O critério do art. 301.º do Código de Processo Civil deve aplicar-se, por interpretação extensiva ou por extensão teleológica, a todas as acções em que se discuta a existência, a validade e a eficácia de um acto jurídico — designadamente, às acções de impugnação pauliana.
I. — RELATÓRIO
1. O Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, propôs acção declarativa de impugnação pauliana, com processo comum, contra AA, BB e CC, pedindo que
I. — seja declarada a ineficácia em relação à Fazenda Nacional do acto praticado pelo primeiro em 22/05/2015, em sessão de assembleia extraordinária da sociedade ‘M. Dinis – Construções Unipessoal, L.dª ’, com o capital social de €5.000,00, da qual era sócio único, e em que decidiu dividir a sua única quota em duas quotas, no valor nominal, cada uma, de €2.500,00, cedendo ambas essas quotas, a título gratuito, aos seus únicos filhos BB e CC, Réus na acção;
II. — seja declarada a ineficácia em relação à Fazenda Nacional do acto realizado no mesmo dia e pelos 2º e 3º Réus, pelo qual, já enquanto sócios únicos dessa dita sociedade, decidiram que a gerência da sociedade continuasse a ser exercida pelo 1º Réu, a quem foi dada a autorização, nessa qualidade de gerente, de transmitir ou vender quaisquer bens da sociedade, pelo preço e nas condições que entendesse …’.
2. À acção foi dado o valor processual de 5.000,00 euros.
3. O Réu AA contestou, pugnando pela improcedência da acção, sem se pronunciar sobre o valor da causa.
4. Em 18 de Setembro de 2020 foi proferido despacho com o seguinte teor:
I - NÃO REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA PRÉVIA:
Nos termos do artigo 597.º c) do Código de Processo Civil, não se procede à convocação de audiência prévia.
II – DO VALOR DA AÇÃO:
Dispõe o artigo 296.º, n.º 1, do Código de Processo Civil: a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido.
Estipula o art.º 306.º, n.º 1 do C.P.C. que “compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes.”.
No articulado em que deduza a sua defesa pode o réu impugnar o valor da causa indicado na petição inicial, contanto que ofereça outro em substituição; nos articulados seguintes podem as partes acordar em qualquer valor (artigo 305º, n.º 1 do C.P.C.).
A falta de impugnação por parte do réu significa que aceita o valor atribuído à causa pelo autor (n.º 4).
O Autor indicou o valor de 5.000,00€, que não foi colocado em causa pelos RR., pelo que será esse o valor da ação, o que se determina.
Fixo o valor da causa em 5.000,00€ (cinco mil euros) em conformidade com o disposto nos artigos 296.º, n.º 1, e 301.º, n.º 1, todos do CPC.
III - DESPACHO SANEADOR:
1 - O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do valor
2 - Da exceção de “impossibilidade de seleção da matéria de facto em relação ao pedido deduzido pelo Autor”:
Invocaram os RR em sede de contestações de fl.s 65 e ss e 73 e ss a exceção de “impossibilidade de seleção da matéria de facto em relação ao pedido deduzido pelo Autor.”
Na presente ação de impugnação pauliana, em que pretende o Autor a ineficácia quanto a si de um negócio de divisão e cedência de quotas de uma sociedade comercial do Réu AA aos seus filhos, excecionam os Réus que o Autor não alegou factos atinentes a fazer operar o que dispõem os artigos 610.º e 611.º do Código Civil, pois que não é verdade que exista uma valor em divida perante a administração fiscal porquanto tal crédito foi impugnado em sede de Tribunal Fiscal, mais não alegando em que medida aquela doação impossibilita a satisfação deste seu crédito, pois que o Réu Mário era detentor, ao tempo de doação, de muitos outros bens móveis e imóveis para além daquelas quotas. Mais afirma que os imóveis indicados como propriedade da firma são afinal pertença dos Réus a titulo pessoal e que têm valor de €824.642,57.
Respondeu o Autor a fl.s 219 e ss afirmando que os RR. rebateram a versão trazida aos autos pelo Autor, também não se limitando a petição inicial a conceitos de direito. Para além de não terem alegado quais os bens que eram detentores o que podiam e deviam ter dito constando do artigo 11.º da petição inicial o património na disponibilidade do Réu.
Cumpre apreciar:
Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, devendo o autor, na petição inicial, expor tais factos, concluindo-se pelo pedido (artigos 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, als. d) e e) do Código de Processo Civil).
Diz-se inepta a petição inicial e, consequentemente, nulo todo o processo, além do mais, quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir – artigo 186.º, nº 1 e nº 2, alínea a) e c) do Código de Processo Civil.
Com a figura processual da ineptidão da petição inicial visa-se evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar corretamente a causa, decidindo sobre o mérito, em face da inexistência de pedido ou de causa de pedir, ou de pedido ou causa de pedir que se não encontrem deduzidos em termos inteligíveis [cfr. Anselmo de Castro in “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. II, 1982, pág. 219-220].
O pedido corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da ação interposta, traduzindo-se na providência que solicita ao tribunal - cfr. artº 581.º, nº 3 do mesmo código – devendo ser fundamentado de facto e de direito, não bastando a invocação de um determinado direito subjetivo e a formulação da vontade de obter do Tribunal determinada forma de tutela jurisdicional.
Do mesmo modo, também a causa de pedir deverá ser inteligível, isto é, o autor deve expor com clareza os fundamentos da sua pretensão. Para tanto o autor deverá indicar os factos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer os quais constituem a causa de pedir (art.º 581.º, nº 4 do CPC) que corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito do direito material pretendido.
A causa de pedir na ação representa a essência material a que o juiz reconhecerá ou não força jurídica bastante para desencadear as consequências jurídicas adequadas, exercendo, assim, uma função individualizadora do pedido para o efeito da conformação do objeto do processo.
Funcionando no sistema jurídico o princípio do dispositivo e de acordo com as regras gerais da repartição do ónus da prova (artigo 342.º do Código Civil) é sobre o autor, que invoca a titularidade de um direito, que cabe fazer a alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência desse direito (artigo 5.º, 1 do CPC).
Por outro lado, a necessidade de invocação da materialidade não pode deixar de escorar-se igualmente no respeito do princípio do contraditório, como condição do efetivo exercício do direito de defesa, impondo-se que ao réu seja dado conhecimento dos factos fundamentadores da pretensão.
No caso dos autos é manifesto que o Autor indica os factos necessários para a procedência da ação de impugnação pauliana, sendo matéria diferente a sua prova.
Com efeito o Autor alega a realização de um negócio de transmissão gratuita de bens por parte de um devedor à Fazenda Nacional, divida esta de valor superior a 2 milhões de euros, valor esse estabilizado e sujeito a execução fiscal sendo que por se tratar de negócio gratuito nem sequer necessita da alegação e prova da má-fé por parte dos intervenientes do mesmo nos termos do artigo 612.º do Código de Processo Penal, colocando em causa a satisfação daquele crédito.
E nos termos do artigo 611.º caberia ao Réu invocar nos termos do artigo a sua disponibilidade de bens penhoráveis de igual ou maior valor o que este por sua vez não fez.
Disto isto é manifesto não existir qualquer ineptidão da petição inicial, motivo pelo qual vai indeferida a exceção invocada.
3 - Não há outras nulidades que invalidem todo o processo que é o próprio.
4 - As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão devidamente representadas.
5 - Não existem outras nulidades, exceções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer.
IV - DESPACHO DE IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO E ENUNCIAÇÃO DOS TEMAS DA PROVA: IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO DO LITÍGIO:
A verificação dos pressupostos para a declaração de ineficácia em relação ao Autor do acto de doação celebrado Réu AA aos 2.º e 3.º Réus.
TEMAS DA PROVA:
- Divida à administração fiscal e pendência de ações executivas (apenas passiveis de serem provadas por certidão).
- Titularidade na esfera da sociedade doada aos 2.º e 3.º Réus de património imobiliário no valor de €824.642,57.
- Titularidade por parte do 1.º Réu de património imobiliário no valor de €824.642,57.
V - REQUERIMENTOS PROBATÓRIOS:
Fls. 4, 69v e 80v - Por tempestivos, admito os róis de testemunhas apresentados, sendo as mesmas a notificar conforme requerido, nos termos do artigo 507º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
As testemunhas residentes fora da comarca, e que não sejam a apresentar, serão ouvidas por teleconferência - art. 502.º n.º 2 do Código de Processo Civil.
Prova por certidão: Adverte-se o Autor que não há evidência nos autos de que os respetivos documentos apelidados de certidão com os n.ºs 1 a 4 e 6 juntos com a petição inicial se tratem efetivamente de certidões,mais se advertindo A. e Réus de que a prova de factos relativos ao estado civil e documentos relativos a processos judiciais ou fiscais apenas é passível de ser provada por certidão – cfr. ainda o doc 5 junto com a petição inicial o qual os Réus também referem nos seus articulados.
Concede-se às partes, caso o pretendam e sob pena de poderem não ser dados como provados boa parte dos factos alegados, o prazo de 20 dias para junção das respetivas certidões.
A prova será gravada – art. 155.º n.º 1 do Código de Processo Civil.’
5. O Réu AA interpôs recurso de apelação do despacho transcrito, no segmento relativo á fixação do valor da causa.
6. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª – Compete ao Juiz fixar o valor da causa sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre a parte.
2ª – Apesar de o Réu recorrente não ter impugnado o valor, não o aceitou expressamente, sendo sempre da competência do Tribunal sindicá-lo na audiência prévia.
3ª – Não tendo sido marcada audiência prévia, ficou o recorrente impossibilitado de ter suscitado tal questão e assim opor-se à fixação do valor da causa em €5.000,00 (cinco mil euros).
4ª – Ora, estando em causa nos autos a cessão total de quotas de uma sociedade que detinha o valor patrimonial de €824.642,57, será esse o valor útil da causa.
5ª – Pois é este sempre o valor derivado do pedido de declaração de ineficácia da doação para o A., ao passar a poder dominar esse mesmo património, pois executará as quotas do sócio transmitente, a tal data.
6ª – Existe, assim, uma obrigação funcional do tribunal, derivada dos precisos termos do disposto nos artºs 306º e 308º do CPC, para fixar o valor da causa em €824.642,57 (oitocentos e vinte e quatro mil seiscentos e quarenta e dois euros e cinquenta e sete cêntimos).
7ª – Deve este Venerando Tribunal fixar o valor da causa em €824.642,57 (oitocentos e vinte e quatro mil seiscentos e quarenta e dois euros e cinquenta e sete cêntimos), revogando-se nessa medida o despacho impugnado de 16/09/2020.
8ª – O recurso é admissível nos precisos termos do disposto nos artºs 306º, nº 3 e 629º, nº 2, alínea b) do C.P.C.
9ª – O despacho violou, além do mais, o disposto nos artºs 306º e 308º do C.P.C
10ª - Termos em que deve ser dado provimento ao recurso revogando-se o despacho impugnado e mandando-se substituir por outro que fixe pelo menos o valor da causa em €824.642,57 (oitocentos e vinte e quatro mil seiscentos e quarenta e dois euros e cinquenta e sete cêntimos).
7. O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
8. Finalizou a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:
1ª. O Recorrente alegou que o valor da causa foi fixado em €5.000,00 devido à falta de impugnação por parte do Réu, por significar que aceita o valor atribuído à causa de pedir.
2ª. Referiu entender que não está em causa a existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução daquele acto, mas tão só a sua ineficácia em relação ao Autor, sendo que a utilidade económica do pedido respeitará ao valor do património imobiliário da sociedade, que se cifra em €824.642,57.
3ª. Dispõe o artigo 296.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que “a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido”, competindo ao Juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes (cfr. disposto no artigo 306.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), o que veio a acontecer, por despacho datado de 16-09-2020.
4ª. Constata-se que o Ministério Público indicou, aquando da propositura da ação, o valor de €5.000,00, por considerar que, in casu, se discute a existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um acto jurídico, havendo de atender ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes (cfr. artigo 301.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e ainda cfr. resulta do exposto nos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-01-2016, processo n.º 64/15.2T8MLG-A.G1, e do Tribunal da Relação de Évora de 26-10-2017, processo n.º 523/17.2T8EVR-A.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt), entendimento que mantém.
5ª. O acto em questão – cuja declaração de ineficácia foi peticionada – respeita imediatamente à divisão e cessão de quotas, com o valor de €2.500,00 cada uma, num total de €5.000,00, o que não se confunde com o demais património imobiliário que se encontrava na esfera da sociedade.
6ª. Na presente ação ao credor cabe atacar o acto praticado, a fim de neutralizar os seus efeitos. Só após tal declaração de ineficácia do acto, com a restituição dos actos à esfera jurídica do devedor, é que o credor poderá, posteriormente, executar o património daquele ou praticar os actos necessários à sua conservação (cfr. resulta do artigo 616º, nº1, do Código Civil).
7ª. Por ora inexiste qualquer acto de execução, pelo que se desconhece qual a real utilidade económica do pedido para além do que efetivamente se peticionou.
8ª. Assim, a satisfação do crédito do Autor será posterior a ter alcançado a procedência da presente ação e daí que o valor da ação não deva ser o da utilidade económica abstrata do pedido formulado em função do crédito alegado, mas sim aquele que resulta do valor atribuído aos direitos constantes do acto impugnado (com o mesmo entendimento, a título de exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-01-2016, processo n.º 64/15.2T8MLG-A.G1, disponível em www.dgsi.pt)
9ª. Entendemos que o valor fixado pelo despacho recorrido, que se cifra em €5.000,00, é o correto e legalmente aplicável, sendo de manter o determinado, improcedendo a alegação do Recorrente, por não provada.
10ª. Nestes termos e nos demais de direito deve o recurso ser julgado improcedente, por não provado, mantendo-se a decisão nos seus exatos termos.
9. O Exmo. Senhor Juiz Desembargador Relator proferiu decisão singular sumária, com o seguinte teor:
“Como já resulta do relatório que antecede, o A. pede na ação que ‘seja declarada a ineficácia em relação à Fazenda Nacional do acto praticados pelo primeiro Réu em 22/05/2015, em sessão de assembleia extraordinária da sociedade ‘M. Dinis – Construções Unipessoal, L. dª’, com o capital social de €5.000,00, da qual era sócio único, e em que decidiu dividir a sua única quota em duas quotas, no valor nominal, cada uma, de €2.500,00, cedendo ambas essas quotas, a título gratuito, aos seus únicos filhos BB e CC, Réus na ação; e bem assim que seja declarada a ineficácia em relação à Fazenda Nacional do acto realizado no mesmo dia e pelos 2º e 3º Réus, pelo qual, já enquanto sócios únicos dessa dita sociedade, decidiram que a gerência da sociedade continuasse a ser exercida pelo 1º Réu, a quem foi dada a autorização, nessa qualidade de gerente, de transmitir ou vender quaisquer bens da sociedade, pelo preço e nas condições que entendesse ….’.
Pelo A. foi dado o valor à causa de €5.000,00, que é o valor nominal da quota única do 1º Réu e que este decidiu dividir em duas quotas de €2.500,00 cada, que cedeu aos filhos e também Réus na ação, representado ambas o montante total de capital social da sociedade em questão - €5.000,00.
E resulta do mesmo relatório que o Réu contestante nada referiu sobre o valor da ação.
É sabido que a toda a causa (cível) deve ser atribuído um valor certo, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido, valor esse a que se atende para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal – artº 296º, nºs 1 e 2 do nCPC.
E resulta do nº 1 do artº 297º do nCPC que ‘se pela ação se pretende obter qualquer quantia em dinheiro, é esse o valor da causa; mas se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício’, resultando também do nº 1 do artº 301º do nCPC que ‘quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um acto jurídico, atende-se ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes’.
Nos termos do artº 306º, nº 1, do nCPC compete ao juiz da causa fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes’, sendo certo que no caso o A. deu à causa o valor de €5.000,00 e o Réu contestante nada opôs nem referiu a tal propósito.
Ora, assim sendo e pretendendo-se na ação que ‘seja declarada a ineficácia em relação à Fazenda Nacional do acto praticados pelo primeiro Réu em 22/05/2015, em sessão de assembleia extraordinária da sociedade ‘M. Dinis– Construções Unipessoal, L. dª’, com o capital social de €5.000,00, da qual era sócio único, e em que decidiu dividir a sua única quota em duas quotas, no valor nominal, cada uma, de €2.500,00, cedendo ambas essas quotas, a título gratuito, aos seus únicos filhos BB e CC, Réus na ação; e bem assim que seja declarada a ineficácia em relação à Fazenda Nacional do acto realizado no mesmo dia e pelos 2º e 3º Réus, pelo qual, já enquanto sócios únicos dessa dita sociedade, decidiram que a gerência da sociedade continuasse a ser exercida pelo 1º Réu, a quem foi dada a autorização, nessa qualidade de gerente, de transmitir ou vender quaisquer bens da sociedade, pelo preço e nas condições que entendesse ....’, afigura-se ser manifesto que o valor da causa apenas pode ser o valor do acto jurídico cuja ineficácia se pretende que seja declarada, equivalente ao valor do capital social da sociedade em questão, acto esse a que pelas próprias partes foi atribuído o valor de €5.000,00, por até ser o valor do capital societário em questão, não se adivinhando, sequer, que outro valor poderia ser dado à causa.
Pelo que, com o devido respeito, nem se entende que só agora o Réu contestante se insurja relativamente a tal fixação, já que nada referiu ou questionou antes a este respeito.
E também não se afigura de relevar a tese apresentada pelo Recorrente de que na fixação do valor da causa deveria ter-se em conta o valor do património imobiliário de €824,624,57 alegado pelo A. como sendo o valor do património imobiliário da sociedade, quando até resulta do articulado de contestação apresentado que esse valor patrimonial se reporta ao património do contestante a nível pessoal e não como património da sociedade – pontos 17º e 20º da contestação.
Logo, nunca este referido valor poderia servir de ponto de partida ou de chegada para a fixação do valor da causa.
Como bem refere o Recorrido, nas suas contra-alegações recursivas, ‘... na presente causa discute-se a existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um acto jurídico, havendo de atender ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes; o acto em questão, cuja declaração de ineficácia foi peticionado, respeita imediatamente à divisão e cessão de quotas, com o valor de €2.500,00 cada uma, num total de €5.000.00, o que não se confunde com o demais património imobiliário que se encontra na esfera da sociedade... Desta feita, não se sabe, ainda, qual a real utilidade económica do pedido para além do que efetivamente se peticionou, e esse pedido reporta-se à mera declaração de ineficácia em relação à Fazenda Nacional do acto de divisão e cessão de quotas avaliadas ambas em €5.000,00’.
Concluindo, afigura-se-nos que bem andou o Tribunal recorrido ao fixar o valor da presente ação em €5.000,00, nos termos supra expostos, nada havendo a criticar nessa fixação, que, por isso, se decide manter, improcedendo o presente recurso, o que se decide”.
10. Inconformado, o Réu, agora Recorrente, AA veio requerer que sobre o objecto do recurso fosse proferido acórdão.
11. O Tribunal da Relação da ...... confirmou a decisão singular proferida.
12. Inconformado, o Réu, agora Recorrente, AA interpôs recurso de revista.
13. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1- Entende o Acórdão recorrido que o valor da causa, é o valor do acto, por estar em causa a existência, validade ou cumprimento ou resolução do contrato, tudo nos termos do disposto no artº 301 do C.P.C
2 – Mas no caso não está em causa a validade do acto – contrato de cessão de quotas – mas a sua ineficácia em relação ao A. de, forma a que o mesmo tenha possibilidade de se ressarcir de um hipotético imposto em dívida por parte do Réu de € 2.637.622,75.
3 – Não é assim aplicável ao caso, a 1ª parte do disposto no artº 301 do C.P.C, mas sim a 2ª parte do mesmo diploma legal, ao determinar que o valor da causa é o equivalente pecuniário correspondente à utilidade (benefício) visado.
4 – E ao não ter seguido esta regra, o Acórdão recorrido, está em manifesta contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01-02-2006, ao expressamente defender a aplicação daquele normativo ( artº 297 nº 1 2º parte ) no sentido de que o valor da causa é aferido pelo equivalente valor pecuniário correspondente à utilidade ( beneficio/ visada ) pelo que na causa de pedir de um processo, a mesma não abstrai do critério de utilidade imediata do pedido, pelo que este, nunca é considerado abstractamente .
5 – Face à contradição evidente, e à manifesta violação da lei processual ( artº 674 nº 1 alínea c) do C.P.C , e artº 297 do C.P.C ), deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene a avaliação das quotas cedidas, e nessa medida determine o valor da causa do presente processo, e assim em consequência a utilidade económica do pedido da presente causa deduzida, pelo A. recorrido.
6 – O aliás douto acórdão violou além do mais o disposto no artº 610 do C.C e 297 nº 1 do C.C
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o aliás douto acórdão e mandando-se substituir por outro, que mande prosseguir os autos, ordenando-se a avaliação das quotas cedidas pelo Réu, e assim se determinando o valor da causa e a utilidade económica do pedido por parte do A. , ao fazer decretar a ineficácia do acto impugnado, tudo com as legais consequências.
14. O Recorrido Ministério Público contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
15. Finalizou a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:
1.ª - Na presente ação de impugnação pretende-se que seja declarada a ineficácia em relação à Fazenda Nacional do acto praticado pelo primeiro Réu em 22/05/2015, em sessão de assembleia extraordinária da sociedade M. Dinis – Construções Unipessoal, Ld.ª, com o capital social de € 5.000,00, da qual era sócio único, e em que decidiu dividir a sua única quota em duas quotas, no valor nominal, cada uma, de €2.500,00, cedendo-as, a título gratuito, aos seus únicos filhos BB e CC, Réus na ação e bem assim que seja declarada a ineficácia em relação à Fazenda Nacional do acto realizado no mesmo dia e pelos 2º e 3º Réus, pelo qual, já enquanto sócios únicos daquela sociedade, decidiram que a gerência da mesma continuasse a ser exercida pelo 1º Réu, a quem foi dada a autorização, nessa qualidade de gerente, de transmitir ou vender quaisquer bens da sociedade, pelo preço e nas condições que entendesse.
2.ª - Afigura-se, assim, ser manifesto que o valor da causa apenas pode ser o valor do acto jurídico cuja ineficácia se pretende que seja declarada, equivalente ao valor do capital social da sociedade em questão, acto esse a que pelas próprias partes foi atribuído o valor de € 5.000,00, por até ser o valor do capital societário em questão, não se adivinhando, sequer, que outro valor poderia ser dado à causa.
3.ª – É que na impugnação pauliana o critério de fixação do valor da causa deverá ser o estatuído no artigo 301.º, n.º 1, do C.P.C., de acordo como qual, quando a acção tiver por objecto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um acto jurídico, atende-se ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.
4.ª - Com efeito, o objecto imediato das acções de impugnação pauliana consiste na apreciação em concreto de um acto jurídico, com vista à sua declaração de ineficácia em relação ao autor. Nessas acções não se pretende obter qualquer quantia em dinheiro, nem os pedidos nela deduzidos se reportam ao crédito que o autor necessariamente alega possuir. O tribunal não se pronuncia sobre o crédito alegado pelo autor, nem os pedidos deduzidos a ele se reportam.
5.ª Termos em que, a nosso ver e no respeito por opinião diversa, serão de improceder as conclusões do douto recurso de RevistaExcecional, mantendo-se, em consequência, o douto acórdão recorrido, com o que se fará a habitual justiça!
16. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), a questão a decidir, in casu, é a seguinte — se o art. 301.º, n.º 1, do Código de Processo Civil deve aplicar-se à acção que tenha por objecto a impugnação pauliana de um acto de cessão e divisão de uma quota de uma sociedade comercial.
II. — FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
17. Os factos relevantes para a decisão constam do precedente relatório.
O DIREITO
18. A questão da admissibilidade do recurso é uma questão prévia.
19. Embora o Réu, agora Recorrente, AA tenha interposto recurso de revista excepcional, invocando o art. 672.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, o recurso de revista excepcional pressupõe o preenchimento dos requisitos gerais de admissibilidade do recurso de revista, designadamente dos requisitos relacionados com o conteúdo da decisão recorrida — art. 671.º, n.º 1 —, com a alçada e com a sucumbência — art. 629.º, n.º 1 —, com a legitimidade dos recorrentes — art. 631.º — e com a tempestividade do recurso — art. 638.º do Código de Processo Civil [1].
20. Ora não estão preenchidos os requisitos gerais de admissibilidade do recurso de revista relacionados com o conteúdo da decisão recorrida — dado que a decisão impugnada é uma decisão interlocutória — ou com a alçada e a sucumbência — dado que a decisão impugnada fixou o valor da causa em 5 000 euros.
21. O recurso preenche em todo o caso a previsão do art. 629.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil — “Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre”.
22. O art. 629.º, n.º 2, alínea b), do actual Código de Processo Civil corresponde em substância ao § único do art. 678.º do Código de Processo Civil de 1939 [2] — e, em relação ao § único do art. 678.º do Código de Processo Civil de 1939, dizia-se que se admite sempre recurso até ao Supremo e que, “desde que se admite sempre recurso até ao Supremo, tanto importa que o recurso seja fundado em que o valor excede a alçada da Relação, como em que excede unicamente a alçada do tribunal de comarca” [3].
23. Esclarecida a questão prévia da admissibilidade, deve entrar-se na questão principal — se o art. 301.º, n.º 1, do Código de Processo Civil deve aplicar-se à acção que tenha por objecto a impugnação pauliana de um acto de cessão e divisão de uma quota de uma sociedade comercial.
24. O Réu, agora Recorrente, AA alega que não — que o valor da causa deve corresponder à utilidade económica imediata do pedido e que a utilidade económica imediata do pedido corresponde ao valor do património da sociuedade de cuja quota se dispõe.
25. Invoca em seu favor o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 1 de Fevereiro de 2006, proferido no processo n.º 2513/05-1.
26. O art. 301.º do Código de Processo Civil é do seguinte teor:
1. — Quando a acção tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um acto jurídico, atende-se ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.
2. — Se não houver preço nem valor estipulado, o valor do acto determina-se em harmonia com as regras gerais.
3. — Se a acção tiver por objecto a anulação do contrato fundada na simulação do preço, o valor da causa é o maior dos dois valores em discussão entre as partes [4].
27. O critério do art. 301.º deve aplicar-se, por interpretação extensiva ou por extensão teleológica, a todas as acções em que se discuta a existência, a validade e a eficácia de um acto jurídico — logo, deve aplicar-se às acções por que se pretende que seja apreciada a caducidade, a denúncia ou a revogação de um contrato, a execução específica de um contrato-promessa ou de um pacto de preferência, ou a impugnação pauliana [5].
28. O ponto é consensual ou quase-consensual — e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 1 de Fevereiro de 2006, invocado pelo Recorrente, é de todo em todo irrelevante para o caso concreto, por não se pronunciar sobre uma acção de impugnação pauliana e, por isso, por não pôr em causa que às acções de impugnação pauliana deva aplicar-se o critério do valor do acto jurídico.
III. — DECISÃO
Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.
Custas pelo Recorrente AA.
Lisboa, 6 de Maio de 2021
Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)
José Maria Ferreira Lopes
Manuel Pires Capelo
Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos Exmos. Senhores Conselheiros José Maria Ferreira Lopes e Manuel Pires Capelo.
________
[1] Cf. designadamente os acórdãos do STJ de 22 de Fevereiro de 2018 — processo n.º 2219/13.5T2SVR.P1.S1 — e de 26 de Novembro de 2019 — processo n.º 1320/17.0T8CBR.C1-A.S1.
[2] Cujo teor era o seguinte: “Do despacho que fixar à causa, aos incidentes ou aos processos preventivos e conservatórios valor compreendido na alçada do tribunal de comarca ou da Relação cabe recurso com o fundamento de que o valor excede a alçada”.
[3] Cf. José Alberto dos Reis, anotação ao art. 678.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. V — Artigos 658.º a 720.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1984 (reimpressão), págs. 220-248 (244).
[4] Sobre a interpretação do art. 301.º do Código de Processo Civil, vide por todos José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 301.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 361.º, 4.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 608-609, ou António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao art. 301.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 349-350.
[5] Cf. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 301.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 361.º, cit., pág. 609, ou António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao art. 301.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), cit., pág. 350.