INDEFERIMENTO LIMINAR
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DISPENSA
DECISÃO SURPRESA
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Sumário

1 - O princípio do contraditório consagrado no artigo 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil confere à parte o direito ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma acção e um direito à audição prévia antes de ser tomada qualquer decisão ou providência, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a poder tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta.
2 – Apenas em caso de manifesta desnecessidade poderá ser dispensada a audição prévia.
3 – Será esse o caso do despacho de indeferimento liminar, pois que este apenas pode ter lugar em face de razões evidentes e indiscutíveis, em termos de razoabilidade, que determinem a manifesta improcedência do pedido ou a verificação evidente de excepções dilatórias insupríveis e de conhecimento oficioso, que tornam inútil qualquer instrução e discussão posterior.
4 – O indeferimento liminar por verificação de excepção dilatória insuprível pressupõe que esta se apresente, de modo evidente, em face dos próprios termos da petição, sem necessidade de produção de qualquer tipo de prova, ou seja, há-de tal excepção ser absolutamente indiscutível, não suscitar qualquer dúvida e dispensar, por manifesta desnecessidade, a audição da parte, diligência que, a ter lugar, não teria utilidade.
5 – Porque o despacho de indeferimento liminar é, pelos seus fundamentos, excepcional, não deve ser proferido quando esteja em causa uma excepção dilatória de conhecimento oficioso cujos pressupostos não emanam, de forma evidente, da petição inicial, situação que pode justificar, pelo contrário, mesmo numa fase liminar, a prolação de um despacho de convite ao esclarecimento quanto à sua verificação.

Texto Integral

Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A, com domicílio à Avenida ..., Lisboa deduziu contra B, com último domicílio conhecido à Rua ..., Mem Martins, Sintra, requerimento de injunção solicitando a notificação deste para que lhe pague a quantia de 14 606,56 €, sendo 11 015,41 € a título de capital, 3 438,15 € relativos a juros de mora, calculados à taxa de 28,90%, desde 29-06-2018 e 153,00 € de taxa de justiça paga.
Alegou, muito em síntese, o seguinte:
-A requerente e o requerido celebraram um contrato de crédito em conta corrente aceite em 10-02-2011, ao qual foi atribuído o n.º 50000000344117 e por força do qual a primeira disponibilizou ao segundo um financiamento inicial de 500,00 € e onze financiamentos subsequentes, no valor total de 10 120,00 €;
- O contrato foi celebrado por referência a uma prestação inicial de 34,00 € e com um prazo pré-estabelecido, referências meramente indicativas porque válidas apenas para a primeira utilização do financiamento concedido, variando em função das utilizações, montante e duração do saldo devedor e adesão ou não ao seguro;
- Mensalmente são remetidos extractos ao requerido onde constam expressamente todas as condições em que se encontra o contrato de crédito;
- O requerido declarou aderir ao seguro em 10-02-2011;
- O requerido deixou de proceder aos pagamentos a que estava obrigado por força do contrato de crédito, apesar de interpelado para o efeito, pelo que, face ao incumprimento verificado, a requerente procedeu à resolução do contrato em 29-06-2018, sendo que o valor em dívida ascende a 11 015,41 €, a que acrescem os juros vencidos e vincendos, até integral pagamento.
No preenchimento do requerimento de injunção a requerente consignou à frente da indagação “Obrigação emergente de transacção comercial?” a expressão “Não”.
Frustrada a citação via postal do requerido e remetidos os autos à distribuição foi tentada a citação por intermédio de agente de execução, que não se logrou realizar (cf. Ref. Elect. 123603605 e 16942094).
Em 29 de Setembro de 2020 foi ordenada a citação edital do requerido, efectuada através de afixação de editais e publicação de anúncio (cf. Ref. Elect. 126628509, 126939313 e 127190485).
Em 30 de Outubro de 2020 foi proferida decisão que, considerando decorrer da própria petição inicial a excepção que cumpria conhecer e atenta a sua simplicidade, entendeu desnecessário garantir o contraditório e dela conheceu de imediato, julgando procedente a excepção dilatória de preterição de sujeição do devedor ao PERSI e, em consequência, indeferiu liminarmente a petição inicial (cf. Ref. Elect. 127298273).
É desta decisão que a requerente/apelante interpõe o presente recurso concluindo as suas alegações do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 17754851):
a) Nos autos principais a M. Juiz a quo proferiu sentença de indeferimento liminar da petição inicial por considerar que a Autora não deu cumprimento à integração do Réu no PERSI na medida em que a petição inicial apresentada é omissa quanto a esse facto.
b) Tal decisão foi proferida sem que fosse dada a possibilidade à Autora de exercer o contraditório tendo a M. Juiz a quo considerado que a exceção a decorrer advinha da própria petição inicial.
c) Não pode no entanto a ora Recorrente concordar com a decisão proferida na medida em que, a Recorrente, não obstante não o ter mencionado na petição inicial, deu cumprimento ao procedimento PERSI conforme dispõe o DL (Decreto-lei n.º 227/2012, de 25.10).
d) Sendo que, caso lhe tivesse sido dada a oportunidade de se pronunciar nos termos do artigo 3.º, n.º 3 e 590.º, n.º 4 do CPC teria feito prova do cumprimento do citado diploma legal.
e) A exceção conhecida oficiosamente pela M. Juiz a quo, salvo melhor entendimento, não decorre da petição inicial na medida em que da leitura do texto do requerimento de injunção não é possível verificar ou concluir que a Autora não cumpriu com o procedimento de PERSI, apenas que não fez referência ao mesmo.
f) Pelo que seria de todo pertinente e viável em termos de economia processual a notificação da Recorrente para que exercesse o seu direito de contraditório nos termos do artigo 590.º, n.º 4.
g) Atendendo ao exposto considera a Recorrente que a sentença proferida é nula nos termos do artigo 195.º, n.º 1 do CPC por omissão da prévia audição da Autora, ora Recorrente, e violação do princípio do contraditório nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do CPC.
h) Considera ainda a Recorrente, salvo melhor opinião que, a douta sentença proferida viola igualmente os princípios da oficiosidade e da cooperação (arts. 6º, 7º e 411º, do CPC) que privilegiam a decisão de fundo em detrimento das questões formais, e o princípio da economia processual que impõe que o resultado processual deve ser atingido com a maior economia de meios.
Conclui pugnando pela procedência do recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida.
Em 27 de Novembro de 2020 foi proferido despacho de admissão do recurso, sendo então ordenada a citação do Ministério Público, em representação do réu ausente, tanto para os termos do recurso como para os da causa (cf. Ref. Elect. 127659457).
O Ministério Público foi citado em 7 de Dezembro de 2020 e não apresentou contra-alegações (cf. Ref. Elect. 128067539).
*
II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Assim, perante as conclusões das alegações da autora/apelante há que apreciar se o tribunal recorrido ao conhecer da excepção dilatória inominada decorrente da falta de integração do devedor no PERSI sem ouvir a requerente violou o princípio do contraditório e, por via disso, a decisão é nula ou se tal decisão não se pode manter por não verificação dos pressupostos do indeferimento liminar.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra.
*
3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Em 30 de Outubro de 2020 o Tribunal recorrido proferiu decisão de indeferimento liminar da petição inicial com fundamento na procedência de excepção dilatória inominada de preterição de sujeição do devedor ao PERSI, o que fez com a seguinte fundamentação:
“Atendendo que a excepção a conhecer decorre da própria petição inicial e sendo manifesta a sua simplicidade, é desnecessário garantir o contraditório, o que dispensamos nos termos do n.º 3, do artigo 3.º, do Código de Processo Civil, conhecendo-a de imediato ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 01.09.
[…]
A autora é totalmente omissa quanto à integração do Réu no PERSI e sobre a extinção desse procedimento pré-judicial (Decreto-lei n.º 227/2012, de 25.10).
No artº 1º estabelecem-se os princípios e as regras a observar pelas instituições de crédito designadamente “a regularização extrajudicial das situações de incumprimento das obrigações de reembolso do capital ou de pagamento de juros remuneratórios por parte dos clientes bancários, respeitantes aos contratos de crédito referidos no n.º 1 do artigo seguinte”.
No artigo 3º, alíneas a) e c) atribui-se ao cliente bancário o estatuto de consumidor, na acepção dada pelo nº 1 do artigo 2º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei nº 24/96, de 31-07, alterada pelo Decreto-Lei nº 67/2003, de 08-04, desde que intervenha como mutuário em contrato de crédito; o contrato de crédito é o contrato celebrado entre um cliente bancário e uma instituição de crédito com sede ou sucursal em território nacional que, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo anterior, esteja incluído no âmbito de aplicação do presente diploma.
A regularização das situações de incumprimento segue um regime processual que está previsto nos artigos 12º a 17º.
Como é sabido, apenas se este processo obrigatório ope legis foi seguido e se se mostra extinto pode o Banco (ou Instituição Financeira) propor ação judicial tendo em vista a satisfação do seu crédito.
Não se mostrando o procedimento extinto, o Banco está impedido de propor a ação, como estipula o artº 18º/1 b).
Quanto à matéria de facto alegada nada consta sobre a submissão da ré ao processo previsto naquele diploma.
Não há pois informação que a instituição financeira tenha cumprido as obrigações que para si decorrem, do diploma em causa, designadamente encetado as diligências com vista os procedimentos à integração automática da ré, enquanto devedora mutuária no PERSI.
Uma das garantias que é atribuída aos clientes bancários na situação comtemplada pelo Dec.-Lei 227/2012 é a proibição de sobre eles serem propostas ações judiciais, proibição esta que impende sobre o credor, para a satisfação do seu crédito, entre a data da integração do devedor no procedimento e a sua extinção – cfr. artigo 18.º, n.º 1, alínea b).
Concluímos, pois, que estamos perante uma exceção dilatória inominada – preterição de sujeição do devedor ao PERSI – de conhecimento oficioso (porquanto se verifica que o alegado incumprimento do réu ocorreu no ano de 2018, logo, após a entrada em vigor do diploma referente ao PERSI).
No mesmo sentido decidiram o Ac. desta Relação de 28-06-2018, Mata Ribeiro, Procº 2791/17.0T8STB-C.E1:
1 - Uma das garantias que é atribuída aos clientes bancários na situação comtemplada pelo Dec. Lei 227/2012 é a proibição de sobre eles serem intentadas ações judiciais, proibição esta que impende sobre o credor, para a satisfação do seu crédito, entre a data da integração do devedor no PERSI e a sua extinção – cfr. artigo 18.º, n.º 1, alínea b).
2 - A preterição de sujeição do devedor ao PERSI, por parte do Banco credor, consubstancia incumprimento de norma imperativa, a qual constitui, do ponto de vista adjetivo – com repercussões igualmente no domínio substantivo –, uma condição objetiva de procedibilidade da própria pretensão, que deve ser enquadrada com as necessárias adaptações, no regime jurídico das exceções dilatórias.
3 - O regime das exceções dilatórias, quer elas sejam nominadas ou inominadas, no que respeita ao seu conhecimento oficioso só tem as exceções indicadas expressamente na lei, conforme decorre do disposto no artº 578º do CPC, sendo, por tal, na generalidade, de conhecimento oficioso.
4 – A preterição de sujeição do devedor ao PERSI é de conhecimento oficioso, e como tal a sua invocação pela parte, ou a sua apreciação oficiosa, está subtraída ao prazo concedido para apresentação da defesa, regendo, por isso, a última parte do n.º 2 do artº 573º do CPC, que descarta a aplicação do princípio da preclusão.
E o Ac também desta Relação de 27-04-2017, Maria João Sousa e Faro, Procº 37/15.5T8ODM-A.E1, no que concerne às exigências do PERSI, embora a situação e conclusão seja diversa (inexistência de contrato de mútuo e, por isso, não protegido pelo regime em questão):
I. No artº 14º, nº 4, do D.L. 227/2012, de 25 de Outubro exige-se que a instituição de crédito informe o cliente bancário da sua integração no PERSI, através de comunicação em suporte duradouro.
II. O significado de tal expressão “suporte duradouro” é dado no artigo 3.º, alínea h) do citado diploma: “qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas”.
III. Por conseguinte, e exigindo a lei, como forma de tal declaração uma “ comunicação em suporte duradouro “ ou seja a sua representação através de um instrumento que possibilitasse a sua reprodução integral e inalterada, reconduzível, portanto, à noção de documento constante do artº 362º do Cód. Civil, não poderia a omissão de tal prova da declaração da instituição bancária/embargada ser colmatada com recurso à prova testemunhal (face à ausência de confissão expressa dos embargantes) – cfr. artº 364º, nº 2, do Cód. Civil.
IV. Além do mais, tratando-se de uma declaração receptícia, a sua eficácia estaria também dependente da sua chegada ao conhecimento do seu destinatário (artº 224º, nº 1-1ª parte, do Cód. Civil que consagra a teoria da recepção), sendo sobre a instituição bancária/embargada que recaía o ónus de o provar (artº 342º, nº 1, do mesmo Código).
V. O regime do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, que estabelece os princípios e regras a observar pelas instituições de crédito no “acompanhamento e gestão de situações de risco de incumprimento” e na “regularização extrajudicial das situações de incumprimento das obrigações de reembolso do capital ou de pagamento de juros remuneratórios por parte dos clientes bancários” só se aplica, neste último caso, quando as situações de incumprimento se reportem aos contratos de crédito” referidos no n.º 1 do artigo 2º (cfr. art.º 1º, nº 1) e também só se destina aos clientes bancários enquanto consumidores na acepção da LDC (cfr. art. 3º, alínea a)).
Assim sendo, enquanto não ocorrer extinção do PERSI, está vedada à entidade de crédito a instauração de procedimentos/ações judiciais com a finalidade de obter a satisfação do seu crédito, sendo a alegação de tal facto necessária pois a preterição de sujeito devedor ao PERSI leva à procedência da excepção dilatória inominada e consequente absolvição da instância ou indeferimento liminar da petição, uma vez que o Réu não chegou a ser citado (cfr. al. e) do n.º 1 do artigo 278.º e n.º 1 do artigo 3.º ex vi n.º 1 do art. 17.º do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98 de 01.09).
A autora, por ter ficado vencida, suportará as custas do processo – artigo 527.º, do Código de Processo Civil.
*
Decisão
Em face do exposto, julga-se procedente a excepção dilatória inominada de preterição de sujeição do devedor ao PERSI e, em consequência, indefiro liminarmente a petição inicial.”
A apelante insurge-se contra esta decisão argumentando que foi proferida sem que lhe fosse dada a possibilidade de exercer o contraditório, para além do que, em cumprimento do princípio da economia processual, o Tribunal recorrido deveria tê-la notificado concedendo-lhe a oportunidade de esclarecer sobre o cumprimento do procedimento previsto no DL n.º 227/2012, de 25 de Outubro, sendo que da mera leitura do requerimento de injunção não é possível concluir pela não observância desse procedimento.
Os presentes autos iniciaram-se com um requerimento injuntivo.
Frustrada a notificação pessoal do requerido, os autos foram remetidos à distribuição, nos termos do art.º 16º do Regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15 000 e Injunção, aprovado pelo DL 269/98, de 1 de Setembro[2], pelo que o processo seguiu a tramitação prevista no n.º 4 do art.º 1º e nos art.ºs 3º e 4º desse Regime, conforme o estatuído no seu art.º 17º, n.º 1.
Assim, sendo o valor do pedido, no caso concreto, de 14 606,56 €, ou seja, superior à alçada do Tribunal de 1ª instância, mas inferior à alçada do Tribunal da Relação[3], a acção segue os termos da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.
Neste tipo de acção, se esta houver de prosseguir, pode o juiz julgar logo procedente alguma excepção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa, nos termos do art.º 3º, n.º 1 do RCOP.
Após ter ordenado a citação edital do requerido e antes da citação do Ministério Público, nos termos do art.º 21º, n.º 1 do CPC, o processo foi concluso e a senhora juíza a quo indeferiu então liminarmente a petição inicial, por entender ser evidente a verificação da excepção inominada de preterição de sujeição do devedor ao Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento[4], tal como previsto no art.º 12º e seguintes do DL 227/2012, de 25 de Outubro, o que fundamentou no facto de o requerente não ter feito qualquer alusão no seu requerimento à integração do requerido no PERSI.
Face ao preceituado no mencionado art.º 3º, n.º 1 do RCOP, assistirá razão à recorrente quando afirma que o tribunal recorrido não poderia ter proferido a decisão de indeferimento liminar por verificação de excepção dilatória, sem lhe ter concedido o direito de audição prévia?
Estatui o art.º 3º, n.º 1 do aludido regime que “Se a acção tiver de prosseguir, pode o juiz julgar logo procedente alguma excepção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa.”
Nos termos do art. 590.º, n.º 1 do CPC, “nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-lhe o disposto no artigo 560º.”
O indeferimento liminar baseia-se no princípio da economia processual evitando o dispêndio inútil de actividade judicial.
O art. 590.º, n.º 1 do CPC não pode deixar de ter aqui aplicação, como regra geral que é, pelo que, convertida a injunção em acção declarativa especial e ainda antes de o réu se mostrar regularmente citado, havendo motivo para indeferimento in limine, o juiz deve proferir despacho em conformidade com aquele normativo legal, evitando, desse modo, a realização de diligências que à partida já se anunciam como inúteis face àquele que será necessariamente o desfecho da acção.
Estipula o artigo 3º, n.º 2 do CPC que “Só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.”
Nos termos do n.º 3 desse mesmo art. 3.º, “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
E acrescenta o n.º 4: “Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.”
Estes normativos legais consagram o princípio do contraditório como princípio geral e na vertente proibitiva da decisão-surpresa (n.º 3) e no atinente à alegação dos factos da causa (n.º 4), garantindo-se às partes a sua efectiva intervenção no desenvolvimento de todo o litígio, sob pena de nulidade da decisão que o não observe (contraditório dinâmico).
Tal como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, pág. 7:
“Resultam estes preceitos duma conceção moderna do princípio do contraditório, mais ampla do que a do direito anterior à sua introdução no nosso ordenamento. Não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção. Este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.”
Do princípio do contraditório – que é uma decorrência do princípio da igualdade das partes estabelecido no art. 4º do CPC -, emana, pois, o direito da parte ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma acção e, logo, um direito à audição prévia antes de contra ela ser tomada qualquer decisão ou providência, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a poder tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta, que consiste “na faculdade, concedida a qualquer das partes, de responder a um acto processual (articulado, requerimento, alegação ou acto probatório) da contraparte.” – cf. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa 1997, pp. 46-47.
Por força desse entendimento amplo da regra do contraditório e face à garantia de processo equitativo do artigo 20º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, a decisão final só deve ser proferida assegurada que seja a participação efectiva dos titulares da relação litigiosa, ou seja, antes de decidir, o juiz deve facultar às partes a invocação de razões que julguem pertinentes perante uma eventual ocorrência de excepções dilatórias, e, sobremaneira, face à invocação de qualquer excepção pela outra parte – cf. ainda António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 19.
Do princípio do contraditório decorre, pois, a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efectiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.
A decisão-surpresa que a lei pretende afastar é aquela que revela uma solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, ou seja, não podem ser confrontadas com decisões com que não poderiam contar, o que não abrange os fundamentos utilizados pelo tribunal para fundamentar decisões que eram previsíveis ou que as partes devessem esperar ou admitir como possíveis.
Assim, a decisão-surpresa não se confunde com “a suposição que as partes possam ter concebido quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter realizado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo certo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ter ou tiveram em conta” – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2018, relator Hélder Roque, processo n.º 177/15.0T8CPV-A.P1.S1, acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt[5].
Apesar da norma expressa do art.º 3º, n.º 1 do RCOP, que determina que o juiz pode, desde logo, conhecer de uma excepção dilatória, tal não significa que essa prescrição legal neste procedimento especial afaste a regra do art.º 3º, n.º 3 do CPC, atenta a sua aplicabilidade face ao disposto no art. 549º, n.º 1 do CPC – cf. neste sentido, acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 2-02-2010, relatora Maria José Simões, processo n.º 33805/09.7YIPRT.L1-1; de 26-03-2015, relatora Octávia Viegas, processo n.º 152847/17.2YIPRT.L1-8; de 12-04-2007, relator Pedro Lima Gonçalves, processo n.º 939/2007-8.
Sucede, contudo, que no caso em apreço se está perante uma decisão de indeferimento liminar da petição inicial de acção que segue os trâmites da acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias.
Ora, em tais casos de prolação de despacho de indeferimento liminar da petição inicial não será de exigir ao juiz a audição do autor ou do requerente.
Com efeito, tal como refere Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pág. 41:
“[…] o conceito restrito de decisão-surpresa relevará essencialmente para delimitar a dispensa de audição prévia por “manifesta desnecessidade”: o tribunal não deve notificar as partes para pronúncia prévia quando o fundamento decisório foi previamente considerado pelas partes (ainda que implicitamente) ou estas o não podiam ignorar, por evidente. Em qualquer circunstância, a dispensa de audição prévia por “manifesta desnecessidade” é excepcional: o seu uso deve [ser] parcimonioso; na dúvida, deve o tribunal ouvir antes de decidir.
Um exemplo de decisão sem audição prévia, por manifesta desnecessidade, será o despacho de indeferimento liminar, porquanto ele, justamente, apenas pode ter lugar por “razão evidente, indiscutível, em termos de razoabilidade […] que torne inútil qualquer instrução e discussão posterior” […] Sendo liminar, não tem que haver antes dele despacho de convite à parte para se pronunciar sobre a eventual rejeição e para, sendo o caso, corrigir o vício […]”
Neste sentido parece propender a maioria da jurisprudência, de que é exemplo, designadamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, relatora Ana Paula Boularot, processo n.º 116/14.6YLSB onde se considerou que as circunstâncias que podem conduzir à prolação de um despacho liminar são incompatíveis com qualquer audição prévia da parte, por não ser “admissível um despacho liminar prévio a um despacho liminar”, que “seria uma decisão em si contraditória, porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar, não faria qualquer sentido a parte ser ouvida preliminarmente sobre a aludida eventualidade de vir a ser produzida uma decisão de não admissão”. Considera-se, assim, que tal como o processo está configurado a parte não pode ser surpreendida por uma decisão de rejeição liminar.
Assim se entendeu também no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4-02-2020, relator José Capacete, processo n.º 959/13.8TBALQ-A.L17:
“Mediante a apresentação em juízo da petição inicial ou requerimento inicial, o autor ou requerente exerce o direito de ação consagrado no art. 20.º da CRP e art. 2º, do C.P.C..
Nesse momento inicia-se a instância, a relação jurídico-processual, ou seja, a ação considera-se proposta, intentada ou pendente; no entanto, esse ato de proposição da ação não produz desde logo efeitos em relação ao réu ou ao requerido, o que só sucede a partir do momento em que a este é dado conhecimento daquela instauração, através de citação, ou, em determinados casos, de notificação.
Só a partir do momento em que o réu ou requerido é chamado à demanda, se inicia a chamada estrutura dialética do processo.
O despacho de indeferimento liminar da petição inicial ou requerimento inicial é uma subespécie no contexto da rejeição liminar da lide, podendo ocorrer, como referido nas situações taxativamente previstas no art. 590.º, n.º 1, entre elas, a manifesta improcedência do pedido. […]
[…] não há, em rigor, que falar de uma decisão surpresa em caso de prolação de despacho de indeferimento liminar por manifesta improcedência do pedido, quando a própria lei, no citado art. 590.º, n.º 1, prevê expressamente essa possibilidade.
Perante uma situação de indeferimento liminar da petição ou requerimento inicial por manifesta improcedência do pedido, torna-se evidentemente inútil a prática de qualquer posterior ato de instrução ou de discussão, pelo que se torna inútil a audição prévia, pelo juiz, ao autor ou requerente, a dar-lhe conhecimento do seu propósito de indeferir liminarmente a petição ou requerimento inicial.
A tudo acresce a possibilidade que a lei, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 560.º e 591.º, concede ao autor ou requerente em caso de indeferimento liminar da petição ou requerimento inicial, de apresentar novo articulado no prazo de 10 dias.
Isto, claro está, além da possibilidade que lhe é concedida nos termos dos arts. 629.º, n.º 3, al. c), e 641.º, n.º 7, de interposição de recurso para a Relação, independentemente do valor da causa ou da sucumbência.”
Esta posição não se apresenta, contudo, indiscutível. No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-02-2018, relator Jorge Arcanjo, processo n.º 5500/17.0T8CBR.C1 dá-se conta das posições divergentes quanto à necessidade de audição prévia da parte relativamente a despacho de indeferimento liminar, concluindo no sentido da respectiva desnecessidade:
“Coloca-se, porém, a questão de saber se a exigência de audição prévia também funciona (ou se funciona sempre) em relação ao despacho de indeferimento liminar.
Duas soluções têm sido apontadas:
a) Uma no sentido de que o indeferimento liminar não é excepção, logo impõe-se sempre um despacho pré-liminar de audição (cf., por ex., decisões singulares da RC de 5/12/2017 (proc. nº 6097/17) e de 29/1/2018 (proc. nº 3550/17), disponíveis em www.dgsi.pt).
b) Outra corrente para quem, em caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório não impõe a audição prévia do autor/exequente sobre o motivo do indeferimento (cf Ac STJ de 24/2/2015, proc. nº 116/14.6YLSB, Ac RP de 4/11/2008, proc. nº 0826336, Ac RL 27/9/2017, proc. nº 10847/15, Ac RL de 9/11/2017, proc. nº 1375/04, Ac TCA do Sul de 18/6/2015, proc. nº 08710/15, disponíveis em wwwdgsi.pt).
Adere-se, em tese geral, a esta orientação, com base nos seguintes tópicos de argumentação:
Através da apresentação em juízo da petição ou requerimento inicial o autor exerce o direito de acção, iniciando-se a relação jurídico-processual apenas relativa ao autor, pois o “conflito de interesses que a acção pressupõe” (art. 3 nº 1 CPC) só se inicia com o chamamento à “lide” do réu, e por conseguinte apenas a partir daqui é que nasce o que é costume designar-se por “estrutura dialéctica do processo”.
O despacho de indeferimento liminar é uma espécie dentro do género da “rejeição liminar”, e ocorre no caso de inviabilidade “lato sensu” da pretensão (onde se insere a falta insuprível de pressupostos processuais), em que a lei elenca taxativamente as causas relevantes da rejeição.
Neste contexto, a imposição de um despacho prévio ao despacho de indeferimento liminar parece ser em si mesmo contraditório porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar, não faz sentido a parte ser ouvida preliminarmente (cf. argumento do Ac STJ de 24/2/2015).
Em segundo lugar, não parece que se deva, em rigor, falar de “decisão surpresa “ na prolação de despacho de indeferimento liminar por falta insuprível de pressuposto processual porque é a própria lei que o prevê expressamente como causa específica de rejeição.
Com efeito, a lei postula as causas de indeferimento liminar, consubstanciando-se em situações de inviabilidade “lato sensu”, e como tal insupríveis, tornando inútil qualquer instrução e discussão posterior, patenteando-se, então, ser desnecessária a audição prévia sobre um projecto de indeferimento.
Depois, nos casos de indeferimento liminar a lei concede ao autor a possibilidade de juntar nova petição, considerando-se proposta aquando da primeira (art. 560 e 690 nº 1 CPC), precisamente porque a instância não se estabilizou.
Nas situações de indeferimento liminar, a lei difere o contraditório na medida em que se prevê sempre a admissibilidade do recurso, independentemente do valor e da sucumbência e se determina que o réu seja citado para os termos do recurso e da causa (arts. 629 nº 3 c) e 641 nº 7 CPC). Daqui parece resultar a dispensa da audição prévia do autor, porque desnecessária, permitindo-se o contraditório diferido e em situação de igualdade.
A decisão-surpresa (art. 3 n.º 3 CPC) pressupõe que a parte não possa perspectivar como sendo possível, ou seja, quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse prognosticado no processo. Mas como se decidiu no Ac STJ de 17/6/2014, proc. n.º 233/2000, em www.dgsi.pt, “o art. 3 do CPC não introduz no nosso sistema o instituto da proibição de decisões surpresa tal como foi configurado no direito alemão, mas apenas como possibilidade de, em plena igualdade as partes, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.”
As razões enunciadas no texto transcrito mostram-se válidas e suficientemente assertivas para que se adira sem dificuldade ao entendimento de que a prolação de despacho de rejeição liminar não exige a prévia pronúncia da parte requerente sobre a projectada decisão que, de acordo com a previsão legal – com a qual a parte pode e deve contar -, tem lugar perante situações excepcionais de manifesta improcedência da pretensão e de ocorrência evidente de excepção dilatória insuprível.
Além disso, os acórdãos supra mencionados que sufragaram a posição da necessidade de audição prévia da parte louvaram-se apenas na necessidade do cumprimento do exercício do contraditório sobre uma questão não suscitada nos autos, ainda que de conhecimento oficioso, sem atender, contudo, às especificidades do despacho de indeferimento liminar e à sua coexistência legalmente prevista com o princípio do contraditório, tal como resulta necessariamente das disposições normativas dos art.ºs 3º, n.º 3 e 590º, n.º 1 do CPC.
Sustentando que à prolação do despacho de indeferimento liminar não há que preceder a audição da parte, vejam-se ainda os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-05-2018, relator Nuno Sampaio, processo n.º 16173/17.0T8LSB.L1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-02-2019, relatora Maria José Mouro, processo n.º 5568/17.0T8ALM.L1-2 e de 24-04-2018, relator Luís Filipe Sousa, processo n.º 15582/17.0T8LSB.L1-7; do Tribunal da Relação de Évora de 11-04-2019, relator Rui Machado e Moura, processo n.º 1501/17.7T8SLV.E1; do Tribunal da Relação do Porto de 17-12-2020, relator Jerónimo Freitas, processo n.º 22665/19.0T8PRT.P1 e de 8-03-2019, relator Carlos Portela, processo n.º 14727/17.4T8PRT-A.P1.
Em comentário a este último acórdão identificado, o Professor Miguel Teixeira de Sousa, sufragando a posição nele tomada, refere: “O entendimento contrário só pode fundar-se no equívoco de que a decisão-surpresa é toda a decisão com a qual a parte não contava. A verdade é que a decisão-surpresa é apenas aquela em que o tribunal decide algo com que a parte, de forma previsível, não podia contar.” – cf. Blog do IPPC, entrada de 11/09/2019 Jurisprudência 2019 (73) - Indeferimento liminar; decisão-surpresa[6].
Tendo presente o conceito de decisão-surpresa, considerando que não o é aquela decisão com a qual a parte tinha a obrigação de contar ou admitir a possibilidade de ser proferida e baseando-se a decisão recorrida na verificação de uma excepção dilatória inominada que, sendo de conhecimento oficioso, tem sido objecto de inúmeras decisões pelos tribunais superiores - que têm vindo a entender que, estando em causa o incumprimento de contratos de crédito por clientes bancários, a instituição de crédito só pode instaurar acção judicial destinada à cobrança do crédito após a extinção do PERSI quando haja lugar a este, o que funciona como condição de admissibilidade da acção, declarativa ou executiva, constituindo a sua falta excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso[7], que determina a extinção da instância -, não se pode considerar que, no caso em apreço, se está perante uma questão jurídica inesperada ou surpreendente ou que o recorrente não pudesse prognosticar o seu conhecimento oficioso, pelo que podia o Tribunal recorrido dela conhecer sem audição prévia da autora/apelante.
Todavia, esta conclusão não soluciona a questão submetida à apreciação deste Tribunal.
Com efeito, questão distinta da necessidade de audição prévia do requerente, é a de saber se, no caso concreto, havia fundamento para o tribunal recorrido indeferir liminarmente o requerimento inicial e rejeitar a acção especial para cumprimento de obrigação pecuniária em que se transmutara o requerimento de injunção subsequentemente à remessa à distribuição.
Nas suas alegações a recorrente sustenta, precisamente, que, ao contrário do que foi entendido na decisão recorrida, a mera leitura da petição inicial não autorizava o tribunal a concluir que não tinha sido cumprida a obrigação de integração do devedor no PERSI, mas apenas que ali não se tinha feito referência a essa realidade.
Já acima se referiu que o indeferimento liminar se baseia no princípio da economia processual, mas apenas pode ter lugar em situações excepcionais.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pp. 674-675:
“Os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem antever, logo nesta fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição. […] ponderar-se-ão as consequências que uma ou outra das opções terá na evolução do processo, no confronto com princípios gerais, como o da celeridade, o da adequação formal (art. 547º), o da economia processual ou o do exercício pró-ativo do dever de gestão processual (art. 6º). Tratar-se-á sempre, contudo, de situações tendencialmente excepcionais, em que se verifique grave inconveniente na manutenção da situação irregular até que se atinja a fase tipicamente destinada à prolação do despacho de convite ao aperfeiçoamento.”
As causas do indeferimento liminar são a manifesta improcedência do pedido e a ocorrência evidente de excepções dilatórias insupríveis e de conhecimento oficioso. Ora, em tais casos o prosseguimento do processo não levará a resultado algum, pelo que em observância do princípio da economia processual se impõe que logo ali se lhe ponha termo – cf. Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Volume I, 3ª Edição Revista e Actualizada, 1999, pág. 292.
A primeira causa de indeferimento liminar – manifesta improcedência do pedido - reconduz-se, na essência, a situações em que é evidente que a pretensão não pode proceder por ser manifestamente inviável ou inconcludente, ou seja, em que se aprecia liminarmente do mérito da acção aferindo-se que esta está irremediavelmente votada ao insucesso, ainda que se procedesse à produção das provas apresentadas – cf. Prof. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 3ª Edição – “Pretensão evidentemente inviável é a pretensão a que falta, manifestamente, alguma das condições indispensáveis para que o tribunal, ao julgar do mérito, possa acolhê-la.”
Assim, o indeferimento liminar apenas deve ter lugar quando “a improcedência da pretensão […] for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de actividade judicial” - cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 2-10-2018, relatora Albertina Pedroso, processo n.º 450/08.4TBSTB-D.E1.
Em segundo lugar, o indeferimento tem lugar quando ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente.
A este propósito, esclarece António Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, 1997, pág. 224:
“[…] essa falha deverá resultar manifesta do teor da petição inicial e dos documentos que a acompanhem.
[…] ensinava Alberto dos Reis […] que “só quando for evidente ou transparente a incompetência absoluta, a falta de personalidade ou de capacidade judiciária ou a ilegitimidade é que o juiz deve indeferir liminarmente a petição” […]
Se a falta desses pressupostos não resultasse da simples leitura da petição, devia o juiz abster-se de a indeferir imediatamente, e aferir aqueles pressupostos na fase do despacho saneador, altura em que o processo já conteria elementos que permitiam uma decisão mais segura.
Razão pela qual Castro Mendes concluía que, “na dúvida, o juiz não deverá estudar para decidir a dúvida, mas sim mandar citar o réu” […] e Rodrigues Bastos se fundava para afirmar que o despacho de indeferimento deve ser guardado para os casos em que “os vícios não puderem suscitar qualquer espécie de dúvida” […]
Daí que, naqueles casos em que a doutrina ou a jurisprudência estejam claramente divididos acerca de determinado pressuposto processual, se nos afigura que não deve o juiz tomar, desde logo, posição no despacho liminar, sendo mais oportuno o despacho saneador […]”.
Assim é que para haver lugar a indeferimento liminar por verificação de excepção dilatória insuprível, forçoso é que esta seja evidente, que decorra dos próprios termos da petição, sem necessidade de produção de qualquer tipo de prova sobre tal questão, ou seja, uma excepção dilatória insuprível de que o juiz deva conhecer oficiosamente só é evidente se, face ao alegado na petição inicial, for absolutamente indiscutível, não suscitar qualquer dúvida e dispensar, por manifesta desnecessidade, a audição da parte que, a ter lugar, seria uma diligência sem utilidade – cf. acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 31-01-2019, relatora Margarida Sousa, processo n.º 621/17.2T8FAF.G1 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 5-06-2018, relator José Capacete, processo n.º 503/14.0TMFUN-D.L1-7.
Precisamente porque o indeferimento liminar da petição é excepcional e só deve ter lugar quando os seus fundamentos são tão evidentes que o autor tem o dever de se aperceber das consequências jurídicas da sua apresentação é que se torna possível conciliar o despacho liminar com a observância do princípio do contraditório, pois que, em sintonia com o disposto no art. 3º, n.º 3 do CPC, para haver lugar a indeferimento liminar é necessário que se trate de uma razão evidente, indiscutível, em termos de razoabilidade, que permita considerar dispensável a audição das partes, e que torne inútil qualquer instrução e discussão posterior[8].
Ora, não é esse o caso dos autos.
Com efeito, a senhora juíza a quo louvou-se, tão-somente, nos elementos extraíveis do conteúdo do requerimento de injunção para concluir que, não tendo a requerente feito alusão à inclusão do réu/recorrido no PERSI e à extinção de tal procedimento extrajudicial e não existindo qualquer informação sobre o cumprimento pela instituição financeira dessa obrigação (cujo incumprimento determina a proibição de proposição de acção judicial para satisfação do crédito), se verificava a excepção dilatória inominada de preterição de sujeição do devedor ao PERSI.
No requerimento injuntivo a recorrente alegou que:
- Celebrou com o requerido um contrato de crédito em conta corrente por força do qual lhe disponibilizou um financiamento inicial de 500,00 € e onze financiamentos subsequentes, no valor total de 10 120,00 €;
- O contrato foi celebrado por referência a uma prestação inicial de 34,00 € e com um prazo pré-estabelecido, mas variando em função das utilizações, montante e duração do saldo devedor e adesão ou não ao seguro;
- Mensalmente são remetidos extractos ao requerido onde constam expressamente todas as condições em que se encontra o contrato de crédito;
- O requerido deixou de proceder aos pagamentos a que estava obrigado, apesar de interpelado para o efeito e a requerente procedeu à resolução do contrato em 29-06-2018, ascendendo o valor em dívida ascende a 11 015,41 €.
De facto, no requerimento inicial nenhuma menção foi efectuada sobre o cumprimento ou não da obrigação de integração do réu, enquanto mutuário, no PERSI.
Todavia, tal, por si só, não autorizava a que fosse proferida, sem mais, a decisão de indeferimento liminar da petição inicial.
Há que ter em conta que a presente acção declarativa se iniciou com o procedimento de injunção, ao qual é aplicável o regime aprovado pelo DL 269/98, de 1 de Setembro, que dispõe, quanto ao conteúdo do requerimento de injunção, nas alíneas a) a g) do n.º 2 do artigo 10º, que o requerente deve identificar a secretaria do tribunal a que se dirige e as partes, indicar o lugar onde deve ser feita a notificação, expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão, formular o pedido com discriminação do valor do capital, juros vencidos e outras quantias devidas e indicar a taxa de justiça que previamente pagou e, se for esse o caso, que se trata de obrigação decorrente de transacção comercial abrangida pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro.
Certo é que o requerimento deve conter a exposição sucinta dos factos fundamentadores da pretensão e, apesar da maior síntese da exposição, não deixa o requerente de ter de indicar os factos estruturantes da causa de pedir, como garantia do princípio do contraditório e da delimitação objectiva do caso julgado.
No entanto, o requerente do procedimento está formalmente condicionado pela circunstância de ter que expor a sua pretensão e respectivos fundamentos no impresso próprio para o efeito, previsto no art.º 5.º da Portaria n.º 220-A/2008, de 4 de Março, claramente mais exíguo quanto ao espaço de que dispõe para enunciar todos os factos.
Acresce que se a factualidade alegada pode ser suficiente para o procedimento de injunção, já poderá não o ser convolado que seja tal procedimento em acção declarativa.
Tanto é assim que o art.º 17º, n.º 3 do regime aprovado pelo DL 269/98, de 1 de Agosto confere expressamente ao juiz a possibilidade de convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais, o que sempre seria possível com recurso à aplicação das normas gerais do processo comum (cf. art. 549º, n.º 1 do CPC), maxime, a norma do art. 590º, n.º 2 do CPC.
Note-se, desde logo, que o art. 6.º, n.º 1 do CPC estatui que “cumpre ao juiz [...] dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (...), adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.”
O actual art.º 590º do CPC especifica o dever do juiz de promover o suprimento e regularização da instância que decorre do estatuído no art. 6º, n.º 2 do referido diploma legal, sendo que o despacho pré-saneador pode ter quatro finalidades: o suprimento de excepções dilatórias, o suprimento das irregularidades dos articulados, a integração documental da causa e o suprimento de insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada – cf. Rui Pinto, op. cit., pág. 108.
Mesmo na intervenção liminar, pode o juiz, se se deparar com falhas de gravidade não determinante do indeferimento, proferir despacho de aperfeiçoamento, assim como poderá proferi-lo com vista ao suprimento das excepções dilatórias – cf. neste sentido, A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 675.
Neste contexto, os princípios vertidos nos art.ºs 6º e 7º do CPC (dever de gestão processual e princípio da cooperação), conjugados com o princípio da boa fé processual (art. º 8º do CPC), enquanto norma de conduta que deve ser observada na relação jurídico-processual em que intervêm como sujeitos principais as partes e o tribunal e ainda com o princípio da economia processual[9], justificam que, mesmo nessa fase liminar, possa/deva ser proferido um despacho destinado à recolha de elementos necessários à aferição da existência de algum pressuposto processual ou, como no caso, de uma condição objectiva de procedibilidade da pretensão, que não se mostre suficientemente caracterizada na petição inicial ou nos documentos que a acompanham – cf. A. Abrantes Geraldes, Temas…, pág. 224, nota 270; Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, pp- 264-265.
Assim, no exercício da sua função de verificação da regularidade da instância, não pode o juiz ficar impassível perante os dados que os autos lhe fornecem, tendo antes a incumbência de diligenciar pela sanação da falta que seja susceptível de suprimento e, bem assim, de averiguar se estão efectivamente reunidos os pressupostos da excepção dilatória que configura existir mas que não resulte, com toda a evidência, da mera leitura da petição inicial.
Perante os factos aduzidos no requerimento inicial entendeu o tribunal recorrido que a autora, porque omitiu qualquer menção ao PERSI, não tinha dado cumprimento à obrigação de integrar o devedor mutuário nesse procedimento extrajudicial, mas fê-lo sem que os elementos aduzidos pela parte a tanto a autorizassem.
Com efeito, como argumenta a apelante, não é a mera circunstância de ter sido omitida qualquer menção à sujeição do devedor ao PERSI que permite afirmar que tal integração não ocorreu.
Na verdade, da mera leitura da petição inicial apresentada nos autos e na ausência de quaisquer documentos que a acompanhem (atente-se que, no prosseguimento da acção, as provas serão oferecidas na audiência – cf. art. 3º, n.º 4 do RCOP), não podia a senhora juíza a quo concluir no sentido da evidência de falta de integração do réu no PERSI, pelo que naquela fase liminar do processo sempre seria de aceitar – ainda que provisoriamente – que tal tivesse sucedido, devendo, ao contrário, diligenciar pela obtenção de informação clara sobre essa matéria.
Aliás, à luz do que foi alegado na petição, não estava a senhora juíza a quo em condições de aferir se o contrato de crédito celebrado entre as partes cabia no âmbito de aplicação do DL 227/2012, de 25 de Outubro.
No dia 1 de Janeiro de 2013 entrou em vigor o DL 227/2012, de 25 de Outubro (cf. art. 40º deste diploma legal), cujo art.º 39º impôs que fossem automaticamente integrados no PERSI e sujeitos às disposições do presente diploma os clientes bancários que, à data da sua entrada em vigor, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias, ficando a instituição de crédito obrigada, nos 15 dias subsequentes à entrada em vigor do diploma, a informar os clientes bancários da sua integração no PERSI, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 14º (cf. n.º 2 do art.º 39º).
No preâmbulo do DL 227/2012, de 25 de Outubro consta que tal diploma visa “promover a adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários”, sendo que no âmbito do PERSI “as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objectivos e necessidades do consumidor”.
No art. 4.º, n.º 1 do DL 227/2012, estabelece-se como princípio geral o seguinte: “No cumprimento das disposições do presente diploma, as instituições de crédito devem proceder com diligência e lealdade, adoptando as medidas adequadas à prevenção do incumprimento de contratos de crédito e, nos casos em que se registe o incumprimento das obrigações decorrentes desses contratos, envidando os esforços necessários para a regularização das situações de incumprimento em causa.”
Compete, pois, às instituições de crédito, nos termos do art. 12º do DL 227/2012, promover as diligências necessárias à implementação do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) relativamente a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, começando por, no prazo máximo de 15 dias após o vencimento da obrigação em mora, informar o cliente do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida e, bem assim, desenvolvendo diligências no sentido de apurar as razões subjacentes ao incumprimento – cf. art.º 13.º.
Se o incumprimento persistir, o cliente é obrigatoriamente integrado no PERSI entre o 31º dia e o 60º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa (cf. art.º 14º), após o que se segue a fase de avaliação e proposta, a que se reporta o art.º 15º do DL 227/2012, de 25-10 e a fase da negociação (art.º 16.º).
São causas de extinção do PERSI: o pagamento integral, o acordo entre as partes para regularização da situação de incumprimento, o decurso do prazo de noventa dias subsequentes à data de integração do cliente bancário neste procedimento (salvo acordo escrito no sentido da sua prorrogação) e a declaração de insolvência do cliente bancário – cf. art.º 17.º, n.º 1 do DL 227/2012.
Ora, para que se afira da aplicabilidade do presente diploma à situação vertida nos autos torna-se necessário, desde logo, que se possa identificar cabalmente o tipo de contrato de crédito celebrado entre as partes, pois que apenas caem no seu âmbito de aplicação os contratos de crédito elencados no art.º 2º do DL 227/2012, de 25 de Outubro – cf. art. 3º, c) deste diploma legal.
Além do mais, sendo desconhecida a natureza e regime jurídico aplicável ao contrato de crédito em questão, desconhece-se também a finalidade do mútuo e, por via disso, não é possível enquadrar o réu, apenas por se tratar de pessoa singular, na noção de cliente bancário a que se reporta a alínea a) do art.º 3º, que remete para a acepção de consumidor dada pelo n.º 1 do art.º 2.º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31 de Julho[10] (ou seja, importava saber se a quantia mutuada se destinava a uso não profissional).
Na situação sub judice, face à ausência de qualquer menção por parte da autora relativamente à integração do réu no PERSI e porque não se mostravam juntos quaisquer documentos (designadamente, o contrato de crédito celebrado), ainda que, na verdade, fosse de ponderar sobre se se estaria perante um caso de obrigatória submissão do devedor mutuário ao procedimento extrajudicial em referência, impunha-se à senhora juíza a quo determinar a notificação da autora para, no prazo que tivesse por conveniente, esclarecer o seu articulado no que a esse ponto concerne e, mais do que isso, juntar documentação tida por relevante para tal apreciação, ao invés de enveredar, de imediato, pelo indeferimento liminar da petição inicial, de cujo conteúdo não emergia de modo evidente a verificação da excepção mencionada, tanto mais que tal opção apenas deve ser tomada em situações limite e de absoluta certeza jurídica.
Atente-se que o despacho de indeferimento liminar, como já acima se mencionou é excepcional, quer pelos seus fundamentos (apenas são admissíveis os fundamentos previstos no art.º 590º, n.º 1 do CPC ou em disposição especial), quer perante os princípios enunciados nos artigos 6º e 7º do CPC, pelo que, na dúvida, não se profere indeferimento liminar – cf. neste sentido, Rui Pinto, op. cit., Volume II, 2018, pág. 108.
Por esta razão, há que julgar procedente o recurso e revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, se necessário, com a prolação de despacho a convidar a autora a esclarecer o seu articulado no que concerne à matéria da excepção e a juntar documentação bastante que suporte não só a causa de pedir mas permita enquadrar, ou não, o contrato de crédito no âmbito de aplicação do DL 227/2012, de 25 de Outubro.
*
Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do RCP, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A pretensão que a apelante trouxe a juízo merece provimento.
Dado que o réu/recorrido não influenciou a decisão recorrida nem a decisão deste recurso, não pode ser considerado vencido para os efeitos previstos no art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Por sua vez, quem do recurso tirou proveito e, por isso, seria responsável pelo pagamento das respectivas custas, seria a recorrente.
No entanto, estando paga a taxa de justiça devida pela interposição do recurso - porque a recorrente procedeu ao seu pagamento (cf. Ref. Elect. 17754851) -, não tendo havido contra-alegações, e como o recurso não envolveu a realização de despesas (encargos), não há lugar ao pagamento de custas (cf. art. 529º, n.º 4 do CPC).
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente e revogar, em consequência, a decisão proferida, que deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, se necessário, com a prolação de despacho a convidar a autora a esclarecer o seu articulado e a juntar a documentação tida por pertinente.
Sem custas.
*
Lisboa, 11 de Maio de 2021[11]
Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Amélia Alves Ribeiro
_______________________________________________________
[1] Adiante mencionado pela sigla CPC.
[2] Adiante designado pela sigla RCOP.
[3] Cf. art.º 44º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário).
[4] Designado pela sigla PERSI.
[5] Todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem estão acessíveis na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt.
[6] Acessível em https://blogippc.blogspot.com/2019/09/jurisprudencia-2019-73.html, consultado em 28-04-2021.
[7] Cf. neste sentido, acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 5-01-2021, relatora Maria da Conceição Saavedra, processo n.º 105874/18.0YIPRT.L1-7; de 7-06-2018, relator Pedro Martins, processo n.º 144/13.9TCFUN-A-2 e de 7-11-2017, relator Vítor Amaral, processo n.º 29358/16.8YIPRT.C1; do Tribunal da Relação de Évora de 6-10-2016, relator José Manuel Tomé de Carvalho, processo n.º 4956/14.8T8ENT-A.E1 e de 8-03-2018, processo 2267/15.0T8ENT-A.E1; do Supremo Tribunal de Justiça de 9-02-2017, relatora Fernanda Isabel Pereira, processo n.º 194/13.5TBCMN-A.G1.S1 e de 19-02-2019, relator Fernando Samões, processo n.º 144/13.9TCFUN-A.L1.S1; do Tribunal da Relação do Porto de 9-05-2019, relatora Judite Pires, processo n.º 21609/18.0T8PRT-A.P1.
[8] Cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 18-06-2015, relatora Bárbara Tavares Teles, processo n.º 08710/15.
[9] Note-se que o esclarecimento que venha a ser prestado pode conduzir tanto ao prosseguimento da acção, como ao indeferimento da petição, caso em que tal diligência assume para o réu a vantagem de lhe economizar tempo e dinheiro, com a constituição de advogado e organização da defesa.
[10]1 - Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.”
[11] Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.