CRIME DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
PARQUE DE ESTACIONAMENTO DE SUPERFICIE COMERCIAL
VIA EQUIPARADA A VIA PÚBLICA
Sumário

I- O que existe de comum entre a via pública e a via equiparada a via pública é que em ambas é facultado o trânsito público: as primeiras a ele estão afetas, e as segundas, a ele estão abertas, pelo que o critério a que obedece a classificação das vias públicas ou a estas equiparadas é o da sua afetação ou abertura ao trânsito público, respetivamente, que não o da dominialidade do terreno em que estão implantadas;
II-Um parque de estacionamento de uma média ou grande superfície comercial não se destina habitualmente apenas a cargas ou descargas, mas ainda ao estacionamento dos veículos de todos quantos ali se desloquem, ou seja, ao público em geral e não apenas a determinada categoria de pessoas. Por isso, não obstante possa tratar-se de um terreno de domínio privado, está aberto à circulação da generalidade das pessoas, tratando-se assim de via equiparada a via pública , pelo que comete um crime de condução em estado de embriaguez, p.p. pelo artº 292 nº 1 do C.P., quem conduzir um veiculo automóvel num parque de estacionamento de uma superficie comercial,  com uma taxa de alcool no sangue superior a 1,20gl.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No âmbito do processo Abreviado n.º 275/20.9PASCR, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira - Juízo Local Criminal de Santa Cruz, foi submetida a julgamento, com intervenção de Tribunal Singular, a arguida AA, filha de ………………., natural de ……………, nascida ………………, ………, residente ………………….Funchal, vindo a ser condenada, por sentença proferida em 25 de novembro de 2020, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto nos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 45 (quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros), e na proibição de conduzir veículos motorizados na via pública ou equiparada durante 3 (três) meses.
2. A arguida, inconformada com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
"1- O Tribunal a quo condenou, injustamente, a arguida AA.
2- Como resulta do teor das suas alegações, a ora arguida discorda, por completo, da aplicação da matéria de direito!
3- Com base na prova produzida e nos factos dados como provados, tratando-se de um estacionamento de propriedade privada, com um público restrito, isto é, só podendo aceder a ele os proprietários de fracções, condóminos ou clientes do Pingo Doce – tudo conforme o ponto 10 dos factos provados, não podia, como fez o Tribunal de primeira instância, considerá-lo uma via equiparada de trânsito público!
4- Apesar do Tribunal se socorrer, e bem, do critério da afectação do trânsito e não da sua dominialidade, a aferição da dita afectação não foi correctamente efectuada.
5- A este propósito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 18-06-2009, com o Relator Oliveira Vasconcelos no Processo 176/09.1YFLSB, apresenta, sem sombra para dúvidas, a melhor, porque mais correcta, abordagem à questão: “-Trânsito público não pode deixar de ser entendido como trânsito que pertence a todos, que é do uso de todos, que se destina a todos.
- Quando se dá como provado que uma via pertencente ao domínio privado serve para o acesso a várias empresas, tem que se concluir que não servia para acesso a qualquer veículo.
- A circulação não era livre porque quem não tivesse que ir às instalações daquelas empresas não podia nem devia aceder aquela via.
-Não se tratava, assim, de uma via de domínio privado aberta ao trânsito público.”
6- Ora, transpondo o raciocínio em apreço para o caso sub judice, facilmente se compreenderá que, face à prova produzida, ou seja, sabendo que o estacionamento em causa apenas se destinava aos condóminos do Edifício e aos clientes do Pingo Doce, não se poderá, de forma nenhuma, entender que a circulação era livre porque quem não é condómino ou cliente do Pingo Doce não podia nem devia aceder àquela via.
7- O argumento, baseado no depoimento da Agente da PSP, de que, apesar do facto provado em 10, qualquer pessoa acedia ao Parque, não demonstra que o acesso é público mas antes o desconhecimento dos critérios de acesso a ele e, maxime, a falta de fiscalização adequada a evitar abusos e a prática de infracções/ ilegalidades.
8- Na senda do que acima se expôs, não poderia, por isso, o Tribunal ter dado como provado que a arguida bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei. – vide ponto 9 dos factos provados.
9- Face ao exposto, o Tribunal a quo não avaliou convenientemente a matéria de facto ao dar como provado que a arguida sabia que a sua conduta era proibida por lei (facto provado sob o nº. 9, in fine) e fez uma má aplicação da matéria de direito em causa, violando, por isso, o disposto nos artigos 292º, nº. 1 e 69º nº. 1 ambos do Código Penal, bem como o disposto nos artigos 1º, alíneas v) e x) e 2º do Código de Estrada, ao considerar que o estacionamento é de trânsito público.
10- Pelo que o Tribunal a quo decidiu mal ao condenar a arguida, devendo, agora, pelos motivos expendidos, absolvê-la do crime de que vem acusada.
Nestes termos, nos demais de Direito e com o douto suprimento de V. Exªs., deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo ser revogada e substituída por decisão que, nos termos supra expostos, absolva AA do crime de que vem acusada, com as demais consequências legais, assim se fazendo a costumada justiça." (fim de transcrição).
3. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso (cfr. referência Citius n.º 49478776).
4. Respondeu o Ministério Público extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
"1. A arguida AA foi condenada pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido, nos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 45 dias de multa à taxa diária de € 7,00, com 3 meses de proibição de conduzir.
2. Inconformada com a decisão proferida, veio a arguida dela interpor recurso, alegando que a sentença proferida errou na apreciação da matéria de facto e de direito sujeita à apreciação do tribunal.
3. O objeto do recurso prende-se com a questão de saber se o local onde a arguida conduziu -no parque de estacionamento do supermercado Pingo Doce, no concelho de Machico -estava afeto ao trânsito público ou apenas ao trânsito privado.
4. O tribunal a quo entendeu que o local onde a arguida conduziu é, nos termos da alínea x), do artigo 1.º, do Código da Estrada, uma via equiparada a via pública, é a via de comunicação terrestre do domínio privado aberta ao trânsito público, como se entende que deve ser considerado um parque de estacionamento de supermercado inserido em prédio privado, mas de acesso não só aos condóminos desse prédio, mas também aos clientes desse supermercado, como o Pingo Doce, ou seja, potencialmente a toda a gente, já que ninguém está excluído de beneficiar dos serviços e bens e produtos postos à disposição da generalidade dos cidadãos que os apeteçam e possa custear, do que no caso de utilização do estacionamento do supermercado em causa até estão dispensados, contanto que permaneçam nele menos de duas horas, segundo as testemunhas.
4. Para o efeito, sustentou o seu entendimento no acórdão da Relação de Évora, de 03 de dezembro de 2002, no Proc. n.º 1906/02-1, relator Manuel Nabais e no acórdão da Relação do Porto, de 07 de Maio de 2014, no Proc. n.º 87/12.3GBBAO.P1, relator Eduarda Lobo.
5. Em síntese, “A condução a ter em conta para efeitos do preenchimento do tipo [do artigo 292, n.º 1, CP] é a realizada em via pública ou equiparada. Como referem M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, “o critério a que obedece a classificação das vias públicas ou a estas equiparadas é o da sua afetação ou abertura ao trânsito público, respetivamente, que não o da dominialidade do terreno em que estão implantadas. Quando abertas, ainda que ocasionalmente, ao trânsito público, as vias do domínio privado (de entes público ou particulares, como, v. g., os parques de estacionamento de restaurantes e hipermercados) são equiparadas a vias públicas.
6. Ora, não obstante um parque de estacionamento seja um local exclusivamente destinado ao estacionamento de veículos (artº 1º al. l) do Cód. Estrada), o certo é que se se tratar de um parque de estacionamento do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas ou das Autarquias Locais, ou, sendo do domínio privado, se encontre aberto ao público, naturalmente que se enquadra no conceito de via equiparada, enquanto “via” por onde transitam os veículos que nele pretendem efetuar o estacionamento, sendo certo que a expressão “trânsito” é utilizada naquele diploma, em sentido amplo, abrangendo não apenas a sua vertente dinâmica, de marcha, tráfego ou circulação (tudo isto compreendido no seu sentido restrito), mas também a sua vertente estática de paragem e estacionamento[6].
7. Um parque de estacionamento de uma média ou grande superfície comercial não se destina habitualmente apenas a cargas ou descargas, mas ainda ao estacionamento dos veículos de todos quantos ali se desloquem, ou seja, ao público em geral e não apenas a determinada categoria de pessoas. Por isso, não obstante, possa tratar-se de um terreno de domínio privado, está aberto à circulação da generalidade das pessoas, tratando-se assim de “via equiparada a via pública”.
8. Por outro lado, também a própria agente da P.S.P. TT, ouvida em julgamento, responsável pela elaboração do auto de notícia, transmitiu ao tribunal que, foi chamada ao parque de estacionamento do Pingo Doce na Rua da Estacada, em Machico, por causa de um acidente de viação, onde um senhor lhe disse que a arguida lhe batera no carro. Foram ao parque de carro, entraram, há uma cancela, tiraram o chipe, e avançaram, só existe essa entrada, e é pela via pública a entrada no parque, não foram fazer compras e usufruem de uma hora e tal gratuita, se mais, já têm de pagar, não tiveram contacto com ninguém e de acordo com a sua experiência e análise que fez do local, o parque é de acesso público, a máquina está lá para pagamento.
9. A testemunha LL, pessoa que chamou a PSP, referiu que o parque fica no andar inferior, acede-se a ele da rua, estavam no meio do estacionamento, aberto a clientes do Pingo Doce, não precisa de autorização para o utilizar, que ele saiba, e, se permanecer lá duas horas depois de estacionar, então já paga.
10. Na verdade, e salvo melhor opinião, cremos não poder aceitar-se que a condução com uma T.A.S. superior a 1,2 g/l num local como o local sob discussão seja considerada como sendo uma condução realizada fora de uma via-pública ou equiparada quando, no referido local seja possível, como é, pelo menos fisicamente e de forma natural, a livre circulação de quaisquer pessoas e veículos.
11. Importa lembrar, a este propósito, que o crime em apreço é um crime de perigo abstrato e que, em face das circunstâncias ora floradas na presente resposta, a esfera do bem jurídico que a norma incriminadora pretende proteger e do perigo que a mesma pretende evitar abrange necessariamente um local com as características daquele com o qual ora nos deparamos que, por tal razão, e independentemente da classificação que lhe possa ser dada noutras áreas do direito será sempre, salvo melhor opinião, em termos jurídico-penais, pelo menos, uma via equiparada ou equiparável a via pública.
12. Por outro lado, e quanto ao Acórdão citado pela arguida nas suas alegações de recurso – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.06.2009, no âmbito do processo n.º 176/09.1YFLSB, relator Oliveira Vasconcelos, deve sublinhar-se que o caso ali tratado era distinto do tratado nestes autos pois, tal acórdão é de natureza estritamente civil e não criminal, sendo consabido que estes campos do direito possuem disciplinas distintas e depois, observamos que ali foi considerado que se deu um acidente rodoviário numa via particular não aberta ao trânsito público e que, por conseguinte, sofre uma diferente aplicação, face aos casos mais comuns, do regime previsto no artigo 31.º, do Código da Estrada, em termos de regra de prioridade, já que este preceito estabelece regras distintas relativamente a um caminho particular ou a um local de trânsito público.
13. Como o tribunal a quo assinalou, e bem, na situação com a qual nos deparamos nos presentes autos pode aceder ao parque de estacionamento em apreço qualquer condutor, o que sucedeu até, com os Agentes da PSP, que foram chamados ao local por causa do acidente em que interveio a arguida.
14. Por fim, importa também relembrar que o elemento subjetivo do crime imputado à arguida AA é aferido em função da materialidade fáctica objetiva fixada na sentença, bem como de todos os elementos probatórios que suportaram a sua fixação, e da sua apreciação correlacionada com as regras da experiência comum de onde se retira, necessariamente, que a arguida tinha perfeita noção de que, ao conduzir o veículo identificado nos autos no local onde o conduziu, estava necessariamente sujeita às regras estradais e à tutela criminal rodoviária, por estar a conduzir numa via equiparada a uma via pública por estar aberta ao trânsito público.
Termos em que, e nos mais que V. Excelências doutamente suprirão, não se deverá dar provimento ao recurso interposto pela arguida MM mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
V.as Exas., porém, farão inteira JUSTIÇA " (fim de transcrição).
5. Subidos os autos, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve neles “Vista” e emitiu o seguinte:
“Parecer
Visto – artigo 416º, n.º 1, do Código Processo Penal
1. Recurso próprio e tempestivo, apresentado por quem para tanto detém
legitimidade, sendo correto o efeito e o regime de subida que lhe está atribuído. Afigura-se-nos que deve ser julgado em Conferência – artigoº 419º, n.º 3, alínea c), do Código Processo Penal.
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2. A arguida AA não se resignou com a douta sentença proferida nos autos a fls 78 e seguintes, por via da qual foi condenada pela prática, em 25.07.2020, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. nos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 45 dias de multa à taxa diária de € 7,00, com 3 meses de proibição de conduzir
3. O objecto do recurso prende-se com a questão de saber se o local onde a arguida conduzia estava afecto ao trânsito ao público ou exclusivamente ao trânsito privado, de tal sorte que a recorrente alegou que a sentença proferida errou na apreciação da matéria de facto e de direito sujeita à apreciação do tribunal.
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A esse propósito, e seguindo de perto a formulação do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 3 de Dezembro de 2002, disponível in www.dgsi.pt, cujo sumário permita-nos transcrever:
I. (…).
II- O critério a que obedece a classificação das vias públicas ou a estas equiparadas é o da sua afectação ou abertura ao trânsito público, respectivamente, que não o da dominialidade do terreno em que estão implantadas.
III- Quando abertas, ainda que ocasionalmente, ao trânsito público, as vias do domínio privado (de entes públicos ou particulares, como, v.g., os parques de estacionamento de restaurantes e hipermercados) são equiparadas a vias públicas.
IV- Assim, comete o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p e p. pelo artº 292º do CP, verificados os demais elementos constitutivos deste tipo de crime, quem conduzir veículo no parque de estacionamento de um restaurante aberto ao trânsito público, com uma taxa de álcool no sangue, igual ou superior a 1,2 g/l.”
Segundo o mesmo entendimento, explicita-se no Acórdão TRP, datado de 7.05.2014 - Relator: EDUARDA LOBO, no Procº nº 87/12.3GBBAO.P1-, disponível in www.dgsi.pt, que:
I – Para efeitos de verificação do crime de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292º do C. Penal, a condução tem de ter lugar em “via pública ou equiparada”.
II – O critério a que obedece a classificação das vias públicas ou a estas equiparadas é o da sua afetação ou abertura ao trânsito público, respetivamente, que não o da dominialidade do terreno em que estão implantadas.
III - As noções de via pública e via equiparada a via pública constam do art.º 1º do Código da Estrada, como sendo “via de comunicação terrestre afeta ao trânsito público” e “via de comunicação terrestre do domínio privado aberta ao trânsito público”, respetivamente.
IV - Não obstante um parque de estacionamento ser um local exclusivamente destinado ao estacionamento de veículos [art.º 1º al. I) do Cód. Estrada], naturalmente que se enquadra no conceito de via equiparada, seja ele do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas ou das Autarquias Locais, seja do domínio privado contanto que se encontre aberto ao público”.
Sobre a mesma temática elucida o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 09-01-2018 – Procº n.º 51/17.6PTFUN.L1-5 -, referindo que:
“- Para efeito de preenchimento do tipo legal do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido, pelos art.°s 292°, n.° 1, e 69 °. n.°. 1, al. a), do Código Penal um local aberto ao trânsito público, mesmo sendo privado, é via pública, quando pode ser utilizado pelo trânsito público ou está ao mesmo aberto.
- Neste caso o arruamento em causa tem de ser, como foi, considerado “via equiparada a via pública”, nos termos do art.º 1º, al. v), do Código da Estrada.
- O que existe de comum entre a via pública e a via equiparada a via pública é que em ambas é facultado o trânsito público: as primeiras a ele estão afetas, e as segundas a ele estão abertas.
- E trânsito público é o trânsito que pertence a todos, que é usado por todos, é o trânsito permitido a qualquer utente da via, independentemente do fim visado com a sua utilização, portanto, o trânsito de circulação geral de pessoas, veículos e animais, o que vale por dizer que via pública ou equiparada é toda a via de comunicação terrestre onde existe uma liberdade de circulação, apenas restringida pelas regras gerais do ordenamento jurídico rodoviário”.
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4. De mérito:
O Ministério Público respondeu defendendo a confirmação da douta sentença impugnada, conforme melhor se alcança do teor da resposta à motivação do recurso a fls 104 a 111, emergindo da mesma peça processual as seguintes conclusões:
“(…)”.
Examinados os fundamentos dos recursos interpostos, consideramos que a Exmª Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância identificou correctamente o objecto do recurso, argumentando criteriosamente com clareza, rigor e correcção jurídica, o que merece o nosso total acolhimento, dispensando-nos, assim, porque de todo desnecessário e redundante, de aduzir outros considerandos no que ao objecto dos recursos em análise diz respeito.
Na verdade, e nosso ver, a douta sentença recorrida mostra-se bem fundamentada, de forma lógica e conforme as regras da experiência comum, sendo fruto de uma adequada e criteriosa apreciação da prova, tendo sido feita correcta qualificação jurídica dos factos dados como provados e, observando o disposto nos artigos 40.º, 69.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal, aplicado pena principal justa e adequada.
Pelo exposto, e dando por reproduzida a Resposta elaborada pela Exmª Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância e aderindo os fundamentos nela vertidos, emite-se parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente.” (fim de transcrição, em que para se evitar desnecessária repetição se omitiu a citação das conclusões da resposta do MºPº em primeira instância, feitas a dado-passo do Parecer).
6. Foi cumprido o preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo havido resposta.
7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.
8. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP).
Por regra, aprecia-se primeiro a matéria de facto e só depois se verifica (seja aquela mantida ou alterada) se a de direito está correcta, na subsunção dos factos ao direito e na aplicação deste.
Porém, no caso concreto e nos moldes em que as questões são suscitadas pela recorrente, afigura-se-nos, com o devido respeito e salva melhor opinião, que, excepcionalmente, o percurso de apreciação terá de necessariamente ser o inverso, isto é, deverá este Tribunal Superior começar por apreciar – questão que é exclusivamente de direito, e que, de resto, a arguida já havia levantado na sua contestação – sabermos se o parque de estacionamento coberto do supermercado Pingo Doce, no concelho de Machico, na Rua ……………., onde, no dia 25 de Julho de 2020, pelas 17 horas, AA seguia ao volante do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ………, de marca e modelo ………… (matéria que não vem impugnada), depois de ter ingerido bebidas alcoólicas, apresentando uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2 g/l (matéria que também não vem impugnada) e, nessas circunstâncias, ter embatido na porta, entreaberta, do condutor do veículo ligeiro de passageiros de matrícula de marca e modelo ……….., de matrícula ………., que estava estacionado paralelo ao seu, empurrando-a, amolgando-a e riscando-a (matéria que igualmente não vem impugnada), não pode ser considerado, como o foi na acusação e pelo Tribunal de primeira instância na sentença, via equiparada a pública (“via equiparada de trânsito público” na expressão da defesa), mas, como pugna a recorrente, “tratando-se de um estacionamento de propriedade privada, com um público restrito, não se poderá, de forma nenhuma, entender que a circulação era livre porque quem não é condómino ou cliente do Pingo Doce não podia nem devia aceder àquela via.”, pelo que não poderia ter sido condenada, como o foi, “violando, por isso, do disposto nos artigos 292º, nº. 1 e 69º nº. 1 ambos do Código Penal, bem como o disposto nos artigos 1º, alíneas v) e x) e 2º do Código de Estrada (…) devendo, agora, pelos motivos expendidos, absolvê-la do crime de que vem acusada”, o que peticiona.
A segunda questão, de uma pretensa impugnação da matéria de facto cingida ao assente na decisão recorrida no “facto provado sob o nº. 9, in fine”, é subsidiária e fica, também com o devido respeito e salva melhor opinião, manifestamente prejudicada no seu conhecimento se a solução dada àquela que a antecede, for no sentido da sua improcedência, pois é isso que claramente resulta da forma como está gizado todo o recurso, bastando atentar em particular nas suas conclusões 8ª a 10ª.
2. Passemos, pois, ao conhecimento da primeira suscitada questão no recurso. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto assente pelo Tribunal a quo [factos declarados provados, não provados e respectiva motivação] (transcrição):
"FACTOS PROVADOS
Discutida a causa, provou-se que:
1 No dia 25 de Julho de 2020, pelas 17 horas, a arguida AA circulava no parque de estacionamento do supermercado Pingo Doce, no concelho de Machico, na Rua da Estacada.
2 A arguida seguia ao volante do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ………., de marca e modelo …………, de 2003, depois de ter ingerido bebidas alcoólicas.
3 Nessas circunstâncias, a arguida avançou para um lugar de estacionamento e passou ao lado do veículo ligeiro de passageiros de matrícula de marca e modelo …………, de matrícula ……………., que estava estacionado paralelo ao seu, no lado direito.
4 A porta do condutor do …………. estava entreaberta, e a arguida, com o veículo que conduzia, empurrou-a e, consequentemente, amolgou-a e riscou-a.
5 A arguida foi submetida pela PSP a um teste quantitativo de ar expirado, apresentando uma taxa de álcool no sangue de 1,35 g/l.
6 Aplicado o erro máximo admissível à taxa de álcool, uma vez que se está perante um analisador suscetível de verificação periódica, obtém-se o valor de 1,24 g/l.
7 O aparelho de medição utilizado no teste foi o aparelho da marca Dräger, modelo Alcotest 7110MK III P, número ARRL-098, aprovado pelo Instituto Português de Qualidade através do Despacho n.º 11037/2207, de 24 de Abril, aprovação de modelo n.º 211.06.97.3.06, publicado no Diário da República 2.ª Série, n.º 109, de 6 de Junho, aprovado para fiscalização pelo despacho n.º 19684/2009, da A. N. S. R., de 25 de Junho e verificado pelo Instituto Português de Qualidade em 18.02.2020.
8 A arguida sabia que conduzia sob a influência de uma taxa de álcool no sangue superior a 1,20 g/l, e que isso lhe diminuía a capacidade de atenção, reação e destreza, o que não a demoveu de conduzir, como efetivamente fez.
9 A arguida actuou consciente, livre e voluntariamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime.
10 (da contestação) O parque referido no ponto 1 é de estacionamento coberto, no interior de um edifício, propriedade privada, e destina-se à circulação dos seus proprietários, os condóminos, e aos clientes do supermercado Pingo Doce.
11 A arguida não tem antecedentes criminais registados.
12 A arguida trabalha por 1126,20 euros mensais para o grupo de empresas …………….., S. A., de comercialização de imóveis, desde 1986, e de Julho 2011 desempenha as funções de administrativa, serviços gerais de secretariado, dentro e fora do Funchal, utilizando carro no seu trabalho e com clientes, tem filha formada, pai acamado e mãe no hospital.
NÃO PROVADOS
Relevante para a decisão da causa nenhum outro facto se provou, o restante da acusação é impugnativa, conclusiva ou de direito.
FUNDAMENTAÇÃO
O tribunal baseou a sua convicção na prova produzida em audiência de julgamento, em que – a arguida resolveu não prestar declarações, cf. artigo 343, n.º 1, do Código de Processo Penal, – LL afirmou ser assistente social, morar em Santa Cruz, e «conhece a arguida do dia do acidente», que foi no parque do estabelecimento Pingo Doce, em Machico, em 25 de Julho de 2020, pelas 16 h 30 min, ele acabara de chegar com as compras desse supermercado, e vem o veículo conduzido pela arguida que bate na porta do seu veículo dele, LL, a arguida saiu do carro, desvalorizou o caso, ele disse-lhe que ela era a culpada, e ela estacionou ao lado dele, não quis preencher a declaração dizendo que o que ele queria era dinheiro da seguradora, estiveram ali 15 minutos, e a arguida pareceu-lhe alterada também, chamou a PSP, que chegou, sopraram ambos «ao balão», e ela foi acompanhada à esquadra, o seu carro era o mencionado na acusação, o dela era …………., não sabe se …….., e mais que o parque fica no andar inferior, acede-se a ele da rua, estavam no meio do estacionamento, aberto a clientes do Pingo Doce, não precisa de autorização para o utilizar, que ele saiba, e, se permanecer lá duas horas depois de estacionar, então já paga, não sabe o nome da rua do Pingo Doce, e o acidente já foi regularizado, tinha ido às compras ao Pingo Doce, e, confrontado com fls 54 e ss (fotografias), confirmou ser essa a rua, as placas são-lhe familiares, não se recorda de as ler, nem do que lá está escrito, a fotografada a fls 56-B é a rua do Pingo Doce, não sabe se a arguida tinha acabado de entrar ou se ia sair ou se vinha do exterior, e enfim nunca foi impedido por ninguém de entrar nesse parque, – TT, agente da PSP em Machico há 30 anos, afirmou ter sido chamada ao parque de estacionamento do Pingo Doce na Rua …………., em Machico, por causa de acidente de viação, onde um senhor lhe disse que a arguida lhe batera no carro, quando chegou os carros estavam estacionados, o do senhor riscado de lado, a arguida estava sozinha, o senhor estava acompanhado pela esposa, fizeram o teste do álcool no sangue (qualitativo), o da arguida «deu positivo», foram para a esquadra, onde se confirmou ser positivo, revelando uma taxa de 1,30 g/l e tal, deduzido o erro, 1,20 e tal, e foi ao fim da tarde, pelas quatro e meia, cinco, Julho de 2020, e mais que foram ao parque de carro, entraram, há uma cancela, tiraram o chipe, e avançaram, só existe essa entrada, e é pela via pública a entrada no parque, não foram fazer compras e usufruem de uma hora e tal gratuita, se mais, já têm de pagar, não tiveram contacto com ninguém, e mais que o acarro da arguida era ……….., e elaborou o auto de notícia e a participação de acidente de 10 e 11, e os acarros são os aí referidos, e esse supermercado tem serviço de cafetaria e de comida para levar, e, confrontada com as fotos de fls 54 e ss, confirmou ser essa a tabuleta que há no parque do Pingo Doce, onde nada a impede de entrar de carro, nem sabe se o prédio é propriedade privada, se a mandarem retira o carro, para ela o parque é de acesso público, a máquina está lá para pagamento, – e MM afirmou morar no Funchal e ser amiga da arguida, a quem conhece há 30 anos, e cujas condições de vida descreveu, e que arguida cumpre as regras a conduzir, e também que esteve muitas vezes no referido parque com a arguida, parque que à entrada tem placa a dizer que é só para clientes do Pingo Doce, e só lhe sabe de uma entrada e uma saída, ambas para ruas públicas, – testemunhos que, conjugados com documentos mencionados e ainda talão do resultado de pesquisa de álcool no sangue de fls 5, e fls 58 se extrai que a arguida conduziu o veículo automóvel nas condições de tempo e espaço que ficaram assentes, e com a taxa de álcool no sangue indicada na acusação, e também que esse parque é destinado aos condóminos do prédio onde se insere o supermercado Pingo Doce e aos clientes deste; para as condições económicas e financeiras da arguida, ainda a declaração de fls 65; para os antecedentes criminais, CRC de fls 28." (fim de transcrição).
Por seu turno, quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos, expendeu-se na decisão revidenda:
"DIREITO
«Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal»: artigo 292, n.º 1, do Código Penal.
Este é um crime de perigo abstracto, em que portanto não se torna necessária a demonstração de um perigo efectivo e actual, e muito menos de um dano, para determinado bem jurídico, já que a lei se basta com uma situação que em abstracto considera susceptível de pôr bens jurídicos em perigo, independentemente de ter havido ou não um perigo real. Pune-se a acção em si, sem atender ao perigo concreto que possa causar, bastando provar a acção típica. O legislador limita-se a presumir que a situação é perigosa em si mesma, partindo da base empírica de que, na maioria dos casos em que essa acção ocorre, se revela perigosa do ponto de vista dos bens jurídicos penalmente tutelados, como a integridade física, a vida e a segurança das pessoas, ainda que o bem jurídico aqui directamente em causa seja a segurança da circulação rodoviária, isto é, a segurança do tráfego constitui o bem jurídico autonomamente protegido neste tipo legal, embora vinculado a bens jurídicos pessoais, a cujo serviço está. A protecção do bem jurídico da segurança rodoviária faz-se atendendo sobretudo a outros valores, mormente pessoais como os indicados, e à semelhança do que se faz com outros tipos legais configuradores de ilícitos estradais.
E, portanto, se nesse estado de embriaguez o condutor criar um perigo real para a vida ou para a integridade física de outrem (ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado), a previsão do artigo 292 será afastada, aplicando-se por consunção o artigo 291, que pune a condução perigosa de veículo rodoviário.
Elementos constitutivos do tipo legal de condução em estado de embriaguez refira-se brevemente que são – a condução de veículo com motor ou sem ele, – em via pública ou equiparada, – e o condutor apresentar uma taxa de álcool no sangue (TAS) igual ou superior a 1,2 g/l.
Veículo com motor ou sem ele abrange os veículos descritos e classificados no Título IV do Código da Estrada, artigos 105 e ss, e inclui designadamente automóveis, motociclos, ciclomotores, triciclos e quadriciclos, veículos agrícolas, reboques e velocípedes.
Via pública significa estrada ou caminho do domínio público do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais abertos ao trânsito público de veículos ou de pessoas.
Via equiparada, a do domínio privado, quando aberta ao trânsito público de veículos e de pessoas (cf. Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 15.ª ed., p. 873, e Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, p. 48).
Pois dispõe o artigo 1.º, al. x), do Código da Estrada, que via pública é a via de comunicação terrestre afecta ao trânsito público, e na al. v) do mesmo artigo que via equiparada a via pública é a via de comunicação terrestre do domínio privado aberta ao trânsito público, como se entende que deve ser considerado um parque de estacionamento de supermercado inserido em prédio privado, mas de acesso não só aos condóminos desse prédio, mas também aos clientes desse supermercado, como o Pingo Doce, ou seja, potencialmente a toda a gente, já que ninguém está excluído de beneficiar dos serviços e bens e produtos postos à disposição da generalidade dos cidadãos que os apeteçam e possa custear, do que no caso de utilização do estacionamento do supermercado em causa até estão dispensados, contanto que permaneçam nele menos de duas horas, segundo as testemunhas.
Neste sentido, e pois que o citado pela defesa entende em matéria cível, hajam vista:
 – o acórdão da Relação de Évora, de 03 de Dezembro de 2002, no Proc. n.º 1906/02-1, relator Manuel Nabais, em que se sumaria: II- O critério a que obedece a classificação das vias públicas ou a estas equiparadas é o da sua afectação ou abertura ao trânsito público, respectivamente, que não o da dominialidade do terreno em que estão implantadas. III- Quando abertas, ainda que ocasionalmente, ao trânsito público, as vias do domínio privado (de entes públicos ou particulares, como, v.g., os parques de estacionamento de restaurantes e hipermercados) são equiparadas a vias públicas. IV- Assim, comete o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p e p. pelo artº 292º do CP, verificados os demais elementos constitutivos deste tipo de crime, quem conduzir veículo no parque de estacionamento de um restaurante aberto ao trânsito público, com uma taxa de álcool no sangue, igual ou superior a 1,2 g/l», in dgsi.pt;
– e o acórdão da Relação do Porto, de 07 de Maio de 2014, no Proc. n.º 87/12.3GBBAO.P1, relator Eduarda Lobo, de que se extrai o que faz ao caso: «Alega o recorrente que o parque de estacionamento de um supermercado de modo algum se encontra aberto ao trânsito público, sendo certo que o critério a que obedece a classificação das vias públicas ou a estas equiparadas não é o da dominialidade, mas a sua afetação ao trânsito público.
«A condução a ter em conta para efeitos do preenchimento do tipo [do artigo 292, n.º 1, CP] é a realizada em via pública ou equiparada. Como referem M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, “o critério a que obedece a classificação das vias públicas ou a estas equiparadas é o da sua afetação ou abertura ao trânsito público, respetivamente, que não o da dominialidade do terreno em que estão implantadas. Quando abertas, ainda que ocasionalmente, ao trânsito público, as vias do domínio privado (de entes público ou particulares, como, v. g., os parques de estacionamento de restaurantes e hipermercados) são equiparadas a vias públicas.”
»Ficam assim excluídas da previsão da norma as vias do domínio privado não abertas ao trânsito público.
»As noções de via pública e via equiparada a via pública constam do Código da Estrada, sendo tais conceitos definidos no artº 1º als. u) e v) daquele diploma, na redação introduzida pelo Dec-Lei 44/2005 de 23.2 (aplicável aos presentes autos, atenta a data da prática dos factos) como “via de comunicação terrestre afeta ao trânsito público” e “via de comunicação terrestre do domínio privado aberta ao trânsito público”, respetivamente.
»Em consonância com tais conceitos legais, o artº 2º define o âmbito de aplicação do Cód. da Estrada, nos seguintes termos: aplica-se ao trânsito nas vias do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais (n.º 1), bem como nas vias do domínio privado, quando abertas ao trânsito público, em tudo o que não estiver especialmente regulado por acordo celebrado entre as entidades referidas no número anterior e os respetivos proprietários (n.º2).
»Ora, não obstante um parque de estacionamento seja um local exclusivamente destinado ao estacionamento de veículos (artº 1º al. l) do Cód. Estrada), o certo é que se se tratar de um parque de estacionamento do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas ou das Autarquias Locais, ou, sendo do domínio privado, se encontre aberto ao público, naturalmente que se enquadra no conceito de via equiparada, enquanto “via” por onde transitam os veículos que nele pretendem efetuar o estacionamento, sendo certo que a expressão “trânsito” é utilizada naquele diploma, em sentido amplo, abrangendo não apenas a sua vertente dinâmica, de marcha, tráfego ou circulação (tudo isto compreendido no seu sentido restrito), mas também a sua vertente estática de paragem e estacionamento[6].
»Como se vê, o que existe de comum entre a via pública e a via equiparada a via pública é que em ambas é facultado o trânsito público: as primeiras a ele estão afetas, e as segundas, a ele estão abertas.
»E trânsito público é o trânsito que pertence a todos, que é usado por todos, é o trânsito permitido a qualquer utente da via, independentemente do fim visado com a sua utilização portanto, o trânsito de circulação geral de pessoas, veículos e animais.
»Vale isto dizer que via pública ou equiparada é toda a via de comunicação terrestre onde existe uma liberdade de circulação, apenas restringida pelas regras gerais do ordenamento jurídico rodoviário.
»Feitas estas considerações, e tendo o recorrente sido submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado quando circulava no parque de estacionamento do .… em …, onde foi inclusivamente interveniente em acidente de viação, não temos dúvidas de que se mostra preenchido o elemento objetivo do tipo “condução em via pública ou equiparada”.
»Um parque de estacionamento de uma média ou grande superfície comercial não se destina habitualmente apenas a cargas ou descargas, mas ainda ao estacionamento dos veículos de todos quantos ali se desloquem, ou seja, ao público em geral e não apenas a determinada categoria de pessoas. Por isso, não obstante possa tratar-se de um terreno de domínio privado, está aberto à circulação da generalidade das pessoas, tratando-se assim de “via equiparada a via pública”.
»Aliás, se assim não fosse, poderia até questionar-se a legitimidade das autoridades policiais que efetuaram o exame de pesquisa de álcool ao arguido/recorrente, já que a fiscalização das regras de trânsito, nas quais se inclui a condução sob influência de álcool, se restringe ao trânsito nas vias públicas ou equiparadas.
»Razão porque, improcede mais este fundamento do recurso.»
Enfim, estado de embriaguez equivale a uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.
O crime em apreço pode ser cometido com dolo ou com negligência. Para se afirmar o dolo, é mister que o agente tenha consciência do seu estado, e ainda assim pratique a condução do veículo, sabendo que tal é punido e lhe é proibido, conformando-se com isso; e, para se afirmar a negligência, que o agente não tenha consciência do seu estado por erro indesculpável (cf. artigos 14 e 15 CP).
Perante a factualidade apurada, e ora subsumida àquela previsão legal, não cabe dúvida de que se acham preenchidos tanto os requisitos objectivos como os subjectivos do tipo de crime em análise, – pois a arguida AA conduzia, em 25.07.2020, pelas 16 h 30 min, o veículo: automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …….., ……….., – na via equiparada a pública: dentro do parque de estacionamento do supermercado Pingo Doce, dito na Rua …………., Machico, – apresentando uma taxa de álcool no sangue de 1,24 g/l, deduzido já o erro máximo admissível da taxa registada de 1,35 g/l), – e praticando essa condução livre e conscientemente, – bem sabendo que o fazia sob a influência do álcool, e que tal é proibido e punível por lei penal.
Pois, para se aferir da existência do dolo, atente-se na lição sumariada no Acórdão da Relação do Porto, de 23 de Fevereiro de 1993 (Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado, Coimbra, Almedina, 15.ª edição, 2002, p. 101): «Dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência.» Com efeito, quanto aos factos consubstanciadores da intenção e consciência do arguido na prática dos restantes, não tendo havido confissão, e por isso insusceptíveis de prova directa, a convicção do tribunal formou-se por inferência da prova dos factos objectivos, e atendendo tanto aos factos notórios como às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação de Évora, de 9 de Outubro de 2001, CJ, IV, 285), de que avulta o teor da taxa significativamente acima do tolerado por lei penal, e o vir o arguido de jantar em que bebera três ou quatro copos de vinho e um digestivo, como ele próprio declarou.
Praticou, pois, a arguida um crime de condução de veículo em estado de embriaguez. " (fim de transcrição).
3. Vejamos se assiste razão à recorrente.
Começaremos por assinalar, tal como também o fez o Ministério Público na sua resposta ao recurso, que o caso ali tratado no aresto citado pela arguida nas suas alegações de recurso – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de junho de 2009, proferido no âmbito do processo n.º 176/09.1YFLSB – versa matéria distinta daquela que está em apreciação nos presentes autos pois, tal acórdão é de natureza estritamente civil e não criminal, sendo consabido que estes campos do direito possuem disciplinas distintas e depois, observamos que ali foi considerado que se deu um acidente rodoviário numa via particular não aberta ao trânsito público e que, por conseguinte, sofre uma diferente aplicação, face aos casos mais comuns, do regime previsto no artigo 31.º, do Código da Estrada, em termos de regra de prioridade, já que este preceito estabelece regras distintas relativamente a um caminho particular ou a um local de trânsito público.
Dito isto, convoca este tribunal ad quem toda a doutrina e jurisprudência citadas quer pelo tribunal a quo na fundamentação da sentença revidenda, quer pelo Ministério Público, seja em primeira instância na sua resposta ao recurso, seja no Parecer prolatado nesta segunda instância, que aqui se dão por reproduzidas e com que inteiramente concordamos, mas que quase nem era quase preciso serem trazidas à colação tal é a clareza da própria legislação quanto à questão sub iudice.
Com efeito, estabelece o Código da Estrada, quanto ao âmbito da sua aplicação, logo no seu art. 2.º, que:
“1 - O disposto no presente Código é aplicável ao trânsito nas vias do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.
2 - O disposto no presente diploma é também aplicável nas vias do domínio privado, quando abertas ao trânsito público, em tudo o que não estiver especialmente regulado por acordo celebrado entre as entidades referidas no número anterior e os respectivos proprietários.”
Sendo que «Via pública», nos termos definidos pela alínea x), do artigo 1.º, do Código da Estrada é a “via de comunicação terrestre afecta ao trânsito público”, aqui cabendo inequivocamente quer as “vias do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais”, a que se reporta o n.º 1 do art. 2º, quer “as vias do domínio privado, quando abertas ao trânsito público”, a que, equiparando-as às primeiras, alude o n.º 2 da mesma norma, sendo facto público e notório, fazendo-se apelo à realidade das coisas – à mundividência dos homens e regras de experiência comum que resultam do viver em sociedade – que são vias do domínio privado, abertas ao trânsito público, as áreas dos supermercados destinadas à circulação e estacionamento dos veículos automóveis ligeiros de passageiros (como era o caso da viatura conduzida pela arguida) pertença de todos os cidadãos que aqueles se dirigem para fazer compras. 
Na verdade, o critério a que obedece a classificação das vias públicas ou a estas equiparadas é o da sua afetação ou abertura ao trânsito público, respetivamente, que não o da dominialidade do terreno em que estão implantadas.
Assim, não obstante um parque de estacionamento ser um local exclusivamente destinado ao estacionamento de veículos [art.º 1º al. I) do Cód. Estrada], naturalmente que se enquadra no conceito de via equiparada, seja ele do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas ou das Autarquias Locais, seja do domínio privado contanto que se encontre aberto ao público.
Na realidade, o que existe de comum entre a via pública e a via equiparada a via pública é que em ambas é facultado o trânsito público: as primeiras a ele estão afetas, e as segundas a ele estão abertas.
Destarte bem andou, o tribunal a quo ao considerar que o local onde a arguida conduziu é, nos termos da alínea x), do artigo 1.º, do Código da Estrada, uma via equiparada a via pública, “é a via de comunicação terrestre do domínio privado aberta ao trânsito público, como se entende que deve ser considerado um parque de estacionamento de supermercado inserido em prédio privado, mas de acesso não só aos condóminos desse prédio, mas também aos clientes desse supermercado, como o Pingo Doce, ou seja, potencialmente a toda a gente, já que ninguém está excluído de beneficiar dos serviços e bens e produtos postos à disposição da generalidade dos cidadãos que os apeteçam e possa custear, do que no caso de utilização do estacionamento do supermercado em causa até estão dispensados, contanto que permaneçam nele menos de duas horas, segundo as testemunhas.”
Como doutamente expendeu o Ministério Público na sua resposta ao recurso “trânsito público é o trânsito que pertence a todos, que é usado por todos, é o trânsito permitido a qualquer utente da via, independentemente do fim visado com a sua utilização portanto, o trânsito de circulação geral de pessoas, veículos e animais.
Vale isto dizer que via pública ou equiparada é toda a via de comunicação terrestre onde existe uma liberdade de circulação, apenas restringida pelas regras gerais do ordenamento jurídico rodoviário.
(…) Um parque de estacionamento de uma média ou grande superfície comercial não se destina habitualmente apenas a cargas ou descargas, mas ainda ao estacionamento dos veículos de todos quantos ali se desloquem, ou seja, ao público em geral e não apenas a determinada categoria de pessoas. Por isso, não obstante, possa tratar-se de um terreno de domínio privado, está aberto à circulação da generalidade das pessoas, tratando-se assim de “via equiparada a via pública”.
Aliás, se assim não fosse, poderia até questionar-se a legitimidade das autoridades policiais que efetuaram o exame de pesquisa de álcool ao arguido/recorrente, já que a fiscalização das regras de trânsito, nas quais se inclui a condução sob influência de álcool, se restringe ao trânsito nas vias públicas ou equiparadas.”
Aderimos à sua boa argumentação pela clareza e acerto jurídico.
Termos em que, sem necessidade de quaisquer outros considerandos, o recurso não pode lograr procedência nesta parte, ficando prejudicada a análise de qualquer outra questão, tal como referimos supra em II-1, confirmando-se integralmente a decisão recorrida, que passada por este tribunal ad quem ao crivo dos vícios a que aludem as alíneas a) a c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, que não vêm alegados mas sempre são de conhecimento oficioso, constatámos não padecer de nenhum deles.

III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo (art. 513.º do CPP e artigos 5.º e 8.º, n.º 9, e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 34/2008, de 26 de fevereiro).
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2, do CPP)

Lisboa, 13 de maio de 2021
Calheiros da Gama
Abrunhosa de Carvalho