NEGÓCIO CONSIGO MESMO
SOCIEDADES EM RELAÇÃO DE GRUPO
ADMINISTRADOR
NULIDADE DO CONTRATO
SOCIEDADE ANÓNIMA
CONFLITO DE INTERESSES
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
Sumário


A nulidade dos contratos cominada no n.º 2 do art. 397.º do CSC refere-se aos negócios que não correspondam ao exercício da actividade normal da sociedade, ou que, correspondendo, proporcionem uma vantagem especial ao administrador, face a outras pessoas que se encontrem em situação contratual análoga.

Texto Integral









PROC. N.º 2976/18.2T8LRA.C1.S1
6ª SECÇÃO (CÍVEL)
REL. 168[1]

                                                           *

  ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

“Sabril –Sociedade de Areias e Britas, Lda.,” interpôs acção declarativa de condenação contra Adelino Duarte da Mota SA (“ADM”), Mota Pastas Cerâmicas SA (“Mota Pastas”), Mota Mineral Industriais SA (“Mota Mineral”), Mota II Soluções Cerâmicas SA (“Mota II”) e Felmica Minerais Industriais SA (“Felmica)”, pedindo que, seja:

a) A 1ª Ré condenada a pagar-lhe o valor de 511.121,14 €, acrescido dos juros vincendos, contabilizados até efectivo e integral pagamento;

b) A 2ª Ré condenada a pagar-lhe o valor de 1.128,65 €, acrescido dos juros vincendos, contabilizados até efectivo e integral pagamento;

c) A 3ª Ré condenada a pagar-lhe o valor de 115.308,04 €, acrescido dos juros vincendos, contabilizados até efectivo e integral pagamento;

d) A 4ª Ré condenada a pagar-lhe o valor de 2.944,02 €, acrescido dos juros vincendos, contabilizados até efectivo e integral pagamento;

e) A 5ª Ré condenada a pagar-lhe o valor de 40.789,02 €, acrescido dos juros vincendos, contabilizados até efectivo e integral pagamento.

Alegou, em síntese, o seguinte:

- No âmbito das respectivas actividades comerciais, foi estabelecida uma relação de parceria entre a Autora e as Rés (que se encontram em relação de grupo), através da qual aquela fornecia a estas caulinos, barros e argilas, prestando-lhes igualmente serviços de transporte, e as Rés prestavam à Autora serviços de transporte, armazenagem e de máquinas, fornecendo-lhe também inertes;

- Em função dessas relações a Autora é credora de cada uma das Rés dos valores acima indicados nas várias alíneas dos pedidos;

- Sucede que, em 19.10.2017, as Rés comunicaram à Autora a suspensão de todos os fornecimentos e prestação de serviços, bem como a suspensão generalizada dos pagamentos das facturas emitidas e enviadas, invocando o início de uma auditoria forense no âmbito da gestão do grupo Mota;

- Comunicaram ainda, depois da interpelação para pagamento que a Autora dirigiu a cada uma delas, que o respectivo Grupo é credor da Autora e dos seus beneficiários efectivos, em função de uma prática reiterada de desvio de bens, oportunidades de negócio, segredos industriais e recursos materiais e humanos do Grupo Mota;

- Na sequência destes factos, a Ré Mota Mineral intentou contra a Autora uma acção de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos dolosos, que corre termos com o n.º 1871/18….., reclamando os prejuízos pela subtração de matérias primas e equipamentos, processo esse que se insere num plano engendrado e perpetrado pela O........, S.A., que controla a sociedade veículo A......SA, sociedade que, por sua vez, controla a CCM e as participadas, pretendendo atacar e perseguir, AA, accionista detentor dos outros 50% do capital social da CCM, e, hoje, ex-administrador de todas as empresas do Grupo Mota, bem como perseguir todas as pessoas e empresas que com ele se relacionem, para o afastar, e posteriormente vender a empresa e realizar para si a mais valia.

As Rés contestaram, defendendo que o alegado contrato de fornecimento que subjaz às facturas em causa nos autos é nulo, por força do artigo 397º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC), ou, se assim se não considerar, é anulável, nos termos do artigo 261º do Código Civil (doravante CC), por se tratar de um negócio consigo mesmo.

Alega, para tanto, que:

- O referido AA, ao mesmo tempo que exercia o cargo de administrador das Rés, utilizou os seus genros – BB e CC – para ocultar que era o verdadeiro dono e gerente da Autora e instrumentalizou-a para efectuar diversos desvios de matéria-prima e materiais pertencentes às Rés – em particular, à Ré Mota Mineral, com isso tendo-lhe causado prejuízos no valor de 1.891.434,00 €;

- Até 02.10.2017, o AA e a sua filha DD eram membros do Conselho de Administração da CCM e das Rés, mas os mesmos, por deliberação unânime das Assembleias Gerais das Rés, datada de 29.09.2017, foram destituídos com justa causa, tendo sido decretada em 02.10.2017 a suspensão judicial de ambos do Conselho de Administração das Rés, tendo esta decisão sido confirmada por sentença de 19.05.2018;

- Tal destituição veio a suceder em função dos seguintes factos: 

No decurso de uma Auditoria Forense Independente apurou-se que AA é dono e beneficiário efectivo da W...... e da Autora, actuando os seus genros como testas de ferro. Com efeito, no decurso dessa auditoria, em 02.10.2017, foi encontrada uma pasta nos escritórios da ADM com os originais dos títulos de acções ao portador representativos do capital social da W......, no cofre da ADM, situado no gabinete de AA, bem como, minuta do livro de registo de acções da W......, no qual se consignam as transmissões realizadas com as acções representativas da totalidade do capital social da W...... dos genros de AA para este, transmissão que aconteceu poucos dias depois da constituição dessa sociedade. Acresce que o referido AA assumiu o risco empresarial da Sabril quando em 15.07.2015 prestou fiança com beneficio de excussão prévia a favor dela, no montante de um milhão e setecentos euros, sendo que em 01.07.2014 avalizara quatro letras da mesma no valor total de um milhão de euros, sucedendo ainda que o mesmo se apresenta pública e comercialmente associado à actividade da A., especialmente para efeitos de angariação de clientela e tratando de aspectos operacionais, financeiros e administrativos da gestão das empresas do grupo.

Terminaram as Rés a contestação, deduzindo a 3ª Ré reconvenção, na qual pede que a Autora seja condenada a pagar-lhe o valor acima referido de 1.891,434,00 € em função do qual deverá ser declarada a compensação dos créditos da Autora e da 3º Ré, e que, consequentemente, se reconheça que tal Ré nada deve à Autora, porquanto o seu crédito é superior ao crédito desta.

A Autora deduziu réplica, pondo em causa os factos invocados pelas Rés, referindo que mesmo que a Autora fosse propriedade e administrada pelo ex-administrador, os negócios não seriam nulos, visto o disposto no n.º 5 do artigo 397º CSC. No tocante à reconvenção, que impugna, aduz que os créditos invocados não são compensáveis, e que, de todo o modo, se verifica em relação a tal pedido, a excepção da litispendência, visto que a matéria do pedido reconvencional já se encontra a ser dirimida judicialmente no referido Processo 1872/18….

As Rés, ao abrigo do n.º 3 do artigo 3º do CPC, responderam às excepções, nada alegando de novo.

A fls 873, vº, o pedido reconvencional da 3ª Ré foi reduzido para o montante de 1.413.333,00 €.

Teve lugar audiência prévia, na qual se fixou o valor da causa em 2.562.724,87 €, e se julgou admissível a reconvenção, mas considerou-se verificada a excepção de litispendência relativamente à mesma, absolvendo-se a Autora da instância reconvencional, tendo ainda sido fixados o objecto do litígio e os temas de prova.

As Rés interpuseram apelação da decisão que julgou procedente a excepção dilatória da litispendência, recurso que foi admitido a subir em separado, e que se encontra já decidido, tendo sido julgado improcedente.

Iniciada a audiência de julgamento, as Rés deduziram articulado superveniente, e com ele juntaram documentos, a que a Autora respondeu, pugnando pela sua inadmissibilidade e pela condenação das RR. como litigantes de má-fé em indemnização na quantia de 1.000,00 €.

Foi indeferido o articulado superveniente, mas admitida a junção aos autos dos documentos que o acompanhavam.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção procedente, condenando-se: a 1.ª Ré a pagar à Autora a quantia de 511.121,14 €, acrescida dos juros vincendos, contabilizados até efectivo e integral pagamento; a 2.ª Ré a pagar à Autora a quantia de 1.128,65 €, acrescida dos juros vincendos, contabilizados até efectivo e integral pagamento; a 3.ª Ré a pagar à Autora, a quantia de 115.308,04 €, acrescida dos juros vincendos, contabilizados até efectivo e integral pagamento; a 4.ª Ré a pagar à Autora, a quantia de 2.944,02 €, acrescida dos juros vincendos, contabilizados até efectivo e integral pagamento; a 5.ª Ré a pagar à Autora a quantia de 40.789,02 €, acrescida dos juros vincendos, contabilizados até efectivo e integral pagamento.

A mesma sentença absolveu as Rés do pedido de condenação como litigantes de má-fé.

As Rés apelaram, mas a Relação ….. confirmou o julgado, “ainda que com fundamentos não coincidentes com os nele utilizados”.

Continuando inconformadas, apresentaram as Rés recurso de revista normal, pedindo subsidiariamente a admissão da revista excepcional.

Rematam as respectivas conclusões do seguinte modo:

1. O presente recurso vem interposto do Acórdão Recorrido proferido pelo Tribunal da Relação …. em15.06.2020, no qual julgou improcedente o recurso apresentado pelas Recorrentes, confirmando assim, ainda que com fundamentos essencialmente diferentes, a Sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância e condenado as Recorrentes a pagar à Recorrida o montante total de € 671.290,87, acrescido de juros.

2. Encontram-se verificados todos os requisitos para a interposição do presente recurso de revista, nos termos e para os efeitos dos artigos 671.º, n.º 1 e 674.º, n.º 1, alínea a) do CPC.

3. Não estamos perante uma situação de “dupla conforme”, nos termos e para os efeitos do artigo 671.º, n.º 3 do CPC. De acordo com o mencionado preceito, a chamada “dupla conforme”encontra-se dependenteda verificaçãodetrês requisitos: (i)ausência devoto vencido; (ii) conformidade decisória; e (iii) conformidade essencial da fundamentação.

4. No caso sub judice, não se encontra preenchido o requisito da “conformidade essencial da fundamentação”, porquanto resulta evidente do próprio Acórdão Recorrido que estamos perante um caso em que a fundamentação constante deste é fundamentalmente distinta da constante na Sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.

5. Basta uma mera leitura do Acórdão Recorrido e da Sentença para se concluir que estamos perante um caso em que a fundamentação constante das duas decisões é fundamentalmente distinta, sendo esta uma situação que se subsume ao conceito de fundamentação essencialmente diferente, tal como entendida pela doutrina e jurisprudência unânimes – vd. doutrina e jurisprudência sobre o conceito de fundamentação essencialmente distinta supra citada.

6. O próprio Tribunal da Relação …… assim o afirma, sem margem para dúvidas, no Acórdão Recorrido.

7. Por um lado, existe uma clara novidade na argumentação do Acórdão Recorrido proferido pelo Tribunal a quo, utilizando um enquadramento factual distinto e decisivo, que levou à utilização de novos argumentos jurídicos, afastando-se, de forma clara, da fundamentação jurídica da Sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância.

8. Por outro, o Acórdão Recorrido proferido pelo Tribunal a quo não se limita: (i) a complementar a fundamentação jurídica proferida na Sentença; (ii) a reforçar a argumentação constante da mesma; (iii) a introduzir alterações meramente secundárias, marginais, periféricas ou de estilo; e (iv) a fazer uma alteração da fundamentação jurídica sem qualquer impacto no silogismo judiciário utilizado pelo julgador.

9. Assim, é forçoso concluir que não estamos perante uma situação de “dupla conforme”, porquanto estamos perante duas decisões com fundamentações essencialmente distintas e, como tal, o presente recurso é plenamente admissível, nos termos e para os efeitos dos artigos 671.º, n.º 1 e 674.º, n.º 1, alínea a) do CPC.

10. Ora, as Recorrentes não se conformam com o teor do Acórdão Recorrido, pelo que estas consideram que este deve ser revisto no sentido da sua absolvição integral do pedido condenatório formulado pela Recorrida, porquanto as faturas a que respeitam os presentes autos emergem de fornecimentos realizados pela Recorrida às Recorrentes que são nulos com fundamento no artigo 397.º, n.º 2 do CSC.

11. Conforme resultou expressamente provado no Acórdão Recorrido, estamos perante um caso em que o administrador das Recorrentes à data dos factos (Sr. AA), aproveitando-se dessa situação, fomentou relações comerciais com a Recorrida, sociedade que era detida por si de forma oculta. Estamos perante um caso inequívoco de negócio consigo mesmo stricto sensu, por interposta pessoa, sancionado pelo artigo 397.º, n.º 2 do CSC.

12. E trata-se de um caso de negócio consigo mesmo particularmente iníquo, dado que o Sr. AA agiu de forma dissimulada e sub-reptícia, ocultando que era dono e beneficiário efetivo de um grupo paralelo de empresas, entre as quais a Recorrida.

13. Como veremos, a matéria de facto considerada provada no Acórdão Recorrido implica inequivocamente a aplicação da sanção prevista no artigo 397.º, n.º 2 do CSC, ou seja, a declaração de nulidade dos fornecimentos prestados pela Recorrida às Recorrentes.

14. Nas situações de negócio consigo mesmo, o risco de atuação em conflito de interesses é tão elevado, que o legislador optou por afetar a validade dos negócios jurídicos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, diretamente ou por pessoa interposta, sem a necessidade de prova da existência de uma efetiva atuação prejudicial, nem da ocorrência de um dano – vd. doutrina de INOCÊNCIO GALVÃO TELES,RAUL GUICHARD,PEDRO DE ALBUQUERQUE,ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO,JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO e PEDRO CAETANO NUNES supra citadas.

15. A intenção do legislador nas situações de negócio consigo mesmo foi esta: consagrar uma antecipação da tutela nas situações em que o risco de atuação do administrador em conflito de interesses é mais elevado – vd. trabalhos preparatórios do Código Civil, RUI DE ALARCÃO supra citados.

16. A doutrina de referência acompanha a intenção do legislador – vd. doutrina de ADRIANO VAZ SERRA, GALVÃO TELES, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO E RAUL GUICHARD, CATARINA BRANDÃO PROENÇA E ANA TERESA RIBEIRO supra citadas.

17. A sanção da nulidade é apenas afastada quando a sociedade aprova a transação, por intermédio do conselho de administração e do conselho fiscal, pois se houver aprovação deixa naturalmente de existir o mencionado risco de atuação do administrador em conflito de interesses – vd. artigo 397.º, n.º 2, parte final do CSC.

18. Refira-se ainda que caso estivéssemos perante preços tabelados, o que não é o caso, também, não existiria qualquer risco de conflito de interesses, porquanto tais negócios, pela sua própria natureza, excluem tais conflitos. Nesses casos, em abstrato, não é possível que haja prejuízo – vd. doutrina de VAZ SERRA e COUTINHO DE ABREU supra citadas.

19. Em contraponto, em todas as situações em que o preço pode ser negociado, existe o mencionado risco de conflito de interesses muito elevado, operando a sanção legal de nulidade.

20. Existem em rigor duas modalidades de negócio consigo mesmo que constituem o núcleo essencial do artigo 397.º, n.º 2 do CSC: o negócio consigo mesmo stricto sensu, em que o administrador atua em nome da sociedade e é, direta ou indiretamente (por interposta pessoa), contraparte nesse negócio jurídico; e a co-representação, em que o administrador, apesar não atuar em nome da sociedade (pois é um outro administrador que age em nome da sociedade), é, direta ou indiretamente (por interposta pessoa), contraparte no negócio jurídico.

21. Para a aplicação da sanção prevista no artigo 397.º, n.º 2 do CSC o que importa é que o administrador seja, direta ou indiretamente (por interposta pessoa), contraparte no negócio jurídico, independentemente de atuar ou não em representação da sociedade. Ou seja, o que releva é o facto de o administrador ser contraparte no negócio jurídico.

22. É este o entendimento unânime da doutrina quanto ao conceito de negócio consigo mesmo – vd. doutrina de CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, LUIS A. CARVALHO FERNANDES, RAUL GUICHARD, CATARINA BRANDÃO PROENÇA, ANA TERESA RIBEIRO, ANA PRATA, ANTUNES VARELA E PIRESDE LIMA, RUI DE ALARCÃO, ADRIANO VAZ SERRA e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO.

23. A jurisprudência aponta no mesmo sentido – vd. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.02.2009; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 05.02.2009 e de 29.06.2015; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.02.2012; e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19.06.2008, supra citados.

24. Estamos perante um caso claro de aplicação do artigo 397.º, n.º 2 do CSC, na medida em que o Sr. AA era (ocultamente) detentor e beneficiário efetivo da Recorrida. Logo, sendo dono da Recorrida, era contraparte no negócio jurídico em causa, ainda que o fosse indiretamente.

25. Com a devida vénia, as instâncias incorreram num evidente lapso de enquadramento jurídico, discutindo a dupla representação, quando estamos perante um caso nuclear e inequívoco de negócio consigo mesmo, pois está provado que o Sr. AA era, de forma oculta, o detentor e beneficiário efetivo da Recorrida, sendo a verdadeira contraparte no negócio jurídico.

26. O acórdão sob apreciação colide – seguramente por mero lapso – com a jurisprudência firmada no Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES de 17.12.2018 supra citado.

27. O princípio da proibição da celebração de negócios entre o administrador e a sociedade previsto no artigo 397.º, n.º 2 do CSC abarca os negócios jurídicos celebrados entre a sociedade e o administrador, seja diretamente, seja indiretamente – por interposta pessoa. A letra do artigo 397.º, n.º 2 do CSC refere-se expressamente à “pessoa interposta”.

28. A referência à interposição de pessoas traz consigo a questão de saber em que casos é que se pode considerar que o representado surge como contraparte por interposta pessoa. Joga-se a interpretação do artigo 397.º, n.º 2 do CSC e, em particular, da expressão legal “por pessoa interposta”.

29. Há já algum tempo que a Doutrina defende, de forma unânime, que o conceito de interposta pessoa deve incluir todos os entes jurídicos que o sujeito possa influenciar diretamente, isto é, deverá incluir, entre outros, os trusts, as sociedades e outras pessoas coletivas que o administrador domine – vd. doutrina de COUTINHO DE ABREU, NUNO TIAGO TRIGO DOS REIS, JOSÉ FERREIRA GOMES, J. SOUSA GIÃO, ALEXANDRE SOVERAL MARTINS e PEDRO CAETANO NUNES supra citadas.

30. O critério de imputação deverá ser a detenção de uma participação social que possibilite o controlo da sociedade, trust ou pessoa coletiva.

31. Se, historicamente, a interposição de pessoas era essencialmente operada através de familiares, hoje em dia joga-se sobretudo a utilização de trusts, sociedades comerciais e outras pessoas coletivas. De facto, a realidade sociológica documenta uma crescente utilização de sociedades-veículo e outras entidades para tentar contornar a aplicação da lei. Ora, quer umas, quer outras são relevantes para efeitos de interpretação do conceito de “por pessoa interposta” previsto no artigo 397.º, n.º 2 do CSC.

32. No presente caso, é claro que estamos perante um caso de interposição de pessoas, uma vez que o Sr. AA, era detentor e beneficiário efetivo da W......, que, por sua vez, detinha 100% da Recorrida – vd. págs. 48 a 55 e ponto a) a c) da matéria de facto considerada não provada na Sentença e que foi considerada provada pelo Venerando Tribunal da Relação ….. no Acórdão Recorrido.

33. O Sr. AA era sempre o verdadeiro beneficiário dos negócios jurídicos entre as Recorrentes e a Recorrida, porquanto era ele que estava, ocultamente, por detrás da Recorrida, influenciando-a diretamente e pronto para receber os dividendos e outras vantagens resultantes desses negócios.

34. Em termos mais práticos: no final do dia, o dinheiro eventualmente pago pelas Recorrentes à Recorrida iria parar aos “bolsos” do Sr. AA.

35. Com o devido respeito, o Tribunal a quo não se apercebeu que estamos perante um caso nuclear de aplicação do artigo 397º, n.º 2, do CSC, na medida em que o Sr. AA era, de forma indireta (por interposta pessoa), contraparte nesse negócio, e não perante uma mera situação de dupla representação, em que apenas se discutiria se o Sr. AA agiu simultaneamente em representação da Recorrente e da Recorrida, e / ou de meros administradores comuns.

36. Na dupla representação, o administrador age como representante da sociedade e simultaneamente como representante da contraparte no negócio jurídico. Mas não é ele próprio, direta ou por interposta pessoa, a dita contraparte no negócio jurídico, tal como acontece no presente caso em que estamos perante um caso evidente de negócio consigo mesmo.

37. Para além disso, não estamos, também, perante uma situação de meros administradores comuns (interlocking directors), que levaria à não aplicação do artigo 397.º, n.º 2 do CSC. A situação de administradores comuns é uma situação completamente distinta, que fica muito aquém das modalidades de negócio consigo mesmo acima referidas.

38. Ao contrário do entendimento preconizado pelo Tribunal a quo, a verdade é que, tendo em conta a factualidade considerada provada nos autos,os fornecimentos que subjazem às faturas dos autos são nulos por força do artigo 397.º, n.º 2 do CSC, porquanto nos encontramos perante um caso de negócio consigo mesmo, dado que o Sr. AA era indiretamente – por interposta pessoa – contraparte nesses contratos de fornecimento.

39. O Tribunal a quo considerou provados vários factos de interesse para o presente Recurso – vd. os factos 52, 53 e 55 da matéria de facto considerada como provada no Acórdão Recorrido.

40. Apesar desta factualidade considerada provada, o Tribunal a quo – por manifesto lapso no enquadramento jurídico dos factos – considerou que não é possível concluir pela nulidade dos fornecimentos em discussão, porquanto, na sua ótica, não existiu um benefício direto ou mesmo indireto do Sr. AA, tal como é, na sua opinião, exigido pelo artigo 397.º, n.º 2 do CSC.

41. Ora, o núcleo essencial do artigo 397.º, n.º 2 do CSC apenas exige que o administrador seja também, direta ou indiretamente, a contraparte. O facto de ter sido considerado provado que o Sr. AA era dono e beneficiário efetivo da Recorrida implica, por si só, que estejamos perante um negócio consigo mesmo, tal como o legislador pretendeu proibir através do artigo 397.º, n.º 2 do CSC, de forma a punir o elevadíssimo risco de atuação em conflito de interesses.

42. Não é necessário que o Sr. AA tenha intervindo na negociação e celebração dos negócios jurídicos do lado da Recorrida, bastando que ele fosse contraparte, ainda que por interposta pessoa, o que foi manifestamente o caso.

43. O Sr. AA tem interesses do outro lado da transação. Era contraparte do negócio jurídico, pois era detentor e beneficiário efetivo da Recorrida, sem que tal tivesse sido deliberado nos Conselhos de Administração das Recorrentes, nem da sua sociedade mãe (CCM), nem através de parecer favorável dos Conselhos Fiscais das Recorrentes. Não consta dos autos qualquer ata ou parecer!

44. Aliás, era impossível que tivesse havido uma aprovação pelos Conselhos de Administração das Recorrentes, pois o Sr. AA ocultou de todos – incluindo dos Tribunais – que era dono e beneficiário efetivo da Recorrida.

45. Perante a factualidade exposta, estes fornecimentos da Recorrida à Recorrente são nulos à luz do artigo 397.º, n.º 2 do CSC, pois o Sr. AA era contraparte no negócio jurídico, através de interposta pessoa, a Recorrida.

46. Salvo o devido respeito, a decisão do Tribunal a quo viola aquela que foi a intenção do legislador, vai contra a interpretação seguida pela doutrina e, além disso, vai contra jurisprudência uniforme dos tribunais superiores nesta matéria – vd. doutrina e jurisprudência supra citadas.

47. A decisão do Tribunal a quo surge, salvo o devido respeito, de uma configuração jurídica incorreta, porquanto entendeu que a aplicação do artigo 397.º do CSC e do conceito de interposta pessoa exigem que exista um benefício direto do administrador/gerente, ou seja, que nas palavras do Tribunal a quoesses gerentes se tenham obrigado perante ele [AA] a transmitirem-lhe as vantagens resultantes desses negócios”.

48. Não se exige, como entendeu o Tribunal a quo, a prova (diabólica ou mesmo impossível, acrescente-se) de um concreto benefício do Sr. AA. A lei apenas exige que se prove que o Sr. AA era, por interposta pessoa, a contraparte nos fornecimentos. A lei é clara e é expressa.

49. O que espoleta a aplicação do artigo 397.º, n.º 2 do CSC é o facto de o Sr. AA ter sido contraparte do negócio jurídico, por ter sido detentor e beneficiário efetivo da Recorrida. A doutrina e a Jurisprudência Superior são pacíficas, tendo o Tribunal a quo incorrido num manifesto lapso de manuseamento do regime jurídico.

50. Importa, por fim, recordar que os factos essenciais deste processo e que foram considerados provados pelo Tribunal a quo nos pontos 52, 53 e 55 do Acórdão Recorrido foram ocultados pelo Sr. AA aos restantes administradores das Recorrentes e das demais sociedades do Grupo CCM (com exceção da sua filha DD) e, sobretudo, à Justiça.

51. Estamos perante um caso grave de interposição oculta de pessoas, tendo tais factos já sido considerado provados e censurados por várias decisões dos tribunais – vd. Acórdãos do Tribunal da Relação …… de 28.11.2018, 14.01.2020 e 03.02.2019 e Sentenças do Juízo de Comércio ….. de 20.05.2016, 06.08.2018, 19.05.2018 e 05.04.2019, supra citadas.

52. O expoente máximo, que acresce às decisões judiciais referidas supra, e que foram unânimes a condenar a atitude do anterior administrador desleal das Recorrentes, o Sr. AA (e a sua filha DD), é o facto de tais factos terem relevância criminal – vd. Acusação do Ministério Público e Despacho de Pronúncia do Tribunal de Instrução Criminal  …., supra citados.

53. Se existe caso que necessita da proteção dada pelo instituto do negócio consigo mesmo, e das suas consequências ao nível da validade do negócio, previsto no artigo 397.º, n.º 2 do CSC, é o caso dos presentes autos, do qual resulta não só um elevadíssimo risco de conflito de interesses – que por si só já levaria à aplicação da sanção da nulidade do negócio jurídico – mas, também, um conflito de interesses efetivo, que prejudicou as Recorrentes em favor da Recorrida e do seu detentor e beneficiário efetivo, o Sr. AA.

54. Prevenindo a hipótese de se entender que estamos perante uma situação de dupla conforme” que obsta à interposição do presente Recurso de Revista – o que apenas por extrema cautela de patrocínio se equaciona – as Recorrentes vêm interpor, a título subsidiário, Recurso de Revista Excecional – vd. artigos 671.º, n.º 1, 672.º, n.º 1, alínea c), 675.º, n.º 1 e 676.º, todos do CPC e excerto deABRANTES GERALDES, supra citado.

55. Para que seja legalmente admissível um recurso de revista excecional, importa que (i) estejam preenchidos os pressupostos gerais de acesso ao terceiro grau de jurisdição, (ii) que estejamos perante um caso de “dupla conforme”, e (iii) que se verifique, pelo menos, uma das condições elencadas no artigo 672.º, n.º 1 do CPC – vd. jurisprudência supra citada.

56. Como já ficou bem explicitado supra o primeiro requisito de admissibilidade encontra-se preenchido, porquanto encontram-se preenchidos os pressupostos legais para a interposição de recurso de revista “normal” – vd. artigos 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 671.º, n.º 1, todos do CPC.

57. Para além disso, caso o Colendo Tribunal entenda que estamos perante uma situação de “dupla conforme” – o que não se aceita, mas apenas por extrema cautela de patrocínio se equaciona –, então o segundo requisito terá também que se considerar verificado.

58. Quanto ao terceiro requisito, estamos perante uma situação de contradição de julgados nos termos e para os efeitos da alínea c) do artigo 672.º, n.º 1 do CPC.

59. Nos presentes autos, discute-se a seguinte questão essencial: se dada a matéria de facto considerada provada nos presentes autos, estamos perante um caso de negócio consigo mesmo, por interposta pessoa, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 397.º, n.º 2 do CSC, com a consequente nulidade dos respetivos negócios jurídicos celebrados.

60. O Acórdão Recorrido proferido pelo Tribunal da Relação …… considerou que não estamos perante um caso de negócio consigo mesmo, por interposta pessoa, nos termos e para os efeitos do artigo 397.º, n.º 2 do CSC, na medida em que (i) considerou ser necessário um benefício direto e / ou indireto do Sr. AA e que (ii) trata-se de uma mera situação de administradores em comum.

61. Este entendimento do Tribunal a quo encontra-se frontalmente em contradição com diversos acórdãos de vários Tribunais da Relação, destacando-se, para os devidos efeitos, o Acórdão Fundamento proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 17.12.2018, no âmbito do processo n.º 216/16.8T8VNF.G2 – vd. Documento n.º 1 junto e o excerto do mesmo supra citado.

62. Acrescente-se que, a oposição de julgados relevante para a admissibilidade do recurso de revista excecional verifica-se quando a mesma norma jurídica se mostra, no Acórdão Recorrido e no Acórdão Fundamento, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, como é manifestamente o caso na medida em que se verifica uma clivagem jurisprudencial clara quanto à interpretação e aplicação do artigo 397.º, n.º 2 do CSC em duas situações factuais idênticas, ou seja, em que o detentor e beneficiário efetivo da Recorrida é contraparte do negócio jurídico – vd. jurisprudência e doutrina supra citadas.

63. A matéria sobre a qual versa o Acórdão Fundamento é em tudo idêntica à discutida no Acórdão Recorrido: (i) estamos perante situações factuais em tudo similares, pois em ambos os casos existe um negócio celebrado entre duas sociedades em que o administrador da primeira sociedade é contraparte do negócio jurídico, por interposta pessoa, através da outra sociedade, a qual domina e influencia totalmente; (ii) em ambos os casos não existiram quaisquer autorizações dos Conselhos de Administração e parecer favoráveis dos Conselhos Fiscais; e (iii)estamos perante a aplicação da mesma legislação e questão fundamental: o teor do artigo 397.º, n.º 2 do CSC, o qual é aplicado / interpretado de forma distinta no Acórdão Fundamento e no Acórdão Recorrido.

64. Por esses motivos é possível asseverar que, analisados ambos os Acórdãos, (i) existe identidade da questão de direito sobre as quais incidiram os Acórdãos em conflito, com identidade, em grande medida, também, do respetivo núcleo factual; (ii) oposição entre as decisões expressas de ambos os Acórdãos e não apenas implícitas; e (iii) oposição com influência no sentido das decisões tomadas.

65. Até à data de hoje, não foi proferido qualquer acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a questão em apreço.

66. Em face do exposto, deverão considerar-se verificados os requisitos previstos no artigo 672.º, n.º 1, alínea c) do CPC, admitindo-se a revista excecional.

67. Em relação ao mérito do presente recurso excecional, interposto, a título subsidiário, por uma questão de economia processual, e sob pena de repetição desnecessária, dá-se aqui por integralmente reproduzidas as considerações aduzidas no Capítulo III. Supra e nos correspondentes pontos 10 a 53 das Conclusões do Recurso aqui apresentadas, concluindo-se que os negócios jurídicos celebrados entre as Recorrentes e a Recorrida estão feridos de nulidade, nos termos e para os efeitos do artigo 397.º, n.º 2 do CSC, porquanto estamos perante um administrador das Recorrentes, o Sr. AA, que é contraparte do negócio jurídico, através de uma interposta pessoa, a Recorrida, da qual era detentor e beneficiário efetivo.

Contra-alegou a recorrida, invocando a existência de uma situação de dupla conformidade decisória impeditiva da admissão da revista e defendendo, em qualquer caso, a improcedência do recurso.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Das instâncias vêm provados os seguintes factos[2]:

1.         A Autora é uma sociedade que se dedica à fabricação de outros produtos minerais não metálicos, nomeadamente, areias e britas; compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim; extração de argilas e caulino; prospeção, pesquisa, exploração, comércio, importação e exploração de depósitos minerais; transportes rodoviários de mercadorias e serviços de logística (doc. 1).

2.         A 1ª Ré tem como objecto social a prospeção, pesquisa, exploração e comercialização de depósitos minerais, especialmente argilas destinadas á indústria de cerâmica e venda de energia elétrica (Doc. 2).

3.       A 2ª Ré dedica-se à fabricação, importação, exportação e comercialização de pastas e produtos para indústria cerâmica (Doc. 3).

4.     A 3ª Ré é uma empresa que tem como objeto comercial quaisquer explorações mineiras em geral e em particular na exploração de matérias-primas para cerâmica (Doc. 4).

5.       A 4ª Ré tem por objecto a preparação de argilas e matérias-primas para a cerâmica, conforme certidão permanente da empresa com o código de acesso …. que se junta como (Doc. 5).

6.       A 5ª Ré é uma sociedade que se dedica à exploração de minas e pedreiras, e bem assim a indústria de moagem e tratamento de feldspato, mica e quartzo.

7.     As Rés são sociedades coligadas, fazendo parte do denominado Grupo “Mota – Ceramic Solutions”, adiante abreviadamente “Grupo Mota” ou “Grupo CCM”.

8.         As Rés são sociedades em relação de grupo, pois apresentam como situação comum o facto de haver uma entidade (SGPS) que as dirige de forma unitária e comum.

9.    As Rés (e outras sociedades não demandadas) são participadas, exclusiva ou maioritariamente, da “Carlos Cardoso Mota, Sociedade Gestora de Participações Sociais, S.A.”, doravante apenas “CCM”, pessoa coletiva n.º 505607816 e com sede sita em Quinta do Ribeiro, apartado 67, 3530-310 Moimenta de Maceira Dão, tendo, por isso, uma administração jurídica unitária (Doc. n.º 7).

10.       A Mota Pastas, a Motamineral e a Mota II são 100% detidas pela CCM.

11.       A CCM detém 71,20 % das ações da ADM e 92,65% da Felmica (Doc. nº 8).

12.   No âmbito da atividade comercial da Autora e das participadas da CCM, a Autora fornecia às Rés caulinos, barros, argilas e prestava serviços de transportes e as Rés forneciam alguns inertes à Autora, mas, maioritariamente, prestavam serviços de transporte, de armazenamento e de máquinas[3].

13.     Em consequência da prestação de serviços e fornecimento de bens recíprocos, a Autora emitia guias de transporte que, após validação de conformidade por parte das Rés, davam origem à emissão e envio das respetivas facturas às empresas do Grupo Mota para quem prestou os serviços e/ou forneceu bens, lançando-as em extrato de conta-corrente aberto em nome de cada uma das sociedades. A saber:

14.       A Autora emitiu e enviou as devidas facturas para a 1ª Ré no valor total de 484.353,91 € (quatrocentos e oitenta e quatro mil trezentos e cinquenta e três euros e noventa e um cêntimos) [Doc. n.º 9, 10 a 42].

15.       A Autora emitiu e enviou as respetivas faturas para a 2ª Ré no valor total de 1.065,75 € (mil e sessenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos) [Doc. n.º 43, 44 a 47].

16.     A. Autora emitiu e enviou para a 3ª Ré as facturas pelos serviços prestados e/ou bens fornecidos no montante total de 135.061,38 € (cento e trinta e cinco mil e sessenta e um euros e trinta e oito cêntimos) [Doc. 48].

17.    A 3ª Ré emitiu e enviou para a Autora facturas pelos serviços prestados e/ou bens fornecidos no montante de 25.577,65 € (vinte e cinco mil quinhentos e setenta e sete euros e sessenta e cinco cêntimos) [Doc. 49].

18.     A Autora efectuou um encontro de contas entre os saldos Cliente/Fornecedor, sendo a Autora credora da 3ª Ré no valor actual de 109.483,73 € (cento e nove mil quatrocentos e oitenta e três euros e setenta e três cêntimos) [Doc. nº 50, 51 a 103 e 104].

19.     A compensação dos saldos foi comunicada à 3ª Ré através do envio do respectivo documento contabilístico, nunca tendo havido qualquer objeção ou oposição, sendo – aliás – uma prática corrente entre a Autora e as Rés.

20.       A Autora emitiu e enviou as respetivas facturas para a 4ª Ré no valor de 2.801,69 € (dois mil, oitocentos e um euros e sessenta e nove cêntimos) [Doc. nº 105, 106 e 107].

21.     A. Autora emitiu e enviou para a 5ª Ré as facturas pelos serviços prestados e/ou bens fornecidos no montante total de 41.155,56 € (quarenta e um mil, cento e cinquenta e cinco euros e cinquenta e seis cêntimos) [Doc. 108].

22.    A 5ª Ré emitiu e enviou para a Autora facturas pelos serviços prestados e/ou bens fornecidos no montante de 2.350,26 € (dois mil trezentos e cinquenta euros e vinte e seis cêntimos) [Doc. 109 a 111].

23.     A Autora efectuou um encontro de contas entre os saldos Cliente/Fornecedor, sendo a Autora credora da 5ª Ré no valor actual de 38.805,30 € (trinta e oito mil oitocentos e cinco euros e trinta cêntimos) [Doc. 112, 113 a 130 e 131].

24.       A compensação dos saldos foi comunicada à 5ª Ré através do envio dos respectivos documentos contabilísticos, nunca tendo havido qualquer objecção ou oposição, sendo, uma prática corrente entre a Autora e as Rés.

25.     A Autora forneceu e as Rés receberam os bens/serviços discriminados nas facturas já juntas.

26.     As Rés conferiram as facturas e os fornecimentos e acharam-nas conformes ao encomendado à Autora quanto a quantidade, qualidade e preço.

27.     As facturas emitidas e enviadas pela Autora para as Rés nunca foram devolvidas, nem qualquer reclamação foi feita.

28.     As. Rés lançaram contabilisticamente as facturas e deduziram o respectivo valor do IVA, no valor de cerca de 120.000,00 €.

29.    Foi convencionado entre as partes um prazo de vencimento das facturas de 90 (noventa) dias.

30.    Acontece, porém, que em 19 de Outubro de 2017, as Rés comunicaram à Autora a suspensão de todos e quaisquer fornecimentos e prestação de serviços, bem como a suspensão generalizada dos pagamentos das facturas emitidas e enviadas, invocando o início de uma auditoria forense no âmbito da gestão do Grupo Mota sendo que queriam ver esclarecidos os exactos termos e fundamentos da relação creditícia entre as empresas (Doc. 132).

31.     Efectivamente, e para além do pagamento realizado por via da compensação de créditos, as Rés nunca mais procederam ao pagamento das importâncias devidas à Autora.

32.       A 1ª Ré não liquidou o crédito da Autora que havia sido cedido ao “Novo Banco, S.A.” através de um contrato de factoring (contrato esse aceite pela 1ª Ré), tendo em consequência desse incumprimento perante o Banco obrigado a Autora a devolver o montante já recebido ao abrigo dessa cessão de créditos e a ficar sub-                          -rogado nos direitos de crédito que haviam sido cedidos ao Banco, retomando, assim, a titularidade do crédito (Doc. n.º 133).

33.   Na sequência do não pagamento pelas Rés das importâncias devidas, a Autora constituiu mandatário para interpelar as Rés para o cumprimento das obrigações e comunicando novamente a compensação de créditos relativamente à Motaminal e Felmica, o que aconteceu por via de carta registada com aviso de recepção expedida no dia 06.12.2017 (Docs. 134 a 138).

34.       As Rés responderam à interpelação para pagamento - sem nunca terem negado ou colocado em crise a efectiva realização dos fornecimento e/ou a prestação dos serviços - invocando que o “Grupo Mota é credor da Sabril – Sociedade de Areias e Britas, Lda. e dos seus beneficiários efectivos, tendo este crédito fundamento na existência de uma prática reiterada de desvio de bens, oportunidades de negócio, segredos industriais e recursos materiais e humanos do Grupo Mota em benefício da Sabril – Sociedade de Areias e Britas, Lda.”.

35.       Mais referindo que a situação causou graves prejuízos ao longo dos últimos anos e que a Sabril, em conjunto com os ex-administradores do Grupo Mota “delapidaram durante anos” os recursos destas sociedades.

36.     Concluindo que as Rés não são devedoras, mas sim credoras da Autora, tudo conforme melhor se diz e prova pelo Doc. 139.

37.       Nessa sequência, efectivamente, a 2ª Ré intentou contra a Autora uma acção declarativa de indemnização por responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos dolosos, que corre os seus termos no … Juízo central cível ….. (Proc. Nº 1871/18……), reclamando os prejuízos pela subtração de matérias-                             -primas e desvio de equipamentos (doc. 140).

38.   A Autora repudia veementemente a posição das Rés transmitida em resposta à interpelação para pagamento dos montantes em dívida e repudia, igualmente, a narrativa factual alegada pela 2ª Ré na acção judicial melhor identificada no ponto antecedente, por ser falsa.

39.     Tendo, em consequência, apresentado a competente contestação ao pedido da Ré (Doc.141).

40.     Por deliberação unânime por escrito das Assembleias Gerais das Rés datadas de 29.09.2017, o Sr. AA e a Sra. DD foram destituídos com justa causa dos Conselhos de Administração das Rés (Documentos n.ºs 6 a 10).

41.     No dia 02.10.2017, foi decretada a suspensão judicial de ambos do Conselho de Administração da CCM, tendo esta decisão sido confirmada por Sentença datada de 19.05.2018 (Documento n.º 1).

42.       A Autora é detida a 100% (cem por cento) pela holding W......-SGPS, S.A. (“W......”) e, à data de 15.07.2015, detinha 99,98% (noventa e nove vírgula noventa e oito por cento) da E......, S.A..

43.   A W......, a Autora e a E......, bem como as sociedades Ar......., S.A. (“Ar......”) e Are........, Lda. (“Are.......”), fazem parte do denominado “Grupo W......” (Documento n.º 11).

44.     No dia 02.07.2017 teve início uma Auditoria Forense Independente da auditora P....... (Documento n.º 12).

45.     BB e CC são cônjuges das duas filhas do Sr. AA, DD e EE, e, consequentemente, genros daquele (Documentos n.ºs 13 e 14).

46.    No dia 02.10.2017 foi encontrada uma pasta nos escritórios da ADM com os originais dos títulos de ações ao portador representativos da totalidade do capital social da W...... no cofre da ADM, situado no gabinete do Sr. AA.

47.   Foi encontrada, na mesma pasta, minuta do livro de registo de acções da W......, no qual se consigna as transmissões realizadas com as acções representativas da totalidade do capital social da W...... dos genros do Sr. AA para o Sr. AA (Documento n.º 15).

48.       O Sr. AA instruiu a colaboradora FF, contabilista da ADM, para minutar as acções ao portador da W......, identificando-o a si como titular de todas as acções (Documentos n.º 16).

49.     Em 15.07.2015, o Sr. AA prestou uma fiança pessoal, com renúncia ao benefício de excussão prévia, a favor da Autora, no montante de um milhão e setecentos mil euros (Documento n.º 17).

50.     Em 01.07.2014, o Sr. AA avalizou quatro letras da Autora, no valor total de um milhão de euros (Documento n.º 18).

51.     A Autora é uma sociedade gerida de facto e de direito por CC, BB e GG.

52.       AA recebeu, em 08.05.2017, o Relatório e Contas de 2016 da Sabril e ordenou a HH, da ADM, que o imprimisse[4].

53.       AA apresentava-se comercialmente associado à actividade da Sabril, tratando de aspectos operacionais, financeiros e administrativos da sua gestão e negociando contratos de exploração para a mesma[5].

54.       AA actuava como gerente de facto da Sabril[6].

55.       O AA era dono e beneficiário efectivo da W...... e da Sabril, facto que os seus genros encobriam, utilizando estes como ‘testas de ferro’ na constituição da W......[7].

O DIREITO

a) Admissibilidade da revista

Como se sabe, o n.º 3 do artigo 671º do CPC veda a possibilidade do recurso de revista nas situações em que se verifique uma conformidade decisória entre o acórdão da Relação e a decisão da 1ª instância (dupla conforme).

No entanto, excepcional dessa impossibilidade os casos em que o acórdão da Relação contenha voto de vencido ou assente em fundamentação essencialmente diferente.

O acórdão foi tirado por unanimidade, mas, segundo as recorrentes, a sua fundamentação é bem diversa da que consta da sentença da 1ª instância.

É também este o nosso entendimento.

A sentença da 1ª instância, ao debruçar-se sobre a invocada nulidade dos contratos com base na disposição do n.º 2 do artigo 397º do CSC, considerou o seguinte:

“Nesta sequência, a este propósito não ficou provado nem resulta dos factos referidos que o Sr. AA era o gestor de facto da Autora nem que os seus gestores fossem “testas de ferro” daquele, nem a prática de negócios entre a Autora e as Rés por interposta pessoa ou sem as devidas autorizações.

Com efeito, nem dos factos referidos resulta o que pretendem as Rés nem as sentenças proferidas em outros processos fazem caso julgado relativamente aos presentes autos.

Deste modo, as Rés não lograram provar os factos susceptíveis de integrar os pressupostos necessários para considerar o contrato nulo para efeitos do citado preceito.

De todo o modo, importa salientar que mesmo que lograsse demonstrar que o contrato era nulo, por mera hipótese teórica, as consequências da nulidade seriam a obrigação mútua de restituição ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (cfr. art. 289.º, n.º 1, do Código Civil), ou seja, sempre as Rés estariam obrigadas a entregar à Autora o valor dos bens e serviços prestados”.

Num passo seguinte, pronunciou-se do seguinte modo sobre a possibilidade de os mesmos contratos serem anuláveis com fundamento no artigo 261º do CC:
“Nos termos do disposto no art. 261.º, n.º 1, do Código Civil, é anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificamente consentido na celebração, ou que o negócio excluía por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses.
Contudo, as Rés não lograram provar quaisquer factos susceptíveis de integrar os pressupostos necessários para considerar o contrato anulável para efeitos do citado preceito.
De todo o modo, importa salientar que mesmo que lograsse demonstrar que o contrato era anulável, por mera hipótese teórica, as consequências da anulabilidade seriam, como no caso de nulidade, a obrigação mútua de restituição ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (cfr. art. 289.º, n.º 1, do Código Civil), ou seja, sempre as Rés estariam obrigadas a entregar à Autora o valor dos bens e serviços prestados”.

No recurso de apelação, as Rés impugnaram a decisão da matéria de facto relativamente aos itens 12. e 51. dos factos provados (requerendo que tais factos fossem julgados não provados) e aos factos das alíneas a) a h) dos factos não provados (requerendo que tais factos fossem julgados provados).

Essa pretensão procedeu em parte, dando origem às significativas alterações acima descritas – cfr. pontos 12. e 52. a 55. – que dão conta de um papel muito mais relevante e activo de AA na gestão da Autora, que é detida a 100% pela holding W.......

Apesar dessas alterações, o acórdão recorrido manteve o decidido na 1ª instância, traçando, porém, um percurso jurídico substancialmente diverso, como se verá de imediato.

Constituindo o n.º 2 do artigo 397º do CSC o fundamento para o pedido de nulidade dos contratos em causa, veja-se, então, como é que o acórdão recorrido concluiu pela sua inaplicação.

“A norma refere-se a negócios celebrados entre a sociedade e os seus administradores, directamente ou por interposta pessoa.

Para que essa norma tivesse aplicação à situação dos autos, seria necessário que se concluísse que os gerentes que celebraram os contratos neles em causa – contratos esses que geraram as facturas cujo pagamento a Sabril reclama – tinham agido na celebração dos mesmos ‘por conta’ de AA, só assim se podendo falar de ‘interposta pessoa’.

Ora, para se concluir que os gerentes de direito (e de facto) da Sabril ao concluírem os contratos em causa nos autos com as RR. o tinham feito “por conta” de AA, não bastará que se tenha provado que este é dono e efectivo beneficiário da W...... e, por inerência, da Sabril, e que também ele é gerente de facto da Sabril, sendo essa sua gerência encoberta pelos gerentes de direito da mesma, dois deles seus genros.

(…) Soveral Martins enquadra no contrato celebrado entre a sociedade e os seus administradores, mas por interposta pessoa, aquele em que uma pessoa actua em nome próprio mas por conta do administrador, com a obrigação de transmitir a este a coisa ou direito cedido – art 579º/2 CC.

E compreende-se que o conceito de ‘interposta pessoa’, para o efeito que está em questão – a aplicação do art 397º CSCom –, exija a presença de uma obrigação subsequente de transmissão para o administrador/gerente por parte de quem se interpôs, de modo a que seja evidente o benefício directo daquele, tudo se passando, afinal, como se tivesse sido um negócio celebrado por ele.

Não é, no entanto, essa, a situação dos autos, em que, pese embora os gerentes de direito da Sabril pudessem actuar “por conta” de AA e, obviamente, sofrer a sua influência quando negociavam com empresas do Grupo Mota, não há neles elementos de que decorra que esses gerentes se tenham obrigado perante ele a transmitirem-lhes as vantagens resultantes desses negócios.

O que sucede na situação dos autos é que AA não resultou directamente beneficiado com esses negócios e, podendo ter resultado indirectamente beneficiado com os mesmos (por ser dono e efectivo beneficiário da W...... e, por inerência da Sabril), só o terá sido se tais negócios se tiverem revelado, efectivamente, vantajosos para a Sabril, o que nos autos se desconhece se aconteceu.

Também não se verifica nos autos uma situação de dupla representação, porque AA não tem poderes de representação da Sabril, não podendo nessas condições dizer-se que a actuação do administrador em representação da sociedade e de terceiro em simultâneo não foi mais do que uma actuação por interposta pessoa.

Com efeito, para se falar em dupla representação, é necessário, como o refere Soveral Martins16 que ‘o administrador que representa a sociedade intervenha simultaneamente como representante de um terceiro, que pode ser um individuo ou uma outra sociedade’.”

Destes excertos da sentença e do acórdão recorrido salta bem à vista a substancial diferença de fundamentação entre ambas as decisões, quer de facto, quer de direito. Enquanto que na sentença se considerou que, por não se ter provado que o AA era o gestor de facto da Autora nem que os seus gestores fossem “testas de ferro” daquele, nem a prática de negócios entre a Autora e as Rés por interposta pessoa ou sem as devidas autorizações, não havia fundamento legal para anular os negócios jurídicos com base na disposição do artigo 261º do CC, no acórdão recorrido, mercê das relevantes alterações da matéria de facto, tratou-se a questão da anulação dos negócios no quadro do artigo 397º, n.º 2, do CSC, concluindo-se que pese embora os gerentes de direito da Sabril pudessem actuar “por conta” de AA e, obviamente, sofrer a sua influência quando negociavam com empresas do Grupo Mota, não há neles elementos de que decorra que esses gerentes se tenham obrigado perante ele a transmitirem-lhes as vantagens resultantes desses negócios.

b) O mérito

Ultrapassada, assim, a questão da admissibilidade da revista normal[8], apreciemos do mérito desta, sem que antes se reproduza o que consta do artigo 397º do CSC:

ARTIGO 397º

Negócios com a sociedade

1 - É proibido à sociedade conceder empréstimos ou crédito a administradores, efectuar pagamentos por conta deles, prestar garantias a obrigações por eles contraídas e facultar-lhes adiantamentos de remunerações superiores a um mês.

2 - São nulos os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, directamente ou por pessoa interposta, se não tiverem sido previamente autorizados por deliberação do conselho de administração, na qual o interessado não pode votar, e com o parecer favorável do conselho fiscal ou da comissão de auditoria.

3 - O disposto nos números anteriores é extensivo a actos ou contratos celebrados com sociedades que estejam em relação de domínio ou de grupo com aquela de que o contraente é administrador.

4 - No seu relatório anual, o conselho de administração deve especificar as autorizações que tenha concedido ao abrigo do n.º 2 e o relatório do conselho fiscal ou da comissão de auditoria deve mencionar os pareceres proferidos sobre essas autorizações.

5 - O disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 não se aplica quando se trate de acto compreendido no próprio comércio da sociedade e nenhuma vantagem especial seja concedida ao contraente administrador.

                                              

 As recorrentes sustentam, nas conclusões 10ª a 53ª, que os negócios celebrados entre a Autora e as Rés são nulos nos termos do artigo 397º, n.º 2, do CSC, por integrarem o conceito de negócio consigo mesmo, na medida em que o AA, detentor e beneficiário efectivo da Autora, foi contraparte nesses negócios, ainda que indirectamente – cfr. conclusão 24.

Será assim?

A solução para esta questão, dizendo respeito a negócios envolvendo as Rés, sociedades anónimas, de que o AA era administrador, tem sempre de ser encontrada no âmbito do citado artigo 397º do CSC, que reproduzimos mais acima.

Vamos tentar sintetizar a situação concreta, com apoio nos factos provados.

- Entre a Autora, “Sabril, Lda.” e as sociedades anónimas Rés, foram celebrados vários negócios, todos eles inscritos no âmbito do objecto social dessas sociedades;

- A Autora é detida a 100% (cem por cento) pela holding W......-SGPS, S.A. (“W......”) e, à data de 15.07.2015, detinha 99,98% (noventa e nove vírgula noventa e oito por cento) da E......, S.A.;

- A W......, a Autora e a E......, bem como as sociedades Ar......., S.A. (“Ar......”) e Are........, Lda. (“Are.......”), fazem parte do denominado “Grupo W......”;

- AA apresentava-se comercialmente associado à actividade da Sabril, tratando de aspectos operacionais, financeiros e administrativos da sua gestão e negociando contratos de exploração para a mesma;

- AA actuava como gerente de facto da Sabril;

- O AA era dono e beneficiário efectivo da W...... e da Sabril, facto que os seus genros encobriam, utilizando estes como ‘testas de ferro’ na constituição da W......;

- As Rés são sociedades coligadas, fazendo parte do denominado Grupo “Mota – Ceramic Solutions”, adiante abreviadamente “Grupo Mota” ou “Grupo CCM”;

- As Rés são sociedades em relação de grupo, pois apresentam como situação comum o facto de haver uma entidade (SGPS) que as dirige de forma unitária e comum;

- As Rés são participadas, exclusiva ou maioritariamente, da “Carlos Cardoso Mota, Sociedade Gestora de Participações Sociais, S.A.” (CCM);

- As Rés Mota Pastas, a Motamineral e a Mota II são 100% detidas pela CCM;

- A CCM detém 71,20 % das acções das Rés ADM e 92,65% da Felmica;

- AA e sua filha DD integravam os Conselhos de Administração das Rés, mas foram destituídos, por deliberações das Assembleias Gerais das Rés de 29.09.2017.

Temos, assim, que o AA era administrador das sociedades Rés no momento em que foram celebrados os contratos referidos no ponto 12. com a sociedade Autora, de que o mesmo AA era dono e gerente de facto.

É sabido que nos contratos das sociedades anónimas com os administradores, existe um risco acrescido de um aproveitamento em benefício destes, dada a natural influência directa dos administradores nos processos decisórios.

 A realidade tem demonstrado que o conflito de interesses inerente à dupla qualidade de administrador ou accionista e contraparte num contrato com a sociedade exige mecanismos de controlo e salvaguarda da posição da sociedade e dos respectivos accionistas.

É desta necessidade de acautelar a ocorrência de conflitos de interesses que emerge o artigo 397º do CSC, em particular o seu n.º 2, onde se estabelece um mecanismo de controlo preventivo da validade dos negócios entre sociedade e administradores.

Segundo o regime aí estabelecido, são nulos os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, directamente ou por pessoa interposta, quando não haja prévia deliberação do conselho de administração, na qual o administrador interessado não pode votar, e parecer favorável do conselho fiscal.

Esta nulidade, que afecta os negócios celebrados entre a sociedade e um dos seus administradores, estende-se, pois, aos negócios celebrados por interposta pessoa, considerando-se como tal as pessoas referidas no artigo 579º, n.º 2, do CC, e, de acordo com aquela que consideramos ser a melhor doutrina, todas as outras pessoas, singulares ou colectivas, que o administrador possa influenciar directamente. Estará neste caso, conforme defende Coutinho de Abreu[9], uma sociedade de que o administrador seja sócio maioritário.

Quadra nesta concepção a situação dos autos, na medida em que as sociedades Rés, de que o AA era administrador, estabeleceram contratos com a sociedade Autora (interposta pessoa), de que o AA era dono e beneficiário efectivo.

Não vemos como, neste ponto, se possa discordar do que vem alegado pelas Recorrentes.

Contudo, toda a discussão travada nas instâncias, nomeadamente no acórdão recorrido, passou ao lado da disposição do n.º 5 do artigo 397º, onde se prescreve que o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 não se aplica quando se trate de acto compreendido no próprio

comércio da sociedade e nenhuma vantagem especial seja concedida ao contraente administrador[10].

Com efeito, a nulidade dos contratos cominada no n.º 2 do artigo 397º refere-se aos negócios que não correspondam ao exercício da actividade social ou que, correspondendo, proporcionem uma vantagem especial ao administrador, face a outras pessoas que se encontrem em situação contratual análoga.

A propósito, escreve Soveral Martins[11]:

“Tudo isto, evidentemente, desde que não se trate de actos compreendidos no próprio comércio da sociedade e em que nenhuma vantagem especial seja concedida ao contraente administrador (artigo 397º, n.º 5). A estes actos não se aplica o disposto nos nºs 2, 3 e 4 do artigo 397º. É por isso necessário determinar o que sejam ‘actos compreendidos no próprio comércio da sociedade’ e ‘vantagens especiais’. O acto em causa está compreendido no comércio da sociedade se é um daqueles que a sociedade pratica habitualmente no âmbito da sua actividade; o acto não implica nenhuma vantagem especial para o administrador se é concluído nas condições normalmente verificadas nas relações com terceiros”.

As Rés invocaram a nulidade dos contratos celebrados com a Autora baseada no artigo 397º, n.º 2, do CSC, mas não existe nos autos matéria de facto idónea a fazer proceder essa excepção material, impeditiva do direito que a Autora pretende exercer.

Na verdade, já tivemos oportunidade de dizer – e temos como insofismável – que todos os contratos celebrados entre as sociedades Rés e a Autora se inscreveram no âmbito da actividade normal e regular das respectivas sociedades (cfr. pontos 1. a 6. e 12. da matéria de facto), ou seja, todos eles configuram  actos da espécie daqueles em que tipicamente se traduz a actividade que constitui o objecto dessas sociedades (cfr. artigo 11º do CSC).  Por outro lado, não existe no acervo factual – nem as recorrentes aludem – nenhum elemento demonstrativo de que o AA retirou vantagem especial dos referidos contratos, ou seja, nada existe nos autos que comprove que a conclusão dos contratos não observou as condições normalmente verificadas nas relações com terceiros.

Como assim, não podem ser declarados nulos os negócios jurídicos em que a Autora funda a sua pretensão.

                                                           *

III. DECISÃO

Nestes termos, nega-se a revista.

                                                           *

Custas pelas Rés recorrentes.

                                                           *

LISBOA, 10 de Maio de 2021  

 

           

O relator atesta, nos termos do artigo 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos, Maria Olinda Garcia e Ricardo Costa.

 

Henrique Araújo (Relator)

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1]    Relator:     Henrique Araújo
    Adjuntos:    Maria Olinda Garcia
                        Ricardo Costa
[2] Vão escritos a itálico os factos que foram alterados ou aditados pela Relação …...
[3] Este ponto de facto foi alterado pela Relação …. Da sentença da 1ª instância constava a seguinte redacção: “No âmbito da atividade comercial da Autora e das participadas da CCM, foi estabelecida uma parceria através da qual a primeira (A.) fornecia às segundas (RR.) caulinos, barros, argilas e prestava serviços de transportes e por sua vez as Rés forneciam alguns inertes à Autora, mas, maioritariamente, prestavam serviços de transporte, de armazenamento e de máquinas”.
[4] Este ponto de facto resulta do aditamento feito no acórdão recorrido, em consequência da alteração para provado do facto não provado constante da alínea g) da sentença – cfr. fls. 437, verso.
[5] Este ponto de facto resulta do aditamento feito no acórdão recorrido, que, alterando a decisão da 1ª instância, nele agrupou os factos não provados das alíneas e), f) e h) – cfr. fls. 439 dos autos.
[6] Ponto aditado em consequência da modificação do sentido da decisão quanto ao facto não provado da alínea d) da sentença da 1ª instância – cfr. fls. 439.
[7] Ponto aditado pela Relação …., em resultado da alteração das alíneas a) a c) dos factos não provados – cfr. fls. 439, verso.
[8] As conclusões 1ª a 9ª dirigiam-se à admissibilidade da revista normal e as conclusões 54ª a 67ª à admissibilidade da revista excepcional, invocada por via subsidiária.

[9] “Negócios entre sociedades e partes relacionadas (administradores, sócios) — sumário às vezes desenvolvido”, página 15.
[10] O n.º 5 do artigo 397.º, do Código das Sociedades Comerciais, consagra, assim, a existência de negócios livres, não dependentes de qualquer controlo.
[11] “Os poderes de representação dos administradores de sociedades anónimas”, página 269, nota 496.