TÍTULO EXECUTIVO
RASURA
CESSÃO DE CRÉDITO
Sumário

1 – A notificação ao devedor, a que alude o n.º 1 do artigo 583.º do Código Civil, de que o seu credor cedeu o crédito a outrem, pode ser feita através da citação para a execução proposta pelo credor cessionário.
2 – Neste enquadramento, a única exigência imprescindível – e que aqui foi cumprida – é que, com o requerimento executivo, o exequente demonstre a habilitação-legitimidade, alegando e provando os factos constitutivos da cessão.
3 – Os vícios formais a que se refere o n.º 2 do artigo 371.º do Código Civil não inutilizam o documento e apenas podem diminuir o seu valor probatório, sendo que a força probatória do documento escrito a que falte algum dos requisitos exigidos na lei é apreciada livremente pelo Tribunal, de acordo com o critério do julgador à luz do disposto no artigo 366.º do mesmo diploma.
4 – As apontadas rasuras não são suficientes para colocar em causa a validade e a eficácia do título executivo apresentado, dado que os pontos rasurados correspondem a aspectos do foro negocial privado das partes (cedente e cessionário) e são inócuos à avaliação da referida cessão e da alegada existência da dívida.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 2784/20.0T8STB-C.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo de Execução de Setúbal – J2
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente oposição mediante embargos de executado que corre por apenso à acção executiva para pagamento de quantia certa proposta por “(…), Unipessoal, Lda.”, o executado (…) interpôs recurso do saneador sentença proferido.
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Os títulos dados à execução correspondem a livranças.
A livrança com o número (…) que serviu de garantia ao Empréstimo com o n.º PT (…), no valor de € 928.357,56, correspondendo € 923.715,77 ao capital em dívida, juros e comissões e € 4.641,70 ao imposto do selo pago, conforme nota de débito com o desdobramento da dívida, que faz prova dos referidos montantes, que se junta sob Doc. 7 e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
A livrança com o número (…) que serviu de garantia ao Empréstimo com o n.º PT (…), no valor de € 93.637,14, correspondendo € 93.168,95 ao capital em dívida, juros e comissões e € 468,19 ao imposto do selo pago, conforme nota de débito com o desdobramento da dívida, que faz prova dos referidos montantes, que se junta sob Doc. 8 e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
Encontra-se junto aos autos um documento que contém o pacto de preenchimento referente às livranças que titulavam os referidos contratos.
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Em sede de petição de embargos, o embargante veio invocar as seguintes excepções:
a) ineptidão do requerimento executivo.
b) falta de legitimidade activa.
c) prescrição.
d) falta de notificação da cessão de créditos.
e) insuficiência do contrato de cessão de créditos.
f) falta de interpelação para pagamento/falta de notificação do incumprimento definitivo/resolução do contrato.
g) inexistência de título executivo relativamente aos valores de imposto de selo e comissões.
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O embargante pedia assim que:
a) fossem julgadas procedentes as excepções invocadas, absolvendo-se o Embargante da instância.
b) fossem julgados procedentes os embargos, e, consequentemente, a execução julgada extinta.
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A embargada apresentou contestação, na qual afirma que, por escritura pública, celebrada em 4 de Outubro de 2018, a “Caixa Geral de Depósitos, SA” cedeu à “(…) Company” um conjunto de créditos vencidos de que era titular, os quais foram posteriormente cedidos à “(…), Unipessoal, Lda.”, por escritura pública outorgada em 29 de Abril de 2019.
Nessa sede, para além do mais, a sociedade exequente afirma que o executado foi notificado da referida cessão, por cartas registadas que lhe foram remetidas (documentos 9 e 10 que se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais).
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Estas questões foram conhecidas no despacho saneador e os autos prosseguiram para a fase de julgamento para apreciação dos temas da prova[1].
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Na parte que interessa para o recurso, a decisão recorrida negou que existisse um quadro de falta de notificação da cessão de créditos e de insuficiência do contrato de cessão de créditos (pontos d) e e)), julgando assim improcedente a oposição (defesa por excepção) apresentada.
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Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso de apelação e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
«A. A decisão proferida pelo Tribunal a quo é ilegal e injusta na medida em que no entendimento do Recorrente, o sentido com que as normas que constituíram fundamento jurídico à decisão não foram corretamente interpretadas e aplicadas pelo Tribunal a quo, nomeadamente os artigos 583.º, os artigos 577.º e ss. e 874.º todos do Código Civil e artigo 607.º do Código de Processo Civil.
B. Invocou a Recorrida ser detentora de créditos sobre o Recorrido, fundamentando tal direito na qualidade de cessionária de vários créditos, juntando ao requerimento executivo para o efeito dois contratos de cedência de créditos.
C. O Recorrente em sede de Embargos de Executado invocou que as várias cessões de créditos, que constituem pressuposto processual da legitimidade da Recorrida, não lhe foram notificadas.
D. Contudo, o Tribunal a quo ignorou o facto desta matéria ser controvertida, e decidiu julgar a exceção improcedente, justificando que “Ora, independentemente de essa notificação ter ocorrido em data anterior à entrada da execução em Tribunal, tem sido entendido pela jurisprudência e por este Tribunal que a notificação da cessão ao devedor constitui apenas uma condição de eficácia da cessão perante si, nos termos do artigo 583.º, n.º 1, do CC, sendo que o efeito substancial que se pretende obter com tal notificação é o de tornar a cessão eficaz em relação ao devedor, dando-lhe a conhecer a identidade do cessionário e evitando que o cumprimento seja feito perante o primitivo credor. Tal eficácia é assegurada com a citação para a acção executiva, momento a partir do qual o devedor fica ciente da existência da cessão e inibido de invocar o seu desconhecimento, nos termos do artigo 583.º, n.º 2, do Código Civil”.
E. Contudo, a notificação ou aceitação do devedor é uma condição de eficácia da cessão relativamente ao devedor, uma vez que, sem essa notificação ou aceitação, a cessão não produz qualquer efeito.
F. A cessão para produzir efeitos junto dos devedores, tem de ser comunicada a estes, significa isso, portanto, que, antes dessa notificação ou aceitação, o cessionário não pode exigir o crédito ao devedor, nem este está obrigado a satisfazer-lhe a prestação.
G. E por notificação ou aceitação não poderemos entender citação no âmbito do processo executivo.
H. Nunca poderemos aceitar o argumento de que a notificação ao devedor, a que alude o artigo 583.º, n.º 1, do Código Civil, pode ser feita através da citação para a execução proposta pelo credor cessionário contra o executado.
I. Pois, se assim fosse, iriamos permitir que a cessão de créditos produzisse os seus efeitos em pleno, sem que para isso tivessem sido cumpridos todos os pressupostos legais.
J. A doutrina e jurisprudência é unânime quanto ao facto da notificação ou aceitação do devedor ser uma condição de eficácia da cessão de créditos relativamente ao devedor.
K. Ora, se a notificação foi cumprida com a citação, estamos a permitir que a cessão produzida os seus efeitos sem que a sua condição de eficácia esteja observada.
L. Assim sendo e face ao exposto, estamos perante a falta de legitimidade processual da Recorrida.
M. Ao julgar improcedente a exceção da falta de notificação do contrato de cessão de créditos, o Tribunal recorrido fez uma incorreta interpretação e aplicação do direito, violando o disposto no artigo 583.º do Código Civil.
N. O despacho saneador ora recorrido ser revogado, por incorreta interpretação e aplicação do direito e incorreta apreciação da prova, sendo substituído por um despacho que julgo procedente a exceção invocada pelo Executado, absolvendo o Executado da Instância.
O. Ou, em alternativa, deve o despacho saneador ora recorrido ser revogado, por incorreta interpretação e aplicação do direito, sendo substituído por um despacho saneador que não decida da exceção invocada pelo Executado, deixando para decidir a exceção à final e que adicione aos temas de prova o tema “Foi o executado notificado das cessões de créditos que legitimam a Exequente?”.
P. A Recorrida arroga-se da qualidade de detentora do crédito, fundamentado tal direito na celebração de um contrato de cedência de créditos com uma sociedade de nome “(…) Company”.
Q. O Tribunal a quo limita-se a justificar a legitimidade da Recorrida no facto do contrato de cessão de créditos celebrado em 29/04/2019 fazer referência aos créditos anteriormente cedidos pelo contrato celebrado em 04/10/2018.
R. No entanto, a escritura pública celebrada em 29/04/2019 refere o seguinte: “Que por contrato de cessão de créditos celebrado em quatro de dois mil e dezoito, a “Caixa Geral de Depósitos, SA” cedeu à “(…) Company”, representada pela primeira outorgante, um conjunto de crédito vencidos, de que era titular, doravante designados abreviadamente e em conjunto por “Créditos”, melhor descritos no Anexo Créditos à presente escritura”.
S. Ora, do próprio contrato de cessão de créditos consta que há um anexo onde constam descritos todos os créditos cedidos, anexo este que não foi junto aos autos aquando da submissão do requerimento executivo e dos respetivos documentos.
T. Contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, é necessário para eficácia do contrato de cessão de créditos identificar quais os concretos créditos que se encontram cedidos.
U. Todo e qualquer contrato de cessão de créditos tem obrigatoriedade, sob pena de nulidade, de identificar os créditos cedidos, ou seja, todo e qualquer contrato celebrado tem de identificar o seu objeto, o que não sucedeu.
V. É ainda importante referir que o documento complementar da escritura publica junto pela Recorrida como documento 4 da Contestação é um mero printscreen de um documento que se desconhece, que não se encontra assinado, nem autenticado.
W. Pelo que, mesmo que se pudesse entender que a Recorrida tivesse aperfeiçoado o seu requerimento executivo, a verdade é que o referido documento não titula qualquer crédito.
X. Tendo o Tribunal a quo entendido que os elementos que se encontram rasurados não obsta à decisão, uma vez que o que se encontra rasurado é o preço e o número de conta bancária.
Y. No entanto, se o documento se encontra rasurado e impercetível, como é que o Tribunal a quo conseguiu perceber o que se encontrava rasurado.
Z. Ao julgar improcedente a exceção o Tribunal recorrido fez uma incorreta apreciação da prova, bem como um incorreta interpretação e aplicação do direito aos factos, violando o disposto no artigo 607.º do Código Processo Civil, os artigos 577.º e ss. e 874.º do Código Civil.
AA. Termos em que, deve o despacho saneador ora recorrido ser revogado, sendo substituído por um despacho saneador que julgue a exceção invocada totalmente procedente e em consequência absolva o Réu da instância.
Só assim se fará Justiça!».
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A parte contrária contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de erro na apreciação da matéria da possibilidade de a citação servir como conhecimento do acto de cessão e da ineficácia das rasuras contidas no instrumento de cessão de créditos.
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III – Dos factos com interesse para a resolução do caso:
Os factos com interesse para a justa resolução do caso são aqueles que constam do relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
Na acção executiva, a legitimidade que é concedida aos sujeitos que constam do título executivo como credor e devedor é igualmente reconhecida aos seus sucessores: se houver sucessão no direito ou na obrigação exequendos, são partes legítimas na execução os sucessores dos sujeitos que figuram no título como credor e devedor da obrigação exequenda.
A questão da legitimidade do cessionário para intervir na fase executiva é objecto de debate recorrente nos tribunais[2] [3] [4]. E a nível doutrinário pronunciam-se sobre a problemática da legitimidade quando tenha havido sucessão no crédito ou na dívida, entre outros, Cunha Gonçalves[5], Lopes Cardoso[6], Germano Marques da Silva[7], Fernando Amâncio Ferreira[8], Lebre de Freitas[9] – quer individualmente, quer na sua obra conjunta com Isabel Alexandre[10] .
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A cessão de créditos encontra-se prevista no artigo 577.º do Código Civil e consiste numa forma de transmissão do crédito que opera por virtude de um negócio jurídico, normalmente um contrato celebrado entre o credor e o terceiro.
Sobre a figura podem ser consultados Vaz Serra[11], Carlos Mota Pinto[12], Antunes Varela[13], Almeida Costa[14], Dias Marques[15], Menezes Cordeiro[16], Ribeiro de Faria[17], Menezes Leitão[18] [19] e Maria Assunção Cristas[20], entre outros.
De acordo com a lição de Dias Marques a cessão de créditos «pode definir-se como a sucessão num crédito por efeito de um negócio jurídico inter vivos (v.g., venda, doação, troca...) através do qual o credor transmite a um terceiro o seu direito»[21].
Usualmente são enunciados como requisitos da cessão de créditos: (i) um negócio jurídico a estabelecer a transmissão da totalidade ou parte de um crédito, (ii) a inexistência de impedimentos legais ou contratuais a essa transmissão e (iii) a não ligação do crédito, em virtude da própria natureza da prestação, à pessoa do credor.
Os requisitos e os efeitos da cessão entre as partes são definidos em função do negócio que lhe serve de base, como decorre do disposto no artigo 578.º[22] do Código Civil. A garantia quanto à existência e à exigibilidade do crédito é provisionada pelo artigo 587.º[23] e a cessão implica a transferência das garantias e dos acessórios ao abrigo do disposto no artigo 582.º[24] do Código Civil.
A cessão de créditos apenas produz efeitos em relação ao devedor, desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite (artigo 583.º, n.º 1)[25]. A notificação e a aceitação não estão sujeitos a forma especial (cfr. artigo 219.º)[26], podendo inclusivamente a aceitação ser efectuada tacitamente (cfr. artigo 217.º)[27], como acontecerá no caso de o devedor combinar com o cessionário qualquer alteração na obrigação (lugar e tempo do cumprimento, garantias, etc.)[28].
Na resolução da dúvida sobre se a eficácia translativa da cessão é processada em duas fases (eficácia imediata em relação às partes do contrato de cessão e eficácia diferida relativamente ao devedor), se há apenas uma eficácia diferida para o momento da notificação do devedor (tese de Mancini) ou se a eficácia translativa é imediata, Brandão Proença advoga que o direito de crédito se transmite imediatamente com o negócio de alienação passando o cessionário a titular do direito[29].
A lei apenas faz depender a eficácia da cessão em relação ao devedor do conhecimento que este tenha de que o crédito foi cedido[30]. O conhecimento é, pois, o elemento central determinante da eficácia da transmissão perante o devedor. Esse conhecimento pode é comprovar-se de formas distintas, seja através da prova da aceitação, da notificação ou do simples conhecimento[31].
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A questão judicanda reporta-se ao apuramento da possibilidade de o conhecimento da cessão ser concretizado através da citação para a acção executiva.
O Supremo Tribunal de Justiça tem emitido jurisprudência em que assevera que a citação para a acção de condenação no pagamento do crédito cedido, proposta pelo credor cessionário, pode produzir o mesmo efeito jurídico que a notificação prevista no n.º 1 do artigo 583.º do Código Civil, cessando, com prática aquele acto judicial, a inoponibilidade da transmissão pelo cessionário ao devedor[32] [33].
Aliás, esta posição já foi subscrita em acórdãos do Tribunal da Relação de Évora[34] [35] e, na actualidade, é transversal à jurisprudência constante da Segunda Instância[36] [37]. E no posicionamento teórico, Menezes Cordeiro defende que a citação para a acção equivale, a partir do momento em que seja feita, à notificação[38].
Com efeito, «uma vez citado, o devedor cedido não está mais numa situação de ignorância que deva ser protegida, ainda que pretenda contestar, invocando mesmo a invalidade ou a ineficácia da transmissão, não poderá ignorar a transmissão (ainda que hipotética) e cumprir com eficácia perante o antigo credor. Se assim fizer, se cumprir perante o anterior credor, o cessionário poderá invocar o n.º 2 do artigo 583.º e exigir novo pagamento»[39].
Neste processo lógico pode assim afirmar-se que o conhecimento da transmissão fica perfectibilizado através da citação para a acção – momento em que o cedido fica ciente da existência da cessão e da impossibilidade de invocar o seu desconhecimento – e, assim, o direito do cessionário, que até então era inoponível ao devedor cedido, passa a gozar da exigibilidade que antes daquele acto a ineficácia relativa condicionava.
Se assim não fosse, os Tribunais estavam a estimular a prática de actos inúteis, pois, caso se optasse por um cenário que conduzisse à extinção da instância com base nesse motivo, logo de seguida, o actual dono do crédito proporia uma nova acção com o mesmo objecto, invocando o acto de citação prévio como a fonte do conhecimento da cessão.
Neste enquadramento, a única exigência imprescindível – e que aqui foi cumprida – é que, com o requerimento executivo, o exequente demonstre a habilitação-legitimidade, alegando e provando os factos constitutivos da cessão[40] [41].
Como já se escreveu noutro nosso acórdão, a lei apenas faz depender a eficácia da cessão em relação ao devedor do conhecimento que este tenha de que o crédito foi cedido e este é o elemento central determinante da eficácia da transmissão perante o devedor. Esse conhecimento pode comprovar-se de formas distintas, seja através da prova da aceitação, da notificação ou do simples conhecimento[42].
É assim manifestamente acertada a conclusão do Meritíssimo Juiz do Juízo de Execução de Setúbal, ao afirmar que «tal eficácia é assegurada com a citação para a acção executiva, momento a partir do qual o devedor fica ciente da existência da cessão e inibido de invocar o seu desconhecimento». E assim, tal como é anunciado na decisão recorrida, não existe a necessidade de apurar se as cartas alegadamente remetidas para o agora executado a comunicar a cessão chegaram efectivamente ao seu destino e gnose.
Assim, por esta via, a decisão recorrida não merece reparo.
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Quanto à outra questão estruturante, importa recuperar a jurisprudência já emitida por este colectivo de Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora[43] em que se debate a existência de rasuras no título executivo.
Relativamente à força probatória dos documentos autênticos, prescreve o n.º 2 do artigo 371.º do Código Civil que «se o documento contiver palavras emendadas, truncadas ou escritas sobre rasuras ou entrelinhas, sem a devida ressalva, determinará o julgador livremente a medida em que os vícios externos do documento excluem ou reduzem a sua força probatória».
Aquilo que se poderia perguntar era se os elementos rasurados do referido contrato de cessão eram fundamentais para a prova da cessão de créditos em questão e da existência da dívida?
A sociedade recorrida invoca que no contrato de cessão junto apenas estão rasurados os elementos intrínsecos que são de manter no foro privado e negocial das partes (cedente e cessionário) e que, por isso, são inócuos à avaliação da referida cessão e da relação material controvertida.
Os vícios formais a que se refere o n.º 2 do artigo não inutilizam o documento. Apenas diminuem o seu valor probatório, segundo o critério do julgador. Harmoniza-se este preceito com o critério geral do artigo 366.º, segundo o qual a força probatória do documento escrito a que falte algum dos requisitos exigidos na lei é apreciada livremente pelo Tribunal[44].
Como assinala Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, neste conjunto de casos a força probatória do documento pode ser degradada, de acordo com a gravidade do vício detectado[45] e cumpriria assim decifrar se os elementos rasurados eram essenciais à caracterização da operação de cessão de créditos e se a simples identificação do crédito cedido e das respectivas garantias satisfazia (ou não) os requisitos de prosseguimento da causa.
Nesta sede é assim de concluir que não existe fundamento para desconsiderar o referido documento, dado que não existem dúvidas sobre a força probatória do documento e aquilo que é omitido apenas releva no relacionamento contratual entre o primitivo detentor do crédito e o aqui exequente relativamente a aspectos relacionados com o preço global da cessão e outros tópicos contratuais sem relevância na relação comercial aqui em discussão.
Nesta ordem de ideias, se ao Tribunal a quo se suscitassem dúvidas, a questão deveria ser solucionada à luz dos deveres de gestão processual e na dedução de um eventual convite para a correcção do vício, concedendo-lhe prazo razoável para a junção de documento cuja integralidade probatória não estivesse diminuída, mas que nunca conduziria à absolvição da instância.
Aliás, isso mesmo está patenteado na decisão recorrida quando a mesma avança que «o facto de o contrato inicial estar rasurado não afecta esta decisão, pois o que está omitido é o preço da cessão e o número de conta bancária, que em nada interfere na leitura e compreensão do documento».
E, na avaliação concreta da problemática, o Tribunal da Relação de Évora conclui que as apontadas rasuras não são suficientes para colocar em causa a validade e a eficácia do título executivo apresentado[46].
Lidas todas as conclusões e analisado todo o argumentário nelas contido, não existe qualquer outro raciocínio recursivo com a virtualidade de alterar o anteriormente decidido, mantendo-se assim a decisão recorrida.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, julga-se improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 27/05/2021
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Maria Peixoto Imaginário


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[1] I) Em 2015, a (…), S.A. recebeu do QREN € 471.000,00, não tendo a CGD alocado à amortização do contrato n.º (…);
Ii) A CGD permitiu movimentos a débito na conta corrente da (…), SA no montante de € 524.625,92, após 26.12.2013;
Iii) A (…), SA, quanto a esse contrato, realizou ainda outros pagamentos;
iv) Quanto ao contrato de Abertura de Crédito com Aval – Livrança n.º (…), a sociedade (…), SA procedeu ao pagamento da quantia de total de € 321.428,52 (trezentos e vinte e um mil, quatrocentos e vinte e oito euros e cinquenta e dois cêntimos);
v) Quais os créditos pagos (parcialmente ou integralmente) à Caixa Geral de Depósitos, SA no âmbito do processo de insolvência da sociedade (…), SA.
[2] No acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/10/2016, in www.dgsi.pt, pode ler-se que:
«I - O preceituado no artigo 54.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, constitui um desvio à regra geral da legitimidade para a acção executiva, podendo esta ser intentada por e contra pessoas que não figuram no título executivo, por, entretanto, ter ocorrido transmissão no direito ou na obrigação, quer inter vivos, quer mortis causa.
II - Tendo a decisão de habilitação de cessionário transitado em julgado e não tendo a mesma sido objecto de recurso de revisão, a questão da legitimidade para execução ficou definitivamente resolvida.
III - A cessão de créditos é inoponível à execução verificada depois da penhora (artigo 820.º do Código Civil) sendo esse acto ineficaz em relação ao exequente cuja penhora do crédito pertencente ao cedente se mantém incólume.
IV - A partir da notificação da cessão (assim como a partir da sua aceitação ou do conhecimento da sua existência), a titularidade do crédito passa para a esfera do cessionário, pelo que o devedor apenas se desobriga se efectuar a este a prestação».
[3] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/03/2011, in www.dgsi.pt.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/10/2010, in www.dgsi.pt.
[5] No domínio do Código de Seabra também Cunha Gonçalves, in Tratado de Direito Civil, vol. V, pág. 68, ensinava que era incontestável a legitimidade do cessionário desde que haja alegado na petição inicial a origem do seu crédito e que a mesma tenha sido feita pelo anterior credor.
[6] Manual da Acção Executiva, 3ª edição (reimpressão), Livraria Almedina, Coimbra, 1982, pág. 99 e seguintes.
[7] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Civil Executivo (Acção Executiva Singular, Comum e Especial), Lisboa, 1995, pág. 34.
[8] Curso de Processo de Execução, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 58.
[9] A Acção Executiva Depois da Reforma, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pág. 123.
[10] Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, págs. 110-111.
[11] Cessão de Créditos ou de outros direitos, Boletim do Ministério da Justiça, número especial, ano 1955, págs. 5-374.
[12] Cessão da Posição Contratual, reimpressão, Almedina, Coimbra, 1982, págs. 161 e seguintes e 225 e seguintes.
[13] Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª edição (reimpressão), Almedina, Coimbra, 1999, pág. 294 e seguintes.
[14] Direito das Obrigações, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 755 e seguintes.
[15] Noções Elementares de Direito Civil, 7.ª edição, Lisboa, 1992, págs. 187-192.
[16] Direito das Obrigações, vol. II, AAFDL, Lisboa, 1980, pág. 89 e seguintes.
[17] Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, 1987, pág. 501 e seguintes.
[18] Cessão de Créditos, Almedina, Coimbra, 2005, págs. 283 e seguintes.
[19] Direito das Obrigações, Vol. II, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, págs. 17-33.
[20] Transmissão Contratual do Direito de Crédito. Do carácter real ao direito de crédito, Almedina, Coimbra, 2005, págs. 47 e seguintes e 221 e seguintes.
[21] Noções Elementares de Direito Civil, 7.ª edição, Lisboa, 1992, pág. 188.
[22] Artigo 578.º (Regime aplicável):
1 - Os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que lhe serve de base.
2 - Salvo o disposto em lei especial, a cessão de créditos hipotecários, quando não seja feita em testamento e a hipoteca recaia sobre bens imóveis, deve constar de escritura pública ou de documento particular autenticado.
[23] Artigo 587.º (Garantia da existência do crédito e da solvência do devedor):
1. O cedente garante ao cessionário a existência e a exigibilidade do crédito ao tempo da cessão, nos termos aplicáveis ao negócio, gratuito ou oneroso, em que a cessão se integra.
2. O cedente só garante a solvência do devedor se a tanto expressamente se tiver obrigado.
[24] Artigo 582.º (Transmissão de garantias e outros acessórios):
1. Na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente.
2. A coisa empenhada que estiver na posse do cedente será entregue ao cessionário, mas não a que estiver na posse de terceiro.
[25] Artigo 583.º (Efeitos em relação ao devedor):
1. A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite.
2. Se, porém, antes da notificação ou aceitação, o devedor pagar ao cedente ou celebrar com ele algum negócio jurídico relativo ao crédito, nem o pagamento nem o negócio é oponível ao cessionário, se este provar que o devedor tinha conhecimento da cessão.
[26] Artigo 219.º (Liberdade de forma):
A validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo quando a lei a exigir.
[27] Artigo 217.º (Declaração expressa e declaração tácita):
1. A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.
2. O carácter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz.
[28] Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 29.
[29] Direito das Obrigações – Relatório sobre o programa, o conteúdo e os métodos de ensino da disciplina, Universidade Católica Editora, Porto, 2007.
[30] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/06/2004, in www.dgsi.pt.
[31] Maria Assunção Cristas, Citação como notificação ao devedor cedido, Cadernos de Direito Privado, número 14 (Abril/Junho de 2006), pág. 63.
[32] Acórdão do Supremo Tribunal de justiça de 06/11/2012, publicado em www.dgsi.pt.
[33] De acordo com a posição expressa no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/03/2016, disponível em www.dgsi.pt, «a notificação ao devedor, a que alude o artigo 583.º, n.º 1, do CC, de que o seu credor cedeu o crédito a outrem, pode ser feita através da citação para a execução proposta pelo credor cessionário contra os oponentes executados».
[34] No acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28/09/2017, consultável em www.dgsi.pt, ficou assinalado que «a citação para a acção executiva constitui acto bastante para dar conhecimento da cessão de créditos aos devedores e, assim, para produzir os seus legais efeitos quanto a estes».
[35] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06/04/2017, não publicado, proferido no âmbito do processo registado sob o n.º 1015/13.4TBSTB-C.E1, que decidiu que «tendo a cessão de créditos ocorrido na pendência do processo de execução, nada impede que a notificação da cessão de créditos exigida pelo artigo 583.º, n.º 1, do Código Civil seja feita simultaneamente com a notificação para contestar o incidente de habilitação do adquirente ou cessionário, pois aquela norma tanto permite a notificação judicial como a extrajudicial».
[36] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/11/2018, também visitável em www.dgsi.pt, que decidiu que «a notificação ao devedor, a que alude o artigo 583.º, n.º 1, do Código Civil, de que o seu credor cedeu o crédito a outrem, pode ser feita através da citação para a execução proposta pelo credor cessionário».
[37] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02/04/2019, pesquisável em www.dgsi.pt, que refere que «a eficácia da cessão pode ser conseguida através da citação do devedor para a ação declarativa ou executiva, assim cessando a inoponibilidade da transmissão pelo cessionário ao devedor. A eficácia da cessão pode ser conseguida através da citação do devedor para a ação declarativa ou executiva, assim cessando a inoponibilidade da transmissão pelo cessionário ao devedor».
[38] António Menezes Cordeiro, tratado de Direito Civil, vol. IX (direito das Obrigações), 3.ª edição totalmente revista e aumentada, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 800.
[39] Assunção Cristas, em anotação ao acórdão de 3 de Junho de 2004, in “Cadernos de Direito Privado”, n.º 14, pág. 64.
[40] Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, pág. 55.
[41] Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, pág. 136.
[42] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23/11/2017, proferido no âmbito do processo registado sob o n.º 570/14.6TBTVN-A.E1, não publicado.
[43] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30/11/2020, publicitado em www.dgsi.pt.
[44] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e actualizada (reimpressão), com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pág. 328.
[45] Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, em comentário ao artigo 371.º do Código Civil.
[46] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28/03/2019, publicado em www.dgsi.pt.