LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
EFEITO ÚTIL NORMAL
SANAÇÃO DA ILEGITIMIDADE
Sumário

I - Para se apurar da legitimidade processual - que se reporta à relação de interesse das partes com o objeto da ação – tem, apenas, de se levar em consideração o concreto pedido formulado e da respetiva causa de pedir, aferindo-se a legitimidade processual pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, e é, tão só, nestes termos que tem que ser apreciada;
II - A preterição de litisconsórcio necessário - este a poder ter origem na lei, no negócio jurídico ou decorrer da própria natureza da relação jurídica controvertida (cfr. art. 33º, do CPC) -, é geradora da exceção dilatória da ilegitimidade, de conhecimento oficioso;
III - Reproduzindo, nesta ação própria, a relação material controvertida de que os Autores são titulares as concretas “questões” carecidas de decisão no inventário (a resolver no confronto dos interessados), que estiveram na base da remessa das partes para os meios comuns, têm, naturalmente, de estar na causa, para assegurar a legitimidade processual, todos os interessados no processo de inventário. Somente no confronto de todos eles tais questões (que o notário não resolveu, antes remeteu para apreciação em ação comum), conseguem alcançar decisão que defina os direitos dos interessados na partilha, configurando-se caso a densificar litisconsórcio necessário para que a decisão produza o seu efeito útil normal - a definição dos direitos dos interessados no inventário (nº 2 e 3, do art. 33º, do CPC).
IV - Ante a ilegitimidade (por preterição de litisconsórcio necessário que suscetível era de sanação, pela intervenção ou chamamento dos interessados como parte principal, bem podendo os Autores ter sido convidados a suprir a exceção dilatória (nº2, do art. 6º e al. a), do nº2, do art. 590º) pela dedução de intervenção principal provocada (cfr. art. 316º e segs), meio ao seu dispor para assegurarem tal litisconsórcio necessário), tendo o processo seguido, com saneador-sentença, onde foi conhecido de mérito, têm os Réus de ser absolvidos da instância, por ultrapassada se mostrar a fase do pré-saneador, podendo, contudo, ainda, os Autores requerer tal intervenção, lançando mão de mais uma válvula de segurança do sistema, até ao trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância ou, mesmo depois desse momento, no prazo de 30 dias (art. 261º, nº1 e 2, todos do CPC).

Texto Integral

Apelação nº382/20.8T8VFR.P1
Processo do Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 2

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrentes: os RR., B… e C… e D… e E…
Recorridos: os AA., F… e G…

F… e G… intentaram ação declarativa, com forma de processo comum, contra B... e C… e D… e E… pedindo que se decida que:
i) O despacho do Sr. Notário cometeu a nulidade reclamada e referida nos artº 20 a 25”; ii)pelo exposto nos artº 26 e ss, o artº 54 nº 2 RGPI não permite a avaliação da verba nº 9 da relação de bens, requerida pelo R. B… e D…”.
Alegam, para tanto e em síntese, que no âmbito do processo de inventário, em que são 8 os filhos do de cujus e em que as partes foram remetidas para os meios comuns, da relação de bens apresentada já se inferia a inoficiosidade das doações feitas pelo inventariado e se na conferência era lícito declarar a oposição à licitação do bem doado e requerer a sua avaliação (o que sucedeu nos termos do art. 54.º, n.º 1, do RJPI), posteriormente não podia o legatário requerer avaliação de outro bem ao abrigo do art. 54.º, n.º 2, uma vez que esse direito tinha precludido, por da relação de bens resultar, de forma inequívoca, a supra referida inoficiosidade, e tendo o Notário deferido o segundo pedido de avaliação, sem que pudessem ter exercido contraditório relativamente a essa questão, aquela decisão é nula, sendo que, sempre o legatário incorreria em abuso de direito, pois que, afinal, o valor da verba em questão foi atribuído pelo próprio.
Os réus apresentaram contestação alegando que, certo sendo que, a decisão que deferiu a avaliação da verba nº 9 requerida pelos aqui Réus, na qualidade de legatários, foi proferida sem que os aqui AA. se pronunciassem sobre tal pedido, exerceram, agora, o contraditório e a decisão a proferir sempre seria de deferimento da requerida avaliação da verba n.º9. Por outro lado, não resulta da lei, antes pelo contrário, que a avaliação de bens não legados, requerida pelos legatários, só possa ter lugar antes da licitação de bens pelos interessados na partilha, uma vez que a lei é expressa no sentido dissonante conforme ressalta à evidência do disposto no n.º 2 do mencionado artº 54º, no qual se estabelecem dois parâmetros para se aferir da inoficiosidade: a avaliação dos bens legados (a qual pode corresponder, apenas ao valor atribuído pelo cabeça de casal na relação de bens) e o valor que resultou da adjudicação (por efeito das licitações) em bens não legados. Acresce que o reconhecimento de que o legado era inoficioso, ocorreu, após a realização das licitações, na conferência de interessados, as quais sendo efetuadas mediante propostas em carta fechada, podiam alterar completamente o valor da herança e consequentemente, a quota disponível.
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Por se considerar fornecerem os autos todos os elementos necessários à decisão, foram os ilustres mandatários notificados para se pronunciarem sobre a dispensa da audiência prévia, para a imediata prolação de decisão final, tendo concordado com tal dispensa.
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Foi proferido saneador - sentença com a seguinte parte dispositiva:
“Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido:
a) Julgar procedente a presente acção e, em consequência, determino a inadmissibilidade legal do pedido de avaliação da verba n.º 9 da relação de bens feito pelos legatários a 28-10-2019;
b) Condenar os réus nas custas do processo”.
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Os Réus apresentaram recurso de apelação, pugnando por que a sentença seja revogada e substituída por decisão que julgue a ação totalmente improcedente e se declare a admissibilidade legal do pedido de avaliação da verba nº 9 da relação de bens feita pelos legatários a 28.10.2019, com as demais consequências legais, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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Os Autores apresentaram contra alegações pugnando pela improcedência do recurso e por que seja mantida a decisão recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
- Se a decisão recorrida incorreu em erro de direito, designadamente na análise, meramente tabelar, que fez do pressuposto processual da legitimidade das partes, de conhecimento oficioso.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
São os seguintes os factos considerados provados, com relevância, para a decisão (transcrição):
1. O inventariado H… faleceu no estado de viúvo sucedendo-lhe 8 filhos.
2. O teor do testamento do de cujus realizado, a 29-8-2013, no qual legou, por conta da quota disponível, ao seu filho B… 9/10 da verba n.º 8, e à sua filha D… 1/10 da verba n.º 8.
3. Após reclamações, foi junta a Relação de bens final, datada de 7-6-2018, na qual o valor do activo é de €210.755,00 (sendo que a verba n.º 8 tem o valor de €107.550,00, e a verba n.º 9 o valor de €75.000,00).
4. Por sua vez, o valor do passivo é de €32.610,41.
5. Na conferência de interessados de 14-6-2018, a verba n.º 9 foi adjudicada por 76 mil euros.
6. Nessa conferência, os legatários opuseram-se à licitação da verba n.º 8, o que implicou a avaliação desta verba, a qual concluiu pelo valor de €135.000,00.
7. Nessa sequência, o Exmo. Notário proferiu despacho nos termos do art. 52.º, n.º 3, da Lei 23/2013 de 5 de Março, onde concluiu pela inoficiosidade da doação.
8. Na sequência desse despacho, os legatários requereram a avaliação da Verba N.º9 da Relação de Bens, nos termos do disposto no artigo 54º, n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março.
9. Sem que o contraditório fosse exercido, o Exmo. Notário proferiu o seguinte despacho: 1 Dispõe o número 2 do Art.º 54.º do RJPI o seguinte: “- Pode também o donatário ou legatário requerer a avaliação de outros bens da herança quando em face da avaliação dos bens doados ou legados e das licitações se reconheça que a doação ou legado tem de ser reduzida por inoficiosidade.” Quer isto dizer que o legislador entendeu que em face da avaliação dos bens doados ou legados e das licitações se reconheça que a doação ou legado tem de ser reduzidos por inoficiosidade e face a este entendimento entendeu o legislador que o donatário ou legatário pode requerer a avaliação de outros bens da herança a fim de, mediante a sua eventual revalorização, dissipar ou diminuir a inoficiosidade. Mais dispôs o legislador no n.º 3 do referido preceito que esta avaliação pode ser requerida até ao exame do processo para a forma da partilha. Assim, porque foi requerido pelos legatários e porque entendemos que o caso concreto se subsume à previsão legal atrás referida, defiro o requerido pelos legatários B… e D…, no seu requerimento junto aos autos em 28/10/2019, quanto a esta matéria.
10. Após ser notificado desta decisão, o interessado F… invocou a nulidade daquele despacho sem que pudesse ter exercido contraditório relativamente a essa questão. Por outro lado, considera que o pedido de avaliação por parte dos legatários já tinha precludido, pelo que aquela decisão deve ser revogada.
11. O Exmo. Notário decidiu o seguinte: por virtude da complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir tornar inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar a redução das garantias das partes, conforme preceitua o Art.º 17.º do RJPI, remeto, desde já, nos termos do Art.º 16.º do RJPI, os interessados para os meios judiciais comuns no que respeita, exclusivamente, à determinação:
- sobre se é ou não nulo o meu despacho de 30/10/2019;
- se se deve ou não mandar proceder à avaliação da verba n.º 9 da relação de bens, nos termos do Artigo 54.º, n.ºs 2 e 3, da Lei 23/2013 de 5 de Março;
Mais determino, nos termos do referido Art.º 16.º a suspensão da tramitação deste processo de inventário, até que ocorra decisão definitiva das questões controvertidas atrás referidas.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Da ilegitimidade das partes por preterição de litisconsórcio necessário
Após suscitada a questão de poder haver o entendimento de estarmos perante caso de litisconsórcio, em que todos os herdeiros (tendo o de cujus 8 filhos), interessados no inventário acima referido, tenham de estar nos autos, como partes principais, considerou o Tribunal a quo, no saneador, de modo tabelar, verificados os pressupostos processuais, entendendo serem as partes dotadas de legitimidade, e, referindo,
Nos termos do art. 16.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2013, de 05 de Março, o notário determina a suspensão da tramitação do processo sempre que, na pendência do inventário, se suscitem questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, remetendo as partes para os meios judiciais comuns até que ocorra decisão definitiva, para o que identifica as questões controvertidas, justificando fundamentadamente a sua complexidade (deve ter-se presente que o art. 11.º, da Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, estabelece que o disposto na presente lei aplica-se apenas aos processos iniciados a partir da data da sua entrada em vigor, bem como aos processos que, nessa data, estejam pendentes nos cartórios notariais mas sejam remetidos ao tribunal nos termos do disposto nos artigos 11.º a 13.º; o regime jurídico do processo de inventário, aprovado em anexo à Lei n.º 23/2013, de 5 de março, continua a aplicar-se aos processos de inventário que, na data da entrada em vigor da presente lei, estejam pendentes nos cartórios notariais e aí prossigam a respetiva tramitação; para efeitos do disposto no número anterior, os artigos 3.º, 26.º-A, 27.º, 35 e 48.º do regime jurídico do processo de inventário, anexo à Lei n.º 23/2013, de 5 de março, passam a ter a redação prevista nos artigos 8.º e 9.º da presente lei).
Relativamente à nulidade do despacho, afigura-se inequívoco que o Exmo. Notário andou mal, uma vez que ordenou a avaliação sem que o contraditório tivesse sido exercido. Por outro lado, a remessa para os meios comuns não se afigura adequada, pois, nesta parte, não se suscita questão que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não deva ser decidida no processo de inventário, uma vez que está em causa apenas a violação de um dos princípios basilares do processo civil.
De todo o modo, o contraditório já foi exercido no inventário como já foi novamente exercido nesta sede, pelo que se entende fazer um aproveitamento processual dessa situação, ainda para mais porque o inventário ficou também suspenso a fim de saber se se deve ou não mandar proceder à avaliação da verba n.º 9 da relação de bens”,
considerou ultrapassada a nulidade e decidiu a questão de saber se podia ou não ser mandado avaliar o bem legado naquela fase processual, fundamentando a procedência da acção[1].
Antes de entrar na apreciação do objeto do recurso e de analisar do invocado erro da decisão de mérito, cumpre apreciar a questão, de conhecimento oficioso, que, nos autos, equacionada foi, já, pelos próprios Autores, nenhuma decisão surpresa podendo, pois, configurar – a de poder ser entendido não serem as partes dotadas de legitimidade, por desacompanhadas dos demais herdeiros.
Ora, a “remessa dos interessados para os meios comuns, realizada ao abrigo do disposto nos artigos 16º, nº 1 (…), do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março, pressupõe a subsequente instauração de uma acção judicial autónoma, a impulsionar pelos respetivos interessados, no âmbito da qual a matéria controvertida será devidamente discutida, dilucidada e decidida”[2], abrangendo “por um lado questões que pela sua própria natureza, só podem e devem ser conhecidas no âmbito dos meios judiciais comuns, e pelo outro, as questões de facto e de direito complexas, isto é, que exijam uma indagação ampla ou em que se discutam problemas de direito controvertidos, em que a solução não é linear, tudo tendo como último escopo garantir às partes uma partilha justa, em obediência à proibição da redução das suas garantias no atingimento do mencionado fim”[3].
Podendo o Notário remeter os interessados para os meios judiciais comuns, para aí serem discutidas e decididas questões do inventário, “São dois os critérios identificadores das questões que não devem ser decididas no processo de inventário, mas sim nos meios judiciais comuns, ou seja, através da ação com processo comum: a) aquelas que pela sua natureza implicam a garantia da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos do cidadão e/ou a resolução de conflitos de interesses privados, que integram a função jurisdicional (nº2, do art. 202º, da CRP); b) aquelas cuja complexidade da matéria de facto ou de direito extravase a relativa simplicidade informadora do actual modelo do processo de inventário”[4]. E sendo os meios judiciais comuns chamados a resolver questões que a decidir eram no inventário, que nele foram submetidas para apreciação e que carecidas se encontram de resolução, não podem, lógica e naturalmente, as mesmas deixar de ter de o ser no confronto de todos os interessados.
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Analisemos a lei, a Doutrina e a Jurisprudência e as razões que impõem tal orientação.
A legitimidade processual constitui um pressuposto processual, sendo este, como a expressão indica, um elemento de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência solicitada. Sem a sua verificação não se pode passar à apreciação do mérito da causa, dependendo, por isso, do seu preenchimento a possibilidade de o juiz conhecer do fundo da ação. A sua falta dá lugar à absolvição dos Réus da instância.
E, como se refere no Acórdão do STJ de 14/10/2004, processo 04B2212, in dgsi.net, relatado pelo saudoso Senhor Juiz Conselheiro Araújo de Barros (sendo os preceitos referidos de anterior redação do CPC) “A legitimidade processual, pressuposto de cuja verificação depende o conhecimento do mérito da causa (art. 288º, nº 1, al. d), do C.Proc.Civil) - que se não confunde com a denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido - afere-se pelo interesse directo do autor em demandar e pelo interesse directo do réu em contradizer (art. 26º, nº 1, do mesmo diploma).
Sendo certo que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (nº 3 do citado art. 26º).
Assim, "ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última".[5].
Na verdade, "a relação controvertida, tal como a apresenta o autor e forma o conteúdo jurídico da pretensão deste é que é - em orientação jurídica - o objecto do processo, em face do qual (e, por isso, quase sempre determinável por simples exame da petição inicial) se aferem a legitimidade e os outros pressupostos que desse objecto dependam". Concluindo, "a parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, dela for efectivamente seu titular".[6].(…) Será, desta forma, apenas pelo exame da petição inicial (sujeitos, pedido e causa de pedir) que há-de decidir-se das excepções dilatórias em causa - ilegitimidade activa e ilegitimidade passiva. (…) Ora, como já acima referimos, a legitimidade constitui um pressuposto processual de cuja verificação depende que o tribunal conheça do mérito da causa, e profira, acerca dos pedidos deduzidos, uma decisão de fundo.
"Não se verificando algum desses requisitos, como a legitimidade das partes, o juiz terá, em princípio, que abster-se de apreciar a procedência ou improcedência do pedido, por falta de um pressuposto processual para o efeito".[7]”[8].
Também no Acórdão da Relação de Lisboa de 19/2/2015, processo 143148/13.OYIPRT.L1-2, se decidiu constituir “a legitimidade processual, … um pressuposto processual relativo às partes, que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, face à relação material controvertida tal como configurada pelo A., e cuja falta, determina a verificação da correspondente exceção dilatória, dando lugar à absolvição do Réu da instância, cfr. artigos 576º, n.º 2 e 577º, alínea e), ambos do Código de Processo Civil”.
Numa interessante abordagem, julgou o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 02-06-2015,[9] que “É a legitimidade processual aferida pela relação das partes com o objecto da acção, consubstanciada na afirmação do interesse daquelas nesta, podendo acontecer situações em que a esses titulares não seja reconhecida a legitimidade processual, ao passo que, quanto a certos sujeitos, que não são titulares do objecto do processo, pode vir a ser reconhecida essa legitimidade.
Assim, a mera afirmação pelo autor de que ele próprio é o titular do objeto do processo não apresenta relevância definitiva para a aferição da sua legitimidade, que, aliás, não depende da titularidade, ativa ou passiva, da relação jurídica em litígio, sendo manifesta a existência de legitimidade processual nas acções que terminam com a improcedência do pedido fundada no reconhecimento de que ao autor falta legitimidade substantiva, pelo que, só em caso de procedência da acção, passa a existir fundamento material para sustentar, «a posteriori», quer a legitimidade processual, quer a legitimidade material, e ainda que, sempre que o Tribunal reconhece a inexistência do objeto da acção ou a sua não titularidade, por qualquer das partes, essa decisão de improcedência consome a apreciação da ilegitimidade da parte, pelo que, de uma forma algo redutora, as partes são consideradas dotadas de legitimidade processual até que se analise e aprecie a sua legitimidade substantiva.” [10].
A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem que ser apreciada.
Na verdade, a legitimidade, enquanto pressuposto processual, vê o seu conteúdo definido no art. 30º, do Código de Processo Civil, sendo deste diploma todos os preceitos citados sem outra referência, o qual estabelece, no seu nº 1, que o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer, sendo que o interesse direto de que deriva a legitimidade, segundo o nº 2, daquele preceito, consiste em as partes serem os sujeitos da relação jurídica material submetida à apreciação do tribunal.
Com efeito, estabelece este preceito que o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha. O Autor é parte legítima se da procedência da ação advier, para si, utilidade. O Réu é parte legítima se da procedência da ação advier, para si, prejuízo.
E o nº 3, de tal preceito, estabelece, como regra supletiva, que na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para efeitos da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como configurada pelo autor.
A legitimidade refere-se à relação jurídica objeto do pleito e determina-se pela averiguação dos fundamentos da ação. A determinação da legitimidade afere-se pelo pedido formulado e pela causa de pedir (objeto do litígio).
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Independentemente da decisão de mérito, fundando-se o pedido dos Autores na remessa, efetuada pelo notário no processo de inventário, das partes para os meios judiciais comuns, para decisão das duas questões que identificou –“se é ou não nulo o meu despacho de 30/10/2019” e “se se deve ou não mandar proceder à avaliação da verba n.º 9 da relação de bens, nos termos do Artigo 54.º, n.ºs 2 e 3, da Lei 23/2013 de 5 de Março” -, os sujeitos da relação material controvertida, tal como a mesma é configurada pelos autores, são todos os interessados no inventário.
E perante a relação material controvertida, tal como configurada pelos próprios Autores, na petição inicial, as partes na ação não são dotadas de legitimidade para os pedidos formulados, sem que na ação estejam, também, os restantes interessados no inventário.
Na verdade, consagra o art. 33º, com a epígrafe “Litisconsórcio necessário” que:
“1 - Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.
2 - É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
3 - A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado”.
Como decorre deste artigo, o litisconsórcio necessário pode ter origem na lei, no negócio jurídico ou decorrer da própria natureza da relação jurídica controvertida, este também designado por litisconsórcio necessário natural.
Quanto a estas últimas situações - de litisconsórcio necessário ativo ou passivo imposto pela própria natureza da relação jurídica litigada ou litisconsórcio necessário natural -, o sistema admite a possibilidade de coexistirem diversas decisões para a mesma relação jurídica, “desde que cada decisão seja suscetível de produzir o seu efeito útil normal, ou seja, desde que a sentença que venha a ser proferida possa regular definitivamente a situação concreta dos interessados intervenientes da lide, com independência relativamente aos não intervenientes. Por regra, o caso julgado apenas vincula os sujeitos intervenientes (arts. 619º, nº1 e 581º) de modo que o sistema convive com a possibilidade de existirem sentenças diversas emergentes de ações distintas. (…) o litisconsórcio natural existe quer quando a repartição dos interessados por ações diferentes impeça a composição definitiva entre as partes, quer quando obste a uma solução uniforme entre todos os interessados (Teixeira de Sousa, ob. cit., p. 70). Com tal exigência procura-se evitar que a sentença nem sequer entre os sujeitos vinculados consiga produzir o seu efeito útil normal, o qual “consiste na composição definitiva do litígio entre as partes relativamente ao pedido formulado, de modo que o caso julgado material possa abranger todos os interessados, evitando tornar-se incompatível (por que contraditória, total ou parcialmente) com a decisão eventualmente obtida noutra ação (Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2ª ed., p. 380). Será, pois, em função de cada litígio que poderá determinar-se se uma projetada sentença de mérito tem ou não a virtualidade para, de modo definitivo, resolver o litígio entre as partes, ainda que porventura esteja pendente ou venha a ser instaurada outra ação com outros sujeitos do lado ativo ou passivo (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., pp. 81 e 82)”[11].
A sentença produzirá o seu efeito útil normal quando defina uma situação jurídica que não só não poderá mais ser contestada por qualquer das partes, como ainda é de molde a poder subsistir inalterada não obstante ser ineficaz em confronto dos outros co-interessados e como quer que uma nova sentença venha a definir a posição ou situação destes últimos (A. de Castro, Lições, 2º, 724 e ss; M. Andrade, Scientia Iuridica, 34º, 186)[12].
Só existe litisconsórcio necessário quando a lei ou a lógica exijam a presença na lide de todos os interessados para que a decisão produza os efeitos erga omnes por ela exigidos; quando o ordenamento jurídico aceita que a decisão possa produzir efeitos contra algumas pessoas, de modo a que a relação jurídica subsista, ainda que ineficaz face às não partes, não há lugar a litisconsórcio[13].
Não pode deixar de constituir caso de litisconsórcio necessário natural passivo aquele em que interessado peticiona a resolução de questões remetidas, pelo notário, no processo de inventário para os meios comuns, que, naturalmente, deve envolver todos os restantes interessados.
Revertendo para o caso, tendo as partes no inventário sido remetidas para os meios comuns, e destinando-se a ação declarativa a decidir as questões colocadas no inventário, que motivaram aquela remessa, questões essas suscetíveis de influir na definição dos direitos dos interessados diretos na partilha, naquela ação têm de figurar, como partes principais, todos os interessados, sob pena de ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário.
Na verdade, e como estatui o nº 2 do referido artigo, a intervenção de todos os interessados é necessária, pois que, pela própria natureza da relação jurídica, para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, têm de estar todos na ação, sendo que sem a presença de todos nunca se produziria aquele efeito, por nunca se conseguir a regulação definitiva da situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.
Com efeito, o que no inventário se pretende é que as questões em causa, entre elas a arguida nulidade, sejam resolvidas nos meios comuns e para que logrem obter a pretendida resolução têm de o ser no confronto de todos. Tendo sido remetidas as partes para a discussão nos meios comuns relativamente a questões suscetíveis de influir na definição dos direitos dos interessados diretos na partilha, impõe-se, para que a decisão produza o efeito útil normal, que a ação seja decidida no confronto de todos os que parte são no inventário, a correr no cartório notarial, onde, primeiramente, as questões foram suscitadas, para decisão a aí ser proferida.
E como analisou a Relação do Porto[14] “O Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário, que desjudicializou este procedimento, iniciou-se com a Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho, (alterada pelas Leis n.ºs 1/2010 e 44/2010), e foi seguida pela atual Lei n.º 23/2013, de 5 de Março (e Portarias n.ºs 278/2013, de 26 de Agosto e 46/2015, de 23 de Fevereiro), tudo na sequência da Resolução (programática) do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 6 de Novembro.
O Regime Jurídico do Processo de Inventário veio instituir um “sistema mitigado”, na medida em que se atribuiu competência ao Notário para tramitar e instruir o processo, que corre os seus termos no Cartório Notarial, atribuindo competência ao Juiz para intervir no processo em situações pontuais e expressamente previstas na lei, reservando-se o direito de ação judicial relativamente às questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário e devem ser decididas pelo juiz do tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado[5][15] ( art. 3º e art. 16º RJPI).
Como se observa no Ac. Rel. Lisboa 17 de março de 2016, Proc. 146/15.0T8AMD-A.L1, (disponível em www.dgsi.pt):”[h]á, em consequência, competência repartida entre os Cartórios Notariais e os Tribunais[…] como a competência é repartida,[…], podemos optar pela expressão interjurisdicional, (que não intrajudicial, conflito a ocorrer dentro de um mesmo Tribunal), acolhendo, de certo modo, a terminologia insinuada por Manuel de Andrade (“Noções Elementares de Processo Civil”, 87 – 88”.
Como determina o art. 3º/1 RJPI compete aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efetuar o processamento dos atos e termos do processo de inventário.
No art.3º/4 RJPI prevê-se que compete ao notário dirigir todas as diligências do processo de inventário, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns.
De acordo com o art. 3º/7 RJPI compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz.
O atual regime afastou-se do inicialmente previsto na Lei 29/2009 de 29 de junho onde se previa a “possibilidade dos conservadores ou notários, oficiosamente ou a requerimento dos interessados, de procederem à remessa de todo o processo para os Tribunais, aproveitando-se tudo o que foi, entretanto, processado. A competência para a tramitação do processo passa, para a esfera do Juiz”[6][16].
Na atual lei a conexão das competências entre Notário e Juiz foram clarificadas.
Em regra é o Notário, quem, nos termos do art. 3º do RJPI tem competência para efetuar o processamento dos atos e termos do processo de inventário. Cumpre ao Juiz proferir a sentença de homologação da partilha, nos termos do art. 66º RJPI, sendo esse o momento, como referem CARLA CÂMARA et al para o Juiz ”aferir da validade dos atos praticados e da legalidade e regularidade do processo”[7][17].
Ao abrigo do disposto no art. 16º RJPI o Notário e qualquer interessado passaram a deter o dever e o direito, respetivamente, de suscitarem a questão que entendam que sai da esfera da competência do Notário, assegurando-se a reserva do Juiz e o respeito por tal garantia Constitucional durante toda a tramitação do processo[8]”[18].
Só no confronto de todos os interessados é que as questões suscitadas no próprio inventário, para decisão aí a proferir e que o notário não resolveu, antes remeteu para serem apreciadas em ação própria, conseguem alcançar decisão definitiva e assumir força de caso julgado, permitindo a completa definição dos direitos dos interessados na partilha.
Como se decidiu no Ac. do STJ de 24/1/2002, Ver. Nº 4033/01-1ª, Sumários, 1/2002 “Exige a intervenção de todos os interessados co-herdeiros, por forma a que a decisão produza o seu efeito útil normal, a acção em que um dos herdeiros das heranças de A e B contra o co-herdeiro C pretende seja declarado que certa verba descrita no inventário obrigatório por morte daqueles foi regularmente licitada e a si adjudicada por certa importância, com o fundamento em que só entre eles existe divergência quanto à mencionada verba”[19].
Do mesmo modo, sob pena de ilegitimidade, por de litisconsórcio necessário se tratar, deve ser proposta também contra os demais interessados no inventário a ação comum para apreciação de questões, para cujo meio foram as partes remetidas no inventário, questões essas que se prendem com avaliação de verba constante da relação de bens.
E a falta da alguns sujeitos com interesse direto na demanda impunha fossem os Autores - que se prontificaram, logo na petição inicial, a suprir ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário que porventura se considere existir - convidados a suprir a exceção dilatória (nº2, do art. 6º e al. a), do nº2, do art. 590º), deduzindo a intervenção principal provocada passiva[20], meio ao seu dispor para assegurarem tal litisconsórcio necessário, e, não o tendo sido, antes foi proferida decisão de mérito, podem, não obstante, ainda, vi-la requerer até ao trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância ou, mesmo depois desse momento, no prazo de 30 dias (art. 261º, nº1 e 2).
Com efeito, tratando-se, efetivamente, de caso de litisconsórcio necessário, devia o juiz ter providenciado pelo suprimento da falta do pressuposto processual suscetível de sanação, convidando os Autores a requerê-la, ao abrigo do nº2, do art. 6º e al. a), do nº2, do art. 590º.
Não o tendo, contudo, feito, antes tendo considerado, em saneador tabelar, as partes legítimas e proferido decisão de mérito, verificando-se, agora, a ilegitimidade impõe-se o conhecimento oficioso de tal exceção e a absolvição dos Réus da instância, sem prejuízo do disposto no art. 261º[21], este mais uma válvula de segurança do sistema a, permitir, ainda assim, a sanação da ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário.
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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em, na procedência da apelação, revogar a decisão recorrida e abstendo-se de conhecer do pedido, ao abrigo do disposto nos arts 30º, 33º, al. d), do nº1, do art. 278º, nº1 e 2, do art. 576º, al. e), do art. 577º e art. 578º, absolvem os Réus da instância, por se verificar a exceção dilatória da ilegitimidade, dada a preterição do litisconsórcio necessário passivo não suscetível, nesta fase, de sanação ao abrigo do nº2, do ar. 6º e al. a), do nº2, do art. 590º e v., ainda, nº3, do art. 278º, por ultrapassada a fase do despacho pré-saneador, sem prejuízo de os Autores podem, ainda, vir chamar os demais interessados no inventário, para além dos já aqui Réus, a intervir nos termos dos artigos 316º e segs, deduzindo incidente de intervenção principal provocada (cfr. art. 261º, nº1 e 2).
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Custas pelos apelados, pois que ficaram vencidos – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 26 de abril de 2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] Fê-lo, fundamentalmente, do seguinte modo: “Nos termos do art. 53.º, da Lei n.º 23/2013, dispõe que, se algum interessado declarar que pretende licitar sobre bens legados, pode o legatário opor-se nos termos dos n.os 4 e 5 do artigo anterior; se o legatário se opuser, a licitação não tem lugar, mas os herdeiros podem requerer a avaliação dos bens legados quando a sua baixa avaliação lhes possa causar prejuízo; na falta de oposição por parte do legatário, os bens entram na licitação, tendo o legatário direito ao valor respectivo; ao prazo para requerer a avaliação é aplicável o disposto no n.º 6 do artigo anterior.
Por seu turno, o art. 54.º, da Lei n.º 23/2013, quando do valor constante da relação de bens resulte que a doação ou o legado são inoficiosos, pode o donatário ou o legatário, independentemente das declarações a que se referem os artigos anteriores, requerer a avaliação dos bens doados ou legados, ou de quaisquer outros que ainda não tenham sido avaliados; Pode também o donatário ou legatário requerer a avaliação de outros bens da herança quando só em face da avaliação dos bens doados ou legados e das licitações se reconheça que a doação ou legado tem de ser reduzida por inoficiosidade; A avaliação a que se refere este artigo pode ser requerida até ao exame do processo para a forma da partilha.
Estas disposições transpõem, na sua essência, o disposto no CPC anterior à reforma de 2013. Afinal, os art. 1366.º e 1367.º rezavam assim: (…)
Todas estas normas visam proteger a posição do legatário de forma a não sair prejudicado com o inflacionamento do valor do bem doado ou com o desapossamento desse bem. Por outro lado, pretende-se que se obtenha uma justa determinação do valor dos bens relacionados para que o cálculo da legítima e da quota disponível sejam os mais correctos possíveis, a fim de aferir da forma mais ajustada da possível inoficiosidade do legado.
Relativamente a este tema, importa também citar as normas do CPC na versão original, isto é, quando aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44129 de 1961 (anterior assim à reforma introduzida pelo DL n.º 227/94, de 08 de Setembro), pois no art. 1366.º (Segunda avaliação de bens legados), estabelecia-se que, se algum interessado declarar que pretende licitar sobre bens legados, pode o legatário opor-se nos termos do n.º 4 do artigo anterior; Se o legatário se opuser, não tem lugar a licitação, mas é licito aos herdeiros requerer a segunda avaliação dos bens legados quando a sua baixa avaliação lhes possa causar prejuízo; Na falta de oposição por parte do legatário, os bens entram na licitação, tendo o legatário direito ao valor respectivo; Ao prazo para se requerer a segunda avaliação é aplicável o disposto no n.º 5 do artigo anterior. E no art. 1367.º (Segunda avaliação a requerimento do donatário ou legatário), preceituava-se que, quando da primeira avaliação resulte que a doação ou o legado são inoficiosos, pode o donatário ou o legatário, independentemente das declarações a que se referem os artigos anteriores, requerer segunda avaliação dos bens doados ou legados, ou de quaisquer outros que ainda não tenham sido avaliados pela segunda vez; Pode também o donatário ou legatário requerer segunda avaliação dos outros bens da herança quando só em face da segunda avaliação dos bens doados ou legados e das licitações se reconheça que a doação ou o legado têm de ser reduzidos por inoficiosidade; A segunda avaliação a que se refere este artigo pode ser requerida até ao exame do processo para a forma da partilha.
Analisando esta evolução legislativa, torna-se claro para LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, II, 2.ª edição, Almedina, 2004, p. 279, que o juízo liminar do donatário ou legatário sobre o risco de inoficiosidade terá de se fundar no valor constante da relação de bens e não na primeira avaliação.
Por outro lado, resulta da norma que o donatário ou legatário pode também requerer a avaliação de outros bens da herança quando só em face da avaliação dos bens doados ou legados e das licitações se reconheça que a doação ou legado tem de ser reduzida por inoficiosidade. Em síntese, quando só em face da avaliação e das licitações resulte a inoficiosidade.
Assim escreve LOPES CARDOSO, Partilhas judiciais, II, 5.ª edição revista e actualizada, Almedina, 2008, p. 387, quanto à oportunidade dos requerimentos das avaliações: Se a necessidade de realizar a avaliação surge, foi requerida e ordenada antes de efectuadas as licitações, a ela se procederá antes de se dar início a esta diligência;
Se a necessidade só surge depois de realizadas as licitações, ou se só foi requerida e ordenada após a realização destas, o seu processar difere-se para momento ulterior.
Isto é, num primeiro momento, quando do valor constante da relação de bens resulte a inoficiosidade, pode o donatário ou o legatário requerer a avaliação dos bens doados ou legados, ou de quaisquer outros que ainda não tenham sido avaliados. Compreende-se esta faculdade como supra se referiu.
Porém, após aquele momento, apenas pode ser requerida a avaliação quando só em face da avaliação e das licitações resulte a inoficiosidade. Isto é, quando a inoficiosidade não resultava antes daqueles momentos, e passou a sê-lo após a avaliação e as licitações.
In casu a inoficiosidade resultava da relação de bens. Afinal, o inventariado H… faleceu no estado de viúvo sucedendo-lhe 8 filhos.
Deste modo, a legítima dos filhos é de 2/3 – cfr. art. 2159.º, n.º 2, do CC. Assim, o inventariado apenas podia dispor livremente de 1/3.
Se a relação de bens tinha como valor do activo o de €210.755,00, e o valor passivo de €32.610,41, deste modo a herança tinha o valor de €178.144,59.
Logo, 1/3 da herança corresponde a €59.381,53.
Ora, na relação de bens final a verba n.º 8 (o bem doado) tinha o valor de €107.550,00.
Apresentava-se assim, de forma flagrante, que a verba n.º 8 legada excedeu, e muito, a quota disponível. Nas palavras de LOPES CARDOSO, Partilhas judiciais, II, 5.ª edição revista e actualizada, Almedina, 2008, p. 378, por meras contas baseadas na relação de bens a essa conclusão facilmente se chegava.
Deste modo, num juízo liminar, facilmente se concluía pela inoficiosidade. Porém, apenas foi requerida a avaliação do legado, por força da oposição dos legatários à licitação do mesmo. O que daí resultou uma maior inoficiosidade. Isto é, a inoficiosidade não resultou da avaliação do legado, nem resultou dos aumentos provocados pelas licitações.
Deste modo, a nosso ver, aos legatários não lhes é permitido usar da faculdade prevista no art. 54.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2013.
Neste sentido, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 200/12.0TBCBT.G1, de 19-04-2018: O normativo emergente do n.º 2 do art. 1367º, do C. P. Civil, tem em vista a rectificação de valores, na defesa dos interesses do donatário ou legatário, conquanto resulte da avaliação dos bens doados ou legados e das licitações que a doação ou legado tem de ser reduzido por inoficiosidade. Sendo evidente que a necessidade dessa mesma redução por inoficiosidade já resultava dos valores atribuídos na relação de bens, é de indeferir a pretendida avaliação de outros bens da herança ao abrigo de tal normativo legal (art. 1367º, n.º 2, do C. P. Civil).
[2] Ac da RL de 2/5/2017, proc. 848/15.1T8VFX.L1-7, in dgsi.pt
[3] Abílio Neto, Direito das Sucessões e Processo de Inventário Anotado, outubro de 2017, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda, pág. 710
[4] Ibidem, pág. 711
[5] José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 1º, Coimbra, 1999, pag. 52
[6] Castro Mendes, "Manual de Processo Civil", Coimbra, 1963, pags. 260, 261, 262
[7] Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, "Manual de Processo Civil", 2ª edição, Coimbra, 1985, pag. 104. Acrescentam, aliás, os autores, em nota, que "a falta do pressuposto processual não impedirá o juiz apenas de proferir sentença sobre o mérito da acção, mas também de entrar na apreciação e discussão da matéria que interesse à decisão de fundo, sustando nomeadamente a produção de prova sobre os fundamentos do pedido".
[8] Acórdão do STJ de 14/10/2004, processo 04B2212, in dgsi.net,
[9] Proc. 505/07.2TVLSB.L1.S1, Relator: Helder Roque, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[10] Ac. RL de 19/2/2015, proc. 143148/13.OYIPRT.L1-2, acessível in dgsi.net
[11] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol.I, 2ª edição, pág. 67 e seg.
[12] Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 5ª Edição Actualizada e Ampliada, junho 2020, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda, pág. 100
[13] Ibidem, pág. 100
[14] Ac. RP de 22/5/2017, proc. 271/13.2TMPRT-A.P1, acessível in dgsi.pt
[15] CARLA CÂMARA – CARLOS CASTELO BRANCO – JOÃO CORREIA – SÉRGIO CASTANHEIRA Regime Jurídico do Processo de Inventário - Anotado, Almedina, Coimbra 2013, pag. 17
[16] CARLA CÂMARA – CARLOS CASTELO BRANCO – JOÃO CORREIA – SÉRGIO CASTANHEIRA Regime Jurídico do Processo de Inventário – Anotado, ob. cit., pag. 6
[17] CARLA CÂMARA – CARLOS CASTELO BRANCO – JOÃO CORREIA – SÉRGIO CASTANHEIRA Regime Jurídico do Processo de Inventário – Anotado, ob. cit., pag. 35
[18] Cfr. CARLA CÂMARA – CARLOS CASTELO BRANCO – JOÃO CORREIA – SÉRGIO CASTANHEIRA Regime Jurídico do Processo de Inventário – Anotado, ob. cit., pag.33
[19] Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 5ª Edição Actualizada e Ampliada, junho 2020, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda, pág. 101
[20] Cfr. Ac. RL de 9/11/2017, proc. 3831/15.3T8LSB.L1-2, acessível in dgsi. pt, onde se decidiu “ 1.–O litisconsórcio é necessário, segundo dispõe os nºs 1 e 2 do artigo 33º do C.P.C., quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. 2.–Para uma concepção mais ampla, o efeito útil normal afere-se pela insusceptibilidade de contradição lógica, teórica ou técnica de julgados. Ao invés, para uma concepção mais restrita, o efeito útil afere-se pela insusceptibilidade de contradição apenas prática entre julgados, em termos de obstar a decisões que não possam definir estavelmente a situação jurídica sem atingir os diversos interessados na decisão. 3.–O nº 2 do artigo 33º do nCPC (tal como sucedia com o art.º 28.º do aCPC) adopta pela noção mais restrita de efeito útil normal, já que o instituto do litisconsórcio necessário natural visa evitar decisões inconciliáveis sob o ponto de vista prático e, consequentemente, obter segurança e certeza na definição das situações jurídicas. 4.–Incumbe ao juiz, ao abrigo do disposto nos artigos 6º, nº 2 e 590º, nº 1, ambos do CPC, a prolação de despacho vinculado, convidando os autores ao suprimento de um pressuposto processual susceptível de sanação, como é a excepção dilatória de preterição de litisconsórcio necessário passivo, através da adequada intervenção dos terceiros interessados” e, ainda, neste sentido, Ac. da RG de 28/6/2018, proc. 155/09.TBTMC-A.G1, in dgsi.pt.
[21] Cfr. Ac da RL de 6/3/2014, proc, 281/12.7TBPTS.L1-6, acessível in dgsi.pt, onde se decidiu “Não obstante a questão da ilegitimidade não ter sido suscitada nos autos, nada impede que o tribunal de recurso se pronuncie sobre ela, visto que, sendo de conhecimento oficioso, ainda não se encontra decidida com trânsito em julgado, por se encontrar inserida em mero despacho saneador tabelar ou genérico” e “Não sendo agora, face ao estado da acção, mormente a existência de sentença, a referida excepção suscetível de sanação, a solução só pode passar pela absolvição dos RR. da instância”.