apresentar contra-alegações dentro do prazo legal, tendo formulado as seguintes conclusões (fls. 182 e seguintes): «1.- O recurso quanto à matéria de facto, com base na reapreciação da prova gravada deverá ser rejeitado, uma vez que o recorrente não indicou nas conclusões das alegações a exata localização da(s) parte(s) do(s) depoimento(s) que invoca para sustentar a sua posição, 2.- E nas conclusões das suas alegações a recorrente não fez qualquer referência aos meios de prova que, relativamente a cada um dos pontos da matéria de facto, implicariam a pretendida alteração da decisão que sobre eles recaiu. 3.- Quando ainda se não entenda, resulta de toda a prova produzida e cujo registo se encontra nos autos, que a decisão proferida sobre a matéria de facto não merece qualquer censura, pelo que não deve ser alterada a matéria de facto constante da douta sentença recorrida, 4.- Não merecendo também qualquer censura a decisão de mérito, que se encontra criteriosamente fundamentada e utilizou critérios que têm merecido amplo acolhimento jurisprudencial, 5.- Pelo que, em qualquer dos casos, deverá manter-se integralmente a douta decisão recorrida. Assim se fazendo JUSTIÇA!»
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Tendo os autos ido aos vistos, cumpre apreciar e decidir.
II–OS FACTOS
O Juízo do Trabalho de Ponta Delgada considerou provados e não provados os seguintes factos:
«I-Consideram-se provados os seguintes factos: 1.–Em 27 de Setembro de 2018, AAA encontrava-se admitido ao serviço de BBB, para, no interesse e sob as ordens, direção e fiscalização desta última, exercer funções de «motorista de veículos pesados»/«manobrador de máquinas». 2.–Recebendo uma retribuição anual no valor de € 20502,69. 3.–Na data assinalada em 1), BBB, tinha a sua «responsabilidade emergente de acidente de trabalho» transferida para CCC, mediante a apólice n.º 204722873. 4.–Na mesma data, em Santa Cruz das Flores, o Autor, no exercício das suas funções no âmbito do acordo descrito em 1) e 2), ao sair de uma ‘máquina giratória’, escorregou e ficou suspenso pelo braço direito. 5.–Como consequência do descrito no número anterior, o Autor: a)-Sofreu uma omalgia direita pós-esforço; b)-Ficou sujeito a um período de incapacidade temporária absoluta (ITA), por 30 dias. c)-Com consolidação das lesões logo após este período de ITA, sem que lhe seja determinado qualquer grau de desvalorização; d)-Despendeu, pelo menos, as quantias de € 7,21 + € 32,05, a título de despesas com exames clínicos e aquisição de medicamentos. 6.–O Instituto da Segurança Social dos Açores, IPRA entregou ao Autor a quantia de € 29545,54, a título de «subsídio de doença», tendo como referência o período de 1 de Outubro de 2018 a 9 de Janeiro de 2021. 7.–O Autor nasceu no dia 31 de Maio de 1968.
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II– Não se provou que:
a)-Como consequência do descrito em 4), o Autor tenha ficado com limitação nos movimentos de flexão e extensão no ombro direito (ou tenha agravado esta limitação); b)-Tenha ficado sujeito a um período de incapacidade temporária absoluta (ITA) superior ao mencionado em 5-b); c)-E tenha despendido, com a aquisição de medicamentos, assistência hospitalar, consultas médicas e realização de sessões de fisioterapia, as quantias de € 28,03 + € 28,00 + € 20,00 + € 30,00; d)-Quaisquer outros factos com relevância na decisão da presente causa.»
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III–OS FACTOS E O DIREITO
É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 639.º e 635.º n.º 4, ambos do Novo Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608.º n.º 2 do NCPC).
A–REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS
Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos presentes autos, atendendo à circunstância da presente ação (na sua fase conciliatória - cf. artigo 26.º, números 2 e 3 e 99.º do Código do Processo do Trabalho de 1999) ter dado entrada em tribunal em 2016, ou seja, depois da entrada em vigor das alterações introduzidas no Código do Processo do Trabalho pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13/10, que segundo o seu artigo 6.º, só se aplicam às ações que se iniciem após a sua entrada em vigor, tendo tal acontecido, de acordo com o artigo 9.º do mesmo diploma legal, somente em 1/01/2010.
Esta ação, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjetivo comum, foi instaurada depois da entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, que ocorreu no dia 1/9/2013.
Será, portanto e essencialmente, com os regimes legais decorrentes da atual redação do Código do Processo do Trabalho e do Novo Código de Processo Civil como pano de fundo adjetivo, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de Apelação.
Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Regulamento das Custas Processuais – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/02, retificado pela Declaração de Retificação n.º 22/2008, de 24 de Abril e alterado pelas Lei n.º 43/2008, de 27-08, Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28-08, Lei n.º 64-A/2008, de 31-12, Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril com início de vigência a 13 de Maio de 2011, Lei n.º 7/2012, de 13 Fevereiro, retificada pela Declaração de Retificação n.º 16/2012, de 26 de Março, Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 126/2013, de 30 de Agosto, Lei n.º 72/2014, de 2 de Setembro, Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2017, Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2018, Lei n.º 49/2018 de 14 de Agosto, com entrada em vigor em 10 de Fevereiro de 2019, Decreto-Lei n.º 86/2018, de 29 de Outubro, com entrada em vigor em 30 de Outubro de 2018 e Lei n.º 27/2019, de 28 de Março, com entrada em vigor em 27 de Abril de 2019, aplicando-se apenas às execuções que se iniciem a partir dessa data –, que entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e se aplica a processos instaurados após essa data.
Importa, finalmente, atentar na circunstância dos factos que se discutem no quadro destes autos, face à data em que se verificou o acidente de trabalho – 27/09/2018 – terem todos ocorrido na vigência das normas constantes do Código do Trabalho de 2009 – que entrou em vigor em 17/02/2009 - relativas aos acidentes de trabalho (artigos 281.º e seguintes) e da legislação especial que só veio a encontrar a luz do direito com a Lei n.º 98/2009, de 4/09 e que, segundo os seus artigos 185.º, 186.º e 187.º, revogou o regime anterior (ou seja, a Lei dos Acidentes do Trabalho aprovada pela Lei n.º 100/97, de 13/09 e a respetiva regulamentação inserida no Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04) e está em vigor desde 1/01/2010 e para eventos infortunísticos de carácter laboral ocorridos após essa data.
B–IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
Vem o Apelante, através do patrocínio do Ministério Público, interpor recurso da decisão da Matéria de Facto, com referência aos Pontos de Facto elencados nas suas conclusões e que, na opinião do Autor, não deveriam ter sido julgado desde logo como assente no Despacho Saneador proferido ao abrigo do artigo 131.º, número 1, alínea b) do CPT.
Tal forma de impugnação é feita ainda e em rigor, nos termos e para os efeitos dos artigos 80.º, número 3, 87.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho e 640.º do Novo Código de Processo Civil, importando, nessa medida, ter presente o seu número 1, alíneas a) a c), quando estatui que “1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”, dizendo por seu turno o seu número 2 que “2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”, ao passo que o artigo 622.º, números 1 e 2, alíneas a) a d) do NCPC determina a este propósito e na parte que nos interessa o seguinte:
Artigo 662.º Modificabilidade da decisão de facto
1–A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. 2–A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: a)-Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b)-Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; c)-Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d)-Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados. 3–Nas situações previstas no número anterior, procede-se da seguinte forma: a)-Se for ordenada a renovação ou a produção de nova prova, observa-se, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1.ª instância; b)-Se a decisão for anulada e for inviável obter a sua fundamentação pelo mesmo juiz, procede-se à repetição da prova na parte que esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições; c)-Se for determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições; d)-Se não for possível obter a fundamentação pelo mesmo juiz ou repetir a produção de prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade. 4–Das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
O recorrente, nesta matéria, dá um cumprimento mínimo às exigências de natureza material e processual que se mostram elencadas nas normas acabadas de transcrever, na parte aplicável, o que permite conhecer o recurso, nesta primeira vertente da impugnação da matéria de facto dada como provada pelo tribunal recorrido.
Constata-se, por outro lado, que tal impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto se radica sobre a reapreciação das Declarações de Parte do Autor, do Perito Médico … [que foi quem procedeu ao exame singular, na fase conciliatória dos presentes autos] e sobre a prova testemunhal produzida em Audiência Final […, antigo colega do sinistrado, e …., cônjuge do mesmo] e sem perder de vista o teor do artigo 11.º da LAT/2009, visa a reponderação fáctica das seguintes questões:
«VIII- Em consequência deveria ter sido considerado no facto n.º 5, alínea a) que o Autor: sofreu uma omalgia direita pós esforço que agravou um quadro de síndrome de conflito subacromial.
IX- E face também aos mencionados depoimentos deveria ter sido considerado que o Autor sofreu um período de ITA, pelo menos até à data constante no auto de exame médico singular, assim se alterando o facto 5.º, al. b).
X- Em decorrência do acima exposto deveria ter sido considerado que o Autor se encontra afetado de uma IPP de 16,08% desde a data constante no auto de exame médico singular, assim se alterando o Facto 5, alínea c).
XI- Deveria ter sido considerado provado que o Autor, em consequência do acidente dos autos ficou com agravamento de limitação nos movimentos de flexão e extensão no ombro direito, assim se alterando a alínea a) dos factos não provados
XII- E ainda que ficou sujeito a um período de incapacidade temporária superior a 30 dias, assim se alterando a alínea b) dos factos não provados;
XIII- Procedendo-se à reapreciação da prova gravada, a Ré deverá ser condenada no pagamento do capital de remição que resultar de uma pensão anual no valor de 2 307,78 euros, devida a partir de 30/11/19 e ainda à indemnização por ITA desde o dia seguinte ao acidente até ao dia 29/11/19, considerada a data da consolidação médico-legal das lesões.»
Deparamo-nos assim, no âmbito de uma ação emergente de acidente de trabalho, com a dedução de, grosso modo, uma clássica e típica impugnação da Matéria de Facto dada como Provada [como surge, habitualmente, nas ações declarativas com processo comum de natureza cível ou laboral], que busca, apenas com base na prova oral [e, convenhamos, no Exame Singular de fls. 83 a 85, onde foi atribuída ao trabalhador uma IPP de 16,08%] a alteração da valoração médico-legal da situação clínica do Autor, com as inerentes consequências legais derivadas da Lei de Acidentes de Trabalho.
É um cenário bastante invulgar numa ação desta natureza, com uma tramitação processual especial, que já se pode considerar regulada de uma forma extensa e detalhada, por referência à mesma, bem como aos seus incidentes [artigos 99.º a 155.º do CPT] e que, naturalmente, se afasta e sobrepõe ao regime adjetivo comum laboral e cível, em tudo que nele se encontre concretamente previsto [e na respetiva legislação complementar], tudo sem prejuízo da válvula de segurança do número 3 do artigo 1.º do Código de Processo do Trabalho.
Sopraram e sopram aqui ventos civilistas que, salvo melhor opinião, não são conformes ao respetivo regime legal e compatíveis com a natureza e o objeto desta ação…
C–TRAMITAÇÃO DOS PRESENTES AUTOS
Importa, desde logo, dar um panorama geral do que se passou de anómalo ou irregular no quadro destes autos emergentes de acidente de trabalho e que, em nosso entender, pode obrigar este tribunal da 2.ª instância a devolver os autos ao tribunal da 1.ª instância para, designadamente, ampliar a Decisão sobre a Matéria de Facto.
Interessa, em primeiro lugar, fazer notar que o Juízo do Trabalho de Ponta Delgada não deu cumprimento ao disposto no número 2 do artigo 140.º do Código de Processo do Trabalho quando o mesmo expressamente determina que «Se a fixação da incapacidade tiver lugar no apenso, o juiz, realizadas as perícias referidas no número anterior, profere decisão, fixando a natureza e grau de incapacidade; a decisão só pode ser impugnada no recurso a interpor da sentença final.» [sublinhado a negrito da nossa responsabilidade]
O juiz do processo ao invés de dar satisfação a tal imposição legal e à sua revelia, relegou para a sentença a prolatar nos autos principais a decisão da matéria da incapacidade para o trabalho e da sua eventual fixação, sem que tivesse justificado mínima e devidamente tal procedimento e sem que tivesse lançado mão sequer do princípio da adequação formal do artigo 547.º do Código de Processo Civil de 2013 e tivesse procurado o acordo prévio das partes para tal tramitação que saía da normalidade legal [muito embora entendamos que a aplicação de tal princípio geral não podia chegar tão longe e suprimir simplesmente a proferição de uma sentença intercalar como a prevista no número 2 do artigo 140.º do CPT].
Chegados depois à única sentença judicial que foi prolatada nos autos, constata-se que também aí não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 135.º do Código de Processo do Trabalho, não apenas porque não havia sido proferida qualquer decisão no apenso, como porque na própria sentença final não foi fixada a data da alta clínica do sinistrado e definido o seu estado clínico derivado do acidente de trabalho que acabou por ser aceite pela Ré Seguradora no início da Audiência Final, muito embora se retire da escassa fundamentação nela desenvolvida que o Autor estaria curado sem qualquer desvalorização no fim de 30 dias de ITA contados desde a data do acidente [fls. 164 a 165 verso].
Verifica-se, por outro lado, que na correspondente fundamentação - que, como vimos, é curta e enxuta - não se dá nota nem se estranha a divergência acentuada entre a desvalorização funcional e a data da alta fixada no Exame Pericial Singular [uma IPP de 16,08%, desde 29/11/2019] e a cura sem desvalorização, com um período de ITA de 30 dias considerado pela Junta Médica reunida no Apenso para Fixação de Incapacidade, nem dela emerge uma qualquer justificação por parte do tribunal recorrido para a opção imediata e sem necessidade de efetuação de mais exames e perícias por este último parecer pericial, quando, por um lado, nos deparamos, como bem afirma o Autor nas suas alegações de recurso, com o regime jurídico do artigo 11.º da LAT/2009 [predisposição patológica], que é suscetível de conhecer aplicação no cenário apresentado nos autos como, por outro, a matéria do nexo de causalidade adequada entre o sinistrado, as lesões e as sequelas definitivas apresentadas pelo mesmo não se reconduz, apenas e simplisticamente, a um juízo médico-legal feito pela Junta Médica ou por outras perícias dessa mesma natureza, que o juiz do processo limita-se a aceitar e reproduzir na sua sentença, mas passa antes por uma apreciação crítica de cariz mais vasto e abrangente, que embora tenha de considerar os referidos exames e perícias técnicas, não pode nem deve se quedar por aí, dado tal julgamento ser, essencialmente, de índole jurídica [bastando, para o efeito, pensar na presunção do número 1 do artigo 10.º e no aludido regime jurídico do artigo 11.º, ambos da Lei dos Acidentes de Trabalho, bem como na aplicação das Instruções Gerais e da própria Tabela Nacional de Incapacidades].
Não deixa também de ser curioso que tal sentença, na sua parte decisória, não fixa o montante líquido da indemnização devida pela ITA referente a esses primeiros 30 dias nem estabelece a partir de que dia é que são devidos os juros de mora em que tal condenação também se desdobra, como decorre, designadamente, do artigo 75.º do CPT e era permitido ao tribunal recorrido, face aos elementos objetivos constantes do processo e às regras legais aplicáveis [conforme os artigos 48.º, números 1 e 3, alínea d), 50.º e 71.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro e 135.º do Código de Processo do Trabalho].
Mas se olharmos à postura adotada pelas partes também verificamos que as mesmas tendem para conferir também a estes autos um pendor excessivamente civilista, não somente através da dedução de um pedido autónomo por parte da Ré Seguradora de realização de outra prova pericial nos termos dos artigos 467.º e seguintes do Código de Processo Civil, como também pela impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto com base apenas nas declarações do perito médico do Exame Singular [que visaram esclarecer o conteúdo deste último] e de parte do sinistrado [que, como se sabe, vê a sua confissão ser juridicamente ineficaz, face à natureza indisponível e irrenunciáveis dos seus direitos – artigos 354.º, alínea b) do Código Civil] e nos depoimentos testemunhais prestados em Audiência Final.
D–NATUREZA E OBJETO DA AÇÃO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
Impõe-se talvez recordar que não estamos face a uma mera ação declarativa do foro e tramitação cíveis mas nos movemos antes no seio de uma ação emergente de acidente de trabalho com processo especial, que se acha regulada nos artigos 99.º e seguintes do C.P.T. e que possui características próprias – v.g., urgência dos atos a praticar, tramitação oficiosa, início da instância [[1]] e princípios da gestão processual e do inquisitório [[2]] – assim como uma tramitação muito particular (fase conciliatória, dirigida pelo Ministério Público e fase contenciosa, já presidida pelo juiz do tribunal do trabalho ou equiparado).
Não podemos falar verdadeiramente num processo de partes e onde meramente se debatem interesses individuais e privados, mas antes de ações em que, ao lado daqueles, são prosseguidos também interesses de ordem pública, dado o evento originador dos correspondentes direitos ser um acidente de trabalho ou uma doença profissional, com reflexos permanentes no plano físico e/ou psicológico e emocional do sinistrado ou doente ou na vida futura dos seus familiares, que deles estavam economicamente dependentes, bem como a um nível mais global, na esfera social, económica e financeira da comunidade em geral, das entidades responsáveis e do Estado.
Importa não esquecer que os direitos previstos no regime legal dos acidentes de trabalho e doenças profissionais derivam de preceitos legais absolutamente inderrogáveis, ou seja, daqueles que conferem direitos de existência e exercício necessários (cfr., a este respeito, PAULO SOUSA PINHEIRO, “Curso Breve de Direito Processual do Trabalho”, 2.ª Edição Revista e Atualizada, Junho de 2014, Coimbra Editora, páginas 50 e seguintes, bem como os autores e jurisprudência citados por tal autor), bastando, para o efeito, atentar nos artigos 12.º, 74.º, 78.º [[3]], 83.º e 84.º da Lei n.º 98/2009, de 4/09 e 74.º, 109.º, 111.º e 114.º do Código do Processo do Trabalho (sendo que tais normas de cariz adjetivo estabelecem, quer da parte do magistrado do Ministério Público, como do juiz, a obrigação de fiscalização e controlo da correta e legal atribuição dos direitos emergentes do acidente de trabalho, assim como a possibilidade de condenação para além do pedido).
O processo emergente de acidentes de trabalho tem na sua base sinistros ocorridos, em regra, no tempo e local de trabalho da vítima [ou nas situações equiparadas, por extensão legal efetuada pelo artigo 9.º do conceito de acidente de trabalho contido no artigo 8.º da LAT/2009] e dos quais, quando não são mortais, decorrem consequências danosas e lesivas para o corpo e a mente do trabalhador e, por consequência, para a sua capacidade de ganho e de trabalho.
Tal cenário habitual reclama, naturalmente, a prestação de cuidados médicos e clínicos destinados a curar as referidas lesões, de maneira a reparar e restaurar total ou até onde for possível, o organismo e o espírito do sinistrado e, nessa medida, a integral ou parcial capacidade funcional e de desenvolvimento futuro da correspondente profissão ou de outra [cf., por exemplo e respetivamente, os artigos 23.º a 38.º e 41.º a 43.º, por um lado, e 47.º a 55.º, por outro, sendo todos eles da LAT/2009].
As incapacidades permanentes de diversa natureza que se mostram legalmente previstas na LAT/2009 são atribuídas aos trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho com base na Tabela Nacional de Incapacidades, que se mostra publicada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro.
Tal panorama muito particular e especial reflete-se também na prevalência e proeminência que é dada, processualmente, à prova pericial, de cariz médico-legal e não só – cf. o número 4 do artigo 21.º da LAT/2009 [[4]] – e que relativamente às questões de cariz clínico, é mesmo a prova rainha, conforme facilmente ressalta dos artigos 105.º a 107.º e 138.º a 140.º do Código de Processo do Trabalho.
Veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29/4/2021, Processo n.º 149/18.3T8BRR.E1, Relatora: Paula do Paço, não publicado e com o seguinte Sumário [sendo os sublinhados a negrito da nossa responsabilidade]:
«I.–Não se verifica contradição no laudo de junta médica que procede à atribuição de IPP de 19,5%, em consequência das sequelas decorrentes do acidente de trabalho, e não atribui IPATH ao sinistrado. II.–A existência de sequelas decorrentes de acidente de trabalho que desvalorizam, permanentemente e parcialmente, a capacidade de trabalho do sinistrado, ainda que seja suscetível de se refletir na execução das suas funções profissionais habituais, não constitui fundamento automático para a atribuição de IPATH. III.–Não obstante a força probatória da prova pericial seja livremente fixada pelo tribunal, não podemos olvidar que os peritos são pessoas qualificadas com formação especial e adequada à apreciação das questões que lhe são submetidas, possuindo conhecimentos que o juiz não possui, pelo que é normal que este meio de prova seja determinante e prevalente para a formação da convicção do juiz e para a decisão prevista no artigo 140.º do Código de Processo do Trabalho. IV.– O fator de bonificação de 1,5 previsto na alínea a) do n.º 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, só pode ser aplicado uma vez, quando verificado qualquer um dos seus pressupostos.»
E– EXAMES SINGULARES E POR JUNTA MÉDICA - REGIME LEGAL APLICÁVEL
O tribunal da 1.ª instância proferiu a decisão judicial recorrida ao abrigo do regime legal constante dos artigos 117.º e seguintes do Código do Processo do Trabalho, convindo chamar aqui à colação, no que concerne à prova pericial produzida nos autos, o estatuído nos artigos 105.º, 106.º, 138.º, número 1, 117.º, número 1, alínea a), 118.º, alínea b), 126.º, 129.º, número 1, alínea a), 139.º e 140.º, número 2, do Código do Processo do Trabalho, na parte que releva para a questão em apreço e que é a seguinte:
Artigo 105.º Perícia médica
1–O local e a competência para a realização da perícia médica são definidos nos termos da lei que estabelece o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses. 2– Revogado. 3–Sem prejuízo do disposto na lei que estabelece o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses, quando a perícia exigir elementos auxiliares de diagnóstico ou o conhecimento de alguma especialidade clínica não acessíveis a quem deva realizá-la, são requisitados tais elementos ou o parecer de especialistas aos serviços médico-sociais da respetiva área e, se estes não estiverem habilitados a fornecê-los em tempo oportuno, são requisitados a estabelecimentos ou serviços adequados ou a médicos especialistas; fora das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, se os não houver na respetiva circunscrição, o Ministério Público pode solicitar a outro juízo com competência em matéria de trabalho a obtenção desses elementos ou pareceres, bem como a obtenção da perícia. 4–A perícia é secreta, podendo o Ministério Público, em qualquer caso, propor questões sempre que o seu resultado lhe ofereça dúvidas; o resultado da perícia é notificado, sem necessidade de despacho, ao sinistrado e às pessoas convocadas para a tentativa de conciliação.
Artigo 106.º Formalismo
1–No relatório pericial, o perito médico deve indicar o resultado da sua observação clínica, incluindo o relato do evento fornecido pelo sinistrado e a apreciação circunstanciada dos elementos constantes do processo, a natureza das lesões sofridas, a data de cura ou consolidação, as sequelas e as incapacidades correspondentes, ainda que sob reserva de confirmação ou alteração do seu parecer após obtenção de outros elementos clínicos ou auxiliares de diagnóstico. 2–Sempre que o perito médico não se considerar habilitado a completar o relatório com as respetivas conclusões, fixa provisoriamente a natureza e grau de incapacidade do sinistrado com base em todos os elementos disponíveis nessa altura; se a perícia não se efetuar dentro de 20 dias, o Ministério Público tenta, com base nesse relatório, a conciliação para efeitos do artigo 114.º 3–Se a perícia não for imediatamente seguida de tentativa de conciliação, o Ministério Público, finda aquela, toma declarações ao sinistrado sobre as circunstâncias em que o acidente ocorreu e mais elementos necessários à realização daquela tentativa ou à confirmação do acordo extrajudicial que tenha sido apresentado.
Artigo 138.º Requerimento de junta médica
1–Quando não se conformar com o resultado da perícia realizada na fase conciliatória do processo, a parte requer, na petição inicial ou na contestação, perícia por junta médica. 2 –[…]
Artigo 117.º Início da fase contenciosa
1–A fase contenciosa tem por base: a)-Petição inicial, em que o sinistrado, doente ou respetivos beneficiários formulam o pedido, expondo os seus fundamentos; b)-[…] 2– […] 3– A fase contenciosa corre nos autos em que se processou a fase conciliatória.
Artigo 118.º Desdobramento do processo
Nesta fase o processo desdobra-se, se for caso disso, em: a)-Processo principal; b)-Apenso para fixação da incapacidade para o trabalho.
Artigo 126.º Questões a decidir no processo principal
1–No processo principal decidem-se todas as questões, salvo a da fixação de incapacidade para o trabalho, quando esta deva correr por apenso. 2–[…]
Artigo 129.º Contestação
1–Na contestação, além de invocar os fundamentos da sua defesa, pode o réu: a)-Requerer a fixação de incapacidade nos mesmos termos que o autor; b)-[…]
Artigo 139.º Perícias
1-A perícia por junta médica, constituída por três peritos, tem carácter urgente, é secreta e presidida pelo juiz. 2-Se na fase conciliatória a perícia tiver exigido pareceres especializados, intervêm na junta médica, pelo menos, dois médicos das mesmas especialidades. 3-(…) 4-Sempre que possível, intervêm na perícia peritos dos serviços médico-legais que não tenham intervindo na fase conciliatória. 5-Os peritos das partes devem ser apresentados até ao início da diligência; se o não forem, o tribunal nomeia-os oficiosamente. 6-É facultativa a formulação de quesitos para perícias médicas, mas o juiz deve formulá-los, ainda que as partes o não tenham feito, sempre que a dificuldade ou a complexidade da perícia o justificarem. 7-O juiz, se o considerar necessário, pode determinar a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos. 8-É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 1 do artigo 105.º
Artigo 140.º Decisão
1–[…] 2–Se a fixação da incapacidade tiver lugar no apenso, o juiz, realizadas as perícias referidas no número anterior, profere decisão, fixando a natureza e grau de incapacidade; a decisão só pode ser impugnada no recurso a interpor da sentença final. 3–A fixação da incapacidade não obsta à sua modificação nos termos do que se dispõe para o incidente de revisão.
Importa também chamar à colação, em termos substantivos, os artigos 11.º e 21.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que procede à regulamentação do regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais:
Artigo 11.º Predisposição patológica e incapacidade
1–A predisposição patológica do sinistrado num acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido ocultada. 2–Quando a lesão ou doença consecutiva ao acidente for agravada por lesão ou doença anterior, ou quando esta for agravada pelo acidente, a incapacidade avaliar-se-á como se tudo dele resultasse, a não ser que pela lesão ou doença anterior o sinistrado já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital de remição nos termos da presente lei. 3–No caso de o sinistrado estar afetado de incapacidade permanente anterior ao acidente, a reparação é apenas a correspondente à diferença entre a incapacidade anterior e a que for calculada como se tudo fosse imputado ao acidente. 4–Sem prejuízo do disposto no número anterior, quando do acidente resulte a inutilização ou danificação das ajudas técnicas de que o sinistrado já era portador, o mesmo tem direito à sua reparação ou substituição. 5–Confere também direito à reparação a lesão ou doença que se manifeste durante o tratamento subsequente a um acidente de trabalho e que seja consequência de tal tratamento.
Artigo 21.º Avaliação e graduação da incapacidade
1–O grau de incapacidade resultante do acidente define-se, em todos os casos, por coeficientes expressos em percentagens e determinados em função da natureza e da gravidade da lesão, do estado geral do sinistrado, da sua idade e profissão, bem como da maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível e das demais circunstâncias que possam influir na sua capacidade de trabalho ou de ganho. 2–O grau de incapacidade é expresso pela unidade quando se verifique disfunção total com incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho. 3–O coeficiente de incapacidade é fixado por aplicação das regras definidas na tabela nacional de incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais, em vigor à data do acidente. 4– Sempre que haja lugar à aplicação do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 48.º [[5]] e no artigo 53.º [[6]], o juiz pode requisitar parecer prévio de peritos especializados, designadamente dos serviços competentes do ministério responsável pela área laboral.
Será, portanto, com o enquadramento jurídico decorrente das transcritas disposições legais que iremos passar a apreciar as diversas questões que se suscitam em torno da prova pericial e que poderão ter relevância no julgamento do presente recurso de Apelação.
F– INTERPRETAÇÃO DO REGIME LEGAL TRANSCRITO
Conjugando as diversas disposições transcritas (ou nelas citadas), facilmente se podem extrair as seguintes conclusões: a)-A prova pericial, em que se traduzem os exames médicos, quer de natureza singular como coletiva, efetuados no quadro nas ações emergentes de acidente de trabalho, está sujeita à livre apreciação do julgador, pois como defendem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, I Volume, 3.ª Edição, 1982, Coimbra Editora, págs. 338 e 339, em anotação ao artigo 389.º, “1. O princípio da prova livre (por contraposição à prova legal: prova por documentos, por confissão e por presunções legais) vigora no domínio da prova pericial (ou por arbitramento), da prova por inspeção (artigo 391.º) e da prova por testemunhas (artigo 396.º). Prova livre não quer dizer prova arbitrária, «mas prova apreciada pelo juiz segundo a sua experiência, a sua prudência, o seu bom senso, com inteira liberdade, sem estar vinculado ou adstrito a quaisquer regras, medidas ou critérios legais» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/12/1997, no BMJ n.º 271, página 185)”. b)-Todas as perícias, independente da sua ordem lógica e cronológica e do seu carácter singular ou plural estão sujeitas à livre apreciação do julgador, não impondo ao tribunal, nessa medida e apesar de ser plural e/ou final, a desvalorização por si atribuída, dado a mesma não se sobrepor às demais fixadas nos autos (cf., neste sentido e por todos, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 2/05/2006, em que foi relatora Maria Fernanda Soares, publicado na CJ, Tomo III, página 229 e do Tribunal da Relação de Évora, de 22/06/2004, em que foi relator Alexandre Baptista Coelho e também em “Acidentes de Trabalho - Jurisprudência 2000-2007”, numa coordenação de Luís Azevedo Mendes e Jorge Manuel Loureiro, Coletânea de Jurisprudência, Edições, a, respetivamente, páginas 348 e 336). c)-O juiz de trabalho não está vinculado, em termos de estrutura e sequência processuais obrigatórias, a finalizar (ainda que essa seja a normalidade dos casos que lhe passam pelas mãos) a fase instrutória da ação ou incidente relativo a acidente de trabalho com o exame por junta médica, quando a ele haja lugar, pois como ressalta com clareza do número 7 do artigo 139.º do Código do Processo do Trabalho (cf. também quanto ao incidente de revisão, o número 6 do artigo 145.º do mesmo diploma legal), o julgador pode ordenar, após a concretização do exame por junta médica e antes de proferir o despacho, a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos. d)-O magistrado judicial tem, nomeadamente, nos termos do artigo 21.º, número 4, da Regulamentação do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais, a faculdade de solicitar parecer prévio de peritos especializados – prévio à decisão, obviamente –, quando estiver em causa, designadamente, uma situação de eventual IPATH, (cf., a este respeito, ainda que no quadro da LAT/97 e correspondente regulamentação, CARLOS ALEGRE em “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais - Regime Jurídico Anotado”, 2.ª Edição, Almedina, Fevereiro de 2000, página 96 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21/09/2004, em que foi relator André Acácio Proença, publicado na CJ, Tomo IV, página 267 e também em “Acidentes de Trabalho - Jurisprudência 2000-2007”, numa coordenação de Luís Azevedo Mendes e Jorge Manuel Loureiro, Coletânea de Jurisprudência, Edições, a página 338). e)-Constatando-se que inexiste qualquer regra que imponha como ato pericial final e definitivo desta fase contenciosa do processo emergente de acidente de trabalho, o Exame por Junta Médica, nada obsta a que o juiz, apesar de estar munido com o parecer (ainda que unânime) dos três peritos intervenientes naquela, não se sinta devida e totalmente esclarecido acerca do estado clínico e funcional do sinistrado, decidindo socorrer-se de exames e pareceres complementares.
Mas se tal margem de manobra do juiz de trabalho é manifesta, no campo específico da definição da situação clínica do sinistrado e na determinação da incapacidade que o afeta, também é verdade (como não poderia deixar de ser!) que não existe uma qualquer norma contrária que o vincule a ordenar sempre tais exames complementares, quer oficiosamente, quer a pedido das partes.
O julgador conhece aqui um certo grau de discricionariedade, justificado e orientado pelo exclusivo propósito de formar, correta e fundadamente, a sua convicção a partir dos diversos elementos, de natureza médica ou não, que, estando juntos aos autos, se mostrem relevantes para o julgamento das aludidas questões.
E–PROVA PERICIAL E PROVA TESTEMUNHAL – RESPETIVO VALOR PROBATÓRIO – CONFRONTO ENTRE A FORÇA PROBATÓRIA DE TAIS MEIOS DE PROVA
Se quisermos ir um pouco mais longe na nossa análise, teremos que fazer o confronto, por referência às questões médico-legais que estão no cerne desta ação e do recurso de Apelação que temos entre mãos, entre o valor probatório que os exames periciais e os depoimentos testemunhais, jurídica e processualmente, possuem, bem como se é possível hierarquizar tal força probatória.
FERNANDO PEREIRA RODRIGUES, em «Os Meios de Prova em Processo Civil», 2.ª Edição Revista e Atualizada, 2016, Almedina, página 141, sustenta o seguinte acerca da prova pericial:
«55 - A força probatória da perícia A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal (artigo 389.º do CC). Assim sendo, a força probatória das respostas dos peritos não é vinculativa para o tribunal, que pode afastar-se livremente do parecer dos peritos, quer porque tenha partido de factos diferentes dos que aceitou o perito, quer porque discorde das conclusões deles ou dos raciocínios em que elas se apoiam, quer porque os demais elementos úteis de prova existentes nos autos sejam mais convincentes, em seu entender, que o laudo dos peritos [[7]]. Porém, o facto de a força probatória do resultado do laudo dos peritos ser apreciada livremente pelo tribunal não significa, como é óbvio, que o tribunal a possa considerar arbitrária ou discricionariamente, mas apenas que não está vinculado a regras ou critérios legais. Assim, se o laudo dos peritos for tirado por unanimidade e com profícua fundamentação, não sendo produzidas outras provas sobre a matéria versada na perícia, dificilmente o juiz se pode afastar da conclusão dos peritos. E, como bem se entendeu, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.03.2005, em caso de disparidade de laudos periciais cabe ao tribunal dar preferência ao laudo dos peritos oficiosamente escolhidos, quer pela sua competência técnica quer pelas melhores garantias de imparcialidade. O que não significa área irrestrita vinculação ao laudo maioritário, já que cabe ao tribunal introduzir-lhe ajustamentos, fazer correções, colmatar falhas ou seguir outro laudo, se o tiver por mais justo [[8]]».
A este respeito, interessa também ouvir LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, em «Prova Testemunhal», 2014, Almedina, páginas 347 e seguintes, acerca do valor probatório das perícias e da comparação do mesmo com o da prova testemunhal [não transcrevemos as Notas de Rodapé constante do texto reproduzido, na parte que não releva para a matéria em análise, sendo os últimos sublinhados a negrito da nossa responsabilidade]:
«No processo civil, a prova pericial é apreciada livremente pelo tribunal (Artigo 389.º do Código Civil).
A apreciação da prova pericial abrange: (i) a profissionalidade do perito; (ii) a análise dos requisitos internos do laudo pericial e (iii) a observância, na elaboração do mesmo, de parâmetros científicos de qualidade bem como o uso de resultados estatísticos.
No que tange à profissionalidade do perito, é curial começar por impor ao perito que apresente o seu curriculum na parte em que este possa evidenciar especial qualificação para a realização da perícia. Os conhecimentos, habilidades e experiencia profissional do perito constituem fatores diferenciadores do mesmo. Releva, sobretudo, saber se já efetuou anteriormente perícias do mesmo teor. Relevará mais a trajetória científica do perito do que propriamente o cargo que ocupe.
Cabe ao juiz, em segunda linha, verificar se o laudo é inteligível e não apresenta contradições, ou seja, verificar se o mesmo é coerente. O perito deve ter presente que elabora o laudo para não especialistas pelo que deve fazer um esforço suplementar de expor as suas conclusões de forma clara, e congruente, sem deixar pontas soltas.
Quanto à observância de parâmetros científicos, acompanhando de perto NIEVA FENOLL, o juiz deve analisar se o laudo cumpre os seguintes requisitos:
1.- As técnicas e teorias científicas utilizadas para obter dados e conclusões foram já utilizadas previamente, são relevantes e estão geralmente aceites pela comunidade científica internacional.
[…]
2.- As técnicas utilizadas foram aplicadas segundo os padrões e normas de qualidade vigentes. Apela-se aqui as normas internas de cada profissão em que se incluem normas deontológicas e manuais de boas práticas.
3.- O laudo contém informação sobre o nível de erro e sobre a graduação de variabilidade e incerteza dos dados obtidos através da técnica ou teoria científica utilizadas. […]
4.- O laudo deve sustentar-se em suficientes factos e dados, não devendo o perito bastar-se com meras amostras ou elementos colhidos de forma incompleta ou precipitada.
Este conjunto de critérios objetivos permite ao juiz, na ausência de conhecimentos científicos equiparáveis ao do perito, formular um juízo sobre o mérito intrínseco e grau de convencimento a atribuir ao laudo pericial.
No caso da coexistência de relatórios periciais contraditórios, o juiz deve recorrer aos critérios ora enunciados para graduar o valor dos laudos e escolher o que será mais convincente. Com efeito, o juiz não poderá formular essa graduação com base em conhecimentos científicos. Devera proceder a análise de cada um dos laudos de acordo com os critérios objetivos enunciados de modo que o laudo prevalecente será o que obtiver melhor resultado nessa análise individual, feito critério a critério. Se essa análise não conduzir a resultados claros no sentido da prevalência de um laudo sobre os demais, resta ao juiz aplicar as regras de decisão decorrentes do ónus da prova (no processo civil) ou da presunção da inocência (no processo penal).
Sintetizando o que fica dito com recurso a ideias-chave mais sucintas, diremos que no que tange aos critérios de valoração da prova pericial, quer no caso de perícia uniforme quer no caso de perícias contraditórias, os fatores que deverão ser tidos em conta para apreciar a força de convicção dos laudos e a escolha por um em detrimento de outros serão nomeadamente os seguintes: - A qualificação do perito e a maior especialização e prática na matéria objeto da perícia; - O método de proceder utilizado mediante a descrição das operações levadas a cabo pelo perito pois na perícia tao importante como a conclusão é o que caminho que se seguiu para chegar a esta; - O contato direto e a imediação temporal no exame que constitui a fonte de prova; - A disponibilidade de meios técnicos e equipamentos de análise, assim como o procedimento utilizado pelo perito; ou a justificação de o perito ter optado por um dos procedimentos possíveis em detrimento de outros; - A coerência, motivação e racionalidade das conclusões. A prova pericial mais apropriada é aquela que se apresenta melhor fundamentada e veicula maiores razões de ciência e objetividade. É comum, na nossa jurisprudência, o apelo ao critério da imparcialidade do perito do tribunal de molde que, em caso de divergência, o Tribunal deve dar preferência àquele pela sua presumida isenção por contraposição à intervenção mais parcial do perito da parte. Todavia, face ao que já ficou exposto, cremos que este critério deverá ser relativizado, não podendo partir-se do pressuposto que o perito da parte é menos profissional ou parcial. O laudo do perito da parte pode ser imparcial na medida em que assista razão à parte. Os critérios decisivos são os enunciados e não qualquer apriorismo sobre as relações dos peritos com as partes. Mais do que a imparcialidade do perito a qualidade da perícia porquanto um perito, mesmo imparcial, pode cometer erros, ter convicções erradas, usar técnicas inadequadas, etc. O juiz não é um recetor passivo da opinião do perito, assistindo-lhe o poder/dever de valorar autonomamente tal prova. Neste âmbito, é conhecido o brocardo iudex peritus peritorum cujo sentido específico merece densificação. A análise crítica que o juiz faz do laudo servirá para adquirir um convencimento sobre o seu resultado, assumindo ou não as conclusões do laudo, das quais extrairá as máximas da experiência necessárias para a dos factos relevantes. O juiz valora as máximas de experiência especializadas trazidas pelo perito aplicando máximas de experiência comuns para o que não são necessários conhecimentos especializados mas apenas capacidade crítica entendimento e apreciação.
O juiz aprecia o rigor do método, a veracidade das suas premissas e das suas conclusões. O que se exige é que o juiz seja capaz de valorar se está perante uma forma de conhecimento dotada de dignidade e validade científica, e se os métodos de investigação e controlo típicos dessa ciência foram corretamente aplicados no caso concreto. Em suma, trata-se de confirmar se existem condições de cientificidade da prova.
Se essas condições de cientificidade da prova ocorrerem, as máximas da experiência especializadas trazidas pelo perito deverão, em princípio, prevalecer sobre a prova testemunhal. Note-se que a testemunha não observa o facto da mesma forma que um observador com conhecimentos técnicos, ou seja, o leigo não é competente para observar corretamente o acontecimento de um ponto de vista científico. Em suma, se está em causa apurar um facto cuja solução depende de uma apreciação científica e se a prova pericial for produzida segundo os padrões científicos pertinentes e atendíveis, deverá prevalecer esta sobre a opinião de um leigo.
Na formulação desse juízo sobre a prevalência, ou não, do laudo pericial sobre a prova testemunhal, poderão ser determinantes os esclarecimentos verbais prestados pelos peritos no decurso da audiência, valorados com os fatores que a imediação põe em destaque, tais como: a segurança do perito ao revelar os seus resultados; as suas dúvidas, assumidas ou implícitas; a sua expressão, tom de voz.
Há que atentar se as declarações do perito são coerentes, se o perito as contextualiza devidamente, se o perito apela e expressa os dados técnicos que corroboram os seus esclarecimentos (rigor cientifico e racionalidade). Os comentários oportunistas do perito, no sentido de justificar a sua atuação e que excedem o âmbito do que lhe foi perguntado, deverão - em princípio - ser secundarizados porquanto, na maioria dos casos, são apenas defensivos da profissionalidade do seu trabalho. Todavia, quando o perito faz a comentários oportunistas de forma excessiva, tal poderá ser valorado como evidência de que o perito está consciente de que o seu trabalho não foi bem realizado e que, com essa atuação, o perito tenta disfarçar com retórica as deficiências da prestação. […]».
E–LITÍGIO DOS AUTOS
Tendo como pano de fundo as considerações de natureza processual, pericial, jurídica e doutrinária antes expostas, importa referir, desde logo, a propósito do Exame por Junta Médica, que foi efetuado no apenso para fixação de incapacidade e sobre o qual se funda a sentença aqui em apreciação, que o mesmo, salvo melhor opinião, não só não emitiu o seu parecer em face de todos os elementos clínicos disponíveis, pois houve alguns deles que já foram juntos aos autos após tal exame e que, embora notificados a dada um dos peritos em termos individuais, não mereceram da sua parte uma nova reunião colegial e a emissão de um novo parecer também consubstanciado sobre o teor dos mesmos como peca por ser, em termos de conteúdo, insuficiente, tecnicista, conclusivo e muito pouco esclarecedor, em termos factuais e médicos legais, acerca das questões antes suscitadas nos autos [data da alta - 29/11/2019 ou 28/10/2018 - e divergência das opiniões médico-legais quanto à incapacidade de que sofre o sinistrado e que se situa entre 16,08% e os 00,00%], impondo-se, em nosso entender, uma postura diversa por parte do tribunal recorrido, quer através de uma sua segunda convocação de tal Junta Médica, quer mediante a efetuação de exames complementares de natureza clínica ou outros que se imponham como relevantes e necessários.
É tal prova de natureza pericial que deve ser prevalecentemente produzida nos autos emergentes de acidente de trabalho quando problemáticas com manifestos e imediatos reflexos médico-legais estão em causa nos autos e em discussão entre as partes e têm de ser julgadas afinal pelo juiz do processo.
Não se nos afigura que a mera reapreciação da prova verbal carreada para a Audiência Final – e onde nem sequer foram chamados para esclarecimentos complementares os peritos médicos intervenientes na Junta Médica, conforme permitido pelo artigo 134.º do Código de Processo do Trabalho – por este Tribunal da Relação de Lisboa seja suficiente para ultrapassar, de uma forma objetiva, segura, rigorosa e científica [digamos assim] as divergências existentes entre as partes e que ressaltam dos autos, afigurando-se-nos que se impõe realizar na presente ação outro tipo de prova – v.g., a pericial -, tudo sem prejuízo das regras legais que nesta matéria dos acidentes de trabalho vigoram - como será o caso, designadamente, dos referidos artigos 10.º e 11.º da LAT/2009 - e para as quais o juiz do trabalho, quando da presidência do exame plural, deve sensibilizar os senhores peritos e procurar que emitam o seu parecer tendo as mesmas como pano de fundo [à imagem, aliás, do que deve acontecer, naturalmente, com toda a demais intervenção adjetiva e substantiva do julgador no quadro deste tipo de ações emergentes de acidentes de trabalho].
Chegados aqui, importa enquadrar jurídico-adjetivamente o cenário particular e peculiar que ressalta dos presentes autos, nos termos e para os efeitos do artigo 662.º do NCPC, pois as situações qualificáveis como nulidades principais de erro na forma do processo [v.g., a omissão de prolação de sentença no apenso para a fixação da incapacidade], não foi conhecida ou arguida nos termos previstos nos artigos 193.º, 196.º a 198.º e 200.º do Código de Processo Civil de 2013, encontrando-se, por tal motivo, sanada e as demais deficiências imputadas à sentença recorrida, ainda que eventualmente configuráveis como nulidades previstas no artigo 615.º do NCPC [falta de fundamentação ou omissão de pronúncia], não foram arguidas oportunamente pelas partes e não são de conhecimento oficioso por este tribunal de recurso.
Se sintetizarmos o que antes deixámos explanado, diremos que os presentes autos emergentes de acidente de trabalho se radicam, em termos de decisão final e da sua impugnação judicial, em prova manifestamente inadequada e insuficiente para demonstrar os aspetos médico-legais relacionados com o estado de cura clínica do sinistrado e com a sua eventual incapacidade permanente e parcial para o trabalho, dado que os mesmos apenas podem lograr esclarecimento objetivo, técnico e científico, através de prova pericial, que, nesta ação emergente de acidente de trabalho, manifestamente peca por defeito.
Será que podemos reconduzir o quadro factual e jurídico deixado traçado aos termos do artigo 662.º, números 1, 2 e 3, alíneas c) do Novo Código de Processo Civil, por força do número 1 do artigo 87.º do Código do Processo do Trabalho, com a anulação da dita sentença vista à ampliação da matéria de facto, de maneira a apurar devidamente e mediante as diligências probatórias de cariz pericial ou outro que, para o efeito, se revelarem necessárias, os aspetos que se enunciaram?
Se olharmos para a Fundamentação de Facto da decisão judicial aqui em apreciação [[9]], diremos que a mesma responde às dúvidas suscitadas sobre esses aspetos, sendo por tal motivo questionável e duvidoso que, em rigor, estejamos face a uma situação de insuficiência factual que conduza à necessidade da sua ampliação conforme a previsão normativa do número 2, alínea c), última parte do artigo 662.º do NCPC.
No fundo, essa necessidade de produção de melhor e mais qualificada prova técnica e pericial passa antes pela segunda parte dessa mesma alínea c) do número 2 da mesma disposição legal, quando estatui que «não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto,repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto», entendendo este Tribunal da Relação de Lisboa que pode e deve anular a decisão proferida na 1.ª instância, por considerar que existe deficiência e obscuridade quanto a algum dos factos dados como provados [Ponto 5., alíneas a), b) e c) dos Factos dados como Assentes e alíneas a) e b) dos Factos dados como Não Provados] e que se radicam na aferição da data efetiva da alta do sinistrado, da verificação da existência ou não de sequelas permanentes resultantes do acidente de trabalho dos autos, por força, designadamente, da aplicação do regime do artigo 11.º da LAT/2009 e da inerente e eventual fixação de incapacidade ao recorrente, sem perder de vista as divergências periciais existentes a esse nível.
Nessa medida, determina-se a anulação da sentença recorrida e a baixa do processo ao Juízo do Trabalho de Ponta Delgada para aí suprir tais deficiência e obscuridade dos referidos Pontos de Facto Provados e Não Provados acima identificados, através, designadamente, da reunião ou reuniões da Junta Médica dos autos, com vista a tentar dar uma plena e cabal resposta às questões suscitadas, tudo sem prejuízo de outros elementos clínicos e exames periciais complementares que se entendam determinar no tribunal da 1.ª instância, seguindo-se, depois, a proferição de nova sentença judicial com base em tal nova prova concretizada nos autos, bem como naquela anteriormente produzida nos mesmos.
IV–DECISÃO
Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º, número 1 do Código de Processo do Trabalho e 662.º, n.ºs 1, 2 e 3, alíneas c) do Novo Código de Processo Civil, acorda-se neste Tribunal da Relação de Lisboa, em ordenar, em termos oficiosos, a anulação da sentença recorrida, com vista a esclarecer devidamente os aspetos deficientes ou obscuros dos pontos da matéria de facto dada como provada e não provada [Ponto 5., alíneas a), b) e c) dos Factos dados como Assentes e alíneas a) e b) dos Factos dados como Não Provados] nos termos determinados na fundamentação deste Aresto, para efeitos, nomeadamente, da aferição da data efetiva da alta do sinistrado, da verificação da existência ou não de sequelas permanentes resultantes do acidente de trabalho dos autos, por força, designadamente, do regime do artigo 11.º da LAT/2009, da inerente e eventual fixação ou não de incapacidade ao recorrente e da atribuição das correspondentes prestações, em termos imediatos e líquidos, em caso afirmativo.
Custas do presente recurso a cargo da Seguradora - artigo 527.º, número 1, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.
Lisboa, 26 de maio de 2021
(José Eduardo Sapateiro)
(Alves Duarte)– (Votou em conformidade, sendo que não assina por não estar presente em virtude da pandemia)
(Maria José Costa Pinto)
[1]Cfr., a este respeito, o artigo 26.º, n.ºs 1, alínea e), 3 e 4 do C.P.T. [2]Cfr., a este propósito e em termos gerais, os artigos 6.º do NCPC e 27.º do C.P.T., assim como os artigos 104.º, 108.º a 113.º, 119.º, 121.º a 125.º, 127.º, 131.º, 132.º, 135.º, 140.º, 142.º, 145.º, n.º 6 e 115.º do C.P.T. [3]Cfr., também, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 34/2006, de 11/11/2006, publicado com força obrigatória geral, no Diário da República, 1.ª Série – A, de 8/02/2006. [4]Artigo 21.º
Avaliação e graduação da incapacidade
1 - O grau de incapacidade resultante do acidente define-se, em todos os casos, por coeficientes expressos em percentagens e determinados em função da natureza e da gravidade da lesão, do estado geral do sinistrado, da sua idade e profissão, bem como da maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível e das demais circunstâncias que possam influir na sua capacidade de trabalho ou de ganho.
2 - O grau de incapacidade é expresso pela unidade quando se verifique disfunção total com incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho.
3 - O coeficiente de incapacidade é fixado por aplicação das regras definidas na tabela nacional de incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais, em vigor à data do acidente.
4 - Sempre que haja lugar à aplicação do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 48.º e no artigo 53.º, o juiz pode requisitar parecer prévio de peritos especializados, designadamente dos serviços competentes do ministério responsável pela área laboral. [5]Artigo 48.º
Prestações
1 - A indemnização por incapacidade temporária para o trabalho destina-se a compensar o sinistrado, durante um período de tempo limitado, pela perda ou redução da capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho.
2 - A indemnização em capital e a pensão por incapacidade permanente e o subsídio de elevada incapacidade permanente são prestações destinadas a compensar o sinistrado pela perda ou redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho.
3 - Se do acidente resultar redução na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado, este tem direito às seguintes prestações:
a) Por incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho - pensão anual e vitalícia igual a 80 % da retribuição, acrescida de 10 % desta por cada pessoa a cargo, até ao limite da retribuição;
b) Por incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual - pensão anual e vitalícia compreendida entre 50 % e 70 % da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível;
c) Por incapacidade permanente parcial - pensão anual e vitalícia correspondente a 70 % da redução sofrida na capacidade geral de ganho ou capital de remição da pensão nos termos previstos no artigo 75.º;
d) Por incapacidade temporária absoluta - indemnização diária igual a 70 % da retribuição nos primeiros 12 meses e de 75 % no período subsequente;
e) Por incapacidade temporária parcial - indemnização diária igual a 70 % da redução sofrida na capacidade geral de ganho.
4 - A indemnização por incapacidade temporária é devida enquanto o sinistrado estiver em regime de tratamento ambulatório ou de reabilitação profissional. [6]Artigo 53.º
Prestação suplementar para assistência a terceira pessoa
1 - A prestação suplementar da pensão destina-se a compensar os encargos com assistência de terceira pessoa em face da situação de dependência em que se encontre ou venha a encontrar o sinistrado por incapacidade permanente para o trabalho, em consequência de lesão resultante de acidente.
2 - A atribuição da prestação suplementar depende de o sinistrado não poder, por si só, prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias, carecendo de assistência permanente de terceira pessoa.
3 - O familiar do sinistrado que lhe preste assistência permanente é equiparado a terceira pessoa.
4 - Não pode ser considerada terceira pessoa quem se encontre igualmente carecido de autonomia para a realização dos atos básicos da vida diária.
5 - Para efeitos do n.º 2, são considerados, nomeadamente, os atos relativos a cuidados de higiene pessoal, alimentação e locomoção.
6 - A assistência pode ser assegurada através da participação sucessiva e conjugada de várias pessoas, incluindo a prestação no âmbito do apoio domiciliário, durante o período mínimo de seis horas diárias. [7]«Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, I, 255» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO COM O NÚMERO 2. [8]«Acessível em http://www.dgsi.pt/jtrc.» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO COM O NÚMERO 3. [9]«1. Em 27 de Setembro de 2018, AAA encontrava-se admitido ao serviço de BBB para, no interesse e sob as ordens, direção e fiscalização desta última, exercer funções de «motorista de veículos pesados»/«manobrador de máquinas».
2. Recebendo uma retribuição anual no valor de € 20502,69.
3. Na data assinalada em 1), BBB tinha a sua «responsabilidade emergente de acidente de trabalho» transferida para CCC, mediante a apólice n.º 204722873.
4. Na mesma data, em Santa Cruz das Flores, o Autor, no exercício das suas funções no âmbito do acordo descrito em 1) e 2), ao sair de uma ‘máquina giratória’, escorregou e ficou suspenso pelo braço direito.
5. Como consequência do descrito no número anterior, o Autor:
a) Sofreu uma omalgia direita pós-esforço;
b) Ficou sujeito a um período de incapacidade temporária absoluta (ITA), por 30 dias.
c) Com consolidação das lesões logo após este período de ITA, sem que lhe seja determinado qualquer grau de desvalorização;
d) Despendeu, pelo menos, as quantias de € 7,21 + € 32,05, a título de despesas com exames clínicos e aquisição de medicamentos.
6. O Instituto da Segurança Social dos Açores, IPRA entregou ao Autor a quantia de € 29545,54, a título de «subsídio de doença», tendo como referência o período de 1 de Outubro de 2018 a 9 de Janeiro de 2021.
7. O Autor nasceu no dia 31 de Maio de 1968.
*
II - Não se provou que: a)Como consequência do descrito em 4), o Autor tenha ficado com limitação nos movimentos de flexão e extensão no ombro direito (ou tenha agravado esta limitação); b)Tenha ficado sujeito a um período de incapacidade temporária absoluta (ITA) superior ao mencionado em 5-b); c)E tenha despendido, com a aquisição de medicamentos, assistência hospitalar, consultas médicas e realização de sessões de fisioterapia, as quantias de € 28,03 + € 28,00 + € 20,00 + € 30,00; d) Quaisquer outros factos com relevância na decisão da presente causa.»