DOAÇÃO
INCAPACIDADE ACIDENTAL
REQUISITOS
ANULABILIDADE
ÓNUS DA PROVA
FACTOS CONCLUSIVOS
MATÉRIA DE DIREITO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sumário


I. Saber se determinada factualidade integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito, pelo que, não obstante o preceituado no art.º 682.º, n.º 2, do CPC, cabe ao tribunal de revista ajuizar sobre tal adequação.
II. Reveste natureza jurídico-conclusiva, cuja utilização não é neutra do ponto de vista valorativo da incapacidade da doadora, para efeitos de anulação da doação, a afirmação de que a doadora não se encontrava na plenitude das suas faculdades intelectuais, mentais e cognitivas que lhe permitissem entender o sentido da sua declaração negocial, devendo ser havida como não escrita.
III. A anulação da declaração negocial por incapacidade acidental depende da verificação dos requisitos cumulativos previstos no art.º 257.º do Código Civil, reportados ao momento da celebração do acto impugnado.
IV. Recai sobre os autores o ónus da prova dos pressupostos da anulação, por efeito da incapacidade acidental, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:



I. Relatório


AA e esposa BB, esta representada por aquele, seu tutor por ter sido declarada interdita, instauraram, em 10/4/2019, acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC, então menor, representada por sua mãe DD, pedindo que seja “declarada a nulidade da escritura de doação, bem como as inscrições no registo e eventuais registos subsequentes feitos”.

Para tanto, alegaram, em resumo, que:

Por escritura pública de 20/4/2016, doaram à sua neta CC um prédio misto sito na ....

Nessa data, atravessavam uma fase complicada, estando o autor afectado psicologicamente com problemas de saúde associados à sua esposa, a qual não se encontrava na posse de todas as faculdades mentais, vindo a ser decretada a sua interdição definitiva e fixado o início da sua incapacidade no ano de 2016, por sentença de 26/9/2018.

Está arrependido de ter feito tal doação, pois, com ela, acabou por prejudicar o outro seu neto, EE.


A ré contestou, por impugnação motivada e por excepção.

Alegou, em síntese, que a doação foi celebrada de livre e espontânea vontade, em cumprimento de um desejo manifestado pelo seu pai e filho dos Autores, com quem manteve sempre um relacionamento muito próximo.

À data da celebração da escritura, a autora estava na totalidade das suas faculdades mentais e o autor João actua com abuso de direito e deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia, nem devia ignorar, pelo que peticionou a sua condenação em multa e indemnização como litigante de má-fé.

Concluiu pela improcedência da acção, com a consequente absolvição do pedido, e pedindo a condenação do autor como litigante de má fé.


Na audiência prévia realizada, foi proferido despacho saneador tabelar, foi identificado o objecto do litígio e foram enunciados os temas de prova, sem reclamações.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, onde se decidiu:

“Com os fundamentos de facto e de direito supra expostos, julga-se procedente, por provada a presente acção e, em consequência:  

a) Declara-se a anulação da doação do prédio misto sito na ..., na freguesia e concelho ..., composta a parte rústica de cultura arvense, olival e citrinos, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …..46. da secção …, com o valor patrimonial de 7,80€ e atribuído de onze euros e quarenta cêntimos, e a parte urbana de edifício de rés-do-chão, para habitação e garagem, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …...68., com o valor patrimonial de 7,80€ e atribuído de quarenta e dois mil e setecentos euros, descrito na conservatória do registo predial .... sob o número oitocentos e setenta e oito, da citada freguesia, celebrada em 20.04.2016 no Cartório Notarial .... Notária FF pelos Aurores AA e BB a favor de CC;

b) Determina-se o cancelamento do registo da aquisição, por doação, do prédio referido na antecedente alínea a),

c) Não se determina a condenação do Autor AA como litigante de má-fé”.


Inconformada, a ré interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 3/12/2020, julgou a apelação procedente e revogou a sentença recorrida, absolvendo a ré do pedido.


Não conformados, desta feita, os autores interpuseram recurso de revista e apresentaram a respectiva alegação com as seguintes conclusões:

“A) O Douto Tribunal “a quo” apesar de toda a factualidade dada como provada, a saber:

(segue-se a reprodução da factualidade provada nos n.ºs 18 a 20, 24 a 33 e 36, alguma repetida e outra sem constar dentre aquela factualidade, ocupando três páginas, que nada têm de sintético, em manifesto incumprimento do preceituado no art.º 639.º, n.º 1, do CPC, pelo que não se reproduzem aqui);

B) O Douto Tribunal “a quo” entendeu absolver a ré/ora recorrida.

C) Apesar de ter entendido que a matéria constante do supra referido n.º 36 deveria ser considerada não escrita, impunha-se decisão diferente face a toda a demais matéria dada como provada.

D) Ora, ao contrário do propugnado pelo Tribunal “a quo” entende(m) os autores/ora recorrentes que a matéria do supra referido n.º 36 não é conclusiva, nem traduz uma antecipação do conceito normativo de incapacidade acidental.

E) Aliás, o Tribunal de primeira instância expressou que no que tange à factualidade vertida em 36), a mesma decorre da conjugação da factualidade vertida em 18) a 21) e 24) a 34) factualidade que não foi reapreciada pelo Douto Tribunal “a quo”, por carecer de todos os elementos necessários para tal, improcedendo a apelação nessa parte.

F) Aliás, citando as palavras vertidas no Acórdão da Relação de Évora quanto à justificação para tal modificação, o mesmo queda-se com formulações abstratas, sem qualquer tipo de concretização.

G) Assim, do que vimos de expender, podemos afirmar com meridiana clareza que, a matéria de facto elencada naquele n.º 36, corresponde a um verdadeiro facto, só não o sendo na ótica do Acordão…

H) Ora o Tribunal de primeira instância expressou na sua sentença que a prova “stricto sensu” não impede que o tribunal forme a sua convicção com base na probabilidade estatística da realidade do facto.

I) Ademais, foi intentada a ação concreta em que se alegaram factos necessários e suficientes à procedência do pedido de anulação da doação.

J) Assim, atento o quadro circunstancial supra referido e em função do “grau” de prova exigível aos autores isto é, na medida da convicção que é necessária para que o tribunal possa julgar determinado facto como provado – face á prova produzida, pode afirmar-se que à data da outorga da escritura de doação a autora/ora recorrente não se encontrava na plenitude das suas faculdades intelectuais, mentais e cognitivas que lhe permitissem entender o sentido da sua declaração negocial.

K) Pelo que não podem colher os argumentos do Tribunal “a quo”, ao dizer que a autora BB não pode ser, sem mais, considerada como afetada, à data da realização da doação, de doença psicológica impeditiva de aquilatar do sentido da declaração emitida, acrescentando ainda que não poderia a mesma ser tida como portadora de incapacidade acidental, quando os factos apurados respaldam o contrário.

L) Por essa razão, entendemos ser a matéria de facto provada suficiente para, como bem afirmou a sentença do Tribuna de primeira instância, determinar a anulação da doação outorgada pelos autores/ora recorrentes nos termos do art. 257.º do C.C..

Assim, nestes termos e nos melhores em Direito aplicáveis, e sempre com o Mui Douto Suprimento de Vossas Excelências, deve ao presente recurso ser dado provimento, revogando-se a decisão recorrida proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, mantendo-se a Douta Sentença do Tribunal da primeira instância.

Fazendo-se desse modo a já acostumada e sã Justiça.”


Não foram apresentadas contra-alegações.


O recurso foi admitido como de revista.

No despacho limiar, o Relator, fixou-lhe o efeito meramente devolutivo, mantendo a forma de subida, não fixados.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.

Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões dos recorrentes, nos termos dos art.ºs 635.º, n.os 3 a 5 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões que importa dirimir consistem em saber:

1. Se houve erro na exclusão da matéria do n.º 36 da fundamentação de facto, ao ser considerada conclusiva;

2. E se a autora/recorrente se encontrava, no momento da doação, acidentalmente incapacitada de entender o sentido dela, por forma a obter a sua anulação.


II. Fundamentação

1. De facto

O tribunal recorrido (tal como já o havia feito o tribunal da 1.ª instância) considerou provados os seguintes factos:

1) Os Autores casaram em 24.12.1962, sem convenção antenupcial e tinham um filho, GG, que veio a falecer com 44 anos, em 4 de Novembro de 2013.

2) O falecido filho, GG, casou com HH em 20 de setembro de 2012.

3) Do matrimónio referido em 2) resultou um filho, EE nascido em 25.01.2013.

4) O falecido filho GG antes de contrair matrimónio com HH, teve uma filha de uma anterior relação, CC.

5) CC nasceu em 08.05.2002 e é filha de GG e DD.

6) No dia 20.04.2016, no Cartório Notarial ... Notária FF, os Autores, mediante escritura pública de doação declararam doar a favor da sua neta CC, por conta da quota disponível, o prédio misto de que eram proprietários, sito na ..., na freguesia e concelho ..., composta a parte rústica de cultura arvense, olival e citrinos, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... da secção …, com o valor patrimonial de 7,80€ e atribuído de onze euros e quarenta cêntimos, e a parte urbana de edifício de rés-do-chão, para habitação e garagem, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ....46, com o valor patrimonial de 7,80€ e atribuído de quarenta e dois mil e setecentos euros, descrito na conservatória do registo predial  ... sob o número ……..68, da citada freguesia, com a aquisição registada a seu favor pela inscrição correspondente à apresentação número dois de dez de outubro de mil novecentos e noventa.

7) À doação referida em 6) os Autores declararam atribuir o valor global de quarenta e dois mil e setecentos e onze euros e quarenta cêntimos.

8) À data da doação ultrapassavam os Autores uma fase muito complicada, encontrando-se abalados com a morte do seu filho.

9) Desde pelo menos um ano após o falecimento do seu filho, que os Autores manifestavam a vontade de doar à sua neta CC o prédio misto sito na ..., uma vez que era um local em relação ao qual a menor tinha muitas recordações do pai, por ser um local muito frequentado por ambos, não só durante a relação entre o falecido filho dos Autores com a mãe da menor, mas também depois disso e igualmente por serem conhecedores de que essa era a vontade do seu filho.

10) A menor CC sempre teve um relacionamento próximo dos avós, tendo a Autora BB cuidado dela.

11) A mãe da menor, DD, não obstante a separação do pai daquela, manteve sempre com este e com os seus pais, principalmente com a Autora BB, uma relação de grande amizade e proximidade.

12) Uns dias antes de 20.04.2016, o Autor AA, perguntou a DD se a mesma tinha disponibilidade para os acompanhar no dia 20.04.2016, ao escritório do seu então advogado, Dr. II, sem lhe adiantar, contudo, o motivo.

13) No dia e hora em que o Autor solicitou a companhia de DD, a mesma veio a acompanhar os Autores e deslocaram-se ao escritório do identificado advogado.

14) Foi neste local que a mãe da Ré teve conhecimento pelo Ilustre Advogado que se encontrava marcada a escritura de doação do imóvel ... à CC para dali a uns minutos junto do Cartório Notarial da Dra. FF.

15) Na presença de DD, o Ilustre Advogado informou a Legal Representante da Ré que se encontrava agendada a escritura de doação e questionou os Autores várias vezes se sabiam o que estavam a fazer tendo inclusive e para o efeito referido “olhem que depois de fazerem a doação se a CC quiser não vos deixa lá entrar.

16) Saídos do escritório do Ilustre Advogado, dirigiram-se todos para o Cartório Notarial da Dra. FF, a fim de ser então outorgada a respectiva escritura de doação.

17) Tratando-se de uma doação a menor, mas sem encargos não careceu da aceitação da representante legal da Ré, razão pela qual esta, embora presente no acto, não necessitou de assinar a respectiva escritura.

18) No ano da celebração da escritura a Autora BB manifestava alguns sinais de esquecimento, alguma repetição no discurso, não sabia onde deixava as coisas, apresentava confusão quanto aos dias da semana, tinha dificuldades em fazer pagamentos no multibanco.

19) Na altura da outorga da escritura a Autora BB tinha os sinais referidos em 18), o que era do conhecimento de DD.

20) Por sentença proferida em 01.10.2018, transitada em julgado em 07.11.2018 no processo de interdição n.º 4711/17…. que correu termos no Juízo Local Cível ... J…, foi decretada a interdição definitiva de BB e fixada a data do início da incapacidade no ano de 2016.

21) No âmbito do processo referido em 20), a petição inicial deu entrada em 21.06.2017 foram fixados os editais em 25.08.2017, o anúncio foi publicado em 10.07.2017 e a sentença de interdição foi registada na Conservatória do Registo Civil em 23.11.2018.

22) No ano de 2017, e já tendo o A. AA institucionalizado a A. BB, junto de um lar de idosos, propôs à representante legal da Ré, que fossem morar para sua casa, comprometendo-se a realizar obras na casa por forma a permitir que ele morasse no rés-do-chão da moradia e elas no primeiro andar, com alguma independência, mas que lhe dessem algum suporte e cuidados, ao que aquela lhe transmitiu que iria pensar no assunto.

23) A legal Representante da Ré não aceitou a proposta referida em 22).

24) A Autora BB foi admitida no Centro de Dia ... em 14.03.2016, onde permaneceu até ao final do ano de 2016.

25) À data da sua admissão no Centro de Dia ..., em 14.03.2016 a Autora não tinha um discurso coerente.

26) Não tinha noção das horas das refeições.

27) Se não a fossem buscar não ia almoçar.

28) Estava num vazio.

29) Imitava os outros utentes, sendo que se a utente que estava ao seu lado se levantasse a seguia.

30) Não conseguia manter um discurso sobre a atualidade.

31) Aquando da realização das atividades de grupo a Autora não interagia.

32) Falava repetidamente no passado.

33) A factualidade vertida em 25) a 32) era visível para terceiros, nomeadamente para JJ, diretora técnica do Centro de Dia …...

34) No Centro de Dia…... a Autora era seguida em consultas de neurologia na ....

35) À data da consulta de neurologia ocorrida no dia 06.04.2016, a Autora BB apresentava “Perturbação de memória e ideação paranóide”, tendo sido medicada, nessa data com o fármaco Donepezilo[3], utilizado para tratar os sintomas de demência em pessoas nas quais foi diagnosticada a doença de Alzheimer, ligeira a moderadamente grave, cujos sintomas incluem perda de memória crescente, confusão e alterações do comportamento.

 Todavia, a Relação declarou “não escrita” a matéria constante do n.º 36 da fundamentação de facto da sentença, por a considerar “conclusiva”, a qual tinha o seguinte teor:

“36) À data da outorga da escritura de doação a Autora BB não se encontrava na plenitude das suas faculdades intelectuais, mentais e cognitivas que lhe permitissem entender o sentido da sua declaração negocial.”

2. De direito

2.1. Da exclusão da matéria do n.º 36 da fundamentação de facto           

O Tribunal da Relação declarou “não escrita” a matéria do n.º 36 da fundamentação de facto, em virtude de a considerar “conclusiva, traduzindo uma antecipação do conceito normativo de incapacidade acidental, subjacente à anulação prevista no art.º 257.º do Código Civil, cuja utilização não é neutra do ponto de vista da valoração da respectiva incapacidade da doadora, nem, consequentemente, quanto à solução do litígio”.

Por sua vez, os autores/recorrentes sustentam que tal matéria não é conclusiva, correspondendo a um verdadeiro facto como decorre da restante matéria de facto provada.

Que dizer?

Antes de mais, importa aferir da competência do STJ para decidir esta questão, por ter sido suscitada no âmbito da alteração da matéria de facto, na sequência da exclusão da matéria daquele n.º 36.

Como é sabido, relativamente à alteração da matéria de facto, os poderes do STJ constam dos art.º s 682.º, n.º 2 e 674.º, n.º 3, ambos do CPC.

Nos termos do primeiro normativo “a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º”.

E, de acordo com este preceito, “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Assim, o fundamento de revista previsto nesta norma visa a intervenção (excepcional) do Supremo, no plano dos factos, quando tenha havido “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”. A intervenção do STJ no domínio dos factos está, assim, reservada ao campo da designada prova tarifada ou vinculada, ou seja, aos casos em que a lei exige determinado tipo de prova para demonstração de certas circunstâncias factuais ou atribui específica força probatória a determinado meio probatório (citado art.º 674.º n.º 3).

Fora esta intervenção (excepcional), escapa, pois, aos poderes cognitivos do STJ apreciar a bondade da decisão de facto, cabendo essa missão ao Tribunal da Relação, que sobre a mesma decide em definitivo. Na verdade, é da competência das instâncias o julgamento respeitante à demonstração, ou não, da materialidade controvertida com base em prova sujeita à livre apreciação do tribunal.

Porém, “saber se um facto concreto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito, porquanto não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse mesmo facto enquanto realidade da vida”, cabendo, por isso, nos poderes cognitivos do STJ, como já afirmámos no nosso acórdão de 1/10/2019, proferido no processo n.º 109/17.1T8ACB.C1.S1[4].

Como se observou no acórdão deste Supremo Tribunal, ali também referido e parcialmente transcrito, de 28 de Setembro de 2017, processo n.º 659/12.6TVLSB.L1.S1[5], citando o de 10/1/2017 (proc. 761/13.7TVPRT.P1.S1), “em tal caso este Tribunal não está a interferir na apreciação dos factos, não está a corrigir, indevidamente, um eventual erro na apreciação das instâncias, mas antes a proceder à sua qualificação como tal de acordo com as regras de direito aplicáveis”. No mesmo sentido também se pronunciaram, entre outros, segundo aquele aresto, os acórdãos do STJ de 18/2/2016 e de 28/6/2012 (processos n.º 1320/05.3TBCBR.C1.S1 e n.º 3728/07.0TVLSB.L1.S1, respectivamente).

Nesta perspectiva, não está em causa determinar se ocorreu ou não um concreto facto, ou seja, “sindicar a convicção formada pelo tribunal com base nas provas produzidas e de livre apreciação, mas avaliar se matéria considerada como um facto provado reflecte, indevidamente, uma apreciação de direito por envolver uma “qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 312)”[6].

Daí que, neste caso, como o presente, o STJ tenha poderes cognitivos.

E, verificando-se esta situação, constando da selecção da matéria de facto questões de direito, devem as mesmas ser consideradas não escritas (à semelhança do que dispunha o anterior CPC no seu art.º 646.º, n.º 4, 1.ª parte, embora o NCPC não contenha norma correspondente, mas cuja conclusão se impõe por imperativo do disposto no seu art.º 607.º, n.º 4, segundo o qual na fundamentação da sentença o juiz declara os “factos” que julga provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos).

A distinção entre matéria de facto e matéria de direito tem sido controversa, quer na doutrina quer na jurisprudência.

Servindo-nos, mais uma vez, das citações feitas no nosso anterior acórdão, o acórdão deste Tribunal e desta Secção, de 9/9/2014, proferido no processo n.º 5146/10.4TBCSC.L1.S1[7], faz um resumo dos entendimentos, até então, adoptados, que aqui reproduzimos deste modo:

“Na formulação de Alberto dos Reis, «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei»[8].

Segundo Karl Larenz, a “questão de facto” reporta-se ao que efectivamente aconteceu, enquanto a “questão de direito” se identifica com a qualificação do ocorrido em conformidade com os critérios da ordem jurídica[9].

Existe, contudo, um continuum entre matéria de facto e matéria de direito e não uma oposição absoluta entre ambos os conceitos, pois na concreta aplicação do direito acaba por verificar-se uma correlatividade entre ambos os elementos[10].

Há que partir, portanto, da unidade do caso jurídico decidendo e dos problemas jurídicos por si colocados, devendo distinguir-se dois tipos de questões: uma que se refere aos dados pressupostos pelo problema concreto – questão de facto – e outra que tem a ver com o fundamento e o critério do juízo e com o próprio e concreto juízo decisório – questão de direito[11]. Na matéria de facto concorrem não apenas dados empíricos, mas todos os pressupostos objectivos do problema colocado, por exemplo, elementos sócio-culturais e até jurídicos[12].

Contudo, a tradição do nosso pensamento jurídico, no seguimento de Alberto dos Reis, considera que a actividade do juiz se circunscreve ao apuramento dos factos materiais, devendo evitar que no questionário entrem noções, fórmulas, categorias ou conceitos jurídicos, inserindo, apenas, nos quesitos e na matéria de facto assente, factos materiais e concretos[13]. Continua o autor, afirmando que «tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória»[14].

Se na resposta a determinado quesito houver matéria de facto e matéria de direito, deve aproveitar-se a decisão na parte relativa à primeira e considerar-se não escrita na parte relativa à segunda.

Tem-se entendido, na jurisprudência e na doutrina, que as respostas do julgador de facto sobre matéria qualificada como de direito consideram-se não escritas e que se equiparam às conclusões de direito, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados[15].

Para Teixeira de Sousa, «A selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica» (cfr. STJ – 13/12/1983, BMJ 332, 437)[16].

Abrantes Geraldes defende que “devem ser erradicadas da condensação as alegações com conteúdo técnico-jurídico de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que, porventura, tenham simultaneamente uma significação corrente e da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutem”[17]».

Este sentido tem sido seguido pelas melhores doutrina e jurisprudência.

Porém, começam a surgir vozes a defender a abolição da distinção entre matéria facto e matéria de direito, afirmando ser “totalmente artificial”, dado que, “para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos”, como é o caso de Teixeira de Sousa, em comentário ao acórdão do STJ de 28/9/2017, proc. 809/10, em https//blogippc.blogspot.pt, onde concluiu que, “sob pena de se cair num inaceitável formalismo, não pode constituir motivo de censura que o tribunal, depois de considerar provados determinados factos que consubstanciam a violação de deveres de cuidado, conclua que está demonstrada a negligência de parte”. O mesmo ilustre Processualista defende também que “a chamada «proibição dos factos conclusivos» não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil”[18].

Seja como for, com o devido respeito por tal entendimento, afigura-se-nos que deve continuar a ser feita a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, pois que a opção do legislador em não criar norma idêntica à do n.º 4 do art.º 646.º do CPC de 1961 “não significa obviamente que seja admissível doravante  assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de  pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto”[19].

Assim, continuando a transcrever o nosso anterior acórdão, «embora só acontecimentos ou factos concretos possam integrar a selecção da matéria de facto relevante para a decisão (“o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstractos com que os descreve a norma legal, por que tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”[20]), são ainda de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objecto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objecto de disputa das partes.

Deste modo, “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes”[21]. O que num caso pode ser facto ou juízo de facto, noutro pode ser juízo de direito[22].

De forma idêntica, adoptando o mesmo critério, tem decidido a jurisprudência, entendendo que são de afastar expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam susceptíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, que invadam o domínio de uma questão de direito essencial[23].

Assim, a natureza conclusiva do facto pode ter um sentido normativo quando contém em si a resposta a uma questão de direito ou pode consistir num juízo de valor sobre a matéria de facto enquanto ocorrência da vida real. No primeiro caso, o facto conclusivo deve ser havido como não escrito. “No segundo, a solução depende de um raciocínio de analogia entre o juízo ou conclusão de facto e a questão de direito, devendo ser eliminado o juízo de facto quando traduz uma resposta antecipada à questão de direito”[24].

Dito isto, vejamos o caso dos autos.

Está em causa a matéria do n.º 36 da fundamentação de facto, acima transcrita, como se disse.

Da sua leitura, facilmente se conclui que se trata de matéria conclusiva, pois traduz uma antecipação do conceito normativo de incapacidade acidental, tal como previsto no art.º 257.º do Código Civil, subjacente à anulação pretendida pelos autores/recorrentes, cuja utilização não é neutra do ponto de vista da valoração da respectiva incapacidade da doadora, nem, consequentemente, quanto à solução do litígio.

Deste modo, ao declarar não escrita tal matéria, nenhuma censura merece, nesta parte, o acórdão recorrido.

A restante matéria provada será apreciada aquando da sua qualificação jurídica, sendo irrelevante para o tratamento desta questão, tanto mais que não se trata de apurar a intenção, o convencimento, enquanto realidades do mundo psicológico, para poderem fazer parte das realidades de facto, como também tem considerado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[25].

Improcede, por conseguinte, sem mais considerações, esta questão.

2.2. Da incapacidade acidental

Está em causa a verificação dos requisitos cumulativos legalmente exigidos para anulação da declaração da doação, feita pela autora, antes do anúncio da proposição da acção de interdição, com fundamento na sua incapacidade acidental.

Tais requisitos encontram-se previstos no art.º 257.º, aplicável ao caso por remissão do art.º 150.º, ambos do Código Civil, vigente na data da prática do acto impugnado (cfr. art.º 26.º, n.º 3, da Lei n.º 49/2018, de 18/8, entrada em vigor no dia 10/2/2019 – art.º 25.º, n.º 1 – que criou o regime do maior acompanhado[26]) e porque o mesmo foi celebrado antes da publicação do anúncio da acção de interdição, tal como foi decidido e é entendimento pacífico.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, e também é mencionado no acórdão recorrido, “a interdição não atinge, de per si, os actos praticados antes de anunciada a acção. Esses actos estão sujeitos ao regime dos actos realizados por quem está acidentalmente incapacitado de entender o sentido exacto da declaração negocial ou não tem o livre exercício da sua vontade, isto é, ao regime estabelecido no artigo 257.º”[27].

O art.º 257.º do Código Civil dispõe:

“1. A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário.

2. O facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar.”

Daqui decorre que a anulação da declaração negocial por incapacidade acidental depende da verificação dos seguintes requisitos cumulativos:

“a) Que o autor da declaração, no momento em que a fez, se encontrava, ou por anomalia psíquica (art.º 150.º), ou por qualquer outra causa (embriaguez, estado hipnótico, droga, etc.), em condições psíquicas tais que não lhe permitiam o entendimento do acto que praticou ou o livre exercício da sua vontade;

b) Que esse estado psíquico era notório ou conhecido do declaratário”[28].

Este artigo sobrepõe-se ao art.º 246.º, onde se prevê a falta de consciência da declaração.

Segundo Menezes Cordeiro, “ele (art.º 257.º) parece sobrepor-se ao artigo 246º e às figuras nele contempladas da coacção física e da falta de consciência da declaração: em qualquer destas duas hipóteses, o declaratário ou está acidentalmente incapacitado de entender o sentido da declaração ou não tem o livre exercício da sua vontade. De seguida, ele usa uma linguagem centrada na pessoa do declarante e não na sua declaração. E, por fim, ele fixa um regime dissonante: a (mera) anulabilidade, contra a nulidade – há doutrina que fala mesmo em inexistência – originada pela coacção ou pela falta de consciência da declaração”[29].

Por sua vez, Carlos Mota Pinto “sublinha que a incapacidade acidental não é regulada na secção das incapacidades por não traduzir uma condição permanente do sujeito, tendo sido incluída entre os casos de falta ou vícios da vontade. Acrescenta que o problema de saber se se trata rigorosamente de uma falta (como no caso do art. 246º) ou de um vício não tem interesse prático, uma vez que o tratamento é sempre o do art. 257º”[30],[31].

Como se refere no acórdão deste Tribunal, já citado, de 11/12/2018, processo n.º 342/15.0T8VPA.G1.S1 e se reproduz no acórdão recorrido, “o art. 257º abrange as chamadas incapacidades naturais, que não reflectem uma situação permanente do declarante, existindo apenas nos momentos em que se verificam as suas causas.

Constitui um tipo particular de falta de vontade da declaração, pois prevê especificamente os casos em que o declarante se encontra privado da capacidade necessária para entender o sentido da sua declaração.”

Portanto, temos como certo e adquirido que o regime jurídico aplicável aos negócios celebrados pelo incapaz, antes de assim ter sido declarado, como o dos autos, é o resultante do mencionado art.º 257.º.

Continua o último acórdão citado, reproduzido no acórdão recorrido, “a consequência prevista para os negócios celebrados com incapacidade acidental é o da anulabilidade, exigindo-se, porém, um requisito suplementar destinado à tutela da confiança do declaratário e da segurança do comércio jurídico: a notoriedade ou o conhecimento da perturbação psíquica pelo declaratário.

A notoriedade significa a cognoscibilidade por uma pessoa de normal diligência, colocada na posição concreta do declaratário.

"Não se atende agora ao declaratário real, mas a um declaratário ideal, o bonus pater familias. É indiferente, pois, para haver notoriedade, o facto de o declaratário real desconhecer a situação de incapacidade do declarante ou dela não se ter apercebido, desde que um declaratário ideal dela se pudesse ter apercebido"[32].

Observa P. Mota Pinto que, "para efeitos do art. 257º, notório não é, portanto, um facto patente, indubitavelmente provado, mas antes aquele que só por culpa do declaratário não foi conhecido. Tal requisito não tem a ver com a prova segura e clara da incapacidade, mas com a sua transparência para fins de tutela do declaratário e do comércio jurídico"[33].

Adverte, porém, este Autor que, sendo este o sentido do requisito da notoriedade, isso não significa que este deva ter o mesmo sentido para todo o tipo de casos. Assim, podendo o regime do art. 257º ser aplicado aos negócios unilaterais e mesmo aos não receptícios ("pelo menos se forem negócios patrimoniais e que produzam efeitos inter vivos, não limitados à esfera jurídica do declarante"), "requerer-se-á nestes que a incapacidade seja notória, isto é, geralmente conhecida, para surgir uma anulabilidade, podendo, além disso, considerar-se também, para efeito de má fé, o conhecimento que o destinatário dos efeitos tenha da incapacidade"[34]”.

Revertendo ao caso dos autos, vejamos se, em face dos factos provados, únicos que podem ser considerados, se mostram verificados os requisitos da incapacidade acidental da autora, em termos de poder ser anulada a doação que fez, juntamente com o seu marido, à neta CC.

Dos factos provados resulta, com interesse, o seguinte:

Na data da outorga da escritura de doação, ocorrida em 20/4/2016, a autora BB manifestava sinais de esquecimento, alguma repetição no discurso, não sabia onde deixava as coisas, apresentava confusão quanto aos dias da semana, tinha dificuldades em fazer pagamentos no multibanco, o que era do conhecimento da mãe da demandada menor (cfr. n.ºs 6, 18 e 19 dos factos provados).

A mesma autora, em 14/3/2016, foi admitida no Centro de Dia ...., onde permaneceu até ao final desse ano de 2016, sendo que, em 14 de Março, não tinha um discurso coerente, não tinha noção das horas das refeições, se não a fossem buscar não ia almoçar, estava num vazio, imitava os outros utentes, não conseguia manter um discurso sobre a actualidade, não interagia aquando da realização das actividades de grupo e falava repetidamente no passado, o que era visível para terceiros (cfr. factos n.ºs 24 a 33).

No dia 6/4/2016, foi submetida a uma consulta de neurologia e apresentava “Perturbação de memória e ideação paranóide”, tendo sido medicada, nessa data, com o fármaco Donepezilo, utilizado para tratar os sintomas de demência em pessoas nas quais foi diagnosticada a doença de Alzheimer, ligeira a moderadamente grave, cujos sintomas incluem perda de memória crescente, confusão e alterações do comportamento, passando a ser seguida em consultas de neurologia (cfr. factos n.ºs 34 e 35).

Por outro lado, também ficou provado que:

À data da doação, ultrapassavam os Autores uma fase muito complicada, encontrando-se abalados com a morte do seu filho, ocorrida em 4/11/2013 (cfr. factos n.ºs 1 e 8).

Desde, pelo menos, um ano após o falecimento do seu filho, que os Autores manifestavam a vontade de doar à sua neta CC o prédio misto sito na ..., uma vez que era um local em relação ao qual a menor tinha muitas recordações do pai, por ser um local muito frequentado por ambos, não só durante a relação entre aquele e a mãe da menor, mas também depois disso e igualmente por serem conhecedores de que essa era a vontade do seu filho (factualidade do n.º 8).

Alguns dias antes da data da escritura o Autor AA perguntou a DD se a mesma tinha disponibilidade para os acompanhar no dia 20.04.2016, ao escritório do seu então advogado, Dr. II, sem lhe adiantar, contudo, o motivo (facto n.º 12).

No dia e hora em que o Autor solicitou a companhia de DD, a mesma veio a acompanhar os Autores e deslocaram-se ao escritório do identificado advogado (facto n.º 13).

Foi neste local que a mãe da Ré teve conhecimento pelo Ilustre Advogado que se encontrava marcada a escritura de doação do imóvel ... à CC para dali a uns minutos junto do Cartório Notarial da Dra. FF (facto n.º 14).

Na presença de DD, o Ilustre Advogado informou a Legal Representante da Ré que se encontrava agendada a escritura de doação e questionou os Autores várias vezes se sabiam o que estavam a fazer tendo inclusive e para o efeito referido “olhem que depois de fazerem a doação se a CC quiser não vos deixa lá entrar.” (facto n.º 15).

Saídos do escritório do Ilustre Advogado, dirigiram-se todos para o Cartório Notarial da Dra. FF, a fim de ser então outorgada a respectiva escritura de doação (facto n.º 16).

Perante esta factualidade, dada como provada, afigura-se-nos que não é possível concluir pela incapacidade acidental no momento da outorga da escritura da doação impugnada, ou seja, em 20/4/2016, como se entendeu no acórdão recorrido.

Escreveu-se ali:

“A incapacidade acidental equivale à chamada incapacidade natural; inaptidão para, no caso concreto, "entender ou querer" (artigo 488.º). Irreleva a causa, bem como a sua duração, permanência ou intermitência, desde que o entendimento do declarante se encontre diminuído no instante em que manifesta a sua vontade.

Ora a circunstância de alguém manifestar alguns sinais de esquecimento, alguma repetição no discurso, não saber onde deixa as coisas, apresentar confusão quanto aos dias da semana, ou ter dificuldades em fazer pagamentos no multibanco, sinais manifestados pela autora na data da outorga da escritura, só por si, não permite concluir, sem mais, que o seu estado psíquico, na data da escritura, não lhe permite "entender ou querer" o acto que praticou, ou seja, que "não estava na posse de todas as suas faculdades mentais", como sustenta o autor seu marido.

Ademais, não pode deixar de relevar que no dia da realização da escritura, e minutos antes da mesma, a autora BB e o seu marido, deslocaram-se ao escritório do seu então Advogado, Dr. II, tendo este questionado os Autores várias vezes se sabiam o que estavam a fazer tendo inclusive e para o efeito referido "olhem que depois de fazerem a doação se a CC quiser não vos deixa lá entrar.'' E só após se dirigiram para o Cartório Notarial da Dra. FF, a fim de ser então outorgada a respectiva escritura de doação.

Por outro lado também dar como provado que a autora era seguida em consultas de neurologia e, à data da consulta de neurologia ocorrida no dia 06.04.2016, apresentava "Perturbação de memória e ideação paranóide", tendo sido medicada, nessa data com o fármaco Donepezilo, acrescentando-se as indicações terapêuticas do mesmo as quais abarcam desde a perda de memória à ideação paranóide, não pode daí resultar como demonstrado que tais problemas de ordem neurológica e ou psiquiátrica, a incapacitem de perceber e a impeçam de entender o acto ora impugnado e, sobretudo, que na data da celebração da escritura de doação, não tinha capacidades cognitivas e  o discernimento necessário,  para entender e ou querer outorgar a referida escritura.

Aliás importa também não descurar que a vontade de querer doar o referido imóvel a sua neta CC, foi sustentada ao longo do tempo, e baseada até mesmo em razões afectivas, já que resultou provado que desde pelo menos um ano após o falecimento do seu filho, ou seja, desde pelo menos 2014, que os Autores, a doação foi efectuada conjuntamente com o autor seu marido, manifestavam a vontade de doar à sua neta CC o prédio misto sito na ..., uma vez que era um local em relação ao qual a menor tinha muitas recordações do pai, por ser um local muito frequentado por ambos, não só durante a relação entre o falecido filho dos Autores com a mãe da menor, mas também depois disso e igualmente por serem conhecedores de que essa era a vontade do seu filho. Sendo certo que a menor CC sempre teve um relacionamento próximo dos avós, tendo a Autora BB cuidado dela.

Finalmente importa também relembrar o artigo 11.º, do Estatuto da Ordem dos Notários, que impõe ao Notário o dever de recusar a prática de atos sempre que tenha dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos participantes.

É certo que se apurou que em 14.03.2016, a autora foi admitida no Centro de Dia da ..., onde permaneceu até ao final do ano de 2016.

À data da sua admissão no Centro de Dia, a autora não tinha um discurso coerente. Não tinha noção das horas das refeições. Se não a fossem buscar não ia almoçar. Estava num vazio. Imitava os outros utentes, sendo que se a utente que estava ao seu lado se levantasse a seguia. Não conseguia manter um discurso sobre a atualidade. Aquando da realização das atividades de grupo a Autora não interagia e falava repetidamente no passado.

Porém, esta parca factualidade, sem mais, está longe de revelar um quadro de uma putativa situação de incapacidade tal - estado demencial tal, por ex.-, da qual enquanto mera dedução ou ilação autorizada pelas regras da experiência (id quod plerumque accidit), mas nada mais do que isso, permitisse presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo acto aquela se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e ou de querer o sentido da declaração, mas aliás, nem a acção foi configurada nestes termos.”

Concordamos com esta apreciação, por se nos afigurar correcta, em face da factualidade dada como provada, acima reproduzida e repetida, e do regime da incapacidade acidental supra explicitado.

Os autores/recorrentes não invocam qualquer fundamento legal para afastar tal entendimento, susceptível de ser apreciado por este Supremo Tribunal, limitando-se a reproduzir parte da matéria de facto provada e a afirmar que ela é  suficiente para determinar a anulação da doação com base na incapacidade acidental da autora.

Porém, com o devido respeito, não têm razão.

É do conhecimento geral que a doença de Alzheimer é um tipo de demência que provoca uma deterioração global, progressiva e irreversível de diversas funções cognitivas (memória, atenção, concentração, linguagem, pensamento, entre outras), deterioração essa que tem como consequências alterações no comportamento, na personalidade e na capacidade funcional da pessoa, dificultando a realização das suas atividades de vida diária.

Tal doença foi diagnosticada no dia 6/4/2016, com “perturbação de memória e ideação paranóide”.

Daí não resulta que, na data da escritura, realizada no dia 20/4/2016, portanto14 dias após ser diagnosticada aquela doença, a autora se encontrava acidentalmente incapacitada de entender o sentido da declaração negocial ou não tinha o livre exercício da sua vontade.

A factualidade provada sob os n.ºs 25 a 32 também não permite tirar essa conclusão, na medida em que nela estão vertidas manifestações da doença que, por si só, não permite aferir da incapacidade acidental da autora, no momento da celebração da escritura de doação.

Muito menos permitem os sinais dados como provados sob o n.º 18. Apesar de esses sinais existirem “na altura da outorga da escritura”, como foi dado como provado no n.º 19, os mesmos não são incapacitantes ao ponto de a autora não perceber o sentido da declaração da doação que efectuou ou de não exprimir livremente a sua vontade.

A fixação do início da incapacidade no ano de 2016 na sentença de interdição proferida em 1/10/2018, transitada em julgado em 7/11/2018, também não permite concluir pela incapacidade acidental da autora no momento da celebração da escritura, em 20/4/2016.

Além de não ter fixado o mês, muito menos o dia, “a declaração judicial, constante da sentença que decretou a interdição, sobre a data do início da incapacidade, não constitui mais do que uma mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência, da incapacidade, à qual poderia ser oposta contraprova, nos termos do art.º 346.º do Código Civil”.[35]

Ainda que o início da incapacidade fosse anterior à data da doação, sempre seria insuficiente para o reconhecimento da situação de incapacidade acidental no acto da celebração desse negócio.

Aquela declaração judicial constituiria apenas um início de prova da incapacidade, mas que carece sempre de ser completada por outra prova, para se ter como demonstrada a incapacidade acidental.

Recaía sobre os autores/recorrentes o ónus da prova dos pressupostos da anulação da doação, por efeito da incapacidade acidental, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil, visto serem constitutivos do direito que alegaram.

Portanto, competia aos autores/recorrentes alegar e provar que a autora BB, no momento do acto impugnado, se encontrava em condições psíquicas tais que não lhe permitiam o entendimento do acto que praticou e o seu conhecimento pelo declaratário ou a sua notoriedade, requisitos da incapacidade acidental, indispensáveis para poderem obter a declaração de anulabilidade da doação[36].

Porém, os autores não lograram fazer essa prova, nem sequer alegaram correctamente factos integradores daqueles requisitos[37]. Mais do que o estado de saúde da pretensa incapacitada, interessava saber a incapacidade de entendimento do sentido da declaração que fez aquando da celebração da escritura de doação. Ora, tal não se mostra provado, nem sequer foi alegado!

Não se provando os pressupostos da incapacidade acidental, reportados ao momento da formalização da doação, não é possível declarar a sua anulação, nos termos do disposto no art.º 257.º, n.º 1, do Código Civil, como bem decidiu o acórdão ora em apreciação.

Destarte, sem mais considerações, improcede também esta questão.

O acórdão recorrido deve, por conseguinte, ser mantido.

Sumário:

1. Saber se determinada factualidade integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito, pelo que, não obstante o preceituado no art.º 682.º, n.º 2, do CPC, cabe ao tribunal de revista ajuizar sobre tal adequação.

2. Reveste natureza jurídico-conclusiva, cuja utilização não é neutra do ponto de vista valorativo da incapacidade da doadora, para efeitos de anulação da doação, a afirmação de que a doadora não se encontrava na plenitude das suas faculdades intelectuais, mentais e cognitivas que lhe permitissem entender o sentido da sua declaração negocial, devendo ser havida como não escrita.

3. A anulação da declaração negocial por incapacidade acidental depende da verificação dos requisitos cumulativos previstos no art.º 257.º do Código Civil, reportados ao momento da celebração do acto impugnado.

4. Recai sobre os autores o ónus da prova dos pressupostos da anulação, por efeito da incapacidade acidental, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil.

III. Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em negar a revista e manter o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 6 de Abril de 2021


*


Nos termos do art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de Maio, para os efeitos do disposto no art.º 153.º, n.º 1, do CPC, atesto que o presente acórdão foi aprovado com voto de conformidade dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos que compõem este colectivo e que não podem assinar.

Fernando Augusto Samões (Relator, que assina digitalmente)

Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

António José Moura de Magalhães (2.º Adjunto)

_________

[1] Do Tribunal Judicial da Comarca …. - Juízo Local Cível … – Juiz …
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães
[3] E não “paranóine” e “Donezepilo”, como, por lapso ou erro de escrita, se mencionou anteriormente, o qual aqui se rectifica.
[4] Disponível em www.dgsi.pt.
[5] Acessível no mesmo sítio da internet.
[6] Citado acórdão de 28/9/2017.
[7] Disponível em www.dgsi.pt.
[8] Cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pp. 206-207.
[9] Cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, tradução portuguesa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 433.
[10] Cf. Castanheira Neves, «Matéria de Facto-Matéria de Direito», RLJ, Ano 129, pp.162-165.
[11] Ibidem, p. 166.
[12] Ibidem, p. 167.
[13] Cf. Alberto dos Reis, ob. cit., p. 212.
[14] Ibidem, p. 212.
[15] Cf. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 637-638. Para uma resenha doutrina e jurisprudencial sobre o tema, vide Abel Simões Freire, «Matéria de Facto-Matéria de Direito», CJ/STJ, Ano XI, Tomo III/2003, pp. 5-7.
[16] Cf. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1997, p. 312.
[17] Cf. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 2.ª edição, 1999, p. 147.
[18] Citado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, no Código de Processo Civil Anotado, vol. I. págs. 721-722.
[19] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, pág. 613.
[20] Cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, pp. 268-269.
[21] Anselmo de Castro, Ibidem.
[22] Cf. Abel Simões Freire, «Matéria de Facto – Matéria de Direito», 2003, ob. cit., p. 7.
[23] V.g. Acórdãos do STJ de 23/9/2009, processo n.º 238/06.7TTBGR.S1; de 9/12/2010, proc. 838/06.5TTMTS.P1.S1; de 15/12/2011, proc. 342/09.0TTMTS.P1.S1; de 11/7/2012, proc. 3360/04.0TTLSB.L1.S1; de12/3/2014, proc. 590/12.5TTLRA.C1.S1, de 7/5/2014, proc. 39/12.3T4AGD.C1.S1, e o nosso de 1/10/2019, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[24] Citado acórdão de 9/9/2014.
[25] Cfr. Ac. do STJ de 17/12/2019, processo n.º 756/13.0TVPRT.P2.S1, disponível em www.dgsi.pt e outros nele citados, cuja doutrina não tem aqui aplicação.
[26] E que continua a mandar aplicar o regime de incapacidade acidental na alteração que deu ao art.º 154.º, n.º 3, do Código Civil.
[27] In Código Civil Anotado, volume I, 3.ª edição, pág. 156 e 4.ª edição, pág. 157.
[28] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra ciada, pág. 239.
[29] In Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 2.ª edição, Almedina, pág. 579.
[30] Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed. (Pinto Monteiro/P. Mota Pinto), 499 (n. 671) e extracto extraído do acórdão do STJ de STJ, de11/12/2018, processo n.º 342/15.0T8VPA.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt, também transcrito no acórdão recorrido, mas sem indicação da sua origem.
[31] Paulo Mota Pinto inclina-se, embora com dúvidas, para a posição contrária, isto é, “de tratamento do art. 257º como subsidiária ou cumulativamente aplicável (não como regime especial) - A Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, 302. Neste sentido, também Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Vol. I, 113 (n. 409).
[32] Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, I, 3ª ed., 363.
[33] Ob. Cit., 306, n. 372.
[34] Ob. Cit., 310 e 311, n. 282.
[35] Neste sentido, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22/1/2009 (Coletânea de Jurisprudência (STJ), Ano XVII, t.1, pág. 74, e www.dgsi.pt (08B3333) e de 8/6/2017, processo n.º 1852/08.1TBSCR.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[36] Neste sentido, entre outros, os acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/1/2016, processo n.º 893/05.5TBPCV.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt e o de 8/6/2017, já referido, embora referentes ao contrato de compra e venda.
[37] Note-se que os factos elencados sob os n.ºs 24 a 36 foram dados como provados pelo tribunal da 1.ª instância – bem ou mal, não está agora em causa – invocando o disposto no art.º 5.º, n.º 2, als. a) e b), do CPC, e não por terem sido alegados pelas partes, nomeadamente pelos autores.