I - A portagem devida pelos utentes da auto-estrada constitui uma taxa e, como tal, um tributo nos termos do art. 4.º, n.º 2, da LGT, sendo, por isso, esse crédito indisponível, como se prevê no art. 30.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
II - Essa indisponibilidade estende-se, por identidade de razão, a outros vínculos creditícios complementares da relação jurídica tributária, como o direito a juros, e obrigações acessórias de carácter procedimental.
III - A coima aplicada pela infracção do dever de pagamento da portagem não se integra em qualquer dessas prestações da relação jurídica tributária, devendo ser considerada como uma obrigação autónoma, resultante de uma sanção legal.
IV - Não existe, pois, fundamento para qualificar as coimas como créditos tributários e, por isso, para as considerar abrangidas pela indisponibilidade que caracteriza estes créditos.
V - Resulta do art. 165.º, n.º 1, al. i), da CRP que, no que respeita à criação de impostos e sistema fiscal, a reserva exige uma regulamentação completa, em conformidade com o princípio da legalidade fiscal; quanto ao regime das taxas, a reserva respeita apenas ao regime geral, não abrangendo o regime de cada uma das taxas.
VI - A interpretação dos arts. 3.º, n.º 2, e 4.º, n.º 2, da LGT no sentido de que aí se incluem as taxas de portagem, como taxas “assentes na utilização de um bem do domínio público”, não viola qualquer norma ou princípio constitucional.
VII - Deve ser declarada a ineficácia do plano aprovado e homologado em relação aos créditos reclamados pela ATA, respeitantes a taxas de portagem, juros e respectivos custos administrativos (excluindo-se dessa declaração os relativos a coimas e respectivos encargos).
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:
I.
AA, veio, ao abrigo do disposto nos artigos 222.º-A, do CIRE, intentar o presente Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP).
Admitido liminarmente o requerimento e nomeado Administrador Judicial Provisório, por este foi junta aos autos a lista provisória de créditos prevista no art. 222.º-D, nºs. 2 e 3, aplicável por força do art. 17º-I nº 3, ambos do CIRE.
Apresentado acordo de pagamentos e submetido a votação recolheu o voto favorável de credores cujos créditos representam 53,78% da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto.
A Autoridade Tributária (AT) veio comunicar o seu voto desfavorável, por prever a redução dos créditos tributários – pagamento de apenas 40% da maior parte do crédito reconhecido à AT, bem como o perdão da totalidade dos juros vencidos e vincendos, pelo que requer a não homologação do plano ou que da eventual sentença de homologação venha a constar que o acordo não produzirá efeitos relativamente aos créditos da Fazenda Nacional.
Foi proferida decisão a homologar o acordo de pagamentos respeitante aos devedores, por se reconhecer que o mesmo se mostra aprovado pela maioria legalmente necessária.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou procedente, revogando a decisão recorrida, declarando-se a ineficácia do plano aprovado e homologado, relativamente aos créditos reclamados pela AT relativamente a portagens, coimas, demais encargos e juros.
Discordando desta decisão, vem o requerente pedir revista, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. O tribunal a quo considerou como verdadeiros créditos tributários, as taxas de portagens, juros de mora, bem como as respectivas coimas, custas e despesas, declarando-se a ineficácia do plano aprovado e homologado, relativamente aos créditos reclamados pela AT relativamente a portagens, coimas, demais encargos e juros.
II. O douto acórdão derroga o entendimento do acórdão-fundamento do Tribunal da Relação de Évora, de 22/03/2018, processo nº 853/17.3T8OLH-A.E1 e do acórdão fundamento do Tribunal da Relação de Guimarães de 02/05/2016, processo nº 1749/14.GTBVCT-B.G1.
III. Ora, tal qualificação de tributo não se pode imputar à contraprestação em causa, uma vez que a mesma não se consubstancia numa prestação concreta de um qualquer serviço público (como bem exige o artigo 4.º, nº2 da L.G.T.), nem tão-pouco numa “contribuição especial”, nos termos do artigo 4.º, nº3 da L.G.T.
IV. A taxa de portagem, correspondendo apenas a um preço pago pelo utente ao concessionário, constitui, pois, uma receita exclusiva deste no âmbito da relação jurídica de direito privado em que o Estado não é parte.
V. Já no concernente às coimas (enquanto consequência contra-ordenacional resultante do não pagamento atempado das taxas de portagem ou pagamento viciado), não se assume clara a determinação do respectivo titular e da sua natureza jurídica.
VI. A doutrina, na mesma senda, por Alexandra Chícharo das Neves, defende que “o bem jurídico protegido pelas infracções contra-ordenacionais previstas nos art.º 5º e 6º da Lei nº 25/2006 é apenas, e só, os direitos dos concessionários às receitas pelo uso da auto-estrada. Isto é, estas coimas têm sempre subjacente o incumprimento da relação contratual entre utente e concessionário: o uso indevido da barreira da portagem e o não pagamento da taxa de portagem pelos utentes (…) inexistindo qualquer] relação jurídica entre o Estado e aquele que utiliza a auto-estrada (…). O Estado não é o credor das coimas devidas pelo infractor/utente ao concessionário, embora seja cobrador das mesmas. E porque exerce essa função de cobrador de receitas do concessionário o Estado recebe uma percentagem do produto cobrado, a título de remuneração”.
VII. Daí que, como bem se enfatiza no referido escrito “não se deve confundir a questão da titularidade do crédito com o direito ao produto de uma cobrança. Ou seja, titular do crédito (incluindo as coimas) é o concessionário, funcionando o Estado (através da Administração Tributária) na qualidade de cobrador desses créditos”.
VIII. Dessa forma, dúvidas não restam de que o crédito reclamado pela AT a título de taxas de portagem, custos administrativos, juros de mora, coimas e respectivos encargos não assume a natureza tributária, não se lhe aplicando a Lei Geral Tributária, nos termos dos artigos 4.º da L.G.T. a contrario e 148.º, nº2 do C.P.P.T. a contrario.
IX. Nessa conformidade, o Plano homologado em nada viola a legislação, designadamente o disposto nos art.º 30º, n.º 2 e 3 e 36º da Lei Geral Tributária, e os art.º 85º, 196º e 199º do CPPT.
DA INCONSTITUCIONALIDADE
X. Se se entendesse que a “taxa de portagem” configura um verdadeiro tributo, o que não se concede, e por mera cautela de patrocínio se concebe, obrigatoriamente, deveria a mesma, bem como o seu regime, de forma clara e inequívoca, por força do artigo 148.º, nº2 do C.P.P.T. constar de lei especial, lei restrita no sentido formal, e que só poderia assumir a natureza de Decreto-Lei sob autorização da Assembleia da República, como exige a Lei Constitucional no seu art. 165.º, nº1, al. i).
XI. Porém, essa lei não existe, e diz-se que não existe, pois as bases gerais do sistema de concessão da construção, conservação e exploração de auto-estradas outorgada à BRISA- Auto-estradas de Portugal, S.A., e consequentemente, a aplicação das designadas “tarifas de portagem”, encontram-se previstas em Decreto-Lei (nº 294/97, de 24 de Outubro).
XII. Ora, tal decreto-Lei foi emanado nos termos da al. a) do artigo 198.º, conforme consta do referido diploma legal e não sob autorização da Assembleia da República.
XIII. Pelo que tal diploma está ferido de inconstitucionalidade formal, por desrespeito da reserva de iniciativa em favor da Assembleia da República.
XIV. Além disso, se se entender que o objecto aqui em causa é um tributo, o que não se concede, sempre se dirá que a presente execução prossegue apenas interesses privados das operadoras das portagens electrónicas de auto-estradas, inexistindo qualquer interesse público subjacente à mesma.
XV. Não podem, por isso, beneficiar as referidas operadoras, entidades privadas com capitais privados, de uma qualificação tributária, sem que a razão para tal – interesse público – exista in casu.
XVI. E menos ainda confundirem-se interesses exclusivamente privados com interesses públicos e colocar o interesse público ao serviço de alguns privados, que não de todos, com clara violação do princípio da igualdade tributária, nomeadamente o artigo 13.º da C.R.P.
XVII. Ora, chamando à colação o consagrado no artigo 18.º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, onde se dispõe sobre a limitação na restrição de direitos, liberdades e garantias pelo princípio da proporcionalidade, que está no presente caso em clara violação da plenitude desse conceito.
XVIII. O Estado está a cobrar em nome das concessionárias, de forma singela, as quantias que a elas lhe são devidas.
XIX. Isto porque, exponencia a dívida como forma de integrar na sua esfera financeira quantias que não encontram justificação na lei e nos princípios tributários subjacentes à justificada cobrança das quantias que vem exigir.
XX. E aproveita a viagem para tentar, sem sucesso, enquadrar a sua intervenção, de forma absolutamente forçada e em clara violação dos princípios tributários, nesses mesmos princípios tributários.
XXI. Mais, o Estado intromete-se numa relação contratual privada entre dois entes privados, sem qualquer ius imperii, mas ainda assim, fazendo uso deste para beneficiar com prejuízo de todos os demais, leia-se todas as demais sociedades anónimas como as concessionárias.
XXII. E, por isso, é inequívoco que tal entendimento viola a Constituição da República Portuguesa e o sistema jurídico tributário, por violação dos princípios da proporcionalidade, igualdade e legalidade tributárias.
XXIII. Face ao aludido, deve a interpretação do Acórdão Recorrido do art.º 4.º da LGT ser julgada inconstitucional, por violação do disposto no artigo 13.º, da C.R.P. e do art.º 8.º da LGT, no sentido de que os créditos reclamados pela Autoridade Tributária (AT) respeitantes a portagens, coimas custas e outros encargos, constituem créditos tributários para efeitos de lhes ser aplicável, a norma da indisponibilidade dos créditos tributários, constante do artigo 30º da LGT.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e ser fixada jurisprudência nos termos apresentados e revogar o Acórdão recorrido, homologando o PEAP aprovado tal como consta da sentença proferida em primeira instância.
O Ministério Público contra-alegou, tendo concluído pela improcedência do recurso.
Cumpre decidir.
II.
Questões a resolver:
Discute-se no recurso se os créditos reclamados pela Autoridade Tributária respeitantes a portagens, coimas, demais encargos e juros, constituem créditos tributários.
III.
No acórdão recorrido foram considerados os seguintes factos, não impugnados:
1. A 21 de Maio de 2020, o requerente apresentou requerimento inicial com a manifestação da sua vontade de encetar negociações com os credores com vista à sua reabilitação, mediante a aprovação de um acordo de pagamento com aqueles credores.
2. A 25 de Maio de 2020, procedeu-se à nomeação de administradora judicial provisória.
3. A lista provisória de créditos foi junta aos autos apensos e publicitada a 17 de Junho de 2020.
4. As impugnações apresentadas no referido apenso de reclamação de créditos foram objecto de decisão a 27 de Julho de 2020.
5. As negociações foram objecto de prorrogação por um mês, conforme comunicado aos autos a 24 de Agosto de 2020, a qual foi devidamente publicitada.
6. A 23 de Setembro de 2020 foi apresentada proposta do acordo de pagamento do requerente devedor.
7. Consta da referida proposta, além do mais, que:
"(…)
4.1. CONTEÚDO DO PLANO RELATIVAMENTE À SATISFAÇÃO DOS CREDORES
O presente Plano Especial Para Acordo de Pagamentos (PEAP) prevê a satisfação dos credores através da viabilidade do requerente, sendo o pagamento aos credores efetuados à custa dos respetivos rendimentos gerados por essa mesma proveniência (rendimentos do trabalho e outros).
4.2. PROPOSTA DE PLANO DE PAGAMENTO
AA acredita que com a nova realidade de reestruturação, reúne condições de poder regularizar as suas obrigações, sendo que propõe o seu pagamento da seguinte forma:
4.2.1. Autoridade Tributária
1. Pagamento do valor de 869,74 €, de uma só vez, até final do mês seguinte à data da Sentença homologatória do Plano, nos termos do artº 196 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT);
2. Pagamento dos Juros vencidos e vincendos à taxa legalmente fixada para os juros de mora aplicáveis às dívidas ao Estado;
3. Pagamento de coimas e custas.
4.2.2. Outros Créditos
4.2.2.1 Créditos Comuns
Os créditos comuns no valor de 42.110,94 € serão pagos em 40% do valor em divida, em 60 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira prestação 6 meses após a sentença do despacho de homologação do presente Plano de pagamentos (PEAP), com perdão dos juros vencidos e vincendos.
Este mapa espelha os valores a receber pelos credores: Natureza Valores Perdão (60%) Valores a Receber pelos Credores
TABELA 2- VALORES A RECEBER PELOS CREDORES
Natureza Valores perdão 60% valores a receber pelos credores
E.O.E.P AT 869,74 869,74
Credores Comuns 42.110,94 25.266,56 16.844,36
Total 42.980,68 25.266,56 17.714,12
4.3. OUTROS CRÉDITOS.
Todos os créditos que vierem a ser constituídos, no âmbito deste PEAP, serão integrados na categoria onde se inserem, e pagos de acordo com as condições previstas no mesmo.
(…)
4.5. CLÁUSULA DE SALVO REGRESSO DE MELHOR FORTUNA
O PEAP fica subordinado à cláusula “salvo regresso de melhor fortuna” ao devedor, que produz efeitos durante o período da sua vigência, nos termos em que, se e quando, a sua situação económico-financeira melhorar permitindo a libertação de meios, que, para além das prestações do Plano de pagamentos, lhe possibilite efetuar pagamentos aos credores sem comprometer a sua sobrevivência, o devedor compromete-se a ratear esse excedente, por todos os credores, efetuando, assim, reembolso antecipado, total ou parcial dos valores em dívida.
(…)".
8. Foi efectuada a publicidade a que alude o artigo 222.º-F n.º 2 do CIRE.
9. A 2 de Outubro de 2020, a Sra. Administradora Judicial Provisória juntou aos autos o resultado da votação do acordo e todos os elementos a que alude o artigo 222.º-F n.º 4 do CIRE, onde se lê, para além do mais, que:
"(…) Artigo 222.º-F, n.º 3, al. a) do CIRE Percentagem de credores votantes Mínimo 33,33% 100,00% Percentagem de votos a favor sobre os Votantes, ignorando as abstenções Mínimo 66,66% 53,78% Percentagem de votos a favor, sem subordinados sobre os Votantes, ignorando as abstenções Mínimo 50%, 53,78%
Percentagem de votos a favor sobre a totalidade dos créditos relacionados com direito de voto Mínimo 50% 53,78% (…)".
10. Votaram a favor do acordo de pagamento os credores Arrow Global Limited e BB.
11. Votou contra o acordo de pagamento a Autoridade Tributária e Aduaneira.
12. À ATA foram reconhecidos créditos no valor global de 19.866,55 €, sendo o montante de 869,74 € respeitante a IUC e 18 996,81 €, respeitante a portagens, coimas, custas e juros.
IV.
1. No acórdão recorrido concluiu-se que as portagens cobradas aos utilizadores das auto-estradas devem ser qualificadas como "taxas", constituindo verdadeiros créditos tributários.
Como aí se afirma:
As portagens constituem uma taxa e não um preço, pois é a contraprestação que é devida pela utilização individual de cada utente na autoestrada que constitui um bem público. Apesar da concessionária ser uma entidade privada, exerce funções públicas, sendo o respetivo financiamento, para que possam construir conservar e explorar, feito designadamente através da cobrança de taxas aos utilizadores e eventualmente, como é estabelecido nalguns contratos de concessão, através de transferências do Estado, designadas de rendas para as concessionárias.
Apesar de constituírem receitas das concessionárias, as regras de cálculo e de atualização do seu valor é determinado nos contratos de concessão, incumbindo a uma entidade publica a Infraestruturas de Portugal, S.A., a responsabilidade pela sua cobrança.
Crê-se que, neste âmbito, se decidiu bem.
Os bens do domínio público, como são as estradas (art. 84º, nº 1, al. d), da CRP), podem ser objecto de "concessão" da respectiva exploração e gestão.
Neste caso, ocorre uma transferência de direitos da pessoa de direito público titular do domínio para a concessionária, a fim de que esta exerça esses direitos, gerindo e explorando a coisa pública, mas de modo a satisfazer a utilidade pública consoante o fim específico da coisa. O concessionário da exploração "é um gestor que se encarrega de proporcionar ao público o uso das coisas que lhe são confiadas, de acordo com a natureza delas"[2].
O bem é, assim, gerido pelo concessionário, em substituição da Administração, sendo aquele colocado na posição da Administração concedente, e pago através da cobrança de taxas aos utentes, se se tratar de bens no uso directo e imediato do público, como é o caso das auto-estradas[3],[4].
Sobre a natureza dessas taxas, importa ter em atenção o que se dispõe no art. 3º, nº 2, da Lei Geral Tributária (LGT):
Os tributos compreendem os impostos, incluindo os aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas.
Por outro lado, prescreve o art. 4º da mesma Lei:
1. Os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património.
2. As taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares.
(…).
Decorre destas normas que as taxas são "receitas públicas estabelecidas por lei, quer como retribuição dos serviços prestados individualmente aos particulares no exercício de uma actividade pública, quer como contrapartida da utilização de bens do domínio público, quer ainda da remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares. As taxas são, assim, devidas pela utilização individual de serviços ou bens públicos e pela concessão de autorizações administrativas"[5].
A taxa constitui "uma prestação pecuniária e impositiva devida a uma entidade que exerça funções públicas em contrapartida de uma prestação dessa entidade, provocada ou utilizada pelo sujeito passivo"[6].
As taxas são, pois, tributos, como os impostos, mas, diferentemente destes, pressupõem uma contraprestação específica, sendo, nesta medida, bilaterais, tendo natureza sinalagmática. A taxa é devida, designadamente, como contrapartida pela utilização individual pelos particulares de um bem do domínio público e traduz uma equivalência jurídica (e não também económica) entre a quantia paga e a prestação pública, assente no princípio da proporcionalidade, tendo em atenção a satisfação do interesse geral.
Importa ainda referir que as taxas são tributos e não preços, pressupondo o exercício do ius imperii da Administração Pública (uma relação de natureza pública), sendo consideradas receitas coactivas. O preço constitui uma remuneração não fiscal de um serviço, estando mais dependente da lei da oferta e da procura e, tendencialmente, mais ligada ao custo efectivo do serviço[7].
Entre as taxas devidas pela utilização de bens do domínio público incluem-se as taxas de portagem pela utilização de auto-estradas[8].
Como afirma Casalta Nabais[9], não restam quaisquer dúvidas nem para o legislador, nem para a doutrina, nem para a jurisprudência que a taxa de portagem constitui efectivamente uma taxa, um tributo bilateral, uma vez que tem por facto tributário, facto gerador ou pressuposto de facto um dos três tipos de factos tributários das taxas como eles se encontram previstos na lei (art. 4º, nº 2, da LGT).
Neste sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 640/95, de 15.11.1995[10], referindo a prática unanimidade da doutrina na qualificação destas taxas como modalidade de tributos, distinguindo-a dos impostos, pelo carácter bilateral e sinalagmático daquelas, e afastando a qualificação mais antiga como preço, ligada à concepção da dominialidade como direito de propriedade privada do Estado.
Em sentido idêntico se decidiu no Acórdão do STJ de 26.02.2004[11]:
I - Exercendo actividade pública de que a Administração é titular, as empresas privadas concessionárias de bens públicos substituem a Administração nas relações com o público e actuam como se fossem entidades públicas.
II - O pagamento de uma taxa de portagem pelos utentes da auto-estrada representa a cobrança de uma receita coactiva, de um financiamento público, e não a satisfação, por parte do utilizador dessa via, de uma obrigação assumida no âmbito de um contrato sinalagmático, cuja contraprestação do Estado, transferida, por concessão, para a Brisa, seria a possibilidade de circulação na via referida, com condições de segurança e níveis de fiscalização mais elevados em comparação com as demais estradas.
Tem sido essa também a posição assumida na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo[12].
Como se referiu, apesar de ser uma entidade privada, a concessionária, substituindo a Administração Pública, actua como entidade pública e presta um serviço público. Não é pelo facto de ser prestado por entidade privada que o serviço perde a natureza pública; a concessionária colabora desse modo com a Administração na realização dos interesses gerais.
A portagem paga pelos utentes das auto-estradas constitui uma receita coactiva, sendo a contraprestação devida pela prestação de um serviço público, que é o de propiciar a utilização do bem do domínio público.
A taxa tem essa prestação como pressuposto legal, não visando a satisfação de uma obrigação assumida num contrato.
Conclui-se, assim, que a portagem paga pelo utentes da auto-estrada constitui uma taxa e, como tal, um tributo nos termos do art. 4º, nº 2, da LGT, sendo, por isso, esse crédito indisponível, como se prevê no art. 30º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Indisponibilidade que se estende, por identidade de razão, a outros vínculos creditícios complementares da relação jurídica tributária, como o direito a juros[13], e obrigações acessórias de carácter procedimental[14].
2. No que respeita às coimas:
Importa ter presente a Lei 25/2006, de 30/6, que aprovou o regime sancionatório aplicável às infracções que resultam do não pagamento ou do pagamento viciado de taxas de portagem em infra-estruturas rodoviárias, determinando que passem a assumir a natureza de contra-ordenações.
Saliente-se que, como resulta desse diploma:
- A contrapartida pela utilização dessas infra-estruturas é denominada "taxa" de portagem;
- O não pagamento dessa taxa é configurado como uma infracção, à qual é atribuída a natureza de contra-ordenação punível com coima (artigos 1º, 5º e 6º);
- Atribui-se ao serviço de finanças da área do domicílio fiscal do agente da contra-ordenação a competência para a instauração de tais processos de contra-ordenação e aplicação das respectivas coimas;
- Atribui-se à administração tributária, nos termos do CPPT, promover a cobrança coerciva dos créditos relativos à taxa de portagem, dos custos administrativos, dos juros de mora devidos, bem como da coima e respectivos encargos (artigo 17º-A);
- Às contra-ordenações previstas nesta lei e em tudo o que nela não se encontre regulado, é aplicado o Regime Geral das Infracções Tributárias (artigo18º).
- O produto da coima cobrado na sequência do processo de contra-ordenação reverte: a) 40% para o Estado; b) 35% para a Direcção-Geral dos Impostos; c) 10% para o Instituto das Infra-estruturas Rodoviárias, IP; d) 15% para as entidades a que se refere o art. 11º - entidades gestoras (art. 17º).
Sustenta o recorrente que os créditos pelas coimas aplicadas nos termos previstos no referido diploma legal não constituem créditos tributários.
Com apoio no entendimento adoptado nos acórdãos fundamento e estendendo, no fundo, as razões por si referidas quanto às taxas, afirma que o titular do crédito é o concessionário, funcionando o Estado, através da Administração Tributária, meramente, como cobrador desses créditos.
No acórdão recorrido não se abordou especificamente esta questão, englobando-se as coimas no tratamento dado às taxas de portagem.
Mas não parece que deva ser assim.
Como resulta do regime legal acima indicado e da competência aí prevista para a instauração e instrução dos processos de contra-ordenação e para aplicação das coimas e do modo como é distribuído o produto destas, não parece haver dúvidas de que se trata, não de um crédito do concessionário (como afirma o recorrente), mas sim de um crédito público, do Estado (em sentido amplo).
Daí não decorre, porém, que a coima aplicada deva ser considerada como um crédito tributário[15] para o efeito que aqui nos ocupa, de aferir da sua indisponibilidade.
A relação tributária é uma relação complexa, que integra como prestação fundamental o dever de entregar uma quantia em dinheiro e, bem assim, como se referiu, outros vínculos complementares de carácter pecuniário e obrigações acessórias de carácter procedimental (que compreendem "os direitos e deveres que são úteis para o correcto desenvolvimento e execução da obrigação …; direitos e deveres que visam a liquidação e a exigibilidade da obrigação e o seu cumprimento").
O pagamento da coima aplicada pela aludida infracção do dever de pagamento da portagem não se integra em qualquer dessas prestações: não constitui, evidentemente, a prestação principal (o pagamento da taxa de portagem), nem se identifica com uma qualquer prestação complementar ou acessória; antes deve ser considerada como uma obrigação autónoma, resultante de uma sanção legal[16]. Os tributos visam a satisfação de fins públicos, mas não fins sancionatórios de actos ilícitos.
A nosso ver não existe, pois, fundamento para qualificar as coimas como créditos tributários e, por isso, para as considerar abrangidas pela indisponibilidade que caracteriza esses créditos.
3. Sustenta ainda o recorrente que o entendimento de que a taxa de portagem configura um verdadeiro tributo deveria resultar de lei especial, que teria de ter a natureza de decreto-lei sob autorização da Assembleia da República, como se exige no art. 165º, nº 1, al. i) da CRP. Porém, a aplicação de "tarifas de portagem" encontra-se prevista no DL 294/97, de 24/10, que foi emanado nos termos do art. 198º, al. a), da CRP e não sob autorização da Assembleia da República.
Concluiu, por isso, que aquele diploma se encontra ferido de inconstitucionalidade formal.
Não tem razão.
Dispõe o art. 165º, nº 1, da CRP que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
i) Criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas.
Resulta da letra desta norma que, no que respeita à criação de impostos e sistema fiscal, a reserva exige uma regulamentação completa, em conformidade com o princípio da legalidade fiscal. Quanto ao regime das taxas, a reserva respeita apenas ao regime geral[17].
Como afirmam os últimos Autores citados, "em matéria de taxas, a reserva de lei vale apenas quanto ao respectivo regime geral, entendendo-se que as mesmas não integram a Constituição fiscal, nem gozam das respectivas garantias, na medida em que supõem uma contraprestação por parte da administração, ou seja, assentam numa relação sinalagmática de equilíbrio económico, ao menos em termos tendenciais. Assim, não integra a reserva de lei em matéria de taxas o regime de cada uma das taxas, apenas se exigindo aí a respectiva conformidade com o regime geral das mesmas. O mesmo se diga relativamente ao montante devido a título de taxa".
Assim tem sido entendido também pela jurisprudência, designadamente do Tribunal Constitucional[18].
O Governo não estava, pois, impedido de legislar sobre o regime particular das taxas aqui em questão, não carecendo para o efeito de autorização legislativa da Assembleia da República.
Invoca ainda o recorrente a inconstitucionalidade do art. 4º da LGT, na interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido, por violação do princípio da igualdade tributária e do princípio da proporcionalidade.
Alega para o efeito que a cobrança da taxa prossegue apenas interesses privados das operadoras das portagens, inexistindo qualquer interesse público subjacente à mesma, colocando-se este interesse ao serviço de alguns privados, que não de todos; são cobradas em nome da concessionária quantias que não encontram justificação na lei e nos princípios tributários.
Parece-nos que não tem razão também aqui.
Vem sendo entendido que o princípio da igualdade (art. 13º da CRP) obriga a que se trate como igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente; não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, ou seja, distinções de tratamento que não tenham justificação material bastante
Por outro lado, de acordo com o princípio da proporcionalidade (art. 18º, nº 2, da CRP), as medidas restritivas devem ser adequadas à prossecução dos fins visados, devem revelar-se necessárias e não ser desproporcionadas ou excessivas relativamente a esses fins.
Como acima se referiu, as concessionárias, apesar de serem empresas privadas, actuam em substituição e no lugar da Administração Pública, explorando, gerindo e proporcionando a utilização de um bem público a quem quer que dela careça. Actuam, pois, como entidades públicas e visam a satisfação de um interesse público, que é o da circulação pelas auto-estradas em condições de segurança.
A taxa de portagem constitui, assim, uma contrapartida devida pela utilização de um bem público; uma receita coactiva, assente em adequada proporção entre o custo da prestação e o benefício obtido, tendo subjacente o interesse geral e não a conveniência ou o interesse particular das concessionárias.
Se estas beneficiam das taxas que são cobradas, isso justifica-se pela actividade que exercem em substituição da Administração Pública, tendo esta, também por isso, legitimidade para a cobrança coerciva das mesmas.
Estas não envolvem, assim, um qualquer tratamento arbitrário e discriminatório, não existindo, nem sendo concretizado sinal revelador de desproporção ou excesso das taxas em relação ao benefício obtido.
Assim, a interpretação dos arts. 3º, nº 2 e 4º, nº 2 da LGT no sentido de que aí se incluem as taxas de portagem, como taxas "assentes na utilização de um bem do domínio público", não viola qualquer norma ou princípio constitucional.
4. Do entendimento exposto decorre que se devem considerar abrangidos pelo princípio da indisponibilidade tributária as taxas de portagem, respectivos juros e custos administrativos, impondo-se, assim, a distinção entre esses créditos tributários e aqueles que se considerou não possuírem essa natureza: os que resultam das coimas aplicadas e respectivos encargos.
No acórdão recorrido seguiu-se, neste ponto sem impugnação das partes, o entendimento que tem sido adoptado no Supremo[19] no sentido de que, em casos como o destes autos – o plano aprovado, ao prever, em relação aos créditos tributários, um perdão de parte substancial do capital e da totalidade dos juros e uma moratória no pagamento, importa uma significativa alteração desses créditos, com desrespeito da sua indisponibilidade, implicando uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo (art. 215º do CIRE) –, esta violação não impede a homologação do plano, devendo, no entanto, decretar-se a ineficácia deste relativamente aos créditos tributários.
Acolhendo-se também aqui essa solução, haverá que alterar o acórdão recorrido em conformidade com a distinção acima operada entre os créditos reclamados pela ATA, declarando-se a ineficácia do plano aprovado e homologado tão só em relação aos créditos respeitantes a taxas de portagem, juros e respectivos custos administrativos, excluindo-se, portando, dessa declaração os relativos a coimas e respectivos encargos.
Em conclusão:
1. A portagem devida pelo utentes da auto-estrada constitui uma taxa e, como tal, um tributo nos termos do art. 4º, nº 2, da LGT, sendo, por isso, esse crédito indisponível, como se prevê no art. 30º, nº 2, do mesmo diploma legal.
2. Essa indisponibilidade estende-se, por identidade de razão, a outros vínculos creditícios complementares da relação jurídica tributária, como o direito a juros, e obrigações acessórias de carácter procedimental.
3. A coima aplicada pela infracção do dever de pagamento da portagem não se integra em qualquer dessas prestações da relação jurídica tributária, devendo ser considerada como uma obrigação autónoma, resultante de uma sanção legal.
4. Não existe, pois, fundamento para qualificar as coimas como créditos tributários e, por isso, para as considerar abrangidas pela indisponibilidade que caracteriza estes créditos.
5. Resulta do art. 165º, nº 1, al. i), da CRP que, no que respeita à criação de impostos e sistema fiscal, a reserva exige uma regulamentação completa, em conformidade com o princípio da legalidade fiscal; quanto ao regime das taxas, a reserva respeita apenas ao regime geral, não abrangendo o regime de cada uma das taxas.
6. A interpretação dos arts. 3º, nº 2 e 4º, nº 2 da LGT no sentido de que aí se incluem as taxas de portagem, como taxas "assentes na utilização de um bem do domínio público", não viola qualquer norma ou princípio constitucional.
7. Deve ser declarada a ineficácia do plano aprovado e homologado em relação aos créditos reclamados pela ATA, respeitantes a taxas de portagem, juros e respectivos custos administrativos (excluindo-se dessa declaração os relativos a coimas e respectivos encargos).
V.
Em face do exposto, concede-se em parte a revista, revogando-se parcialmente o acórdão recorrido e, em consequência, declara-se a ineficácia do plano aprovado e homologado em relação aos créditos da ATA respeitantes a taxas de portagem, juros e custos administrativos.
Custas da apelação e da revista a cargo do recorrente e da recorrida, na proporção de metade para cada.
Lisboa, 10 de Maio de 2021
F. Pinto de Almeida (Relator)
José Rainho
Graça Amaral
Tem voto de conformidade dos Exmos Adjuntos (art. 15ºA aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
_______________________________________________________
[1] Proc. nº 243/20.0T8FND.C1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 402)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 9ª ed., 949)
[3] Neste caso, a concessão é normalmente acessória de uma outra – a concessão de obras públicas.
[4] Cfr. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2ª ed., 576 e 577; Pedro Gonçalves, A Concessão de Serviços Públicos, 93 e 156.
[5] Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, Vol. I, 73.
[6] Leite Campos, Benjamim Rodrigues, Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4ª ed., 70.
[7] Cfr. Nuno Sá Gomes, Ob. Cit., 99; Jonatas Machado e Nogueira da Costa, Curso de Direito Tributário, 2ª ed., 18.
[8] Neste sentido, Nuno Sá Gomes, Ob. Cit., 74; Teixeira Ribeiro, Noção jurídica de taxa, RLJ 117-289 e segs; Casalta Nabais, Direito Fiscal, 7ª ed., 40; Ana Raquel Gonçalves Moniz, O Domínio Público, 451. No mesmo sentido, parece-nos, se pronuncia também Pedro Gonçalves, ao distinguir a concessão da exploração do domínio público da concessão de serviços públicos (Ob. Cit., 93, 156 e 319), o que não terá sido bem compreendido nos acórdãos fundamento invocados neste recurso.
[9] RLJ 147-306.
[10] Acessível em www.tribunalconstitucional.pt
[11] No processo 04B2885, acessível em www.dgsi.pt, como os demais acórdãos adiante citados.
[12] Cfr. Acórdãos de 30.04.2019 (P. 1021/12), de 03.06.2020 (P. 1092/19). e de 14.10.2020 (P. 412/20).
[13] Neste sentido, o Acórdão do STA de 13.04.2011 (P. 361/10) e o citado Acórdão de 14.10.2020.
[14] Cfr. Leite de Campos e outros, Ob. Cit., 172.
[15] Cfr. o entendimento que decorre dos Acórdãos do STA de 27.02.2013 (P. 1242/12), de 03.04.2013 (P. 1262/12), de 10.04.2013 (P. 1220/12), de 17.04.2013 (P. 1297/12) e de 18.06.2013 (P. 1184/12).
[16] Cfr. Leite Campos e outros, Ob. Cit., 274 e 275.
[17] Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª ed., 330; Casalta Nabais, Ob. Cit., 50; Jonatas Machado e Nogueira da Costa, Ob. Cit., 65.,
[18] Acórdãos nº 38/2000, de 20.01.2000, e nº 333/2001, de 10.07.2001. Cfr. também os Acórdãos do STA de 04.07.2018 (P. 1102/17) e de 26.09.2018 (P. 392/13).
[19] Iniciado pelo Acórdão de 18.02.2014 e seguido, designadamente, no Acórdão deste colectivo de 17.04.2018.