NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário


A nulidade por contradição entre os fundamentos e decisão verifica-se sempre que, considerada a decisão final como o desenlace de um raciocínio, se regista, a final, uma contradição – uma contradição lógica – entre os pressupostos e a conclusão (todos os argumentos apontavam para certa decisão e, sem que nada o fizesse esperar, a decisão final foi a oposta ou diferente da que se anunciava).

Texto Integral


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



1. Notificado do Acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça em 25.03.2021, que negou provimento ao recurso por ele interposto, veio o autor e recorrente AA reclamar para a Conferência, arguindo a nulidade daquele Acórdão.

Conclui a sua alegação dizendo:

A – O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ora sob exame, é nulo, porquanto, como se demonstrou:

- os seus fundamentos de facto mostram-se em ostensiva contradição com a solução jurídica alcançada;

- os Venerandos Conselheiros não se pronunciaram sobre as consequências legais dos factos assentes;

- o Acórdão do S.T.J. de 26.08.2018 versa sobre os mesmos factos e os mesmos sujeitos processuais e naquele a Ré é condenada e, neste, é o Recorrente punido e condenado a pagar à Ré uma indemnização pelos danos que esta lhe provocou e que aquele Acórdão sancionou;

Termos em que, se ocorrer serenidade judicante, o presente Acórdão será julgado nulo, tudo, nos termos e fundamento nas alíneas c) e d) do n.º 1 do Artº 615 do C.P.C.”.


2. Em resposta à reclamação, vem, por sua vez, a ré BB dizer a final:

Pelo exposto e pelos demais fundamentos que V.Exas mui doutamente suprirão, requer a Recorrente que:

a) Sejam julgadas improcedentes as nulidades invocadas pelo Recorrente;

b) Seja o Recorrente condenado, como litigante de má fé, no pagamento de multa, bem como a indemnizar a Recorrida fixar, por recurso à equidade; e,

c) Seja julgado manifestamente infundado o incidente suscitado pelo Recorrente e, em consequência, ser determinada a extração de traslado e declarada transitada em julgado a decisão impugnada”.


***


Se bem se compreende a exposição feita na presente reclamação, vem arguida a nulidade do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça com base em dois fundamentos: omissão de pronúncia e contradição entre os fundamentos e a decisão.

Aprecie-se cada um dos fundamentos com vista a aferir da sustentada nulidade do Acórdão.


a) Da alegada omissão de pronúncia

Alega o autor / ora reclamante, no essencial, que “os Venerandos Conselheiros não se pronunciaram sobre as consequências legais dos factos assentes”.

Nomeadamente, sempre no entender do reclamante, “o Acórdão não responde deliberadamente à questão central que presidiu a este conflito”, qual seja a de saber se “[é] legítimo e legalmente admissível que um cidadão que decaiu numa pretensão por decisão (de autoridade judicial ou administrativa) possa, ao invés de se socorrer dos meios processuais ao seu dispor, enveredar pelo ataque pessoal à honra, ao prestígio pessoal e profissional do decisor, bem como à sua reputação social e, acima de tudo, à função e à autoridade em que foi investido pelo Estado?”.

Dispõe-se no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC que “é nula a sentença quando (…) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.

Como é sabido, as questões a decidir no recurso são delimitadas pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC). Isto não significa, todavia, que as questões a decidir no recurso sejam necessariamente as formuladas, e tal como formuladas, pelo recorrente. Por outras palavras: nenhuma questão tem de ser uma questão a decidir só porque assim foi identificada pelo recorrente, resultando a delimitação do objecto do recurso de uma apreciação global ou conjunta das conclusões.

Ora, como facilmente se vê, a questão enunciada pelo reclamante, tal como enunciada pelo reclamante, não é uma genuína questão a conhecer num recurso. Em nenhum recurso pode decidir-se uma questão jurídica pura, que exorbite em absoluto de um quadro concreto.

Assim, diversamente do que alega o reclamante, a questão central no recurso decidido no Acórdão ora impugnado era, como não podia deixar de ser, a de saber se a ré havia incorrido em responsabilidade civil (incluindo se havia “envereda[do] pelo ataque pessoal à honra, ao prestígio pessoal e profissional do decisor, bem como à sua reputação social e, acima de tudo, à função e à autoridade em que foi investido pelo Estado] e, como tal, devia ser responsabilizada.

Decidiu-se naquele Acórdão que a decisão sobre a matéria de facto não permitia responder afirmativamente àquela questão.

A questão foi, então, respondida, não obstante em sentido diferente do ambicionado pelo reclamante, e, tendo sido respondida, não há nulidade por omissão de pronúncia.

Diga-se ainda, em particular quanto ao argumentoque não uma questão – consubstanciado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.06.2018, que o reclamante tanto invocou e invoca para sustentar a sua razão, que também ele foi expressa e directamente considerado no Acórdão ora impugnado. Afirmou-se aí, em conclusão:

(…) enquanto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.06.2018 se apreciou a responsabilidade da ré pelos danos causados ao autor pelo teor de certas peças processuais, nos presentes autos aprecia-se, fundamentalmente, a responsabilidade da ré pelos danos causados ao autor pelo teor de certas notícias saídas a público tendo por objecto a participação disciplinar.

E nem por força da ampliação da causa de pedir esta conclusão se altera. Enquanto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.06.2018 estavam em causa alegações estranhas ao objeto do processo, as excepções invocadas pela ré na contestação referem-se a factos que foram alvo das notícias, o que significa que, ao invés, estão relacionadas com o objeto da causa”.

Em suma, todas as questões que foram suscitadas no recurso foram respondidas no Acórdão ora impugnado e, tendo sido todas respondidas, não há nulidade por omissão de pronúncia.


b) Da alegada contradição entre os fundamentos e a decisão

Alega o autor / ora reclamante, no essencial, que “os fundamentos de facto [do Acórdão] [se] mostram[] em ostensiva contradição com a solução jurídica alcançada”.

Explica, designadamente, o reclamante que:

- “[se] abandonou[], também deliberadamente, a matéria de facto assente para suportar a decisão”; e

- “[se] afigura[] ostensiva a opção por abandonar deliberadamente a quase integridade da matéria de facto assente (e é o próprio Acórdão que lhe atribui tal definitividade), dum lado, sendo ainda mais gritante o afrontamento, entre os factos assentes e a conclusão tirada pelo Aresto aqui em causa”.

Depois destas alegações transcreve o reclamante para a presente reclamação o longo elenco de factos assentes que considera “negligenciados”.

Dispõe-se no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC que “é nula a sentença quando (…) os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.

Ora, como é do conhecimento geral e decerto também do reclamante, a nulidade por esta causa verifica-se sempre que, considerada a decisão final como o desenlace de todo um raciocínio, se regista, a final, uma contradição – uma contradição lógica – entre os pressupostos e a conclusão (todos os argumentos apontavam para certa decisão e, sem que nada o fizesse esperar, a decisão final foi a oposta). Não se trata, pois, de um qualquer desfasamento entre os pressupostos de facto e a decisão, como o reclamante refere. Quer dizer: a nulidade por esta causa não se confunde com o chamado “erro de julgamento” [1], que é aquilo que parece estar subjacente à presente alegação.

Lendo o Acórdão impugnado, rapidamente se percebe que aquela contradição lógica não existe. Muito pelo contrário, entendeu-se que os factos apurados não permitiam concluir que a ré tivesse usado dos meios de comunicação social para colocar na imprensa notícias que alegadamente causaram dano à honra do autor (pressuposto) e, em conformidade com isso, decidiu-se confirmar a absolvição da ré do pedido de indemnização por responsabilidade civil (conclusão).

A propósito, sempre se pode / se deve dizer que, depois de ler atentamente a extensa alegação, e não obstante a invocação – não por acaso só a final – das als. c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, sobre as causas de nulidade da sentença, o que perpassa é que o inconformismo do reclamante não se relaciona – não se relaciona tanto – com a hipotética nulidade do Acórdão mas sim – ou mais – com o sentido da decisão, ou seja, com o facto de a sua pretensão indemnizatória ter sido rejeitada no Acórdão.

Sucede que o expediente da reclamação para a conferência, ao abrigo do artigo 666.º, ex vi do artigo 685.º do CPC, não permite obter uma reapreciação do mérito da decisão.

Seja como for, tendo ficado demonstrado que as nulidades arguidas não se verificam, não resta senão indeferir, sem mais delongas, a presente reclamação.

É oportuna uma palavra final dirigida às pretensões manifestadas pela reclamada na sua resposta à presente reclamação: não se vislumbram, por ora, razões que justifiquem a condenação do autor, como litigante de má fé, no pagamento de multa e de indemnização, nos termos e para os efeitos do artigo 542.º e 543.º do CPC, nem a qualificação do incidente por ele deduzido como manifestamente infundado, nos termos e para os efeitos do artigo 670.º do CPC.


*


DECISÃO

Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.


*


Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

*


Catarina Serra(relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este colectivo.

_______

[1] São numerosas as considerações tecidas a este respeito na doutrina e na jurisprudência portuguesas. Veja-se, por todos, José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2018 (3.ª edição), pp. 736-737. Dizem eles: “[e]ntre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se”. Cfr., por todos, na jurisprudência, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 7.11.2019, Proc. 30202/16.1YIPRT.L1.S1, relatado pela ora Relatora. Diz-se aí, no sumário, que “[a] alegação de uma contradição entre os factos provados e a decisão consubstancia a alegação de um erro de julgamento e não da oposição (incompatibilidade lógica) entre os fundamentos e a decisão que é pressuposto da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC”.