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DETENÇÃO DE ESTUPEFACIENTE
CONSUMO PESSOAL
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
Sumário
A detenção de droga para consumo próprio em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, integra a contra-ordenação prevista no artº 2º da Lei nº 30/2000.
Texto Integral
ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (2.ª) DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I
1. No processo comum n.º …/04..TOPRT, da .ª Vara Criminal do Porto, após julgamento, perante tribunal colectivo, por acórdão de 24 de Fevereiro de 2005, foi decidido absolver o arguido B………. da prática do crime de tráfico de produtos estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma, de que estava pronunciado, no entendimento de que a conduta do arguido integra a prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 2.º, da Lei n.º 30/2000, de 29/11.
2. Inconformado, o Ministério Público veio interpor recurso do acórdão, extraindo da motivação apresentada as seguintes conclusões:
«1 – Realizado o julgamento decidiu o colectivo que resultou provado que o arguido detinha a “canabis” que lhe foi apreendida para seu consumo, não se encontrando preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/1, por referência à tabela anexa IC de tal diploma, assim o absolvendo e entendendo que a conduta do arguido integra a prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29/11.
«2 – O arguido encontrava-se acusado da prática de factos integradores de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/1, por referência à tabela anexa IC a tal diploma.
«3 – Nos termos do referido artigo 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/1: “quem sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos caos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.
«4 – Por seu turno, dispõe o artigo 25.º, alínea a), do citado DL: “Se nos caos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI”.
«A canabis está incluída na tabela I-C anexa ao referido diploma legal.
«5 – Por sua vez, a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, que revoga o supra referido artigo 40.º diz no artigo 1.º, n.º 2, que as plantas, substâncias e preparações sujeitas ao regime desse diploma são as constantes das tabelas I a IV anexas ao DL n.º 15/93, e no artigo 2.º, n.º 1, dispõe que constitui contra-ordenação o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações supra referidas, que não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
«6 – Assim, sendo de 119,040 gramas o peso líquido de haxixe apreendido ao arguido claramente excede a quantidade necessária para o consumo médio individual durante 10 dias – 25 gramas (cfr. Portaria n.º 94/96, de 26/3), pelo que deve ser excluída dessa subsunção a sua conduta.
«7 – A detenção de estupefacientes, ainda que exclusivamente para consumo, fora das situações previstas no artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, continua pois a ser crime, devendo o arguido ser condenado nesses termos.
«8 – Acresce que o tribunal fundamentou a sua convicção nas declarações do arguido, que admitiu ter adquirido estupefaciente detido a pessoa que não identificou, explicitando que o adquiriu para seu consumo pelo período de 15 dias e pela quantia de 120 euros.
«9 – Porém, não apurou que rendimento mensal o arguido tinha, nem de que ia viver o resto do mês atenta a sua condição social.
«10 – O colectivo fundamentou a sua convicção no relatório social do arguido, mas não refere como o valorizou.
«12 [Respeitamos a numeração] - Não fora entendermos ser a quantidade de haxixe que o arguido detinha e que lhe foi apreendida integradora do crime previsto no artigo 21.º ou quando muito do artigo 25.º referidos, teríamos de concluir enfermar o acórdão de vício de insuficiência da matéria de facto.»
Termina pedindo que, no provimento do recurso, se condene o arguido nos termos do artigo 21.º ou quando muito do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
3. Admitido o recurso, e na sequência da notificação dessa admissão, não houve resposta.
4. Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto foi de parecer de que assiste razão ao recorrente quando admite a subsunção jurídico-penal do comportamento do arguido ao tipo legal de crime p. e p. pelo artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP], o arguido veio sustentar a manutenção do acórdão recorrido.
6. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência, que se realizou com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito das questões postas no recurso.
II
Cumpre decidir.
1. No caso, tendo sido observado o princípio geral de documentação na acta das declarações prestadas oralmente em audiência (artigo 363.º do CPP), este tribunal conhece de facto e de direito (artigo 428.º, n. os 1 e 2, do CPP).
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP que: «A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.»
As conclusões devem ser, por isso, um resumo explícito e claro dos fundamentos do recurso, indicando, com precisão, as razões por que se pede o provimento do recurso.
Como tem sido repetidamente afirmado, são as conclusões da motivação que definem e delimitam o âmbito do recurso, ou seja, as questões que o recorrente quer ver discutidas no tribunal superior. «São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem de apreciar.» [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 2000, p. 335]
Versando o recurso matéria de direito, as conclusões devem conter, ainda, a indicação das normas jurídicas violadas, o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada (artigo 412.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP).
Versando o recurso matéria de facto, deve ser estruturado nos termos definidos pelos n. os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP.
É a seguinte a redacção dos n. os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP:
«3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
«a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
«b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
«c) As provas que devem ser renovadas.
«4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.»
As conclusões formuladas pelo Ministério Público têm um sentido inequívoco de impugnação da decisão de direito, por erro na qualificação jurídica dos factos, embora subsidiariamente também se refiram a vício do acórdão, o da insuficiência da matéria de facto.
Consideramos, assim, que as questões objecto do recurso consistem em saber:
- se o acórdão manifesta o vício invocado,
- se se verifica um erro de direito, por incorrecta subsunção jurídica dos factos provados.
2. Comecemos por ver o que da decisão recorrida releva para as questões objecto de recurso.
2.1. Foram dados por provados os seguintes factos:
«1. No dia 18 de Setembro de 2002, pelas 8.45 horas, na sequência de busca ao armazém situado na Rua ………., nº …, inspectores da Polícia Judiciária, apreenderam um produto vegetal prensado, com o peso líquido de 119,040 g., laboratorialmente identificado como “Canabis” (Resina), que se encontrava no assento do motociclo de marca “……….”, de matrícula ..-..-MJ, onde o arguido B………. o tinha escondido.
«2. O haxixe encontrado era destinado ao exclusivo consumo do arguido durante o período de 15 dias.
«3. O arguido conhecia perfeitamente a natureza e características do produto que lhe foi apreendido e que detinha para o seu consumo, bem sabendo que tal lhe estava vedado por lei.
«4. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente.
«5. O arguido sofreu as condenações constantes do CRC de fls. 232 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
«6. O arguido vive com os pais.
«7. Exerce a profissão de feirante.»
2.2. E foi dado por não provado:
«1. Que o arguido destinava à venda o produto estupefaciente apreendido.»
2.3. A motivação da decisão de facto é do seguinte teor:
«Para a decisão da matéria de facto provada baseou-se o tribunal da seguinte forma:
«- Na apreciação crítica das declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, o qual confessou que tinha na sua posse o produto estupefaciente, que comprara na ………., pelo valor de € 120,00, destinava-se exclusivamente ao seu consumo durante um período de cerca de 15 dias, negou peremptoriamente que o produto se destinava à venda.
«- A testemunha C………., inspector da PJ, relatou que realizaram uma busca à residência dos pais do arguido e respectivo armazém, com o objectivo de apreenderem ouro furtado, acabaram por encontrar e apreender o produto estupefaciente, mas a investigação não tinha qualquer relação com tráfico de droga, mais relataram que não tinham qualquer informação sobre tráfico desenvolvido pela família do arguido.
«Baseou-se ainda o tribunal na análise da prova documental: no teor do relatório de exame do Laboratório da Polícia Científica de fls. 59, no relatório social do arguido, bem como no CRC.
«Relativamente à matéria de facto não provada, resultou da ausência de prova quanto à mesma.»
2.4. A fundamentação jurídica da decisão esclarece que a absolvição do arguido decorre do entendimento de que todas as situações de posse de produto estupefaciente para consumo, são, actualmente, punidas a título de contra-ordenação.
3. Passemos, agora, a conhecer do objecto do recurso.
3.1. Em primeiro lugar há que averiguar se o acórdão padece de algum vício.
O Ministério Público refere-se a uma insuficiência da matéria de facto.
Se se considerar o que alega para afirmar que o acórdão enferma de “vício de insuficiência da matéria de facto” é manifesto que não se situa no contexto e quadro de funcionamento dos vícios da decisão, elencados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, designadamente do vício da alínea a) – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Com efeito, o que pretende é impugnar que o tribunal tenha dado por provado que o arguido destinasse a seu exclusivo consumo o haxixe apreendido.
E isto por se ter baseado, para dar esse facto por provado, exclusivamente nas declarações do arguido sem apurar outros factos que permitissem aferir da credibilidade das suas declarações, nesse aspecto (v. g. rendimento mensal do arguido, para saber se tinha condições para gastar de uma só vez € 120,00 na compra de haxixe e manter condições de subsistência).
Ou seja, o Ministério Público quer-se referir a uma insuficiência da prova para dar esse facto por provado e não a uma insuficiência que decorra da omissão de pronúncia sobre factos relevantes para a decisão da causa que tenham sido alegados ou que decorram da discussão.
Se queria impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, quanto a esse concreto ponto, deveria ter estruturado o recurso nos termos impostos por lei. Não o tendo feito, prejudicou irremediavelmente a possibilidade de este tribunal conhecer amplamente da decisão em matéria de facto.
O Ministério Público alude, ainda, ao facto de o tribunal ter fundamentado a sua convicção no relatório social mas sem referir como o valorizou, sem que, desta alegação, extraia qualquer consequência.
Fica-se sem saber se com essa alegação ainda quer servir a sustentação do invocado vício “de insuficiência da matéria de facto” ou se com ela quer criticar a fundamentação da decisão, por inobservância do disposto no artigo 374.º, n.º 2, último segmento, do CPP, embora sem expressa arguição da nulidade da decisão.
A apontada omissão não serve para efeitos de consubstanciar o vício da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP a que, afinal, o Ministério Público não se refere, como vimos.
Encarada sob a perspectiva da falta do seu exame crítico, e sem prejuízo de o Ministério Público não arguir a nulidade da decisão, com base nela, essa omissão não é de molde a afectar o valor da fundamentação da decisão de facto, no segmento da explicitação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Antes de mais, porque o relatório do IRS releva nos termos do artigo 370.º do CPP e não para a decisão da questão da culpabilidade (artigo 368.º do CPP).
Mas ainda porque a convicção do tribunal relativa aos factos provados, especialmente quanto ao facto de o arguido destinar o haxixe a seu exclusivo consumo, mostra-se suficientemente esclarecida na motivação da decisão, permitindo apreender o processo que levou o tribunal a dá-lo como provado – as declarações do arguido e a apreensão fortuita do produto no âmbito de diligência alheia a investigação relativa a tráfico de estupefacientes.
3.2. Não procedendo a impugnação, na perspectiva dos vícios ou das nulidades da decisão, e não se detectando vícios ou nulidades de que cumpra oficiosamente conhecer (artigo 410.º, n. os 2 e 3, do CPP), temos a matéria de facto fixada na decisão recorrida por definitivamente assente, devendo a questão da qualificação jurídica dos factos ser resolvida no quadro dos factos dados por provados.
3.2.1. O crime de tráfico de estupefacientes, em qualquer das suas modalidades, é um crime de perigo abstracto, pelo que não se exige, para a sua consumação, a existência de um dano real ou efectivo; o crime consuma-se com a simples criação de perigo para o bem jurídico protegido – a saúde pública.
Por isso, entre as inúmeras modalidades de preenchimento do tipo, o legislador prevê a mera detenção, não exigindo a prova de que a droga detida se destine à venda ou cedência a terceiro, a qualquer título.
Dispõe o artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 («Tráfico e outras actividades ilícitas»): «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.»
E o artigo 25.º do mesmo diploma («Tráfico de menor gravidade»): «Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
«a) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;
«b) Prisão até dois anos ou multa até 240 dias no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.»
Respeitava o artigo 40.º, para que os artigos 21.º e 25.º remetem, ao cultivo, aquisição ou detenção de droga para consumo pessoal.
Assim, o preenchimento do tipo base (artigo 21.º) ou do tipo privilegiado (25.º) requeria a prova de que a detenção da droga não se destinava a consumo pessoal. Só a detenção de droga que não se destinava a consumo pessoal do agente preenchia o crime de tráfico de estupefacientes.
Por isso, a finalidade com que o arguido detinha a droga devia ser sempre averiguada e esclarecida pelo tribunal. Afirmou-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.09.00 (Proc. n.º 502/99) [Citado no acórdão do mesmo Tribunal de 14 de Maio de 2003 (Proc.º n.º 871/2003, 3.ª secção), publicado e comentado na Revista do Ministério Público, n.º 95, p.121 e ss.]:
«À acusação, tal como em outros tipos de crimes, cabe procurar carrear para o processo todos os elementos constitutivos da infracção. Claro que será normalmente o arguido a invocar que o destino da droga era o seu consumo pessoal e não o do tráfico. Não tem, porém, qualquer ónus de prova sobre esse ponto – até porque não se pode falar, em rigor, de ónus da prova em processo penal [Neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, pp. 211 e ss., onde afirma “... não existe aqui (no processo penal, entenda-se), ... qualquer verdadeiro ónus da prova que recaia sobre o acusador ou o arguido”] - tudo vindo a depender do conjunto de elementos que são levados ao julgamento, no qual o juiz não se remete ao papel passivo de árbitro mas tem o dever de oficiosamente instruir e esclarecer os factos sujeitos a julgamento. Subsistindo, no final, dúvidas sobre o destino da droga, o tribunal tem de fazer reverter esse estado de dúvida, de acordo com o princípio in dubio pro reo, em favor deste.»
3.2.2. A Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro [Que entrou em vigor no dia 1 de Julho de 2001], veio romper com uma tradição punitiva que identificava o consumo de droga como crime, ao determinar que o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, constituem contra-ordenação (artigo 2.º, n.º 1).
Todavia, o n.º 2 do mesmo artigo parece consagrar uma presunção inilidível de tráfico ao prescrever que «para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias».
Escreve, a propósito, Rui Pereira [«A descriminação do consumo de droga», Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pp. 1169-1170]:
«Constata-se, deste modo, que o legislador delimita o consumo de droga através da técnica legislativa própria dos crimes de perigo abstracto. Se alguém dispuser de determinada quantidade de droga – mesmo que se destine integralmente ao consumo por ser um “consumidor previdente” -, será punido ipso facto como traficante, bastando, para tanto, que saiba que possui essa droga (...) e independentemente de se comprovar sequer que houve o perigo de a droga ser transmitida a um terceiro, criando o risco de consumo alheio (como se exigiria num crime de perigo concreto).
«Ora, sem pôr em causa a legitimidade desta técnica em geral (...), deve aceitar-se a introdução de uma cláusula de “exigência mínima” que afaste a punição (por exclusão da tipicidade), quando a defesa conseguir provar que estava completamente fora de causa a possibilidade de transmissão a terceiros (-).
«(...)
«Refira-se ainda que a atribuição do “ónus da prova”, nestes casos, à defesa não promove uma inversão desse “ónus” nem subverte o princípio do acusatório. A admissibilidade de a defesa provar que não seria possível criar perigo num crime de perigo abstracto corresponde a uma verdadeira redução teleológica do âmbito de protecção da norma incriminadora, ditada por princípios constitucionais e pela adequada compreensão das necessidades de tutela dos bens jurídicos.»
Mas a lei não contempla, actualmente, um tal crime de perigo abstracto, mas apenas crimes de tráfico propriamente ditos. O legislador da Lei n.º 30/2000 não criou um crime de perigo abstracto (tipificando positivamente a conduta) apenas delimitou negativamente o ilícito de mera ordenação social.
3.2.3. A intenção do legislador da Lei n.º 30/2000 foi a de dar um tratamento mais benevolente ao consumo de estupefacientes, não sendo razoável admitir que uma lei descriminalizadora, que intenta um regime mais favorável para os consumidores, pretenda que qualquer ultrapassagem do «tecto estabelecido» [Os limites quantitativos máximos de princípio activo para cada dose média individual diária das drogas de consumo mais frequente, a que se refere o artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 15/93, foram estabelecidos pela Portaria n.º 94/96, de 26 de Março (artigo 9.º e mapa anexo), cujo valor probatório é apreciado nos termos do artigo 163.º do CPP (artigo 71.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 15/93)] (quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias) determine o tratamento jurídico de consumidores como traficantes, deixando de salvaguardar todas as situações de consumo, independentemente da quantidade detida, como anteriormente se acautelava (pelo artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93) [No sentido da criminalização pelo tráfico, ver Artur Matias Pires, «Ainda sobre o novo regime sancionatório da aquisição e detenção de estupefacientes para consumo próprio», Revista do Ministério Público, n.º 93, p. 113 e ss.].
Por isso, já se ensaiaram diversas soluções no sentido de afastar a punição, pelo artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, do consumidor que detenha, para consumo, uma quantidade de droga superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Uma interpretação restritiva do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000 [Solução que a relatora já defendeu no acórdão de 13 de Março de 2002, no recurso n.º 1531/2001]. Onde as palavras parecem apontar para um completo desaparecimento do artigo 40.º (com a excepção do cultivo), deve entender-se que este continua a reger os casos de consumo, aquisição e detenção de quantidade superior à que, de acordo com a Portaria n.º 94/96, é a necessária para o consumo médio individual durante 10 dias, por só o recurso a uma interpretação restritiva do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000 permitir obter um resultado satisfatório do ponto de vista lógico e político-criminalmente fundado [Neste sentido, cfr. Eduardo Maia Costa, «Breve nota sobre o novo regime punitivo do consumo de estupefacientes», Revista do Ministério Público, Ano 22, Jul/Set 2001, n.º 87, p. 47 e ss. (com posição, entretanto, revista) e Cristina Líbano Monteiro, «O consumo de droga na política e na técnica legislativas: comentário à Lei n.º 30/2000», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 11, Fasc. 1.º, Janeiro-Março de 2001, p. 67 e ss.].
A interpretação de remeter o n.º 2 do artigo 2.º para uma função meramente indicativa ou orientadora para o aplicador na distinção entre tráfico e consumo, ou seja, o tecto das 10 doses terá uma função meramente indiciária mas não vinculativa, pelo que o regime de mera ordenação social seria ainda aplicável nos casos de consumo, aquisição e detenção para consumo de quantidade de droga superior à necessária para 10 doses médias individuais [Neste sentido, Lourenço Martins, «Droga – Nova Política Legislativa», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 11, Fasc. 3.º, Julho-Setembro de 2001, p. 413 e ss., nota 27, Inês Bonina, «Descriminalização do consumo de estupefacientes – detenção de quantidade superior a dez doses diárias», Revista do Ministério Público, n.º 89, p. 185 e ss., Eduardo Maia Costa, revendo a posição inicial, em comentário ao acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 14 de Maio de 2003, Revista do Ministério Público, n.º 95, p. 121 e ss.].
Estas duas soluções são criticadas por Rui Pereira [Ob. cit., pp. 1171 e ss.], por contrariarem o princípio da legalidade.
A solução de punir pelo artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, desconsidera a revogação da norma (excepto quanto ao cultivo) pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000 e a aplicação de norma incriminadora revogada viola directamente o princípio nullum crimen sine lege.
A aplicação do regime de mera ordenação social confronta-se com o n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, o qual estipula que «para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio ... não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias».
Chegando, por isso, à solução de reconhecer que há um vazio sancionatório «que aconselha vivamente uma rápida e pontual intervenção legislativa no sentido de se colocar em vigor uma norma idêntica ao n.º 2 do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93».
«Com efeito, o artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93 refere-se ao tráfico (de menor gravidade) e não ao consumo, ou à aquisição ou detenção para o consumo ou ao perigo de consumo alheio. Esta conclusão é imposta pela inequívoca epígrafe do artigo 25.º e também pela expressa remissão para os artigos 21.º e 22.º do Decreto-Lei n.º 15/93 (que prevêem o “tráfico e outras actividades ilícitas” distintas do consumo, o qual é considerado em normas autónomas, no âmbito do artigo 40.º).»
«O logro que conduz à aplicação, no caso descrito [Refere-se à detenção para consumo de droga em quantidade superior à referida no n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 30/2000], do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93 resulta do entendimento (implícito) de que as fronteiras da tipicidade do crime de tráfico são fixadas pelo n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000. Na verdade, a norma apenas traça a fronteira do ilícito de mera ordenação social, não podendo valer como elemento do tipo de crime de tráfico, contra o que resulta do próprio artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93.»
3.2.4. A solução defendida pelo recorrente, de subsumir a conduta ao crime de tráfico de estupefacientes, do artigo 21.º ou do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, por a quantidade detida ultrapassar a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, tendo-se como assente que a quantidade detida se destinava exclusivamente ao consumo pessoal do arguido, não se nos afigura sustentável.
Os artigos 21.º e 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93 referem-se ao tráfico de estupefacientes e não à detenção de estupefacientes para consumo. Esta conclusão é imposta pela epígrafe dos artigos e também pela inequívoca descrição dos comportamentos típicos. As condutas só são típicas se as modalidades de conduta, designadamente a compra e a detenção, não couberem no artigo 40.º (fora dos casos previstos no artigo 40.º), quer dizer, se os produtos comprados e/ou detidos não se destinarem a consumo pessoal.
O facto de o legislador não ter criado um crime de perigo abstracto de consumo não autoriza que se veja no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 30/2000, a tradução da tipicidade de tal crime (detenção para consumo de quantidade superior às 10 doses) porque a norma apenas releva para a definição do ilícito de mera ordenação social.
A punição de quem detenha droga para consumo em quantidade superior à referida no n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, pelos crimes do artigo 21.º ou do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, só pode resultar de uma aplicação analógica de normas incriminadoras, expressamente proibida pelo artigo 29.º, n. os 1 e 3, da Constituição. E, de resto, nem sequer existe analogia (paridade de razões) entre o tráfico e a posse de droga para consumo, ainda que em quantidade superior à necessária para 10 dias, no sentido do artigo 10.º, n. os 1 e 2, do Código Civil: as razões justificativas da punição do tráfico não são precisamente idênticas às razões que podem justificar a criação do crime de perigo abstracto [Rui Pereira, ob e loc. cit., p. 1172, e a expressão da nossa concordância com a declaração de voto aposta no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 295/03, de 12 de Junho].
Neste entendimento, não pode proceder o recurso, enquanto visa, não obstante dever ter-se como facto assente que o arguido destinava o produto a seu exclusivo consumo, a sua condenação pelos crimes de tráfico do artigo 21.º ou do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93.
3.2.5. E também não nos merece qualquer censura a absolvição do arguido da prática de qualquer ilícito penal, o que importa a revisão de posição anterior, que já defendemos, de uma interpretação restritiva do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000.
Hoje, após uma maior reflexão que o período de vigência da Lei permite, não nos parece que a interpretação restritiva do artigo 28.º, observe os factores hermenêuticos de interpretação.
Como já dissemos, a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, veio romper com uma tradição punitiva que identificava o consumo de droga como crime, ao determinar que o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, constituem contra-ordenação (artigo 2.º, n.º 1), no reconhecimento implícito de que a prática legislativa da criminalização não só não logrou êxitos na redução do consumo como comportava indesejáveis efeitos criminógenos.
Por outro lado, revogou o artigo 40.º da Lei n.º 15/93 que previa e punia como crime o consumo de estupefacientes.
O Estado não renunciou, contudo, ao controlo e punição da conduta.
Confiou o controlo a outro sistema que não o sistema penal, um sistema alternativo de controlo social – o direito de mera ordenação social -, que constitui um sistema repressivo distinto do direito penal mas que se fundamenta na prática de um facto que, não atingindo a dignidade penal, é ilícito e censurável.
Tenha-se presente, ainda, que o consumo constitui facto ilícito censurável, quer se trate de consumo ocasional (consumidor não toxicodependente) quer se trate de verdadeira toxicodependência,
Mas foi, claramente, intenção do legislador dar um tratamento mais benevolente ao consumo de estupefacientes, encarando-o primacialmente como doença. É a todo o consumo e a todos os consumidores, especialmente os mais dependentes, que a lei se dirige, radicando um dos seus aspectos mais positivos na prevalência do tratamento dos consumidores toxicodependentes, presente em várias normas.
Permanece, é certo, o facto de o n.º 2 do artigo 2.º fixar o limite da quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Mas se a intenção do legislador da Lei n.º 30/2000 foi a de dar um tratamento mais benevolente ao consumo de estupefacientes, não é razoável admitir que uma lei descriminalizadora, que intenta um regime mais favorável para os consumidores, deixe de salvaguardar todas as situações de consumo, independentemente da quantidade detida, como anteriormente se acautelava (pelo artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93).
Aliás, no projecto que serviu de fonte remota à Lei n.º 30/2000 não se previa nenhum limite à quantidade de droga para consumo, considerando-se simplesmente contra-ordenação o consumo (e a aquisição ou detenção para consumo), independentemente da quantidade de droga que estivesse em causa [Como informa Rui Pereira, ob. cit., pp. 1171 e 1172 e nota 2].
Entendemos, portanto, ser fundada uma interpretação que não atribua ao n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000 uma função vinculativa, que arrede do ilícito de mera ordenação social as situações de consumo e de aquisição ou detenção de droga para consumo em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, mas lhe reserve uma função meramente indicativa ou orientadora. Ou seja, nestas situações é, ainda, aplicável a Lei n.º 30/2000, desde que se prove que a droga se destinava a exclusivo consumo [Remetemos, neste ponto, para as notas 8 e 12]/[No mesmo sentido, cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28/09/2005, recentemente publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ac. STJ, Tomo III, 2005, p. 170 e ss.].
A não ser assim, ter-se-á de chegar à conclusão de que existe, efectivamente, uma lacuna sancionatória, por erro legislativo.
Daí que não nos mereça censura a solução do acórdão recorrido de, no entendimento de que a conduta do arguido integra a prática da contra-ordenação p. e p. pelo artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, remeter certidão do acórdão à entidade competente, nos termos do artigo 5.º dessa Lei.
III
Termos em que, negamos provimento ao recurso e confirmamos o acórdão recorrido.
Sem tributação.
Honorário à Exm. defensora, nomeada em audiência, neste tribunal, de acordo com o ponto 6 da tabela anexa à Portaria nº 1386/2004, de 10 de Novembro, e sem prejuízo do disposto no artigo 5, nº 1, da mesma.
Porto, 10 de Maio de 2006
Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro (Vencido pelas razões que seguem: porquanto entendo que a detenção de produtos estupefacientes para consumo, cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de 10 dias, deve ser sancionada como um ilícito criminal, seja por via do art. 21.º, seja por via do art. 25.º, se estiverem reunidos os respectivos pressupostos, seja por via do art. 26.º, todos do D/L n.º15/93, pelas razões constantes do acórdão deste tribunal e secção, de 22 de Outubro de 2003, Rec. n.º2387 (A), que aqui dou por inteiramente reproduzidas, sendo certo que o entendimento perfilhado neste acórdão havia, em data anterior, sido considerado não inconstitucional pelo TC, no AC. de 12 de Junho de 2003, processo n.º776/2002, 2.ª secção.)
José João Teixeira Coelho Vieira
Arlindo Manuel Teixeira Pinto