CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA. CÃO DE GRANDE PORTE. ANIMAL PERIGOSO OU POTENCIALMENTE PERIGOSO.
Sumário

No caso de comportamentos negligentes terá de existir, necessariamente, a violação de um dever objetivo de cuidado, enquanto cuidado exigível para evitar a ocorrência do resultado típico.

A afirmação do especial dever de cuidado faz-se em função das particulares circunstâncias de atuação do agente, constituindo auxiliares importantes nessa determinação as normas jurídicas que impõem aos seus destinatários específicos deveres e regras de conduta.
Os factos descritos e dados como provados ante a violação por parte do Arguido do dever de cuidado de se certificar ao sair de casa com o portão aberto que o seu cão também pudesse fazer o mesmo e causar lesões em terceiros como infelizmente se veio a verificar, integram os elementos essências objectivos e subjectivos da prática pelo Arguido de um crime de ofensas corporais negligentes, p. e p. pelo Artigo 148, n.° 1 do Código Penal.”
Ora, atendendo aos factos dados como provados, designadamente por se tratar de cão de raça indeterminada e de grande porte, não é possível integrar o animal em causa no conceito de animal perigoso e potencialmente perigoso.
O facto de o cão ter grande porte e de ter embatido no velocípede do ofendido não permite classifica-lo como animal perigoso ou potencialmente perigoso, por não ter qualquer uma das características descritas nas alíneas b) e c) do artigo 3º do DL 315/2009.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora

No Processo Comum Singular nº 245/19.0GCSTR, do Juízo Local Criminal de Santarém, J1, da Comarca de Santarém, por sentença de 16-06-2020, foi condenado o arguido MS, id a fls. 68, pela prática de um crime de ofensas corporais negligentes, p. e p. pelo artigo 148º, n.º 1 do Código Penal na pena de 80 dias de multa à taxa diária de €7,00; mais foi condenado a pagar ao demandante EABC a quantia de 1000,12 euros, a título de indemnização civil.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido MS,, recurso este circunscrito à matéria de direito, concluindo nos seguintes termos:

a) O Arguido vinha acusado e foi condenado pela prática do Crime de Ofensa à Integridade Física por Negligência, por alegada falta de cuidado e violação de deveres de precaução e cautela.

b) Os “factos” em causa apenas são passíveis de integrar a prática pelo arguido de uma contra-ordenação, não assumindo natureza criminal.

c) Tal resulta do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, que aprovou o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia.

d) Face ao referido diploma legal, que constitui uma norma especial, face à norma geral do Código Penal, os “factos” que são objecto deste processo integram a prática de uma contra-ordenação e não de um crime, sendo pois à luz do Direito Contraordenacional (Decreto Lei nº 315/2009 de 29 de Outubro), que deveriam ser apreciados.

e) Poderia assim, eventualmente, verificar-se a prática de uma contra-ordenação nos termos do artº 38º nº1 alínea r), do citado DL.

f) A aplicação ao caso subjudice da norma contida no art.º 148.º do Código Penal, representa uma manifesta violação da Lei.

g) O Tribunal não dispunha de competência para julgar os factos, competência que assistia à autoridade administrativa.

Termos em que revogando-se a sentença sob recurso e julgando-se o Tribunal incompetente para julgar os factos em causa, SE FARÁ JUSTIÇA.

O Ministério Público respondeu, dando-se aqui por reproduzida a sua resposta, aliás, adiante parcialmente transcrita, concluindo pela manutenção do decidido.

Neste Tribunal da relação de Évora, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer, no qual se pronunciou no sentido da improcedência do recurso.

Cumpre apreciar e decidir.

Como o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes nas respetivas motivações de recurso, nos termos preceituados nos artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal, podendo o Tribunal de recurso conhecer de quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida, cumprindo cingir-se, no entanto, ao objeto do recurso, e, ainda, dos vícios referidos no artigo 410º do referido Código de Processo Penal, - v. Ac. do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95 de 19 de Outubro - vejamos, pois, se assiste razão ao arguido, no que respeita às questões que suscitou nas conclusões do presente recurso, as quais se prendem, em sua opinião, com a inexistência de crime, por a factualidade dada como provada integrar a prática da contraordenação prevista no artigo 38º, n.º 1 al. r) do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro.

Está em causa a seguinte matéria de facto apurada:

1. No dia 04.07.2019, cerca das 20H30m horas, EABC, acompanhado por JABL e RAR, circulava no seu velocípedes, na Rua …, nesta cidade e comarca de ….

2. De igual modo, nessas mesmas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido, residente no n.° … da aludida artéria, abriu, saiu para a rua, onde foi despejar o lixo doméstico, pelo portão de serviço da sua residência que estava aberto.

3. Ao sair para a rua pelo modo descrito o Arguido, não o fechou atrás de si o referido portão.

4. Isto, apesar de deter, no interior da sua propriedade, cão de raça indeterminada e de grande porte.

5. Que, por se encontrara no respectivo interior, não detinha trela.

6. A dada altura, o cão do arguido, apercebendo-se que o portão se encontrava semiaberto, correu para a estrada e de modo inesperado, embateu na roda dianteira do velocípede conduzido por EABC.

7. Levando-o, com a força do impacto, a desequilibrar-se, a cair ao chão e a bater com o seu corpo no mesmo.

8. Em consequência da conduta descrita, EABC sofreu dores e edema nas mãos, cotovelo esquerdo e anca esquerda.

9. O arguido actuou com falta de cuidado, violando deveres de precaução e cautela.

10. Não representou como possível que poderia colocar, como colocou, em perigo a integridade física de terceiros, porém, podia e devia tê-lo feito, porque,

11. Estava em condições, de acordo com a sua capacidade individual, de satisfazer as exigências objectivas de cuidado a que estava obrigado e de que era capaz segundo aquelas circunstâncias.

12. Conhecia o Arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.

13. O certificado de registo criminal do Arguido junto aos autos com a referencia 83365303, não insere qualquer condenação sua.

14. Arguido MS é o filho mais velho de uma fratria de 2 irmãos, sendo o irmão 10 anos mais novo.

15. Arguido MS nasceu e cresceu na Ucrânia junto dos pais e irmão, numa família de condição económica modesta.

16. pai do Arguido MS era guarda-florestal e a mãe praticava agricultura de subsistência numa pequena quinta da família, vendendo alguns excedentes a terceiros para apoiar o orçamento familiar, tendo o seu processo de socialização sido ajustado e equilibrado para a época, (antiga União Soviética) em que o estado assegurava gratuitamente a habitação, a saúde e a educação, em ambiente familiar em que desenvolveu a sua personalidade harmonioso e tranquilo, onde sempre prevaleceu uma relação gratificante entre os seus membros.

17. Arguido MS iniciou o percurso escolar aos oito anos de idade, por não ter tido vaga anteriormente, concluindo, o ensino superior na área da psicologia/sociologia sem reprovações.

18. Arguido MS após conclusão do ensino superior foi colocado pelo estado durante um ano como polícia de trânsito após o qual desempenhou algumas atividades indiferenciadas, nomeadamente como empregado de mesa num café, taxista e outras.

19. Arguido MS Aos 21 anos de idade contraiu o primeiro matrimónio, do qual nasceu uma filha atualmente com 20 anos de idade, tendo vindo a divorciar-se três anos depois.

20. Arguido MS em 2001, sete anos após o divórcio, veio sozinho para Portugal à procura de uma vida melhor, porque a vida na Ucrânia não era estável nem segura.

21. Arguido MS em Portugal fixou-se inicialmente na zona de … onde trabalhou num aviário, desempenhando também esta atividade em ….

22. Ao fim de dois anos o irmão do Arguido veio para junto de si assumindo o seu trabalho no aviário, tendo o arguido saído para trabalhar numa oficina de reparação de máquinas agrícolas, onde permaneceu em funções durante seis anos.

23.0 Arguido MS após ter adquirido experiência na reparação de máquinas agrícolas, abriu atividade por conta própria e passou a fazer reparação de máquinas ao domicílio, atividade que ainda vai mantendo.

24.0 Arguido MS em 2004 voltou a contrair matrimonio com a atual mulher, também de nacionalidade ucraniana, HS, de 42 anos de idade de cuja união nasceram dois filhos, atualmente com 14 e 10 anos de idade.

25.0 Arguido MS encontra-se atualmente com uma situação económica frágil, decorrente de ter faturado reparações de montante considerável de maquinas cujos proprietários não efetivaram o respetivo pagamento devido ao facto de alegadamente terem sido afetados pelos incêndios que assolaram o país em 2017.

26. Esta situação levou a que o Arguido ficasse com uma divida á Segurança Social, para a qual fez um acordo de pagamento com uma prestação mensal de 90€ a qual se encontra a cumprir.

27.0 Arguido MS actualmente tem rendimentos incertos, contando como único montante fixo com cerca de 800€ provenientes do contrato de apenas três meses efetuado para fazer a manutenção de uma fábrica.

28.0 cônjuge do Arguido trabalha em part-time como empregada de balcão numa loja de produtos de leste auferindo cerca de 75% do salario mínimo nacional.

29. O agregado familiar do Arguido reside em casa própria, com boas condições de habitabilidade, adquirida com recurso a crédito bancário, com uma prestação mensal de 281,176., e tem como despesas fixas mensais com eletricidade, telecomunicações, água e gás cerca de 125€.

30.0 Arguido MS tem ainda uma prestação mensal de um crédito pessoal contraído para ajudar os pais que se encontravam a passar dificuldades na Ucrânia, no valor mensal de 391,266.

31.0 Arguido MS ao nível da saúde sofre de osteoporose e o cônjuge sofre de arritmia cardíaca, necessitando esta ultima de efetuar medicação para o efeito e pode submeter-se apenas a atividades moderadas.

32.0 Arguido MS ao nível da ocupação dos tempos livres, joga futebol às segundas-feiras.

33.0 demandante como consequência directa e necessária do embate do cão do Arguida e queda foi acometido de dores nas mãos cotovelo e anca esquerda.

34. A bicicleta ficou danificada e o capacete do Demandante destruído em consequência do embate do cão do Arguido e da queda supra referidos.

35.0 Demandante passou a ter receio de andar de bicicleta desporto que praticava com frequência tendo retomado recentemente.

36. A aquisição de novo capacete e o concerto da bicicleta do demandante importam na quantia total de 500,12 euros.

Não se provaram os seguintes factos, de entre os factos articulados na acusação e na petição dos pedidos de indemnização, acima não descritos e contrários aos factos provados supra enunciados:

1. Que tenha sido arguido que abriu o portão de serviço da sua residência;

2. Que o Demandante EABC tenha tido as dores e marcas supra referidas em II A) 6. durante 7 a 8 dias;

3. Que o Demandante nos dias seguintes teve de ter auxilio de sua mulher para se vestir teve de permanecer em repouso na cama tendo dificuldade em andar;

4. Que o Demandante em consequência da queda supra referida em II A) 6. e 7., Poderia ter sofrido danos físicos fatais ou incapacitantes para a sua vida.

Vejamos então:

De salientar, que a matéria de facto se encontra assente, e que o arguido apenas vem sindicar no presente recurso a questão da sua qualificação jurídica, partindo sempre do princípio de que está em causa um ilícito, restando saber se o mesmo possui natureza contraordenacional, como o pretende o arguido, ou criminal como o defende o Ministério Público, e logrou vencimento na sentença sub judice.

O Mmº Juiz a quo funda a decisão da matéria de direito, a que constitui o objeto do presente recurso, nos seguintes termos:

“Os factos descritos e dados como provados, considerando os elementos objectivos e subjectivos do tipo, integram os elementos essenciais da prática, em autoria material, pelo Arguido MS de um crime de ofensas corporais negligentes, p. e p. pelo Artigo 148, n.° 1 do Código Penal e pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.°, n.° l, do Código Penal.

Relativamente ao crime de ofensa a integridade física por negligencia dispõe o n.° l do art. 148.° do Código Penal, sob a epígrafe “Ofensa à integridade física por negligência”, que: «Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido...».

O art. 15.° do Código Penal preceitua, por seu turno, que: «Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto».

O tipo objetivo tem duas modalidades de realização: o ataque ou ofensas ao corpo, ou as ofensas à saúde.

Por ofensa no corpo poder-se-á entender todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante. “Integram o elemento típico aquelas atuações que envolvem uma diminuição da substância corporal, como a perda de órgãos, membros ou pele, (...) lesões da substância corporal, como nódoas negras, feridas ou inchaços, alterações físicas, (...) e a perturbação de funções físicas” (cfr. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pp. 206).

O tipo legal de crime fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou saúde independentemente da dor ou sofrimento causados ou de uma eventual incapacidade para o trabalho. Neste sentido foi uniformizada jurisprudência pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de 1991, ou seja, de que integra o referido tipo legal de crime “a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada, sobre uma pessoa ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho” (acórdão publicado no DR., I Série-A, de 8.02.1992).

No caso de comportamentos negligentes, terá de existir, necessariamente, a violação de um dever objetivo de cuidado, enquanto cuidado exigível para evitar a ocorrência do resultado típico.

A afirmação do especial dever de cuidado faz-se em função das particulares circunstâncias de atuação do agente, constituindo auxiliares importantes nessa determinação as normas jurídicas que impõem aos seus destinatários específicos deveres e regras de conduta.

Os factos descritos e dados como provados ante a violação por parte do Arguido do dever de cuidado de se certificar ao sair de casa com o portão aberto que o seu cão também pudesse fazer o mesmo e causar lesões em terceiros como infelizmente se veio a verificar, integram os elementos essências objectivos e subjectivos da prática pelo Arguido de um crime de ofensas corporais negligentes, p. e p. pelo Artigo 148, n.° 1 do Código Penal.”

Por seu lado, na resposta ao recurso interposto, quanto à questão sub judice, o Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:

“Prescreve o artigo 38º do Decreto-lei 315/2009, de 29/10 que“1 - Constituem contraordenações puníveis com coima de (euro) 750 a (euro) 5000, no caso de pessoa singular, e de (euro) 1500 a (euro) 60 000, no caso de pessoa coletiva:

a) A falta de licença, de identificação ou registo a que se referem os artigos 5.º a 7.º;

b) A falta do seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 10.º;

c) O alojamento de animais perigosos ou potencialmente perigosos sem que existam as condições de segurança previstas no artigo 12.º;

d) A circulação de animais perigosos ou potencialmente perigosos na via pública, em outros lugares públicos ou em partes comuns de prédios urbanos, sem que estejam acompanhados de pessoa maior de 16 anos de idade, caso em que a responsabilidade contraordenacional recai sobre o detentor que não obste a tal situação, ou sem os meios de contenção previstos no artigo 13.º, ou a circulação ou permanência em zona proibida e sinalizada para o efeito nos termos do n.º 4 do mesmo artigo;

e) A introdução em território nacional de cães potencialmente perigosos das raças ou cruzamentos de raças constantes da portaria prevista na alínea c) do artigo 3.º sem o registo ou a autorização prévia prevista no artigo 16.º ou em violação das condicionantes ou proibições estabelecidas ao abrigo daquele mesmo artigo;

f) A criação ou reprodução de cães potencialmente perigosos das raças ou cruzamentos de raças constantes da portaria prevista na alínea c) do artigo 3.º sem que seja em centros de hospedagem com fins lucrativos que disponham da permissão administrativa prevista no artigo 17.º;

g) A reprodução de cães perigosos ou potencialmente perigosos ou a sua não esterilização em desrespeito pelo disposto no artigo 19.º;

h) A não manutenção pelos centros de hospedagem com fins lucrativos autorizados para criação ou reprodução de cães potencialmente perigosos dos registos de nascimento e de transação previstos nos artigos 18.º e 20.º, pelos períodos de tempo neles indicados;

i) A não esterilização nas condições estabelecidas nos artigos 5.º e 19.º;

j) O não envio pelo médico veterinário da declaração prevista no artigo 19.º ou o desrespeito das condições estabelecidas nos termos da mesma disposição para o efeito;

k) A comercialização e publicidade de animais perigosos em desrespeito pelo disposto no artigo 20.º;

l) O treino de animais perigosos ou potencialmente perigosos tendo em vista a sua participação em lutas ou o aumento ou reforço da agressividade para pessoas, outros animais ou bens;

m) A falta de treino de cães perigosos ou potencialmente perigosos, nos termos do artigo 21.º, ou o seu treino por treinador sem título profissional emitido nos termos do artigo 25.º;

n) O treino de cães realizado em local que não disponha das condições estabelecidas no artigo 23.º;

o) A não comunicação dos treinadores certificados, nos termos do n.º 1 do artigo 26.º;

p) O desrespeito por alguma das obrigações dos treinadores estabelecidas no artigo 28.º;

q) A falta de entrega à DGAV do título profissional de treinador de cães perigosos e potencialmente perigosos, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 29.º;

r) A não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves.

2 - A tentativa e a negligência são punidas, sendo os limites mínimos e máximos das coimas reduzidos a metade.” (sublinhado nosso).

O Recorrente pretende aplicar à factualidade dada como provada o disposto no artigo 38º, n.º 1 al. r) do DL 315/2009, de 29/10.

Todavia, entendemos que o referido diploma não se aplica ao caso concreto.

Vejamos.

O Decreto-lei n.º 315/2009 tem como âmbito de aplicação a “criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia.” – vide artigo 1º do referido diploma.

O artigo 3º do referido decreto-lei define animal perigoso e potencialmente perigoso como sendo: “b) «Animal perigoso» qualquer animal que se encontre numa das seguintes condições:

i) Tenha mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa;

ii) Tenha ferido gravemente ou morto um outro animal, fora da esfera de bens imóveis que constituem a propriedade do seu detentor;

iii) Tenha sido declarado, voluntariamente, pelo seu detentor, à junta de freguesia da sua área de residência, que tem um caráter e comportamento agressivos;

iv) Tenha sido considerado pela autoridade competente como um risco para a segurança de pessoas ou animais, devido ao seu comportamento agressivo ou especificidade fisiológica;

c) «Animal potencialmente perigoso» qualquer animal que, devido às características da espécie, ao comportamento agressivo, ao tamanho ou à potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente os cães pertencentes às raças previamente definidas como potencialmente perigosas em portaria do membro do Governo responsável pela área da agricultura, bem como os cruzamentos de primeira geração destas, os cruzamentos destas entre si ou cruzamentos destas com outras raças, obtendo assim uma tipologia semelhante a algumas das raças referidas naquele diploma regulamentar;”

Foram dados como provados os seguintes factos:

“2. Nessas mesmas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido, residente no n.º … da aludida artéria, abriu o portão de serviço da sua residência, saindo para a rua, onde foi despejar o lixo doméstico.

3. Ao fazê-lo, porém, não o fechou atrás de si.

4. Isto, apesar de deter, no interior da sua propriedade, cão de raça indeterminada e de grande porte.

5. Que, por se encontrara no respectivo interior, não detinha trela.

6. A dada altura, o cão do arguido, apercebendo-se que o portão se encontrava semiaberto, correu para a estrada e de modo inesperado, embateu na roda dianteira do velocípede conduzido pelo ofendido.

7. Levando-o, com a força do impacto, a desequilibrar-se, a cair ao chão e a bater com o seu corpo no mesmo.”

Ora, atendendo aos factos dados como provados, designadamente por se tratar de cão de raça indeterminada e de grande porte, não é possível integrar o animal em causa no conceito de animal perigoso e potencialmente perigoso.

O facto de o cão ter grande porte e de ter embatido no velocípede do ofendido não permite classifica-lo como animal perigoso ou potencialmente perigoso, por não ter qualquer uma das características descritas nas alíneas b) e c) do artigo 3º do DL 315/2009.

De facto, a factualidade descrita no Acórdão citado pelo Recorrente (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/07/2018) é diversa da que consta dos presentes autos e permitia a integração do animal em causa no conceito de animal perigoso, porquanto ali o cão desferiu uma dentada numa pessoa, integrando assim o seu comportamento o previsto no artigo 3º, al. b) i) do DL 315/2009.

Ora, tal não é o caso dos autos. Aqui o canídeo apenas derrubou, pelo seu porte, o velocípede do ofendido, não tendo atacado directamente o corpo deste.

Assim, resta concluir que, face aos factos provados que constam da sentença recorrida, o animal em causa nos autos não integra o conceito de animal perigoso ou potencialmente perigoso e, desta forma, a conduta do arguido não constitui contraordenação, mas antes o crime de ofensa à integridade física negligente, p. e p. pelo artigo 148º, n.º 1 do C. Penal.

Razão pela qual deverá o recurso interposto improceder.”

Ora, concorda-se inteiramente com esta posição.

Com efeito, o cão em causa, embora de grande porte, como vem provado na sentença, não integra o conceito de animal perigoso para efeitos de aplicação do aludido diploma legal, e respetiva regulamentação, e da consideração da factualidade em causa como contraordenação.

Com efeito, e como bem vem referido, o facto de o cão ter grande porte e de ter embatido no velocípede do ofendido não permite classificá-lo como animal perigoso ou potencialmente perigoso, por não ter qualquer uma das características descritas nas alíneas b) e c) do artigo 3º do Dec-Lei nº 315/2009.

Igualmente, o cão em causa, por possuir raça indeterminada, não está incluído em nenhuma das raças previamente definidas como potencialmente perigosas em Portaria do Governo.

E assim sendo, bem andou o Tribunal a quo, ao integrar juridicamente, como integrou, o ato cometido pelo arguido.

Assim, e pelo exposto, acordam os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso, mantendo, na íntegra, a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, com os legais acréscimos.

Évora, 25 de maio de 2021

Maria Fernanda Palma

Maria Isabel Duarte