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IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário
I - O objetivo do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é (nem pode ser) pura e simples repetição das audiências perante a Relação mas a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, sem prejuízo de aquando da apreciação dos meios probatórios colocados à sua disposição formar uma convicção autónoma sobre a materialidade impugnada. II - Como assim, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
Texto Integral
Processo nº 898/20.6T8PNF.P1 Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Penafiel, Juízo Local Cível - Juiz 1 Relator: Miguel Baldaia Morais 1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra 2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I- RELATÓRIO
B… intentou a presente ação declarativa com processo comum contra a Companhia de Seguros C…, SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 15.935,00 (quinze mil novecentos e trinta e cinco euros), a título de indemnização pelos danos sofridos em consequência do acidente que descreve nos autos, bem como nos valores que vierem a ser apurados em sede de audiência ou em execução de sentença.
Para tanto alega que, no dia 30 de março de 2017, pelas 20h45, ocorreu um acidente de viação na Avenida …, …, Penafiel, no qual foram intervenientes o veículo automóvel, com a matrícula ..-..-EE, por si conduzido e o veículo de classe agrícola com reboque, com a matrícula ..-GA-.., cujo proprietário havia transferido para a ré a responsabilidade civil resultante da circulação do mesmo.
Acrescenta que em resultado desse acidente sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais, imputando exclusivamente ao condutor do veículo seguro na ré a responsabilidade pela produção desse evento súbito.
Citada a ré apresentou contestação na qual contraria a versão fáctica do acidente articulada pelo autor, alegando factos que, na sua perspectiva, demonstram que esse acidente de trânsito se ficou a dever a culpa exclusiva do próprio demandante.
Foi proferido despacho saneador em termos tabelares, definiu-se o objecto do litígio e fixaram-se os temas da prova.
Realizou-se audiência final, vindo a ser proferida sentença que julgou a ação improcedente.
Não se conformando com o assim decidido, o autor interpôs recurso, admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes CONCLUSÕES:
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A ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO MÉRITO DO RECURSO 1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, são as seguintes as questões solvendas:
. determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas;
. da culpa na produção do ajuizado acidente de trânsito.
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2. Recurso da matéria de facto 2.1. Factualidade considerada provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. No dia 30 de Março de 2017, pelas 20h45, ocorreu um embate na Avenida …, em …, Penafiel.
2. No referido embate foram intervenientes:
- o veículo ligeiro de passageiros de marca Seat, modelo …, de matrícula ..-..-EE, de propriedade e conduzido pelo Autor e
- o veículo de classe agrícola de marca Valtra, modelo …, de matrícula ..-GA-.., com reboque ……, segurado na Ré, de propriedade de D… e conduzido por este.
3. O local exato onde ocorreu o acidente, para além de configurar uma recta, com uma inclinação descendente, tendo a faixa de rodagem cerca de 6,15 metros de largura e comporta duas vias de trânsito destinadas ao que se faz em dois sentidos opostos.
4. No dia e hora supra indicados, o Autor circulava na Avenida …, no sentido ….
5. O GA circulava no mesmo sentido de marcha, provindo da Rua ….
6. Em determinado momento do seu trajeto, como o condutor do GA pretendia mudar de direção à esquerda de forma a aceder à propriedade situada desse lado da via, reduziu a velocidade e imobilizou a sua viatura de forma a dar prioridade a veículos se circulavam em sentido contrário.
7. Altura em que foi embatido pelo EE.
8. O veículo EE circulava atrás do GA.
9. O EE embateu na traseira da máquina que se encontrava atrelada ao GA.
10. A reta onde ocorreu o embate tem uma visibilidade superior a 60 metros.
11. O embate ocorreu pelo menos a 50 metros do entroncamento com a Rua ….
12. À data do embate, o condutor do veículo GA havia transferido para a ré a responsabilidade civil resultante da circulação daquele veículo, titulado pela apólice n.º ……….
13. Em resultado do embate, como sua consequência direta e necessária, o veículo do Autor sofreu diversos danos em todo pára-choques, dianteiro, capot, toda a lateral direita e lateral esquerda frente.
14. Após o embate, o veículo teve de ser transportado, através de reboque, uma vez que não circulava, atento o impacto da colisão.
15. De acordo com o relatório de peritagem e do orçamento apresentado pela oficina E…, sito em …, Penafiel, os serviços de reparação da oficina, incluem: serviço chapeiro, pintura, substituição de peças sinistradas por peças novas e mão-de-obra, que ascendem ao montante de € 5.494,88.
16. Em virtude do embate, o Autor foi transportado de ambulância para o Centro Hospitalar …, E.P.E. com dores intensas na zona retroesternal, abdómen e na palpação da bacia, com múltiplas escoriações e edema na face, escoriações nas mãos, hipertenso e com taquicardia.
17. Face às dores que apresentava, o Autor realizou diversos exames médicos, nos quais se vieram a verificar que tinha sofrido uma fratura com desvio do esterno e hematoma retroesternal associado, o que levou a internamento na respectiva unidade de saúde.
18. Seguidamente, no dia 3 de Abril de 2017, o Autor foi transferido para a UIP onde realizou novo controlo imagiológico e no dia 4 de Abril de 2017 foi transferido para o serviço de cirurgia onde esteve internado até ao dia 13 de Abril de 2017.
19. Foi elaborado relatório de Avaliação do Dano Corporal que atribuiu ao autor um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica fixável em 3 pontos, como consequência do embate.
20. Em virtude do embate, o autor sofreu dores, que de acordo com o relatório médico, encontravam-se avaliadas no grau 5 numa escala crescente de 1 a 7.
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2.2. Factualidade considerada não provada na sentença
O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
a. No local do embate existe um entroncamento.
b. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1 e 2, o autor seguia a uma velocidade inferior a 50km/h.
c. Sucede que, sem nada que o fizesse prever, o veículo propriedade do Autor foi surpreendido pela presença do veículo segurado na Ré, que se fazia circular sem a luz avisadora de marcha-lenta (pirilampo) e com as facas de fresa (hélices) a trabalhar.
d. Por conseguinte, o veículo segurado na Ré saiu da Rua … com a intenção de mudar de direcção para a vacaria, surgindo inopinadamente na via em que seguia, sem parar no sinal STOP.
e. O que originou o embate entre os dois veículos.
f. O condutor do veículo segurado na Ré invadiu a faixa de rodagem por onde seguia o Autor sem tomar as precauções, que lhe eram devidas, por transitar com um veículo agrícola.
g. O EE circulava a velocidade superior a 80 km/hora.
h. O veículo era utilizado diariamente no quotidiano do Autor, nomeadamente, na deslocação com a família, aos supermercados, espaços verdes de lazer, entre outros.
i. Como consequência direta e necessária do embate, o autor não quer sair de casa, tem medo de conduzir e de andar em transportes rodoviários.
j. Como consequência direta e necessária do embate, o autor sente dificuldade em participar nos convívios sociais com os amigos e/ou com a família, não consegue pegar em objectos pesados, pegar nos seus netos ao colo, por ter de despender de mais esforços, que o obrigam a um maior esforço físico, pois tem consciência das suas limitações.
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2.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto
Nas conclusões recursivas veio o autor requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados não provados, com fundamento em erro na apreciação da prova.
Como é consabido, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3. […]”
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “[…] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo a audiência final processou-se com gravação da prova pessoal prestada nesse ato processual.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[2], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil.
Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada.
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[4].
Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão ao apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele defendidos.
Perante a forma como o apelante estrutura a sua impugnação da decisão da matéria de facto poder-se-ia considerar que não teria cumprido estritamente o disposto nas als. a) e c) do nº 1 do citado art. 640º, que impõe ao recorrente o ónus de indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados e de tomar posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação[5].
Malgrado o modo menos próprio como o apelante procurou dar satisfação a tal imposição legal, condescende-se que, ainda assim, se percebe o sentido que preconiza para as proposições factuais que considera terem sido objecto de errónea apreciação pelo julgador de 1ª instância e que, na essência, se reconduzem às afirmações de facto vertidas nas alíneas a), c), d), e) e f) dos factos não provados – primordialmente respeitantes ao modo como ocorreu o ajuizado acidente de trânsito - que, segundo advoga, deverão transitar para o elenco dos factos provados.
A propósito do sentido decisório que trilhou em relação a tais enunciados fácticos, na respetiva motivação de facto, o juiz a quo discreteou nos seguintes termos: «[A] factualidade relativa à dinâmica do acidente, assentou essencialmente na apreciação objetiva dos depoimentos prestados em sede de audiência conjugados com a prova documental junta aos autos. Com efeito, da prova produzida, designadamente das declarações prestadas pelo autor, pelo condutor do veículo GA (a testemunha D…) e pela testemunha G…, militar da GNR que foi chamado ao local e que elaborou a participação do acidente e o croquis que se encontra junto aos autos, não restaram dúvidas que o embate se dá quando o trator GA se encontra na sua totalidade na Av. …, em …. O autor refere que o trator surgiu inopinadamente na via quando saiu da Rua …, dando a entender que havia cortado a marcha do veículo por si conduzido pois o sentido da sua alegação é esse. Sucede que a prova foi clara quanto a essa circunstância: o veículo GA estava já a circular plenamente naquela Avenida. Acresce que também resultou provado que o embate se dá quando esse veículo se encontrava parado para virar à esquerda para o interior de uma propriedade que aí se situa, altura em que foi embatido pelo EE. Esse local não se situa no entroncamento com a Rua …, sendo que do depoimento da testemunha G… resultou que, pese embora não tenha medido a distância, esse local se situa a cerca de 50 metros do acidente. Contudo, avistando as fotografias extraídas do Google Maps que a ré juntou aos autos, e consultando inclusivamente o referido local através desse site, é possível concluir que essa distância será até superior. Na verdade, caso o GA tivesse entrado inopinadamente na estrada, atentas as suas dimensões (circulava com atrelado), essa entrada nunca seria imediata, pois sabemos que é um veículo que circula necessariamente com marcha mais lenta e que não executa as manobras de mudança de direção da mesma forma que um veículo ligeiro. Assim, não temos quaisquer dúvidas que o embate se deu quando o GA estava totalmente dentro da faixa de rodagem e após o entroncamento com a Rua …. De igual modo, ficou também demonstrado que a reta onde ocorreu o embate tem visibilidade superior a 60 metros, o que se alcança inclusivamente das fotografias que se encontram juntas aos autos. De resto, ficámos com sérias dúvidas que a testemunha I… tenha efetivamente assistido ao embate, em primeiro lugar por ser cliente do café do autor e ter referido que viu o carro do autor enfaixar-se na traseira do trator, quando refere que se encontrava parado no stop da Rua … para aceder à Avenida e, considerando a fotografia junta como documento nº 2 da petição inicial, não cremos que tivesse visibilidade para ver o acidente. Por outro lado, diz que o trator acedeu à Avenida por essa Rua e que não parou no stop nem tinha qualquer luz ligada e que este mal entrou na avenida foi logo embatido pelo veículo do autor. Ora, já referimos que o embate não se deu junto ao entroncamento. Conjugando todas estas circunstâncias, ficámos com sérias dúvidas que a testemunha se encontrasse no local. Já a testemunha H…, mecânico, residente em Penafiel, referiu que não tem qualquer relação com os condutores dos veículos, conhecendo apenas o autor de vista, e que nas circunstâncias em que ocorreu o acidente circulava no sentido oposto confirmando que o trator estava parado para virar à esquerda quando se dá o embate e que esse veículo havia saído momentos antes do entroncamento, entrou na estrada e parou. Como referimos, o embate não se deu junto ao entroncamento mas pelo menos a cerca de 50 metros desse local pelo que o trator não parou de imediato após virar. Esta testemunha disse desconhecer se o trator trazia as luzes desligadas ou se não parou no stop. De resto, a testemunha D… condutor do trator, referiu que estava parado para virar porque circulava trânsito em sentido contrário e que acionou o pisca para a esquerda. Contudo, esta sua versão não foi confirmada por qualquer outro meio de prova, pelo que se considerou não provado que tenha acionado o pisca (sendo que também não resultou demonstrado o contrário). Disse também que quando foi embatido já tinha passado o cruzamento há algum tempo e que parou no stop sendo que na altura em que entrou na via não circulavam carros. Já o autor referiu que o trator circulava sem luzes e que não parou no stop, altura em que estava mesmo a chegar ao pé do entroncamento. Contudo, como vimos, o embate não se deu no entroncamento. O autor referiu também que deduz que a alfaia do trator estavam a trabalhar face aos danos que este sofreu mas essa circunstância não foi igualmente confirmada por qualquer outro meio de prova».
Colocado perante a transcrita motivação da decisão de facto, pretende o apelante que se julgue provada a materialidade objecto de impugnação por entender, desde logo, que da participação do acidente e respectivo croqui se extrai que, contrariamente ao que consta da alínea a) dos factos não provados, no local do acidente existia um entroncamento, sendo certo outrossim que os depoimentos prestados pelas testemunhas I… e H… - que o tribunal recorrido não relevou devidamente – confirmam, na leitura que deles faz, que o veículo seguro na ré provinha da rua … e ingressou na Avenida … (em …, Penafiel) sem ter parado no sinal de STOP que estava colocado naquela artéria, não permitindo, assim, que o autor, que aí circulava, pudesse evitar o embate.
Começando pelos suportes documentais que o apelante convoca em arrimo do seu posicionamento, procedendo à respectiva exegese, não se vê em que medida se possa afirmar que deles resulte que o embate entre os veículos se processou no local onde a rua … entronca com a Avenida …; o que deles se extrai é, ao invés, que o embate ocorreu a cerca de 50 metros desse entroncamento, como, aliás, foi atestado pela testemunha G…, que foi o agente de autoridade que se deslocou ao local do acidente a fim de tomar conta da ocorrência, tendo subsequentemente elaborado o auto de participação e o croqui.
Já relativamente aos depoimentos prestados pelas mencionadas testemunhas, após a audição do respectivo registo fonográfico, constata-se terem referido que o condutor do veículo seguro na ré não terá parado no STOP que estava colocado na rua … e que entrou na Avenida … num momento em que o autor se aproximava do entroncamento, o qual, face ao repentismo da manobra daquele, não teve tempo de evitar embater na traseira do veículo seguro.
Facto é que, sobre a matéria atinente ao ajuizado acidente de viação, na audiência final foram ainda ouvidos outras pessoas, concretamente D… e G….
Assim, D… (que era o condutor e proprietário do veículo seguro na ré) afiançou que o embate entre os veículos se processou em plena Avenida … e várias dezenas de metros após o referido entroncamento, tendo o veículo conduzido pelo autor embatido na traseira do seu veículo num momento em que se aprestava para virar à esquerda (atento o sentido …-…) para uma propriedade aí existente, estando a aguardar a passagem dos veículos que circulavam na hemi-faixa contrária para, então, realizar essa manobra.
Por seu turno, G…, declarou que apesar de não ter presenciado o acidente, deslocou-se ao local a fim de, na sua qualidade de agente da GNR, tomar conta da ocorrência, confirmando os dados que lançou no auto de participação e no croqui anexo, esclarecendo que o embate ocorreu na Avenida … cerca de 50 metros depois do entroncamento desta via com a rua ….
Isto posto, a questão que naturalmente se coloca é a de saber se na presença dos mencionados subsídios probatórios se justifica a impetrada alteração do sentido decisório referente à facticidade objecto de impugnação, sendo que, como deflui do respectivo corpo alegatório, o que o apelante pretende com essa impugnação é que este tribunal ad quem valore de forma diversa do decisor de 1ª instânciaos depoimentos que adrede foram prestados na audiência final.
Ora, com o controlo efectuado pelo Tribunal da Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal de 1ª instância não se visa o julgamento ex novo dessa matéria, mas antes reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.
Como se viu, em relação às proposições factuais alvo de impugnação foram produzidos depoimentos de sinal contrário, sendo que na respectiva apreciação o decisor de 1ª instância desconsiderou, precisamente, os depoimentos que o ora apelante convoca para justificar a alteração do sentido decisório sufragado na sentença recorrida, por entender que os mesmos evidenciaram uma grande parcialidade em favor do autor, para além das inconsistências que lhes apontou na motivação da decisão de facto.
Portanto, o que ressuma do cotejo entre a motivação da decisão sub iudicio e a motivação do recurso sub specie, é uma divergente valoração da prova produzida: tribunal recorrido e recorrente não divergem na leitura das provas, divergem na respetiva valoração.
Porém, como se anteriormente se referiu, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente (em termos de convicção autónoma) para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância e já não naqueles (como é o caso) em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, assumindo uma opção que justificou de forma que reputamos consonante com a prova produzida no âmbito do presente processo.
Como tal as aludidas afirmações de facto não deverão transitar para o elenco dos factos provados, já que essa prova não impõe - como é suposto pelo nº 1 do art. 662º - decisão diversa.
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3. FUNDAMENTOS DE DIREITO
Como se deu nota, o autor/apelante faz ancorar a concreta pretensão de tutela jurisdicional que formula nestes autos, primordialmente, no facto de o ajuizado acidente de viação, de que resultaram os danos cuja reparação impetra, ter sido motivado pela atuação culposa do condutor do veículo de classe agrícola com a matrícula ..-GA-.., cuja proprietário havia transferido para a ré a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros e emergentes de acidente de viação ocorridos na circulação do referido veículo, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ……….
Perante a materialidade que julgou provada e não provada (que não foi alvo de alteração nesta sede recursória), o decisor de 1ª instância considerou que o condutor do GA não infringiu qualquer regra ou omitido qualquer cautela disciplinadora da circulação rodoviária, entendendo antes que a responsabilidade na eclosão do sinistro é do próprio autor que, censuravelmente, violou o disposto nos arts. 18º e 24º do Código da Estrada, porquanto não regulou a velocidade que imprimia ao seu veículo de modo a evitar o choque com veículos que seguissem à sua frente, acabando por embater na traseira do veículo seguro na ré.
O apelante rebela-se contra esse sentido decisório no pressuposto da alteração do substrato factual considerado na sentença recorrida, o que, todavia, não logrou.
Porque assim, tal como afirmado nesse ato decisório, igualmente entendemos que a culpa na produção do acidente se ficou a dever exclusivamente ao comportamento do autor (posto que, no respetivo processo causal, não se vislumbra que o condutor do GA tenha, em alguma medida, contribuído para esse vento súbito), o que, nos termos do art. 570º do Cód. Civil, afasta a responsabilidade da ré enquanto seguradora do proprietário do mesmo.
Improcedem, pois, todas as conclusões recursivas.
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III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas, em ambas as instâncias, a cargo do apelante.
Porto, 26.4.2021
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
_______________ [1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem. [2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in Aação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência. [3] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, inTemas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272. [4] AssimABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1), ambos acessíveis em www.dgsi.pt. [5] Cfr., sobre a questão, ABRANTES GERALDES, Recursos, pág, 133, onde refere que esta exigência legal “vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.