CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
MORA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
Sumário

I - Através da execução específica o Tribunal emite sentença que supre a declaração negocial do faltoso, assim dando satisfação ao interesse do credor que não viu cumprida a prestação a que tinha direito, por incumprimento do devedor.
II - Se por nenhum dos outorgantes de contrato em contrato-promessa de compra e venda de um lote de terreno foi imposta ao outro, através de interpelação admonitória, a marcação de data para outorga da escritura de compra e venda, nem sequer existe mora, já que não se provou que as partes tivessem fixado qualquer prazo fixo peremptório.
III - Pressuposto da execução específica – art. 830º, nº1, do Código Civil – é, no caso, a existência de mora e não o incumprimento definitivo do promitente-vendedor.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B……… e mulher C………., intentaram em 1.2.2002, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Famalicão – .º Juízo Cível – acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra:

“D………., Ldª”.

Pedindo que se profira sentença que produza os efeitos da declaração negocial constante do contrato-promessa junto aos autos.

Alegaram, para tal, que o autor celebrou com a ré um contrato-promessa de compra e venda de um lote de terreno, bem como de um prédio correspondente a uma habitação unifamiliar, tendo pago o sinal acordado. Sucede que a ré se recusou a cumprir tal contrato, pelo que pretendem agora a sua execução específica.

Devidamente citada, contestou a ré, impugnando os factos alegados pelos autores e invocando que o contrato-promessa foi subscrito pelos autores à revelia absoluta da ré; que os autores nunca pagaram o sinal em causa, bem como nunca pagaram o restante preço devido até à assinatura da escritura.

Conclui pedindo a condenação dos autores como litigantes de má-fé, em multa e indemnização a favor da ré.

Replicaram os autores, terminando como na petição inicial.

A ré ainda veio treplicar, mantendo o alegado na contestação e impugnando documentos juntos.

Foi proferido despacho saneador. Mais se fixaram os factos assentes e a base instrutória.

Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal.

***

A final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e em consequência absolveu a ré do pedido contra si deduzido.
***

Inconformados recorreram os AA. que, alegando, formularam as seguintes conclusões:

A) – “O recurso à execução específica, no contrato- promessa de compra e venda de bens imóveis, pressupõe um atraso no cumprimento e não uma situação de incumprimento definitivo, quer por o objecto do contrato ter sido alienado a terceiro, quer por perda do interesse do credor ou recusa de cumprimento por parte do promitente-vendedor” – Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Proc. n° 1603/03 -1 in dgsi.pt

B) - Está provada nos autos a existência de um contrato-promessa de compra venda celebrado entre apelante e apelada, plenamente válido e eficaz inter partes.

C) -Está provado nos autos que a apelada declarou não reconhecer qualquer validade ao dito contrato promessa de compra e venda.

D) - Declarar não reconhecer a existência e validade de um contrato promessa é, por si só, significativo de uma manifestação de vontade peremptória de inequívoca recusa no seu cumprimento por parte do devedor. E foi assim que o apelante percebeu tal declaração.

E) - Aliás, tal interpretação feita pelo apelante teve, também, todo o seu suporte na forma como a apelada desenvolveu a sua contestação.

F) - Salvo o devido respeito por opinião contrária, face à posição da apelada, não tinha o apelante que recorrer à intimidação admonitória a que se refere o art. 805° do Código Civil, já que o recurso à execução específica fica afastado quando haja recusa peremptória do devedor em cumprir.

G) - O Meritíssimo Juiz “a quo” não fundamenta na sentença porque é que não considera a declaração feita pela apelada como de manifestação de vontade peremptória e inequívoca de recusa em cumprir com o contrato promessa de compra e venda.

H) - Assim, e salvo o devido respeito, violado o disposto nos arts. 805°, 817°, 827° e 830°, n°1, do Código Civil e art. 668º, n°1, alínea b) do Código de Processo Civil.

Assim, e concedendo-se provimento a este recurso, devem revogar a douta sentença recorrida e, considerando que tendo havido recusa de cumprimento por parte da apelada, dar-se por provada a acção interposta, com as legais consequências, assim se fazendo a habituada Justiça.

A Ré contra-alegou pugnando pela confirmação da sentença.
***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que na instância recorrida foram considerados os seguintes factos:

a) “D………., Ldª”, aqui Ré, e B………., aqui autor marido, assinaram o documento particular junto a fls. 4 e 5, intitulado contrato promessa de compra e venda, no qual a Ré declarou que era dona de um lote de terreno sito na freguesia de ………., V. N. Famalicão, descrito na conservatória do registo predial no n°8081 e inscrito na matriz predial sob o art. 495.

b) Declarou a Ré nesse contrato que, no descrito lote ia construir um prédio (casa) segundo planta e caderno de encargos anexo a esse contrato e que prometia vender ao Autor marido o tal prédio, pelo preço de 36.000.000$00.

c) Mais declararam os outorgantes que, na data constante desse contrato a aqui Ré recebeu do aqui Autor marido a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de 1.000.000$00, sendo o restante pago até ao acto da escritura, sendo a venda livre de quaisquer ónus ou encargos e as despesas de registo, escritura e sisa a cargo do comprador.

d) Consta do referido documento que as partes declararam que a escritura pública que iria titular o contrato ora prometido seria outorgada em dia e hora a marcar pela aqui Ré (vendedora), que o prazo de entrega era de ? meses (cifra de um algarismo) e ambos se obrigavam à execução específica, prescindindo do reconhecimento notarial das respectivas assinaturas.

e) Antes de ser celebrado o referido contrato de promessa de compra e venda, e a pedido dos autores foram acertadas algumas alterações no prédio a construir, alterações essas não contempladas na planta e no caderno de encargos entregue pela ré.

f) Porque havia uma divergência de áreas no que respeitava à sua inscrição predial e matricial, onde constava a área de 553 m2 quando, de facto, o lote tinha a área de 665 m2, um dos sócios gerentes da ré (E……….) emitiu em 11 de Dezembro de 2001 declaração de onde constava tal rectificação e onde se dizia que aquela rectificação de áreas seria efectuada no mesmo momento em que fosse celebrada a escritura.

g) Face às alterações solicitadas pelos autores, estes, imediatamente começaram a ver decorações e electrodomésticos.

h) Tendo, desse facto, feito comunicação à ré.

i) Em 20 de Dezembro de 2001 receberam os autores uma carta de um ilustre advogado desta comarca a dizer que nenhum contrato promessa havia sido celebrado.

j) A ré assinou unilateralmente o dito contrato e entregou-o já assinado a F………., intermediário nas negociações.

l) A fim de obter nesse mesmo dia 30, a subscrição do mesmo pelos autores e receber o preliminar com vista à eventual celebração e respectivo sinal, de forma a se cumprir, o nele estipulado.

m) Todas as negociações que os autores fizeram com o tal mediador entenderam-nas como feitas na própria pessoa da ré, aliás nem poderia ser de outra forma.

n) Os autores entregaram ao dito intermediário um cheque, incorporando a quantia prevista no contrato promessa a título de sinal, cheque esse datado de 30/11/01.

o) A ré recusou-se a receber das mãos do mediador o cheque.

p) Por isso este cheque foi-lhe enviado por carta registada com a/r, em 13/12/01.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se, no caso dos autos, os AA. têm jus à execução específica do contrato-promessa invocado como causa de pedir e se houve recusa definitiva da Ré em o cumprir, facto que, na tese dos apelantes, os dispensaria de interpelação admonitória.

Os AA., enquanto promitentes-compradores e a Ré enquanto promitente-vendedora, celebraram o contrato de fls.4/5, em 30.11.2001, tendo por objecto mediato um prédio que a ré iria construir.

Acordaram no preço total de 36.000 contos estipulando um sinal de 1.000 contos.

Na cláusula VII ficou acordado – “A escritura pública que irá titular o contrato ora prometido será outorgada no dia e hora a marcar pelo primeiro outorgante” (a Ré).

Ora, não consta provado, que tivesse, sequer, havido marcação da data da escritura definitiva.

Será que os AA. têm direito à execução específica do contrato, baseado esse direito na carta do advogado da Ré, a fls. 11 e 12, de 20.12.2001, em que afirma que a sua constituinte não havia celebrado qualquer contrato com os AA?

Estes sustentam que a sentença julgou, erradamente, ao exigir interpelação admonitória da Ré para a marcação da escritura, já que havia recusa peremptória desta em cumprir, a dispensar tal trâmite ou formalidade – pelo que existe incumprimento definitivo do contrato – sendo viável a execução específica.

Vejamos:

O Código Civil define no art. 410º, nº1, contrato-promessa nos seguintes termos:

“1. À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.
2. Porém, a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral.
3. (...)”

“Contrato-promessa – é um acordo preliminar que tem por objecto uma convenção futura, o contrato prometido.
Mas em si é uma convenção completa, que se distingue do contrato subsequente. Reveste, em princípio, a natureza de puro contrato obrigacional, ainda que diversa seja a índole do contrato definitivo.
Gera uma obrigação de prestação de facto, que tem apenas de particular consistir na emissão de uma declaração negocial.
Trata-se de um “pactum de contrahendo” (Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, 6ª ed. -83).
É bilateral se ambas as partes se obrigam a celebrar o contrato definitivo; unilateral se apenas uma das partes se vincula” – (ob. cit., 83-84).

“Contrato-promessa é a convenção pela qual, ambas as partes ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo, ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato” – (A. Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª ed., 1. °-301).

Para se poder falar em incumprimento, importa que o obrigado não cumpra prestação a que se obrigou.

“O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado” – art. 762º, nº1, do Código Civil.

A execução específica acha-se prevista no art. 830º do Código Civil que, nos termos do nº1, consigna:

“1. Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida”.

Não interessa ao caso abordar a complexa problemática da existência de sinal e a sua compatibilidade com a execução específica à luz das diversas alterações legislativas que o preceito sofreu – DL. 236/80, de 18.7 e DL. 379/86, de 11.11.

Através da execução específica o Tribunal emite sentença que supre a declaração negocial do faltoso, assim dando satisfação ao interesse do credor que não viu cumprida a prestação a que tinha direito, por incumprimento do devedor.

Daí que, desde logo, tenha que existir incumprimento do devedor, ainda que exprima mora.

Se o devedor estiver em mora, ou seja, se o atraso no cumprimento lhe for imputável – art. 804º, nº2, e 805º, nº2, do Código Civil – a execução específica é viável.

No caso dos autos à Ré, promitente-vendedora, competia marcar a data da escritura pública, não tendo sido estipulado qualquer prazo.

Daí que, salvo melhor opinião, nem sequer se pode considerar que está em mora.

Mesmo incumbindo à Ré a marcação de data para a escritura, nada impedia os AA., que consideram que a Ré voluntariamente não marcou a data, podendo fazê-lo, interpelá-la para o cumprimento – art. 808º, nº1, do Código Civil.

“A interpelação admonitória é uma declaração receptícia que contém três elementos: intimação para o cumprimento; fixação de um termo peremptório para o cumprimento; admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida, se não ocorrer o adimplemento dentro desse prazo” – “Estudos de Direito Civil e Processo Civil”, de Calvão da Silva, pág.159.

Como ensina J. Baptista Machado – “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in Estudos em Homenagem ao Prof. J.J. Teixeira Ribeiro – II Jurídica, págs. 348/349.

“[…] O incumprimento é uma categoria mais vasta onde cabem:

a) O incumprimento definitivo, propriamente dito;
b) A impossibilidade de cumprimento;
c) A conversão da mora em incumprimento definitivo – art. 808º, nº1, do C. Civil;
d) A declaração antecipada de não cumprimento e a recusa categórica de cumprimento, antecipada ou não;
e) E, talvez ainda, o cumprimento defeituoso.

No que respeita à inadimplência por impossibilidade de cumprimento, com J. Baptista Machado (ob. cit., pg. 345), podem configurar-se as seguintes situações:

a) De impossibilidade parcial e definitiva não imputável ao devedor – art. 793º, nº2;
b) De impossibilidade total e definitiva imputável ao devedor -art. 801º, nº2;
c) De impossibilidade parcial e definitiva imputável ao devedor – art. 802º todos do C. Civil.”

Por nenhum dos outorgantes no contrato foi imposta ao outro, através de interpelação admonitória, a marcação de data para outorga da escritura de compra e venda.

Pressuposto da execução específica – art. 830º, nº1, do Código Civil – é, no caso, a existência de mora e não o incumprimento definitivo.

“A mora do devedor é o pressuposto de execução específica do contrato-promessa.
Tal mora depende de o devedor ter sido interpelado — judicial ou extrajudicialmente — para cumprir.
Tal interpelação só pode ser efectuada a partir do momento em que o credor pode exigir a realização da prestação devida.
As obrigações de prazo natural, circunstancial ou usual dão lugar a fixação judicial de prazo sempre que o credor não acorde com o devedor quanto ao momento do seu cumprimento” – Ac. do STJ, 18.6.1996, in CJ/STJ, 1996, II.53.

Ora, a Ré nem sequer está em mora, pese embora o lapso de tempo decorrido desde a data da outorga do contrato-promessa.

Mas será que, como consideram os apelantes, a carta de fls. 11/12 de 18.12.2001 implica recusa definitiva em cumprir?

A carta foi escrita pelo Advogado da Ré aos AA. e alude ao contexto negocial, na fase preliminar do contrato; retrata aspectos vários dessa fase, para considerar que não foi celebrado qualquer contrato-promessa.

Tal carta, salvo o devido respeito, atento o contexto em que foi elaborada, não pode ser interpretada como recusa definitiva em cumprir o contrato.

Ademais, na contestação, a Ré alega que, no dia 30.11.2001, data em que os AA. consideram ter celebrado o contrato-promessa, isso não aconteceu.

Como resulta do art. 12º da contestação, a Ré admite que, se se considerar existir contrato, os AA. não entregaram o sinal a que se obrigaram, não reconhecendo que o mediador que interveio, e que se provou ter recebido dos AA. o sinal, a representasse.

É só por isso que considera não estar vinculada contratualmente.

Como se pode ler no Ac. do STJ de 2.2.2006, in www.dgsi.pt:

“Só o incumprimento definitivo, tratando-se de um negócio bilateral, confere ao outro contraente o direito de resolver o contrato, constituindo o inadimplente na obrigação de indemnização que, no âmbito do contrato-promessa, se calcula nos termos do art. 442º, nº 2, do Código Civil perda do sinal ou restituição do sinal em dobro”.

Assim, se se considerasse haver incumprimento definitivo da Ré, nem sequer a pretensão dos AA. seria viável, restar-lhe-ia o direito de resolver o contrato, prevalecendo-se do mecanismo do sinal, como sanção para o incumprimento da promitente-vendedora.

Finalmente, importa dizer que, ao contrário do afirmado pelos apelantes, a sentença não enferma de nulidade por falta de fundamentação, no que respeita a considerar que a carta a que aludimos não exprime peremptória recusa em cumprir o contrato.

A fundamentação é escassa mas existe.

Como se sabe só a absoluta falta de fundamentação constitui a nulidade prevista no art. 668º, nº1, b) do Código de Processo Civil.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelos AA./Apelantes.

Porto, 8 de Maio de 2006
António José Pinto da Fonseca Ramos
José Augusto Fernandes do Vale
António Manuel Martins Lopes