Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
DOMÍNIO PRIVADO DO ESTADO
REGISTO PREDIAL
COISA FORA DO COMÉRCIO
Sumário
I – Os leitos e as margens dos cursos de água navegáveis ou flutuáveis são, presuntivamente, do domínio público, mas esta presunção de dominialidade é uma presunção juris tantum, ou seja, cede perante a prova de que parcelas desses terrenos, por título legítimo, entraram no domínio privado antes de 31 de Dezembro de 1864; II - Verdadeiramente decisivo para a sua integração como coisas do domínio público não é o destino do bem ou categoria de bens, mas o seu regime jurídico: só a lei pode determinar a integração no domínio público de um bem ou a sua desafectação; III – Não é isso que resulta do Dec. Lei n.º 532/75, de 25 de Setembro, que, expressamente, declara no seu artigo 3.º, n.º 1, que a universalidade dos bens, direitos e obrigações que integra(va)m o activo da F… passavam a integrar o património autónomo da empresa resultante da nacionalização, o que é dizer que passou a integrar o domínio privado do Estado, fazendo parte do chamado sector empresarial do Estado; IV - O n.º 2 do mesmo artigo daquele diploma legal, ao determinar que constitui título comprovativo da transferência, para todos os efeitos legais, incluindo os de registo, a transferência (operada pelo n.º 1) para o Estado da universalidade dos bens, direitos e obrigações que faziam parte do activo e do passivo da F…, reforça a ideia de que esse património, incluindo o prédio em questão, passou a integrar, não o domínio público, mas o domínio privado do Estado; V - É consabido que o registo predial é um instituto do direito privado e para o direito privado, pois supõe as atividades económico-jurídicas particulares. Nesse sentido, estão excluídos do âmbito do registo predial as coisas fora do comércio jurídico privado (res extra commercium) porque, nos termos do n.º 2 do artigo 202.º do Código Civil, «não podem ser objeto de direitos privados».
Texto Integral
Pocesso n.º 9313/18.4 T8PRT.P1
Comarca do Porto Juízo Central Cível do Porto (J6)
Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I – Relatório
1. Configuração da acção
Em 20.04.2018, “B…, S.A.” (entretanto, foi julgada habilitada, para com ela prosseguir os termos da presente acção na posição processual de autora, a sociedade “C…, S.A.”) intentou no Juízo Central Cível[1] do Porto acção declarativa de simples apreciação (positiva) com processo comum contra o ESTADO PORTUGUÊS, pedindo que lhe seja reconhecida a titularidade do direito de propriedade sobre parcela de terreno em que se encontra implantado o prédio identificado no artigo 13.º do articulado inicial,«com fundamento no art. 15.º, 5, c), da LTRH e subsidiariamente, caso assim não se entenda, com fundamento no art. 15.º, 3 da LTRH».
Alegou, para tanto, em apertada síntese:
Tem registado a seu favor, na competente Conservatória, sob o n.º 2172-… (anteriormente, sob o n.º 29253), a propriedade de um prédio urbano sito na …, …, Porto, com a área total de 8 000 m2, com as seguintes confrontações: Norte, com a Estrada Nacional do …, com o rio Douro; …, com a fábrica …; Poente, com o caminho de acesso ao rio Douro.
O prédio está, em parte, implantado a menos de 50 metros do terreno coberto pelas águas do rio Douro quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades.
É facto notório que o rio Douro é um curso de água navegável e a parcela da margem fluvial da área em que se situa o prédio fica entre a entrada da barra e o limite do curso nacional do rio Douro, em Barca d’Alva, razão pela qual aquela parcela estava sujeita à jurisdição da Capitania do Porto do Douro à data de 24 de Outubro de 2005 (data da entrada em vigor da LTRH), pelo que uma parcela do prédio em questão situa-se presumivelmente no domínio público marítimo e é esta presunção de dominialidade que a Autora pretende ver afastada, por reconhecido o seu direito de propriedade privada, através da presente acção.
Descreve as sucessivas transmissões de propriedade e a posse do prédio anterior a 31 de Dezembro de 1864, transmissões essas devidamente documentadas, referindo, em especial, a aquisição por compra, pela “D…, Lda.” à E…, E.P.”, que, pelo Decreto-Lei n.º 25/89, de 20 de Janeiro, passou de pessoa colectiva de direito público a pessoa colectiva de direito privado, com o estatuto de sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos, passando a denominar-se E…, S.A., sendo que o prédio havia integrado o património da E…, E.P. por transferência da universalidade dos direitos e obrigações da F…, S.A.R.L., na sequência da nacionalização desta.
Resulta, ainda, do registo que, em data anterior a 26 de Fevereiro de 1930 era o prédio propriedade privada da F…, S.A.R.L., pelo que fica claro, porque documentalmente provado, que o prédio em causa se manteve ininterruptamente em propriedade privada desde data anterior a 1951 e até aos dias de hoje, estando ocupado por construção anterior a esse ano.
O prédio de que aqui se trata resultou de destaque de uma parcela de terreno com 8 000 m2 do prédio designado por “G…”, sito na freguesia de …, descrito no Livro B-48, folhas 158, sob n.º 13628”, com inscrição no registo predial, de 4 de Maio de 1888.
Faz a reconstituição da titularidade deste prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 13628 da freguesia de … desde a sua compra por H… e mulher I… a J… até à sua aquisição, por sucessão, por K…, assim se mostrando documentalmente provado que, também este prédio, se manteve ininterruptamente em propriedade privada desde antes de 31 de Dezembro de 1864, e que se encontrava ocupado por construção anterior a 1951.
Alega, ainda, que o prédio está integrado em zona urbana consolidada (facto certificado pela Câmara Municipal L…, denotando-o, ainda, a planta de localização e o levantamento topográfico), fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar e ocupado por construção anterior a 1951, como se comprova pelo averbamento n.º 3 feito ao prédio, de 26 de Fevereiro de 1930, através do qual foram anotadas especificações à descrição predial na sequência de requerimento da F…, S.A.R.L., que declarou que o prédio era todo vedado, em parte, por muros, e também em parte, por paredes de edificações próprias, ocupando uma superfície de 8.000 m² e com a servidão de duas penas de água potável da Fonte M….
Conclui que, situando-se o prédio, de cuja propriedade se arroga titular, parcialmente, em área presumivelmente integrante do domínio público marítimo, ilidiu tal presunção e por isso estão reunidos todos os requisitos para o reconhecimento do seu direito de propriedade.
2. Oposição
Citado, o demandado Estado Português, representado pelo Ministério Público, veio apresentar contestação, aceitando parte dos factos alegados pela autora e impugnando os demais.
Observa que o prédio identificado pela autora situa-se na freguesia de …, concelho do Porto, mas esta apresenta uma planta de localização do prédio e uma certidão atestando implantação do mesmo em zona urbana consolidada emitidos pela Câmara Municipal L… e um levantamento topográfico referente a um prédio confinado aos limites do concelho de Gondomar, pelo que só pode estar a referir-se a outro prédio.
A autora não logra provar que a desanexação efectuada a partir do prédio descrito sob o art.º 13628 (denominado como “G…”) corresponde ao prédio em causa nestes autos. Por isso não pode concluir-se que a reconstituição da titularidade deste prédio passa pela reconstituição da titularidade do prédio descrito na CRP do Porto sob o n.º 13628.
Não resulta provado que o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 2172, da freguesia de …, inscrito na matriz predial urbana sob os art.º 9421, 9422, 9423, 9424, da freguesia de …, concelho do Porto esteve ocupado de forma ininterrupta por construção anterior a 1951.
Tão pouco se manteve, de forma ininterrupta, na propriedade privada ou comum antes de 31 Dezembro de 1864, nem se manteve de forma ininterrupta na posse de particulares ou fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa, pois que, como refere a autora, a F…, S.A.R.L. foi nacionalizada por efeito do Decreto-lei n.º 532/75, de 25 de Setembro, na sequência do qual a universalidade dos bens, direitos e obrigações foi transferida para o Estado, passando a integrar o domínio público do Estado, estando fora do comércio e sendo insusceptíveis de apropriação individual.
Só através de acto de desafectação do domínio público do Estado, ocorrida através do Decreto-Lei n.º 25/89, de 20 de Janeiro, que transforma a E… de pessoa colectiva de direito público em pessoa colectiva de direito privado, os bens objecto de nacionalização, incluindo o referido prédio voltaram a propriedade privada.
Assim, uma vez que os prédios estiveram na propriedade pública do Estado desde 12/08/1975 até final de Janeiro de 1989, não se verifica o pressuposto do prédio se manter de forma ininterrupta na propriedade ou posse privada ou comum desde data anterior a 31/12/1864 nos casos dos art.ºs 15.º, n.º 2 e 3; ou antes de 1951, no caso do n.º 5, al. c), da LTRH, pelo que terá de improceder a pretensão da autora.
3. Saneamento e Condensação
Em despacho proferido a 26.02.2019, o Sr. Juiz entendeu dispensar a realização de audiência prévia, fixou em €1.121.810,00 o valor da acção, proferiu despacho saneador tabelar, fixou o objecto do processo e enunciou os temas de prova, de que houve reclamação.
Realizou-se, então, audiência prévia, na qual foi decidido indeferir a reclamação, admitiu-se a produção dos meios de prova indicados pelas partes e designou-se data para a audiência de julgamento.
4. Audiência final e sentença
Realizou-se a audiência final, em uma só sessão, no termo da qual, a requerimento e por expresso acordo das partes, foram apresentadas alegações escritas.
«Já após o encerramento da produção de prova, mas antes da apresentação das alegações escritas, o réu veio apresentar a documentação que consta de fls 569 a 705, invocando, além do mais, que a 10 de Março de 2017 a autora habilitada celebrou contrato de concessão de parcela do domínio público marítimo para empreendimento turístico, pelo qual, afirma, a autora habilitada obteve a concessão da parcela cujo direito de propriedade nos autos reivindica, reconhecendo tratar-se de terreno integrado no domínio público marítimo, o que pretende seja valorado na decisão de mérito a tomar no âmbito dos presentes autos.
Entende que a outorga de tal contrato implica a renúncia à reivindicação do direito de propriedade privada sobre a dita parcela, e que a pretensão formulada no âmbito dos presentes autos traduz abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
Concede que no texto do contrato foi feita constar cláusula que expressamente refere não reconhecer o concessionário (a aqui autora habilitada) a inserção da parcela em causa no domínio público, reservando-se o direito a recorrer a juízo para obter o reconhecimento do direito de propriedade privada, mas defende que tal cláusula nenhuma relevância jurídica possui, devendo considerar-se não escrita.
Entende que a outorga do dito contrato não pode deixar de ser interpretada, da parte da aqui autora habilitada, como reconhecimento por esta que a parcela de terreno em causa nestes autos integra o domínio público marítimo.
A autora habilitada pronunciou-se sobre a matéria, reconhecendo a outorga do contrato de concessão cuja cópia foi junta, mas negando que tal traduza qualquer reconhecimento da integração da parcela no domínio público, ou renúncia à reivindicação do direito de propriedade que nestes autos pretende fazer valer»[2].
Com data de 13.03.2020, foi proferida sentença[3] com o seguinte dispositivo (transcrição):
«Pelo exposto,
I - Julgo a presente acção parcialmente procedente, e, em consequência, declaro reconhecido o direito de propriedade privada da autora “C…, SA”, sobre o prédio sito na …, …, Porto, com 8000m2 de área total (4038m2 de área coberta e 3962m2 de área descoberta), composto de 4 casas e logradouro (sendo 2 casas de 1 pavimento e 2 casas de 3 pavimentos), a confrontar de norte com estrada nacional Porto – …, do sul com rio Douro, de nascente com a Fábrica …, e de poente com caminho de acesso ao rio Douro, inscrito na matriz sob os artigos 9421º, 9422º, 9423º e 9424º, e descrito na conservatória do registo predial sob o nº 2172/19970813, nele se incluindo a totalidade da parcela implantada a menos de 50 metros do terreno coberto pelas águas do rio Douro quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades;
II- Julgo a presente acção improcedente na parte restante».
5. Impugnação da sentença
Irresignado, almejando a revogação da sentença, dela apelou o Ministério Público, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões:
«I) Introdução
1 - A sentença recorrida reconheceu a propriedade da autora sobre o prédio integrado na margem direita do Rio Douro, o qual é navegável, sendo que o respectivo troço, de águas interiores sujeitas à influência das marés, encontra-se sob jurisdição das autoridades marítima e portuária, respectivamente da Capitania do Porto do Douro e a APDL – Administração dos Portos de Douro, Leixões e Viana do Castelo, SA.
2 - A parcela da margem do Rio Douro onde o prédio se encontra implantado está compreendida no domínio público marítimo e integra o domínio público do Estado – art.ºs º3, al. e) e 4º da Lei nº 54/2005.
3 - No troço do Rio Douro correspondente à margem em que o prédio se insere, a mesma tem a largura de 50 metros (art.º 11.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, na actual versão).
4 - Para o local em apreço não se apurou estar o domínio público marítimo delimitado segundo o formalismo legal exigido (Decreto-Lei n.º 353/2007, de 26/10 e Portaria 931/2010, de 20/9) nem se conhece qualquer diligência nesse sentido.
5 - Nesta medida, o reconhecimento da propriedade privada da parcela da margem do Rio Douro ocupada pelo prédio está sujeita ao regime estabelecido no artigo 15.º n.ºs 2, 3 ou 5 da Lei n.º 54/2005.
6- Ora, foi com base na verificação dos pressupostos que alude o art.º 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro que o Tribunal a quo reconheceu a propriedade privada da totalidade do prédio em questão à aqui autora.
II) Ampliação da matéria de facto
7- Na fundamentação de direito faz-se referência à nacionalização da F…, SARL e ao facto do prédio pertencer à empresa nacionalizada até 1987, data em que o prédio foi transmitido para a Sociedade “E…, EP”, empresa de capitais públicos.
8- No entanto, tais factos não constam da matéria dada como provada, sendo certo que são factos essenciais à composição da lide.
9- Nesta medida, entende-se que devem ser incluídos na matéria provada os seguintes factos:
“7.1 - A F… S.A.R.L foi nacionalizada pelo Decreto-Lei n.º 532/75, de 25 de Setembro, pelo que as universalidades dos bens direitos eobrigações foram transferidos para o Estado.
7.2 – O Decreto-Lei n.º 25/89 de 20 de Janeiro, que transforma a E…, EP, de pessoa colectiva de direito público em pessoa colectiva de direito privado: E…, S.A., conservando esta a universalidade de direitos e obrigações que constituem o seu património, incluindo o prédio aqui emcausa.”.
10- Tais factos resultam directamente dos Decretos-Lei 532/75, de 25 e Setembro e do Decreto-Lei n.º 25/89, e 20 de Janeiro, pelo que devem ser acrescentados à matéria de facto, atenta a sua relevância, sendo que tal conhecimento impõe-se a esse Venerando Tribunal, uma vez que o mesmos não carecem de produção de prova.
III) Impugnação de direito
1) A integração do prédio no domínio público do Estado
11- São diversos os critérios com base nos quais podem ser, ou têm sido,classificados os bens dominiais.
12- Aplicando estes critérios à parcela da margem do Rio Douro onde sesitua o prédio em apreço resulta que essa parcela integra vários domínios: a) o domíniopúblico natural (face ao processo da sua criação); b) o domínio público hídrico, aquidomínio público marítimo (face à sua consistência material); c) que pertence ao Estado(quanto a titularidade do direito - Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro).
13- Assim, da classificação em função do processo da sua criação constata-sea existência do domínio público natural correspondente a domínio públicohídrico/marítimo.
14- Não é concebível a existência de desafectação tácita de bens queintegram o domínio público natural e, nomeadamente, não se compagina com as faixasdo território correspondentes a margens do domínio público hídrico porque subordinadasa um regime especial.
15 - Com a nacionalização da sociedade F… deu-se a transferência do seu património para o Estado, incluindo o prédio aqui em questão na parte que integrava o domínio público (marítimo) do Estado.
Manteve-se no domínio público do Estado, mas agora afecto ao sector empresarial do Estado.
16- Com o Decreto-Lei 25/89, de 20 de Janeiro a E… E.P., criada pelo Decreto Lei n.º 530/77 de 3 de Dezembro, para quem foramtransferidos as universalidades dos direitos e obrigações, entre outras, da F…, S. A. R. L., extinta por este diploma, foi convertida de pessoa colectiva dedireito público em pessoa colectiva de direito privado e passou a sociedade anónima,embora de capitais maioritariamente públicos, passando a designar-se E…, S.A.
17- O prédio aqui em questão passou então para a propriedade de umapessoa colectiva de direito particular.
18- Mas este diploma apenas desafecta o prédio ao sector empresarial do Estado, não faz a desafectação do regime público hídrico da parcela que integra os 50 m da margem do Rio Douro. Esta parcela continua a integrar o domínio público marítimo.
19- Em princípio a desafectação não é possível senão por lei quando adominialidade não se funda apenas nas características materiais da coisa – cf. DiogoFreitas do Amaral e José Pedro Fernandes, in «Comentário à Lei dos Terrenos doDomínio Hídrico», publicado pela Coimbra Editora, 1978, no comentário n.º 45 ao artigo8.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 e Novembro.
20- Devido à sua natureza originária - domínio público natural – asmargens das águas em geral - e, nomeadamente, das águas públicas - não carecem dequalquer utilização física e específica para justificar a sua manutenção no domíniopúblico.
21 - Não existiu qualquer desafectação tácita ou expressa do domíniopúblico marítimo.
22- No caso em apreço em 21/06/1902, pela inscrição 19366, o prédio aquiem questão foi inscrito a favor da F… por compra à Companhia N….
23- Em 25 de Setembro de 1975, por força do Decreto-Lei n.º 532/75, de25 de Setembro, a F… foi nacionalizada com eficácia a contar de 12de Agosto de 1975 e o património da mesma foi transferidos para o Estado, incluindo oprédio aqui em apreço.
24- Assim, importa analisar quais os efeitos da nacionalização nopatrimónio da sociedade nacionalizada, concretamente no que respeita ao prédio aqui emquestão.
25- Em virtude da nacionalização da F… S.A.R.L., prédio objecto deste processo, juntamente com o restante património da sociedade foram transferidos para o Estado.
26- Dispõe o n.º2, do art.º 3, do Decreto-Lei n.º 532/75 que o disposto non.º1, constitui título comprovativo da transferência, para todos os efeitos legais, incluindoos de registo.
27- O art.º 3.º al. e) e 4.º da Lei n.º 54/2005, estabelece uma presunção dedominialidade a favor do Estado, que poderá ser afastada nos termos do art.º 15.º, domesmo diploma.
28- A sentença recorrida desde logo afastou a verificação dospressupostos a que alude o art.º 15.º, n.º5, al. c) da Lei n.º 54/2005.
29- Então, era necessário a verificação dos pressupostos do artº 15.º, n.º2ou 3, do referido diploma.
30- Tanto quanto se alcança o Tribunal a quo acabou por reconhecer apropriedade do prédio em questão, incluindo os 50 m integrados na margem do RioDouro, nos termos do art.º 15.º, n.º2, da Lei n.º 54/2005.
31- Não basta a prova que determinado prédio era objeto de propriedadeparticular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864, ou na falta de título legítimo, queestava na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduoscompreendidos em certa circunscrição administrativa.”
32- Importa ainda que tais prédios se tenham mantido nessa situação, ou seja na propriedade particular ou comum ou na posse em nome próprio de particulares ou fruição conjunta de forma ininterrupta, até hoje.
33- A ratio legis das normas contidas no citado art.º 15.º n.º2 e n.º3 visa atutela dos direitos adquiridos por particulares a título individual ou comum/colectivodecorrentes da propriedade ou da posse.
34- Ao contrário do que parece ser o entendimento do Tribunal a quo, estãofora do âmbito de protecção da norma os direitos de qualquer ente público, ou melhorqualquer pessoa colectiva de direito público, por contraposição com o texto da lei:“objeto de propriedade particular ou comum” no caso do n.º2, ou “estavam na posse emnome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos emcerta circunscrição administrativa”, no caso do n.º3, ambos do art.º 15.º da Lei n.º54/2005.
35- Se se pretende tutelar os direitos adquiridos por particulares, a título individual ou comum, é uma decorrência lógica que o prédio tem de se manter de forma ininterrupta na propriedade de particulares a título individual ou comum.
36- Ora, não terá sido este o entendimento do Tribunal a quo.
37 – Se se apurar que o prédio depois de 1864 integrou a propriedade de uma pessoa colectiva de direito público, deixou de existir o pressuposto inerente ao âmbito de protecção da norma.
38- Ainda que o prédio volte mais tarde a entrar na propriedade ou posse de particulares a título individual ou comum, deixou de existir a razão de ser da protecção dos direitos adquiridos previstos no art.º 15.º, n.º 2 e 3 da Lei 54/2005.
39- No caso em apreço, através da nacionalização operada pelo Decreto-Lei n.º 532/75, de 26 de Setembro, o Estado procedeu à nacionalização da F…, S.A.R.L. e nesta medida: “ a universalidade dos bens,direitos e obrigações que integram o activo e passivo da F…,S.A.R.L, ou que se encontrem afectos à respectiva exploração são transferidos para oEstado (…).”.
40- Ora, uma vez que o prédio em questão esteve na propriedade do Estado, não se verifica o pressuposto do prédio se manter de forma ininterrupta na propriedade ou posse privada ou comum desde data anterior a 31/12/1864, no casos dos art.ºs 15.º, n.º 2 e 3 até aos dias de hoje.
41- A nacionalização, teve por base a utilidade pública e implicou a transferência de tal prédio para a propriedade do Estado.
42- A desafectação do prédio ao sector empresarial do Estado deu-se através de um acto legislativo (o Decreto-Lei n.º 25/89, de 20 de Setembro).
Mas este diploma não abarca, nem tem qualquer efeito sobre o domínio público marítimo do Estado. A este nível não existiu qualquer acto de desafectação, dos 50 m da margem do Rio Douro.
43 -Concluímos, assim, que transferência da propriedade para o Estado doprédio que integra a parcela de 50m da margem do Rio Douro, por meio danacionalização, interrompeu a permanência do prédio na propriedade de particulares atítulo individual ao comum - o que impede a sua aquisição por terceiros, por não severificarem os pressupostos do art.º 15.º, n.º2 ou 3.º da Lei n.º 54/2005.
44 – O art.º 15.º, n.º2 ou 3, da Lei n.º 54/2005, deveria ter sido interpretado no sentido de ser necessário que o prédio estivesse na propriedade particular ou comum ou na posse em nome próprio de particulares ou fruição conjunta, de forma ininterrupta desde 1864 até hoje.
45 – Se a norma visa a tutela dos direitos adquiridos por particulares atítulo individual ou comum/colectivo decorrentes da propriedade ou da posse, tal tuteladeixa de existir se o prédio depois de 31/12/1864 esteve na posse ou propriedade de algumente público, ainda que posteriormente tenha ingressado de novo na posse de particulares.
46 - Ao contrario do Tribunal a quo parece-nos que é indiferente saber se a transferência da propriedade pela nacionalização se deu para o domínio público do Estado ou para a propriedade privada do Estado.
47 - A resposta a esta questão só seria pertinente se se entendesse que oart.º 15.º n.º2 ou 3, da Lei 54/2005, não exige que a propriedade permaneça após 1864,de forma ininterrupta na propriedade de particulares - o que não concedemos.
48- No entanto, não poderemos deixar de referir que o preâmbulo doDecreto-Lei 532/75, resulta evidenciado o interesse público da nacionalização.
49- Tais bens, incluindo o prédio em apreço, foram colocados ao serviçodo país, no interesse de todos os cidadãos.
50- Embora o prédio em questão continuasse afecto à unidade produtivada sociedade nacionalizada, ele foi posto ao serviço do país e dos cidadãos.
51- Por tal motivo entendemos que integrou a propriedade pública doEstado, tanto mais que a sua desafectação do sector produtivo do Estado se deuigualmente por um acto legislativo.
52- Se o prédio fosse integrado na propriedade privada do Estado, nãohavia necessidade de um acto de desafectação.
53- O Estado não precisa de um acto de desafectação para alienar outransmitir o património que não integra o domínio público.
54- Assim, o prédio em apreço deixou de integrar o sector produtivo doEstado, mas manteve-se, no que respeita aos 50m da margem do Rio Douro, no domíniopúblico marítimo.
55- Concluímos assim, pela fata de verificação dos pressupostos a quealude o art.º 15.º, n.º2 e 3, da Lei 54/2005, pelo que se impõe improcedência da acção noque respeita aos 50m da margem do Rio Douro, por integrarem o domínio públicomarítimo.
56 - A sentença recorrida violou de forma expressa, além do mais asnormas contidas nos art.ºs 3º, al. e) e 4º, e no art.º15.º, n.º2 e 3, da Lei n.º 54/2005.»
A autora habilitada contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação do decidido.
O recurso foi admitido como apelação (com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo).
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Apesar da extensão das conclusões, são, apenas, duas as concretas questões a decidir.
A decisão sobre matéria de facto pode revelar deficiências ou patologias que não configuram propriamente erros de julgamento.
Assim acontece quando se mostre indispensável a ampliação da matéria de facto, caso em que a Relação pode intervir, mesmo oficiosamente (artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC).
O recorrente considera que há «factos essenciais à composição da lide» que não constam da factualidade provada e pretende que a esta sejam acrescentados (conclusões 8.ª e 9.ª).
Essa é a primeira questão a apreciar e decidir: se se impõe a ampliação da matéria de facto nos termos propugnados pelo recorrente.
Em matéria de direito, a questão está em saber se o reconhecimento, a favor da autora, da propriedade sobre parcela da margem do Rio Douro nos termos previstos no artigo 15.º, n.os 2 e 3, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro[4], exige que o prédio que a integra se tenha mantido, ininterruptamente, no domínio privado desde data anterior a 31 de Dezembro de 1864 até à actualidade, ou seja, até à data em que a acção é proposta.
II – Fundamentação 1.1 Fundamentos de facto
Delimitado o thema decidendum, atentemos na factualidade que a primeira instância deu por assente.
Factos provados
1) O prédio sito na …, …, Porto, com 8000m2 de área total (4038m2 de área coberta e 3962m2 de área descoberta), composto de 4 casas e logradouro (sendo 2 casas de 1 pavimento e 2 casas de 3 pavimentos), a confrontar de norte com estrada nacional Porto – Entre-os-Rios, do sul com rio Douro, de nascente com a Fábrica …, e de poente com caminho de acesso ao rio Douro, inscrito na matriz sob os artigos 9421º, 9422º, 9423º e 9424º, mostra-se descrito na conservatória do registo predial sob o nº 2172/19970813, e o respectivo direito de propriedade esteve registado a favor de “B…, SA”, por compra, até 14 de Junho de 2018 [artigo 13º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 10º da contestação; documento que consta de fls 118 a 120].
2) Por escritura pública outorgada a 09 de Março de 2001, “O…, SA”, declarou vender, e a sociedade “B…, SA”, declarou comprar, pelo preço global de 253.530.110$00, o prédio referido em 1- [artigo 28º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 11º da contestação; documento que consta de fls 123 a 126].
3) Por escritura pública outorgada a 27 de março de 1998, a sociedade “P…, SA”, declarou vender, e a sociedade “O…, SA”, declarou comprar, pelo preço global de 250.000.000$00, o prédio referido em 1- [artigo 29º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 11º da contestação; documento que consta de fls 127 a 131].
4) A sociedade “P…, SA”, anteriormente possuiu a denominação “Q…, SA” [artigo 30º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 11º da contestação; documento que consta de fls 171 a 192].
5) A sociedade “Q…, SA”, adquiriu, por fusão, a sociedade “D…, Ldª” [artigo 31º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 11º da contestação; documento que consta de fls 132 a 192].
6) Por compra levada ao registo predial a 03 de Abril de 1989, a sociedade “D…, Ldª”, adquiriu à sociedade “E…, EP”, o prédio descrito na conservatória do registo predial sob o nº 29253 do Livro nº 88 [artigo 32º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 11º da contestação; documento que consta de fls 118 a 120 e 245 a 248].
7) Em 1987 a “E…, EP”, adquiriu, por transferência, a universalidade dos direitos e obrigações da sociedade “F…, SARL” [artigo 34º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 11º da contestação; documento que consta de fls 118 a 120 e 245 a 248].
8) A descrição predial em ficha referida em 1- corresponde à descrição nº 29253 do Livro nº 88 [documento que consta de fls 118 a 120 e 245 a 248].
9) Por averbamento nº 1, de 10 de Fevereiro de 1890 à descrição referida em 8-, fez-se constar que no terreno aí identificado se estão construindo diversas casas, formando o edifício da fábrica de estearina e sabão denominada Douro [artigo 75º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 15º da contestação; documento que consta de fls 98 a 117].
10) Por averbamento nº 2, de 26 de Março de 1895, à descrição referida em 8- fez-se constar que no terreno aí identificado é composto de um edifício, em que se acha estabelecida a “F1…”, que consta de uma casa sobradada, que serve de escritório e habitação, diversas edificações ao nascente daquele, formando 4 cumes onde se acham instaladas as oficinas da fábrica e diversas porções de terreno contíguo, ao lado nascente uma casa que serve de serralharia, ao lado sul, estremo poente, existe um pontilhão de madeira com elevador hidráulico para o serviço da fábrica [artigo 75º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 15º da contestação; documento que consta de fls 245 a 270, com transcrição a fls 426 a 438].
11) Por averbamento nº 3, de 26 de Fevereiro de 1930, à descrição referida em 8- fez-se constar que no terreno aí identificado é todo vedado, em parte por muros e em parte por paredes de edificações próprias, ocupando uma superfície de 8.000m2, e com servidão de 2 penas de água potável da Fonte M…, nele existindo edificações que, no seu conjunto, constituem uma fábrica de sabão e suas dependências [artigos 38º e 75º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 11º da contestação; documento que consta de fls 245 a 270, com transcrição a fls 426 a 438].
12) A descrição nº 29253, referida em 8-, a 04 de Maio de 1888 identificava um terreno que faz parte da G…, situado na freguesia de …, com 8 000 m2 de área, a confrontar de sul com o rio Douro, para onde faz frente, de norte com H… até ao sítio onde se projecta abrir a estrada marginal, de nascente com o mesmo H…, do poente com caminho de servidão privativo do dito H… e da sociedade “S… e Cª”, e que abre até ao rio com uma largura de 10 metros; e foi desmembrado do prédio descrito sob o nº 13628, no livro nº B-48 [artigo 47º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 17º da contestação; documento que consta de fls 245 a 270, com transcrição a fls 426 a 438].
13) Pela inscrição nº 19366, de 21 de Junho de 1902, relativa à descrição referida em 8-, foi inscrita definitivamente a favor da “F…” a transmissão do direito de propriedade já descrita a fls 167 do Livro B-88 sob o nº 29253 por compra à “N…”, por escritura de compra e venda de 22 de Abril de 1898 [artigo 42º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 14º da contestação; documento que consta de fls 245 a 270, com transcrição a fls 426 a 438].
14) Pela inscrição nº 15025, de 26 de Março de 1895, relativa à descrição referida em 8-, a “F…” apresentou carta de sentença cível de arrematação para título registo e posse, passada a 15 de Março de 1895, pela qual a apresentante “F…” adquiriu em processo de execução um edifício em que se acha estabelecida a “Companhia F1…”, sito no lugar …, …, composto de casa sobradada que serve de escritório e habitação, diversas edificações a nascente, formando 4 cumes onde se acham instaladas as oficinas da fábrica, casa de máquinas, caldeiras e outros serviços inerentes à laboração da fábrica e diversas porções de terreno contíguo, do lado nascente uma casa que serve de serralharia, do lado sul extremo poente um pontilhão de madeira com elevador hidráulico, formando tudo uma área já descrita a fls 167 do Livro B-88 sob o nº 29253, arrematação feita a 16 de Junho de 1894 [artigo 43º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 11º da contestação; documento que consta de fls 245 a 270, com transcrição a fls 426 a 438].
15) Pela inscrição nº 11470, de 10 de Fevereiro de 1890, relativa à descrição referida em 9-, a “Companhia F1…”, apresentou escritura de venda pela qual a sociedade “S…”, vendeu à apresentante “Companhia F1…” a fábrica de estearina e sabão denominada Douro, edificada em terrenos da G…, pertença das freguesias de … e …, descritos a fls 167 no livro B-88, sob o nº 29253 [artigo 45º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 14º da contestação; documento que consta de fls 245 a 270, com transcrição a fls 426 a 438].
16) Pela inscrição nº ….., de 04 de Maio de 1888, relativa à descrição referida em 9-, H…, por si e como procurador de sua esposa, I…, apresentou registo provisório de transmissão, datada de 04 de Maio de 1888, relativa a uma porção de terreno desmembrado da G…, com 8.000 m2 de área, sito no lugar de …, …, descrito no Livro nº B-88, a fls 167, sob o nº 29253, a favor da sociedade “S…” [artigos 46º e 47º da petição inicial; matéria expressamente impugnada nos artigos 14º e 17º da contestação e no artigo8º do requerimento de fls 482 e ss; documento que consta de fls 245 a 270, com transcrição a fls 426 a 438].
17) Por averbamento nº 1 à inscrição referida em 13-, fez-se constar que a sociedade “S…”, apresentou escritura de venda outorgada a 14 de Junho de 1888, convertendo em definitivo o registo provisório nº ….. [artigo 46º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 14º da contestação; documento que consta de fls 245 a 270, com transcrição a fls 426 a 438].
18) A fls 158 do Livro B-48 consta a descrição nº 13628, de 10 de Junho de 1875, com o seguinte teor: G…, que se compõe de palácio com 4 torres, pátios com gradilho de ferro em volta, jardins com arbustos, tanques com água de bica, armazéns onde se acha uma fábrica de destilação com uma chaminé de tijolo, casa de um andar para caseiros, eira, casa da mesma, terras lavradias, pomares, ramadas e vinha, terra de mato e lenha, um lago, tanques com água de bica e esta conduzida em alcatruzes de ferro por toda a quinta, forno de cal ao sul desta, que se denomina sítio de …. É toda murada em volta, com portões fronhos e um portão de ferro em frente da estrada de São Cosme, que é a entrada principal da quinta, por uma estrada de macadame.
É sita na rua …, freguesia de …, parte na de …. Confronta do nascente com estrada, do poente com o rio Douro, do norte com a … e T…, U…, V… e W…, e do sul com caminho da … [artigos 49º e 52º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 14º da contestação; documento que consta de fls 245 a 270, com transcrição a fls 426 a 438].
19) Por averbamento nº 1 à descrição referida em 18-, de 23 de Janeiro de 1900, fez-se constar que o prédio descrito se compõe de uma quinta denominada …, sita no lugar assim chamado, freguesia …, e é composto de uma morada de casas sobradadas, com o nº 60, lojas, aidos, terra lavradia, 3 lagos com água para uso doméstico e rega, ramadas de vinha, uma parte de terra a mato e madeiras. Confronta do nascente com o caminho que vai para a …, do poente com herdeiros de T… e de X…, do norte com Y… e Z… e outros, e do sul com X… e outros [artigo 49º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 14º da contestação; documento que consta de fls 245 a 270, com transcrição a fls 426 a 438].
20) Por escritura de compra e venda celebrada a 01 de Setembro de 1880, H… declararam comprar a J…, a propriedade urbana e rústica denominada G… e suas pertenças, pertencendo parte à freguesia de … e outra à freguesia de …, Gondomar; um campo denominado da …, sito junto à dita quinta, na dita freguesia de …, e a Quinta denominada de …, sita no lugar da …, freguesia de …, concelho de Gondomar [artigo 49º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 14º da contestação; documentos que constam de fls 245 a 270, com transcrição a fls 426 a 438, e 273 a 289, com transcrição a fls 439 a 448].
21) Pela inscrição nº 5536, de 01 de Outubro de 1880, relativa à descrição referida em 18-, foi registada a aquisição do direito de propriedade sobre a G…, o Campo … e a Quinta de …, prédios descritos na conservatória do registo predial sob os nº 13628, 13629 e 13630 por H…, por compra à … [artigo 49º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 14º da contestação; documento que consta de fls 245 a 270, com transcrição a fls 426 a 438].
22) Pela inscrição nº 2374, de 10 de Junho de 1875, relativa à descrição referida em 18-, foi feito constar que a … apresentou sentença cível formal de partilha, passada para título e posse, a 01 de Maio de 1875, certificando sentença que homologou a decisão que autorizou a separação de pessoas e bens entre a apresentante e o …, ficando por esse título definitivamente inscrito a favor da … o direito de propriedade sobre a G…, o Campo … e a Quinta …, prédios descritos na conservatória do registo predial sob os nº 13628, 13629 e 13630 [artigo 51º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 14º da contestação; documento que consta de fls 245 a 270, com transcrição a fls 426 a 438].
23) Por escritura de transacção, celebrada a 1877, J… e AB…, respectivamente … e …, o segundo declarou prestar à primeira autorização para livremente vender os bens imóveis que lhe pertenceram em pagamento da sua meação pelas partilhas, entre eles o prédio denominado “G…” [artigo 50º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 14º da contestação; documento que consta de fls 309 a 315, com transcrição a fls 459 a 463].
24) Por contrato antenupcial de 16 de Junho de 1869, celebrado perante tabelião público, AB… e J…, respectivamente Barão e Baronesa …, declararam dar de hipoteca à obrigação que tomam da mesada com que hão-de concorrer para os encargos do matrimónio entre o seu filho, AB1…, e AC…, uma parte do seu palácio em que residem, sito no …, freguesia de …, a confrontar do norte com a estrada pública, do sul com o rio Douro, de nascente com o caminho público que vai para a …, e do poente com o regato que corre de … [artigo 53º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 14º da contestação; documento que consta de fls 318 a 326, com transcrição a fls 464 a 469].
25) Por escritura de compra e venda perante tabelião público outorgada a 14 de Maio de 1857, AD… e esposa, AE… declararam vender, e AF… declarou comprar, uma Quinta denominada do …, que se compõe de prédios urbanos e rústicos e quatro domínios directos, constando na parte urbana um palácio com as suas oficinas e jardins, e na parte rústica terras de semeadura, chamadas de fora do palácio, jardins e pomares, minas e canos de água, dois fornos de cal e os terrenos incultos que lhe são anexos e pertenças da mesma propriedade, tudo situado na margem do rio Douro e sítio de …, Porto [artigo 54º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 14º da contestação; documento que consta de fls 327 a 334, com transcrição a fls 470 a 476].
26) Por escritura de promessa de compra e venda outorgada a 11 de Abril de 1857, AD… e esposa, AE… declararam prometer vender, e AF… declarou prometer comprar, o palácio denominado do …, situado na margem do rio Douro e no sítio de …, Porto, que se compõe de prédio nobre com as suas oficinas, jardins e terras de semeadura, que lhe são contíguas, assim como são pertenças da mesma propriedade os terrenos incultos [artigo 54º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 14º da contestação; documento que consta de fls 335 a 338, com transcrição a fls 477 a 479].
27) Por escritura pública celebrada a 14 de Junho de 2018, a sociedade “B…, SA”, declarou vender, e “C…, SA”, declarou comprar, o prédio urbano identificado em 1-, após o que a aquisição foi levada ao registo predial [documentos que constam de fls 22 a 28 do apenso A].
28) A implantação física do prédio referido em 1- é a que resulta da planta de localização que consta de fls 76 e 77 [artigo 15º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 17º da contestação].
29) O prédio referido em 1- encontra-se parcialmente implantado a menos de 50 metros do terreno coberto pelas águas do Rio Douro quando não influenciadas por cheias extraordinárias, entre a entrada da barra do rio Douro e o limite do curso nacional deste [artigos 16º, 17º e 23º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 10º da contestação].
30) As águas do rio Douro em cuja margem o prédio referido em 1- se encontra implantado situam-se aquém da barragem de Crestuma, estando sujeitas à influência das marés [artigos 18º e 20º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 10º da contestação].
31) O rio Douro é um curso de água navegável [artigo 21º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 10º da contestação].
32) O prédio referido em 1- não se encontra implantado em zona inundável ou ameaçada pelas cheias das águas do mar [artigo 72º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 15º da contestação].
* Factos não provados:
a - o prédio referido em 1- se encontre implantado em «zona urbana consolidada» [artigo 62º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 15º da contestação];
b - a área territorial onde o prédio referido em 1- se mostra implantado integre malha ou estrutura urbana definida, e que aí há mais de 1 século existam infra-estruturas essenciais [artigo 69º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 32º da contestação].
* 1.2Da necessidade de ampliação da matéria de facto
É o julgamento de facto que decide a concreta aplicação do direito, ou, na expressão mais douta do Professor J. Lebre de Freiras e de Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, Almedina, 4.ª edição, pág. 704) «a aplicação do direito pressupõe o apuramento de todos os factos da causa que, tidos em conta os pedidos e as excepções deduzidas, sejam relevantes para o preenchimento das previsões normativas, sejam elas de normas processuais, sejam de normas de direito material».
No desempenho da tarefa de fixar os factos, o juiz, não só deve evitar convicções apriorísticas como «não deve orientar-se por uma preconcebida solução jurídica do caso, antes deve assegurar que sejam recolhidos todos aqueles que se mostrem relevantes em função das diversas soluções plausíveis da questão de direito»[5].
Como referimos a propósito da definição do objecto do recurso, o recorrente considera que há factos essenciais para o julgamento da lide que foram alegados por ambas as partes (artigo 36.º da p.i. e artigo 44.º da contestação), mas que não foram, e deviam ter sido, incluídos no elenco de factos provados, apesar de a eles se aludir na fundamentação de direito.
Concretamente, entende que se impõe o aditamento do seguinte:
“7.1 - A F…, S.A.R.L foi nacionalizada pelo Decreto-Lei n.º 532/75, de 25 de Setembro, pelo que a universalidade dos bens direitos e obrigações foram transferidos para o Estado.
7.2 – O Decreto-Lei n.º 25/89 de 20 de Janeiro, transforma a E…, EP, de pessoa colectiva de direito público em pessoa colectiva de direito privado: E…, S.A., conservando esta a universalidade de direitos e obrigações que constituem o seu património, incluindo o prédio aqui em causa.”.
Decorre do disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 607.º do CPC que na fundamentação da sentença devem constar, discriminadamente, os factos[6]:
- que o tribunal julga provados[7] (os envolvidos especificamente nos temas de prova) em resultado da audiência final;
- que já estejam provados por acordo das partes (e que hão-de resultar do confronto das posições que as partes assumiram nos respectivos articulados – artigo 574.º, n.º 2);
- que estejam confessados (por confissão judicial ou extrajudicial reduzida a escrito);
- que resultem de documentos dotados de força probatória plena[8].
Os factos que o recorrente pretende que sejam, também, inseridos no rol dos provados não são controvertidos e a solução jurídica para a qual seriam essenciais pode considerar-se defensável, não é descabida.
Assim sendo, como é, não haveria motivo para desatender a pretensão do recorrente.
Sucede que os factos jurídicos em causa não são mais que a reprodução do conteúdo essencial dos diplomas legais neles mencionados ou, como refere o recorrente, «resultam directamente dos Decretos-Lei 532/75, de 25 de Setembro e do Decreto-Lei n.º 25/89, de 20 de Janeiro» e «não carecem de produção de prova».
Por isso, a serem relevantes para o mérito do recurso, sempre poderão ser tidos em conta, sem necessidade de os enunciar na decisão sobre matéria de facto.
2. Fundamentos de direito
O que está aqui em causa é o reconhecimento da titularidade privada da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens de águas navegáveis ou flutuáveis, concretamente, das margens do rio Douro.
O artigo 15.º da Lei n.º n.º 54/2005, de 15 de Novembro, que define a titularidade dos recursos hídricos (abreviadamente, LTRH), determina que tal desiderato só se alcança com a instauração de acção adrede dirigida a esse reconhecimento.
Os leitos e as margens (sendo a margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas e que, relativamente às águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias, tem a largura de 50 m, conforme estabelece o artigo 11.º, n.os 1 e 2, da LTRH) desses cursos de água são, presuntivamente, do domínio público (artigo 12.º, n.º 1, al. a), da LTRH).
Essa presunção de dominialidade dos leitos e das margens dos rios navegáveis e flutuáveis tem a sua origem remota no Decreto de 31 de Dezembro de 1864 que, pela primeira vez, os incluiu no domínio público.
Com efeito, dispunha o artigo 2.º desse diploma:
«Igualmente são do dominio publico, imprescriptivel, os portos de mar e praias, os rios navegaveis e fluctuaveis com as suas margems, os canaes e valas, portos artificiaes e dicas existentes ou que de futuro se construam».
No entanto, havia que ressalvar direitos adquiridos por particulares sobre terrenos desses leitos e dessas margens e o quadro normativo evoluiu no sentido da consagração da orientação doutrinária segundo a qual a presunção de dominialidade cedia perante a prova de que parcelas desses terrenos, por título legítimo, entraram no domínio privado antes de 31 de Dezembro de 1864. Ou seja, o Estado beneficia de presunção juris tantum de dominialidade, o que não impede que subsistam direitos de propriedade privados já existentes àquela data[9].
Como se ponderou no acórdão do STJ de 04.06.2013 (processo n.º 6584/06.2TBVNG.P1.S1), «A circunstância de um terreno se situar nos limites do domínio público, não obsta a que possam subsistir direitos de natureza privada já existentes. As dúvidas que frequentemente se suscitam quanto à existência e origem desses direitos devem ser resolvidas por aplicação do regime de reconhecimento que o legislador estabeleceu, quer no diploma de 1971 (art. 8.º)[10], quer no diploma de 2005 (art. 15.º)[11]. Essas faixas de terreno, qualificadas como margens, estão sujeitas a uma presunção juris tantum de propriedade pública, mas podem os particulares invocar direitos de natureza privada, devendo para tal elidir essa presunção, mediante propositura de acção judicial».
Foi isso que se propôs fazer a autora em relação a uma parcela de terreno que se localiza na margem direita do rio Douro e que, segundo ela, é parte integrante do seu prédio descrito sob o n.º 1 do elenco de factos provados.
Em primeiro plano, o reconhecimento do direito de propriedade com fundamento no artigo 15.º, n.º 5, al. c), da LTRH, porque o terreno estaria integrado em zona urbana consolidada (tal como é definida no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação aprovado pelo Dec. Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro), localizado fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, ocupado por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado. Por conseguinte, sem sujeição ao regime de prova estabelecido nos n.os 2 a 4 do mesmo artigo.
Para o caso de não vingar, como não vingou, essa hipótese, o reconhecimento do mesmo direito com base no n.º 2 daquele artigo 15.º, demonstrando documentalmente que tal parcela de terreno era, por título legítimo, propriedade particular antes de 31 de Dezembro de 1864.
Foi este fundamento invocado a título subsidiário que se revelou subsistente, estando a sua verificação assim justificada na sentença recorrida:
«Ora, este imóvel, situado na margem do rio Douro, foi a 14 de Maio de 1857 adquirido por um privado, AB…, através de escritura pública celebrada perante tabelião público, como se disse modo legítimo de adquirir coisa imóvel privada face ao regime jurídico vigente antes de 1867 (ponto 25- da matéria de facto provada).
E, diga-se a talho de foice, resulta clara e documentalmente demonstrado que, de 1857 a esta data, aquele imóvel, integrando a parcela de terreno que dista menos de 50 metros da linha de água do rio Douro, permaneceu incluído no património privado de sucessivas entidades.
Mostra-se preenchida a hipótese legal da norma consagrada no nº 2 do artigo 15º da Lei nº 54/2005, de 15 de Novembro, e afastada, por isso, a presunção fixada na alínea a) do nº 1 do artigo 12º do mesmo diploma».
O recorrente não aceita esta conclusão e o seu inconformismo assenta em argumentação que podemos sintetizar assim:
Em virtude da nacionalização da F…, o prédio objecto deste processo, tal como o restante património da sociedade, foi transferido para o Estado.
Ao contrário do que foi o entendimento do Tribunal a quo, é indiferente saber se a transferência da propriedade pela nacionalização se deu para o domínio público do Estado ou para a propriedade privada do Estado.
Isto porque não basta a prova de que determinado prédio era objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864, ou na falta de título legítimo, que estava na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa, é, ainda, necessário que se tenha mantido nessa situação, ou seja, na propriedade particular de forma ininterrupta, até hoje.
Apurando-se que o prédio, depois de 1864, integrou a propriedade de uma pessoa colectiva de direito público, e ainda que volte mais tarde a entrar na propriedade ou posse de particulares a título individual ou comum, deixou de existir a razão de ser da protecção dos direitos adquiridos prevista no art.º 15.º, n.º 2 e 3, da Lei 54/2005.
Uma vez que o prédio em questão esteve na propriedade do Estado, não se verifica o pressuposto de o prédio se manter, de forma ininterrupta, na propriedade ou posse privada ou comum desde data anterior a 31/12/1864.
O n.º 2 do artigo 15.º da LTRH dispõe o seguinte:
«2 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868».
Ressalvado o devido respeito por opinião diversa, afigura-se-nos que a interpretação defendida pelo recorrente (de que, para o reconhecimento da propriedade particular sobre terrenos das margens das águas do mar ou de correntes de águas navegáveis ou flutuáveis, não basta provar que essa propriedade particular já existia antes de 31.12.1864 em virtude de título legítimo, exigindo-se, ainda, que assim se tivesse mantido, ininterruptamente, até agora) não tem arrimo na letra da lei.
Ser objecto de propriedade particular ou privada não é o mesmo que ser propriedade de particulares, é estar sujeito às normas de direito privado.
Tem razão a recorrida quando argumenta na sua contra-alegação que o que se exige é que o prédio não tenha passado a integrar o domínio público, caso em que já não poderia ser alienado sem prévia desafectação e já não teria aplicação o processo previsto no artigo 15.º da LTRH (cfr. o seu n.º 5, al. a)).
Por isso, contrariamente ao alegado pelo recorrente, não é indiferente se a transferência da propriedade pela nacionalização se deu para o domínio público do Estado ou para a propriedade privada do Estado.
É, desde há muito, reconhecido que o Estado (em sentido lato, abrangendo o Estado central, as regiões autónomas e as autarquias locais), comporta um domínio público e um domínio privado.
O artigo 84.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa enuncia um conjunto de bens que, forçosamente, integram o domínio público e o seu n.º 2 remete para a lei a definição dos bens que podem integrar essa categoria.
Em comentário a este preceito constitucional, escrevem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, pág. 1001/2):
«A fórmula semântica – domínio público – deixa entender que certos bens são qualificadamente públicos, sendo-lhes inerente um estatuto jurídico de dominialidade diferente dos demais bens das entidades públicas (domínio privado da Administração).
O domínio público pertence(m) necessariamente a entidades públicas (cfr. n.º 2), sendo portanto bens públicos. Todavia, a categoria de bens públicos é mais extensa do que a de bens do domínio público, visto que as entidades públicas são também titulares de bens do domínio privado, que abrange tanto os bens do património económico e financeiro (sector empresarial público), como os bens do património administrativo, afectos a fins administrativos (nomeadamente, instalações de serviços públicos, etc.). Os primeiros formam o «património disponível», estando sujeitos, em geral, a um regime de direito patrimonial privado».
Na mesma linha, o Professor Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo II, Coisas, Almedina, 2000, pág. 47) explica que, para prosseguir as funções que lhe são próprias, o Estado carece de meios (v.g., coisas) e acrescenta:
«O Estado é – ou pode ser – sujeito de Direito privado. Enquanto pessoa colectiva, ele pode agir despido dos seus poderes de autoridade, como qualquer particular. Nessa medida, como adiante melhor será enfocado, ele pode ser titular dos diversos direitos reais. Mas o Estado pode, também, aproveitar coisas corpóreas através de esquemas próprios de Direito público, isto é, de esquemas que pressupõem normas que, no seu conjunto, postulam a favor de certas pessoas poderes de autoridade, dentro duma regra de competência, ou seja: uma regra que só permite agir perante normas habilitantes.
Tradicionalmente, domínio público traduz o conjunto de bens que o Estado aproveita para os seus fins usando poderes de autoridade, ou seja, através do Direito Público».
Na actualidade, é geralmente aceite que só a lei pode determinar que coisas são consideradas do domínio público, certo que «é sempre uma questão de regime», ou, como se diz na sentença recorrida, «essencial é que, pela regulação que fixa para a utilização de determinado bem ou categorias de bens, se retire que os mesmos se encontram submetidos “(...) ao domínio de uma pessoa colectiva de direito público e subtraídas ao comércio jurídico privado em razão da sua primacial utilidade colectiva” (Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo”, Coimbra Editora; 9.ª edição, 1972; pág. 857)».
Importa, pois, apurar o que resulta do diploma legal pelo qual se procedeu à nacionalização da F…, de cujo acervo patrimonial fazia parte o prédio em questão.
Na tese do recorrente, o prédio em causa, tal como todo o restante património da empresa nacionalizada, foi colocado ao serviço do país e dos cidadãos, apesar de afecto à unidade produtiva da sociedade nacionalizada e por isso «integrou a propriedade pública do Estado, tanto mais que a sua desafectação do sector produtivo do Estado se deu igualmente por um acto legislativo».
Refere, ainda, em reforço da sua tese, o n.º 2, do art.º 3, do Decreto-Lei n.º 532/75, nos termos do qual o determinado non.º 1 constitui título comprovativo da transferência, para todos os efeitos legais, incluindoos de registo.
Como já se aludiu, verdadeiramente decisivo para a sua integração como bens do domínio público não é o destino do bem ou categoria de bens, mas o seu regime jurídico: só a lei pode determinar a integração no domínio público de um bem ou a sua desafectação[12].
Ora, nada disso resulta do Dec. Lei n.º 532/75, de 25 de Setembro, que, como bem se salienta na sentença recorrida, pelo contrário, expressamente declara no seu artigo 3.º, n.º 1, que a universalidade dos bens, direitos e obrigações que integra(va)m o activo da F… passavam a integrar o património autónomo da empresa resultante da nacionalização, o que é dizer que passou a integrar o domínio privado do Estado, fazendo parte do chamado sector empresarial do Estado.
Por outro lado, também ao contrário do que alega o recorrente, o n.º 2 do mesmo artigo daquele diploma legal, ao determinar que constitui título comprovativo da transferência, para todos os efeitos legais, incluindo os de registo, a transferência (operada pelo n.º 1) para o Estado da universalidade dos bens, direitos e obrigações que faziam parte do activo e do passivo da F…, reforça a ideia de que esse património, incluindo o prédio em questão, passou a integrar, não o domínio público, mas o domínio privado do Estado.
Com efeito, é consabido que o registo predial é um instituto do direito privado e para o direito privado, pois supõe as atividades económico-jurídicas particulares. Nesse sentido estão excluídos do âmbito do registo predial as coisas fora do comércio jurídico privado (res extra commercium) porque, nos termos do n.º 2 do artigo 202.º do Código Civil, «não podem ser objeto de direitos privados».
Em suma, o prédio em causa, mesmo após a nacionalização da F… operada Dec. Lei n.º 532/75, de 25 de Setembro, continuou sujeito às normas de direito privado.
Improcedem, assim, todas as conclusões do recurso.
III - Dispositivo
Por tudo o exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação do réu e confirmar a decisão recorrida.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).
Porto, 26 de abril de 2021
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
_____________________ [1] Por despacho de 05.12.2018, foi fixado em €206.390,01 o valor da acção e, consequentemente, declarada a incompetência dos Juízos Locais Cíveis e ordenada a remessa do processo para a 1.ª Secção dos Juízos Centrais Cíveis da Comarca do Porto, por onde passou a correr os respectivos termos. [2] Reprodução do que consta no relatório da sentença recorrida. [3] Notificada às partes mediante expediente electrónico elaborado em 16.03.2020. [4] Com as alterações que lhe foram introduzidas, sucessivamente, pelas Leis n.os 78/2013, de 21/11, 34/2014, de 19/06 e 31/2016, de 23/8. [5] A.S. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Apêndice II - Sentença Cível, Almedina, 5.ª edição, pág. 609. [6] Essenciais nucleares em que se alicerça a causa de pedir ou em que se fundam excepções deduzidas e, eventualmente, factos complementares ou concretizadores. [7] E, bem assim, os que julga não provados. [8] Os documentos autênticos e autenticados (artigos 371.º, n.º1, e 377.º do Código Civil), mas também os documentos particulares em que a letra e/ou a assinatura estejam reconhecidas presencialmente por notário ou não sejam impugnadas pela parte contra quem são apresentados (artigo 376.º, n.os 1 e 2, do CC). [9] Cfr. Mário Tavarela Lobo, Manual do Direito das Águas, vol. I, Coimbra Editora, 1989, pág. 180. [10] Dec. Lei n.º 468/71, de 5/11 [11] Lei n.º 54/2005, de 15/11 [12] A. Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 50