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CARTA DE CONDUÇÃO
VALIDADE
Sumário
1 - A perfeita sintonia das situações previstas nos nºs 3 e 4 do artº 125º do Código da Estrada – já que ambas se reportam ao mesmo quadro, ou seja, a existência de uma licença de condução emitida por um estado estrangeiro que Portugal reconhece como válida – e a inexistência de qualquer motivo para as diferenciar no que toca à sanção para o não cumprimento da exigência legal de trocar tais títulos por licenças nacionais, desde logo, por essa hipotética diferenciação consubstanciar uma flagrante violação do princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado – já que se estaria a tratar, de modo diverso, cidadãos nas mesmas circunstâncias, apenas por serem, ou não residentes em Portugal – torna inevitável a conclusão que a redacção do nº 8 do referido artº 125 do Código da Estrada (na versão do D.L. 151/2017 de 7/12, em vigor à data dos factos) traduz-se, no fundo, num lapso material, na medida em que não há qualquer motivo para que aí não se inclua, também, o seu nº4.
2 - Talvez em consequência destas reflexões, é que a última redacção do nº8 do Artº 125 do C. da Estrada, introduzida pelo D.L. 102-B/20, de 09/12 – que manteve, na sua quase integralidade, todo o restante corpo do artigo – veio precisamente consagrar que “Quem infringir o disposto nos nºs 3 a 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.”
3 - Uma coisa, é o arguido não ter procedido à substituição da carta de condução por título português, como o exigia os nº3 e 4 do Artº 125 do C. da Estrada. Outra, é a consequência para essa omissão e esta, nos termos do nº8 dessa norma, será a da contraordenação ou a do crime, consoante a licença de condução original esteja, ou não, válida à data dos factos.
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
1. RELATÓRIO
A – Decisão Recorrida
No processo abreviado e com intervenção de tribunal singular nº 249/20.0PAVRS, do Tribunal da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Vila Real de Santo António, Juiz 1, foi o arguido (...), condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p.p., pelo Artº 3 nsº1 e 2 do D.L. 2/98 de 03/01, na pena de 1 (um) ano de prisão suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, com regime de prova.
B – Recurso
Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, alegando, em síntese, (consignando-se que não se procede à transcrição das suas conclusões, por as mesmas não terem sido enviadas, informaticamente, a este tribunal), o erro de julgamento em relação ao Artº2 da factualidade apurada, o que resultou de uma incorrecta interpretação e aplicação do Artº 125 do Código da Estrada, de onde não pode resultar que o arguido cometeu o crime pelo qual foi condenado, sendo certo que, ainda que assim não se entenda, deve a pena de prisão que lhe foi aplicada ser substituída por pena de multa, a fixar em dias e valor diário, pelos mínimos legais, atentas as suas condições pessoais.
C – Resposta ao Recurso
O MP, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, apresentado as seguintes conclusões (transcrição):
1.ª – O arguido impugna a douta sentença que o condenou, entre o mais, na pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução pelo período de 5 anos subordinada a regime de prova, pela autoria de um crime de Condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro; 2.ª – Impugna a matéria de facto dada como provada pelo douto Tribunal «a quo» e daí retira a consequência da sua absolvição criminal; 3.ª – Fá-lo através do recurso à impugnação da matéria factual prevista no art.º 410.º do Código de Processo Civil, pela invocação dos vícios contemplados no n.º 2, als. a), b) e c) desse normativo; 4.ª – Concretizando, o Recorrente pretende que o Tribunal «a quo» errou no apuramento dos factos indispensáveis para que pudesse condenar o arguido pelo crime de condução sem habilitação legal; e errou na apreciação e valoração da prova que o conduziu a uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;
E, impugna os factos dados como provados no ponto 2- da matéria factual provada, os quais, alega, que deveriam ser remetidos para o elenco dos factos não provados; 5.ª – Parece, contudo, que a decisão recorrida não padece de erros de julgamento ou de algum dos vícios previstos no n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal e, apurou e valorou correctamente a prova produzida, sem hiatos em matéria de produção de prova que seja preciso preencher; 6.ª – O Recorrente não discute que o art.º 125.º do Código da Estrada pressupõe a existência de um título de condução válido emitido por Estado estrangeiro nos termos do disposto no n.º 1, al. d) do aludido preceito legal para que seja susceptível de ser trocado por carta de condução nacional.
A validade do título de condução estrangeiro é, assim, indiscutível em face da interpretação conjugada com o art.º 138.º do Código da Estrada.
Veja-se, a este propósito, o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20-10-2020, publicado na web no site da DGSI, proferido no Processo n.º 872/18.2SILSB.L1-5; 7.ª – Em concreto, invoca o Recorrente que o art.º 125.º do Código da Estrada não comina a invalidade do título de condução estrangeiro como consequência da falta da sua troca por carta de condução nacional; e que o tribunal «a quo» fez uma errada interpretação e aplicação da norma jurídica aplicável (artigo 125º do Código da Estrada, nº 4) e fez uma incorrecta interpretação e apreciação da prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, considerando como provada matéria de facto que não o devia ter sido e considerando inexistirem factos não provados.
Alega ainda, que:
- “(…) No ponto 2 dos factos provados, o Tribunal a quo considerou provado que o arguido não era titular de licença de condução válida [referia-se ao dia 08-08-2020, data da prática dos factos] e no ponto 10 dos factos provados, foi considerado que, em data anterior a Maio de 2004, o Arguido obteve licença de condução de veículos automóveis, licença essa com o nº. (…) e emitida pela República de Angola”.
- (…)Nenhuma prova foi feita de que esta licença de condução emitida pela República de Angola não permanecesse válida à data dos factos, pelo que não poderia tal facto dar-se como provado, devendo, pelo contrário, constar da factualidade não provada não ter sido provado que o arguido não era titular de licença de condução válida”.
- (…) Sendo o título de licença de condução emitido pela República de Angola reconhecido como válido, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 125º do Código da Estrada, deveria o mesmo, em algum momento, ter sido trocado por título português.
- (…) Não o tendo sido, entendeu o Mmo Juiz a quo que o arguido não detinha título de condução válido, pelo que conduzia sem habilitação legal.
- (…) Não se pode concordar com o decidido, atenta, por um lado, a falta de estatuição clara e precisa sobre a validade destes títulos decorrido sejam os prazos mencionados, e, por outro, atenta a previsão do nº 8 do artigo 125º, que trata parte destas situações como contraordenação, punindo-as com coima;
- (…)Sendo dado como provado que o Arguido obteve, em data anterior a Maio de 2004, licença de condução de veículos automóveis, com o nº. (…) e emitida pela República de Angola, não se tendo feito qualquer prova de que tal licença já não se encontre válida face ao ordenamento do Estado emissor, e não se podendo concluir que a ausência de troca do título por carta de condução nacional implica a invalidade por si só deste título, não pode, por um lado, dar-se como provado que o arguido não era titular de licença de condução válida, e, por outro, deve incluir-se nos factos não provados que não se provou que o arguido não fosse titular de licença de condução válida.
- “(…) a correcta interpretação e aplicação do artigo 125º do Código da Estrada em especial o seu nº 4, conjugado certamente com a alínea d) do nº 1, e confrontado com os nºs 3, 5 e 8, e consequente apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, impunha decisão diversa relativamente à factualidade considerada como provada e como não provada, bem como à respectiva motivação”. [s/m) 8.ª – Porém, o Tribunal «a quo» explicou as razões que o conduziram à decisão de condenar o arguido as quais, em nenhum momento foram invalidadas pelo Recorrente que contra as mesmas não apresentou nenhum juízo que as fragilizasse na sua racionalidade, objectividade e ponderação.
Ou seja, o Recorrente limita-se a afirmar que não concorda com a interpretação que o Tribunal «a quo» fez dos factos conhecidos em julgamento, mas não explicita a razão do seu desacordo: não discorre sobre qual deveria ser o raciocínio que, em face dos factos conhecidos, o Tribunal «a quo» deveria ter feito para chegar à conclusão contrária à que chegou no ponto 2. da matéria de facto provada; 9.ª – Em síntese, são os seguintes os raciocínios em que o Tribunal «a quo» fundamentou a sua convicção:
- «(…) Não temos dúvidas, e por isso tal facto foi dado como provado, que o arguido foi titular de licença de condução emitida pela República de Angola e que essa mesma licença foi exibida, “in illo tempore”, perante os Tribunais nacionais – veja-se cópia da sentença junta aos autos pelo arguido. A questão, a grande questão, é saber se a licença de condução emitida pela República de Angola e de que o arguido era titular, consubstancia, face à lei portuguesa, licença de condução válida. Ou seja, o domínio de dilucidação da matéria de facto passa a ser, não a existência de licença de condução de que o arguido era titular, nos termos referidos, mas sim a validade, face ao ordenamento nacional, dessa mesma licença.
(…) Apenas nos interessa agora, partindo do principio que o arguido era efectivamente titular de licença de condução emitida pela República de Angola, saber se tal licença pode ser havida, em Agosto de 2020, como válida face ao ordenamento jurídico nacional – se concluirmos afirmativamente, então não haverá crime e, quando muito, a prática de contraordenação.
(…) No caso dos autos, o arguido reside há longos anos em território nacional. Pelo que, assim sendo, estava obrigado, pela aplicação conjugada dos artºs. 125º e 128º do Código da Estrada, a proceder à troca do seu título emitido pela República de Angola e no prazo de 90 dias após a entrada em vigor da Lei 72/2013, dado que, nessa data, era já residente no nosso país. Não o tendo feito, como não o fez, então a licença de condução emitida pela República de Angola não é, certamente, válida em Agosto de 2020 no território nacional. Mesmo dando de barato que o arguido de facto perdeu o documento que corporiza a licença de condução emitida pela República de Angola, o facto é que, pelo menos em 2013, tinha que saber que, sendo residente no nosso país e face à alteração legislativa nesta matéria, a partir de certo momento não dispunha de título ou licença válida para conduzir em Portugal – muito menos em Agosto de 2020. E o que é verdadeiramente incompreensível é que o arguido não apresente um único documento que ateste que durante todos estes anos, seja junto de entidades angolanas, seja junto de entidades nacionais, se preocupou em resolver a situação no sentido de passar a ser titular, em Portugal (país de residência), de licença de condução. Ora, posto isto, se entendem os factos dados como provados, designadamente no que tange à circunstância da validade, ou não, de licença de condução emitida pela República de Angola no nosso ordenamento jurídico». [s/m] 10.ª – O Tribunal «a quo» expôs na sentença em crise, com clareza e sem saltos no raciocínio lógico que o invalide, os fundamentos da convicção que formulou sobre o facto que deu como provado no n.º 2 da matéria de facto provada: a falta de validade, à data da prática dos factos em julgamento (08-08-2020) da carta de condução de que o arguido tivesse sido titular emitida em data anterior a Maio de 2004 pela República de Angola – facto provado n.º 10.
O Recorrente discorda, mas limita-se a proclamar a falta de prova, que neste caso, se deixa subentendido que tem de ser prova documental; 11.ª – Porém, uma vez que não foi apresentada em julgamento nenhuma carta de condução e a convicção do Tribunal «a quo» na respectiva existência residiu na ponderação das declarações do arguido conjugadas com a exibição da fotocópia de uma sentença que o absolveu da prática do crime de condução sem habilitação legal, a qual faz referência ao número da carta de condução, não se compreende por razão pela qual o Recorrente já não aceita que o mesmo Tribunal também raciocinou com igual nível de ponderação e lucidez, apoiado nas regras da experiência comum e da normalidade do devir do acontecer, quando concluiu que tendo o arguido extraviado a carta de condução pelo menos desde Maio de 2005 – já que tem sucessivas condenações pela prática do crime de condução sem habilitação legal entre Maio de 2025 e Setembro de 2011 – não tivesse sequer apresentado a prova documental de uma única tentativa de regularização da sua situação de encartado no Estado angolano para prova dessa titularidade em Portugal; 12.ª – Por outro lado, a única prova documental exibida pelo arguido em termos da sua concreta actuação em matéria de habilitação para o exercício da condução reporta-se, precisamente, à sua inscrição numa escola de condução portuguesa, deixando assim a convicção de que, do seu ponto de vista, na data da sua inscrição (em 2018) a anterior carta de condução já não tinha validade para que ele assumisse outro comportamento que não fosse o de tentar obter a carta de condução portuguesa pela via da regular formação para o efeito; 13.ª – Note-se ainda que, tal como refere o Tribunal «a quo» na fundamentação do facto dado como provado no ponto 2. da matéria de facto provada, impressiona que o arguido tenha exibido em Tribunal uma inscrição em escola de condução portuguesa mas não tenha exibido um único documento em como tentou obter uma segunda via da carta de condução angolana junto das entidades angolanas competentes ou, em que invoque perante o IMT – Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I.P. a titularidade de um título de condução angolano válido a que não consegue aceder por extravio do original e por falta de resposta das autoridades angolanas às suas solicitações, como questão prévia do pedido de troca desse título por carta de condução portuguesa – tanto mais que, ao longo de anos e levando apenas em conta o crime da mesma natureza da deste processo, o Recorrente sofreu oito condenações por condução sem habilitação legal; 14.ª – Assim, afigura-se que a douta decisão recorrida não enferma de qualquer vício pelo que deve ser totalmente confirmada, negando-se provimento ao recurso.
D – Tramitação subsequente
Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-geral Adjunto,que pugnou pela improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
A – Objecto do recurso
De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar do recorrente delimitar, com as conclusões que extrai das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este, contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal. In casu, não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada (Artº 410 nº3 do CPP).
O objecto do recurso cinge-se às conclusões do recorrente, das quais se pode extrair o erro de julgamento do tribunal recorrido em relação ao Artº 2 da factualidade provada, o que resultou de uma incorrecta interpretação e aplicação do Artº 125 do Código da Estrada e ainda, se assim não se entender, a aplicação de uma pena de multa, pelos valores mínimos, ao invés da pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução, que lhe foi determinada pela 1ª instância.
B – Apreciação
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida.
Aí, foi dado como provado e não provado, o seguinte (transcrição):
Factos Provados
1 - Em 08/08/2020, pelas 6,30 horas, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula (…), marca “Citroen”, modelo “C5”, pela Avenida Engenheiro (…), em (…).
2 - O arguido não era titular de licença de condução válida.
3 - O arguido sabia que para conduzir aquele veículo na via pública necessitava de estar habilitado com licença de condução valida.
4 - Agiu deliberada, livre e conscientemente.
5 - Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou que
6 - Em 2018 o arguido esteve inscrito em escola de condução, tendo a dita licença caducado, entretanto.
7 - O arguido está desempregado há mais de 1 ano.
8 - Tem um filho com 16 anos.
9 - Vive de ajudas de familiares e amigos.
10- O arguido obteve, em data anterior a Maio de 2004, licença de condução de veículos automóveis, licença essa com o nº. (…) e emitida pela República de Angola.
11- Vive definitivamente em Portugal desde, pelo menos, 2003.
12- O arguido já foi condenado, por sentença transitada em julgado em 26/11/2002, pela prática em 24/09/2001, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº. 21º do DL 15/93, de 22/01, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos.
13- O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 04/05/2005, pela prática, em 08/04/2005, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº. 3º, nº.2, do DL 2/98, de 03/01, na pena de 90 dias de multa.
14- O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 19/12/2006, pela prática, em 25/11/2006, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº. 3º, nº.2, do DL 2/98, de 03/01, na pena de 120 dias de multa.
15- O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 17/09/2008, pela prática, em 25/05/2004, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº. 3º, nº.2, do DL 2/98, de 03/01, e em 26/05/2004, de um crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artº. 261º do CP, na pena única de 220 dias de multa.
16- O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 12/04/2007, pela prática, em 11/02/2006, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº. 3º, nº.2, do DL 2/98, de 03/01, na pena de 100 dias de multa.
17- O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 04/04/2007, pela prática, em 29/07/2005, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº. 3º, nº.2, do DL 2/98, de 03/01, e em 29/07/2005, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artº. 348º do CP, na pena única de 130 dias de multa.
18- O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 28/03/2008, pela prática, em 05/02/2008, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº. 3º, nº.2, do DL 2/98, de 03/01, na pena de 5 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de 1 ano.
19- O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 24/11/2008, pela prática, em 01/02/2008, de um crime de coacção, sob a forma tentada, p. e p. pelos artºs. 154º, 22º e 23º, todos do CP, na pena de 6 meses de prisão, substituída por180 dias de multa.
20- O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 30/03/2009, pela prática, em 10/12/2007, de um crime de furto simples, p. e p. pelo artº. 203º do CP, na pena de 140 dias de multa.
21- O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 20/04/2009, pela prática, em 09/11/2008, de um crime de resistência e coacção, p. e p. pelo artº. 347º do CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e na condição de entrega de quantia certa.
22- O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 12/07/20010, pela prática, em 15/09/2008, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº. 3º, nº.2, do DL 2/98, de 03/01, em 09/11/2008, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº. 3º, nº.2, do DL 2/98, de 03/01, e em 22/02/2008, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artº. 143º do CP, na pena única de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano.
23- O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 07/07/2010, pela prática, em 05/01/2009, de um crime de coacção, p. e p. pelo artº. 154º do CP, na pena de 11 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano.
24- O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 21/09/2011, pela prática, em 14/03/2010, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº. 3º, nº.2, do DL 2/98, de 03/01, na pena de 1 ano de prisão.
25- O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 16/05/2011, pela prática, no ano de 2010, de 4 crimes de roubo, p. e p. pelo artº. 210º do CP e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº. 86º, nº.1, al.c), da Lei 5/2006, de 23/01, na pena única de 5 anos de prisão.
Factos não Provados
Inexistem.
Fixada a matéria factual, apreciemos da bondade do recurso.
B.1. Erro de julgamento
Impugna o recorrente a factualidade dada como provada no Artº 2, quando considerou que, à data dos factos, não era titular de licença de condução válida, matéria que, em seu entender, foi julgada incorrectamente pelo tribunal recorrido, o que resultou de uma errada interpretação e aplicação do Artº 125 do Código da Estrada, sendo certo que nenhuma prova foi feita para que se possa dar como assente que, naquela data, a licença que o arguido obteve antes de Maio de 2004 e emitida pela República de Angola, não permanecesse válida.
Pelo tribunal recorrido, foi assim justificada a motivação da decisão de facto (transcrição):
Motivação
O arguido, em sede de declarações, admitiu que, na altura da fiscalização por entidade policial, na data referida na acusação, não era portador de documento corporizador de licença de condução – razão pela qual, em função destas declarações, se tornou absolutamente despiciendo produzir prova testemunhal. Porém, o arguido declarou que sempre teve licença de condução emitida pela República de Angola, seu país natal, e que, tendo vindo viver para Portugal há já longos anos, extraviou essa mesma licença e nunca conseguiu obter, junto das entidades oficiais de Angola, uma outra via dessa mesma licença. Disse, ainda, que esteve inscrito, em 2018, numa escola de condução com o intuito de resolver, de uma vez por todas, o problema da licença – exibindo o documento de inscrição em escola de condução.
Não temos dúvidas, e por isso tal facto foi dado como provado, que o arguido foi titular de licença de condução emitida pela República de Angola e que essa mesma licença foi exibida, “in illo tempore”, perante os Tribunais nacionais – veja-se cópia da sentença junta aos autos pelo arguido.
A questão, a grande questão, é saber se a licença de condução emitida pela República de Angola e de que o arguido era titular, consubstancia, face à lei portuguesa, licença de condução válida. Ou seja, o domínio de dilucidação da matéria de facto passa a ser, não a existência de licença de condução de que o arguido era titular, nos termos referidos, mas sim a validade, face ao ordenamento nacional, dessa mesma licença.
Recordemos que a imputação do crime passa pelo artº. 3º do DL 2/98, de 03/01, em conjugação com o disposto nos artºs. 121º e ss. do Cód. da Estrada, pelo que a questão da licença e da sua validade passa pelo escrutínio destas normas estadais.
Não vamos discutir nem tomar posição sobre o teor da cópia da sentença junta aos autos pelo arguido. Apenas nos interessa agora, partindo do princípio que o arguido era efectivamente titular de licença de condução emitida pela República de Angola, saber se tal licença pode ser havida, em Agosto de 2020, como válida face ao ordenamento jurídico nacional – se concluirmos afirmativamente, então não haverá crime e, quando muito, a prática de contraordenação.
Tratando-se de licença emitida no estrangeiro e por país estrangeiro, a validade deste tipo de licenças joga-se sempre em torno de Tratados ou Acordos, sejam eles multilaterais ou bilaterais.
No respeitante à validade das licenças emitidas por Portugal em Angola e vice-versa, foi amplamente discutido, durante a primeira metade da primeira década deste século, a questão da reciprocidade das licenças de condução entre os dois países. Transitoriedades de normas à parte, a questão acabou por ficar definitivamente resolvida através da celebração, entre os dois países, do Acordo entre Portugal e Angola para o Reconhecimento Mutuo de Títulos de de Condução, Acordo esse aprovado pelo Decreto nº. 48/2008 de 17/10/2008 (in DR nº. 202/2008, série 1), sendo que o Aviso 4/2012, de 13/03 publicitou o termo do cumprimento das formalidades constitucionais internas de aprovação do dito Acordo. Ora, nos termos do dito Acordo (válido por tempo ilimitado, sem prejuízo da denúncia prevista – cfr. artº. 13º), designadamente o seu artº. 2º, reconheceu-se reciprocamente a validade de licenças de condução por 185 dias após a entrada em território da outra Parte e que decorridos esses 185 dias deveria ser requerida a troca do título.
A Lei 72/2013, de 03/09, veio permitir que esta realidade ficasse vertida na lei interna, designadamente alterando o artº. 125º do Código da Estrada. E a redacção dada ao artº. 125º, por este diploma, veio estabelecer que são títulos de condução válidos aqueles que se incluam na al. d) do nº.1, e, no tocante a tais títulos, serão válidos durante 185 dias após entrada em território nacional, caso não sejam residentes, ou serão válidos durante 90 dias, caso sejam residentes. Expirada qualquer um dos prazos expira igualmente a validade do título estrangeiro, exigindo-se, então, que se verifique a troca de título estrangeiro por título nacional.
No caso dos autos, o arguido reside há longos anos em território nacional. Pelo que, assim sendo, estava obrigado, pela aplicação conjugada dos artºs. 125º e 128º do Código da Estrada, a proceder à troca do seu título emitido pela República de Angola e no prazo de 90 dias após a entrada em vigor da Lei 72/2013, dado que, nessa data, era já residente no nosso país. Não o tendo feito, como não o fez, então a licença de condução emitida pela República de Angola não é, certamente, válida em Agosto de 2020 no território nacional. Mesmo dando de barato que o arguido de facto perdeu o documento que corporiza a licença de condução emitida pela República de Angola, o facto é que, pelo menos em 2013, tinha que saber que, sendo residente no nosso país e face à alteração legislativa nesta matéria, a partir de certo momento não dispunha de título ou licença válida para conduzir em Portugal – muito menos em Agosto de 2020. E o que é verdadeiramente incompreensível é que o arguido não apresente um único documento que ateste que durante todos estes anos, seja junto de entidades angolanas, seja junto de entidades nacionais, se preocupou em resolver a situação no sentido de passar a ser titular, em Portugal (país de residência), de licença de condução.
Ora, posto isto, se entendem os factos dados como provados, designadamente no que tange à circunstância da validade, ou não, de licença de condução emitida pela República de Angola no nosso ordenamento jurídico.
No mais, o tribunal atendeu às declarações do arguido no que tange às suas condições pessoais e económicas.
Foi tido em conta o teor do CRC junto aos autos.
A questão em causa nos autos, eminentemente jurídica, dirime-se, no fundo, em saber se por aplicação do Artº 125 do Código da Estrada à factualidade apurada se pode concluir que o arguido cometeu o crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, como vinha acusado.
Nos termos do Artº 3 do D.L. 2/98 de 03/01, comete o crime de condução sem habilitação legal, quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada, sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada, de onde resulta, de forma, crê-se, que inequívoca, que os elementos objectivos do tipo de crime, ou seja, a definição da ausência de habilitação para a actividade de condução será sempre definida pelo Código da Estrada e não, por qualquer diploma complementar, designadamente, o Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (RHLC), que mais não faz do que definir os procedimentos administrativos com vista à obtenção, renovação ou substituição da carta de condução.
Dispõe o nº1 do Artº121 do Código da Estrada que “só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito”, sendo que o documento que titula a habilitação para conduzir automóveis e motociclos é a carta de condução, a qual é emitida pela entidade competente e válida para as categorias de veículos e períodos de tempo nela averbados
São ainda títulos legais que habilitam a condução de veículos a motor os identificados no Artº 125 do Código da Estrada.
Dizia esta norma, na redacção introduzida pelo D.L. 151/2017 de 07/12 e em vigor à data da prática dos factos, datados de 08/08/20:
“1 - Além dos títulos referidos nos n.os 4 e 5 do artigo 121.º são ainda títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os seguintes:
a) Títulos de condução emitidos pelos serviços competentes pela administração portuguesa do território de Macau
b) Títulos de condução emitidas por outros Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu
c) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária:
d) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro, desde que este reconheça idêntica validade aos títulos nacionais:
e) Licenças internacionais de condução, desde que apresentadas com o título nacional que as suporta;
f) Revogada
g) Licenças especiais de condução;
h) Autorizações especiais de condução;
i) Autorizações temporárias de condução;
2 - A emissão das licenças e das autorizações especiais de condução bem como as condições em que os títulos estrangeiros habilitam a conduzir em território nacional são fixadas no RHLC.
3 - Os titulares das licenças referidas nas alíneas c), d) e e) do n.º 1 estão autorizados a conduzir veículos a motor, em Portugal durante os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada no País, desde que não sejam residentes.
4 - Após fixação da residência em Portugal, o titular das licenças referidas no número anterior deve proceder à troca do título de condução, no prazo de 90 dias.
5 - Os títulos referidos no n.º 1 só permitem conduzir em território nacional se os seus titulares tiverem a idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respetiva habilitação.
6 – Revogado
7 – Revogado
8 - Quem infringir o disposto nos n.os 3 e 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.”.
Da leitura deste normativo não resulta, com o devido respeito, a interpretação acolhida pelo tribunal recorrido, no sentido de ao não ter procedido à troca nos 90 dias subsequentes à fixação da sua residência em Portugal, da sua carta de condução angolana por um título português, o arguido tenha incorrido na prática do crime pelo qual veio a ser condenado.
Na situação dos autos, está provado que o arguido, em data anterior a Maio de 2004, obteve a licença de condução de veículos automóveis, com o nº (…), emitida pela República de Angola.
Ora, atenta a celebração, entre os dois países do Acordo para o Reconhecimento Mútuo de Títulos de Condução, aprovado pelo Decreto nº. 48/2008 de 17/10/2008 (in DR nº. 202/2008, série 1), válido por tempo ilimitado, reconheceu-se reciprocamente a validade de licenças de condução.
Esta realidade enquadra-se, assim, na previsão normativa da al. d) do Artº 125 do C. da Estrada, sendo que nos termos dos nsº3 e 4 da aludida norma, os titulares das licenças em causa estão autorizados a conduzir veículos a motor em Portugal, durante os primeiros 90 ou 185 dias subsequentes à sua entrada no nosso país, caso sejam, ou não, aqui residentes.
Até ao momento, não se suscitam quaisquer dúvidas interpretativas na aplicação da norma.
O problema coloca-se no passo seguinte, ou seja, o de saber qual é a sanção para alguém que sendo titular de uma licença de condução, admitida como válida pela lei portuguesa nos termos da al. d) do nº1 do Artº 125 do C. da Estrada, não tenha procedido à respectiva troca por título português, nos prazos estabelecidos nos nsº3 e 4 daquele comando legal.
A verdade é que do normativo em causa, estranhamente, não se estatuiu qualquer sanção para esse comportamento omissivo, na medida em que o transcrito nº8 do Artº 125 do C. da Estrada apenas alude aos seus nsº3 e 5 e não, de modo incompreensível, também ao seu nº4, que é, precisamente, a situação em que o arguido se enquadra, por ser residente em Portugal desde 2003 e ter obtido, em data anterior a Maio de 2004, uma carta de condução emitida pelas autoridades angolanas.
Lendo o comando legal em vigor à data da prática dos factos, é indiscutível que, de modo paradoxal, não se estatui qualquer consequência para o não cumprimento da previsão normativa aludida no seu nº4 – ao contrário do que sucede com as referenciadas nos seus nsº3 e 5 – sem que se entenda tal diferença de tratamento, nomeadamente, no que toca ao seu nº3, que apenas diverge do referido nº4, por se reportar a titulares de licenças que não sejam residentes em território nacional, o que justifica que se conceda o dobro do tempo para o procedimento de troca dessa licença por um título português.
A perfeita sintonia das situações – já que ambas se reportam ao mesmo quadro, ou seja, a existência de uma licença de condução emitida por um estado estrangeiro que Portugal reconhece como válida – e a inexistência de qualquer motivo para as diferenciar no que toca à sanção para o não cumprimento da exigência legal de trocar tais títulos por licenças nacionais, desde logo, por essa hipotética diferenciação consubstanciar uma flagrante violação do princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado – já que se estaria a tratar, de modo diverso, cidadãos nas mesmas circunstâncias, apenas por serem, ou não residentes em Portugal – torna inevitável a conclusão que a então redacção do nº8 do Artº 125 do C. da Estrada traduz-se, no fundo, num lapso material, na medida em que não há qualquer motivo para que aí não se inclua, também, o seu nº4.
Sendo sabido que na interpretação da lei, o interprete deve procurar, para além da literalidade da norma, o seu sentido material, de forma a assegurar a lógica e, principalmente, a coerência do sistema, então parece indiscutível que as situações previstas nos nsº 3 e 4 do Artº 125 do C. da Estrada apenas se diferenciam pelos prazos que são concedidos aos titulares das licenças em causa para efetuarem as respectivas trocas – o que se justifica pelo facto de serem, ou não, nacionais - as quais, todavia, até pelas considerações expostas de uma eventual violação do tecido constitucional, em causa algum podem consubstanciar tratamento diverso para a qualificação sancionatória em caso de incumprimento da obrigação que lhes está subjacente.
Talvez em consequência destas reflexões, é que a última redacção do nº8 do Artº 125 do C. da Estrada, introduzida pelo D.L. 102-B/20, de 09/12 – que manteve, na sua quase integralidade, todo o restante corpo do artigo – veio precisamente consagrar que “Quem infringir o disposto nos n.os 3 a 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.”
Dito de outro modo.
Seja pela aplicação do normativo em vigor à data dos factos – na interpretação a que supra se aludiu – seja pela actual redacção da lei, a solução nela plasmada é clara e taxativa: o infractor da não substituição de licenças e sendo titular de uma licença de condução válida, é sancionado com coima de 300 a 1500 euros.
Acresce, que ao contrário do que parece decorrer da decisão recorrida, não se crê que da aplicação dos Artsº 128 e 130 do C. da Estrada decorra argumentário que possa alterar o sentido do aqui decidido.
Com efeito, se a primeira das normas em causa apenas se reporta às exigências alusivas à troca dos títulos de condução, quanto à segunda, instala-se em definitivo a incerteza e a confusão, quer pela indefinição das situações a que se aplica – sendo legítimo colocar a dúvida se a norma se atêm, também, às trocas da licenças válidas de condução emitidas por estado estrangeiro – quer pela própria redacção do artigo em causa, na medida em que, ali se diz uma coisa e o seu contrário, quando se plasma que os titulares de licenças de condução caducadas se consideram como não habilitados a conduzir, para depois se afirmar que são punidos como coima, qualificando assim essa conduta, simultaneamente, como crime e contraordenação…
Daí que se entenda que a aferição do caso dos autos se deve fazer, exclusivamente, pelo teor do Artº 125 do C. da Estrada e, nessa medida, é indiscutível, que o incumprimento da conduta exigida pelo nsº3 e 4 do Artº 125 do C. da Estrada era à data dos factos e é ainda hoje, punido como contraordenação e não, como crime.
Todavia, para que assim seja, é mister que o arguido seja titular de uma licença de condução válida, ou seja, que o título de condução emitido pelo país com o qual Portugal celebrou o acordo de reconhecimento mútuo, esteja, à data dos factos, válida e eficaz, no sentido de o habilitar à prática da condução.
Descendo ao concreto da situação dos autos e com o devido respeito por opinião contrária, nenhum elemento de prova foi produzido que permita concluir que a licença de condução que o arguido obteve da República de Angola, em data anterior a Maio de 2004 e que o habilitava a conduzir veículos automóveis, não estivesse válida à data da prática dos factos.
É certo que o arguido não tinha essa licença fisicamente, nem a tem há vários anos, já que a mesma, como referiu, foi extraviada, nunca tendo conseguido obter, junto das entidades oficiais angolanas, uma segunda via.
Todavia, tal não é impeditivo de que o arguido seja, efectivamente, detentor de uma licença validamente emitida pelo estado angolano e que tal licença mantenha, ainda, plena eficácia para o habilitar a conduzir, apesar de não a ter em seu poder.
A verdade é que nada se apurou, nesse sentido, sendo certo que a condenação do ora recorrente pelo crime que lhe era imputado exigia que se considerasse que o mesmo não dispunha, à data dos factos, de licença de condução válida, como aliás, o tribunal recorrido deu por assente no Artº 2 da factualidade apurada.
Todavia, tal assunção probatória não assenta em substracto probatório – já que nenhuma prova foi feita que permita concluir que a licença de condução emitida pelas autoridades angolanas não permanecesse válida à prática dos factos – antes resultando de uma consequência factual que decorre do facto de o arguido não ter diligenciado pela troca de tal licença por um título português, sendo certo que o mesmo reside em Portugal desde 2003.
Ora, sendo evidentemente censurável a postura do arguido e causadora até de alguma perplexidade e estranheza, tendo em conta que isso lhe acarretou várias condenações pelo crime agora em análise, a verdade é que dessa circunstância não se pode retirar qualquer consequência em relação à validade ou invalidade da licença de condução angolana obtida pelo arguido em data anterior a Maio de 2004.
São, com efeito, duas realidades distintas e que o tribunal recorrido, com o devido respeito, parece ter confundido.
Uma coisa, é o arguido não ter procedido à substituição dessa carta de condução por título português, como o exigia os nº3 e 4 do Artº 125 do C. da Estrada.
Outra, é a consequência para essa omissão e esta, nos termos do nº8 dessa norma, será a da contraordenação ou a do crime, consoante a licença de condução original esteja, ou não, válida à data dos factos.
Compreende-se que assim seja.
Se a licença estrangeira permanecer válida á luz do direito interno do estado emitente, o que está em causa é apenas a sua não troca por um título emitido pelas autoridades portuguesas, justificando-se assim que tal comportamento omisso seja sancionado, tão somente, em sede contraordenacional.
Se a licença já tiver perdido a sua validade, então já não se coloca a questão da sua substituição – a qual, formalmente, já não será possível – mas, verdadeiramente, a ausência de título válido para o exercício da condução, o que demanda a responsabilização criminal dessa conduta.
Todavia, do incumprimento do estatuído nos citados nsº3 e 4 do Artº 125 do C. da Estrada – a substituição do título de condução emitido por outro país por uma licença portuguesa – não resulta, directa e necessariamente, que a licença em causa tenha perdido a sua validade, conclusão que o tribunal a quo, erradamente e sem qualquer apoio probatório, extraiu.
É certo que no nosso ordenamento jurídico, e particularmente no processo penal, não existe prova tarifada, inexistindo regras de valoração probatória que vinculem o julgador, pelo que, por regra, qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com o princípio da livre convicção do julgador, como permite o Artº 127 do CPP - princípio da livre apreciação da prova – onde se estipula que : Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Tal princípio, contudo, assenta, fundamentalmente, em duas premissas:
A de que o juiz decide de forma livre e de acordo com a sua íntima convicção, formada a partir do confronto das provas produzidas em audiência.
E que tal convicção há-de ser formada com base em regras de experiência comum.
Nestes termos, o juiz não está sujeito a critérios de valoração de cada um dos meios probatórios, legalmente pré-determinados, sistema da prova legal, sendo o tribunal livre na apreciação que faz da prova e na forma como atinge a sua convicção.
Contudo, sendo esta uma apreciação discricionária, não é a mesma arbitrária, tendo a referida apreciação os seus limites.
Não verdade, livre convicção não pode ser sinónimo de arbitrariedade.
Ou seja, a livre apreciação da prova tem sempre de se traduzir numa valoração "racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência (…), que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” de modo a que seja possível, por qualquer pessoa, entender porque é que o tribunal se convenceu de determinado facto, ou, dito de outro modo; porque é que o juiz conferiu credibilidade a uma testemunha e descredibilizou outra, por exemplo.
Mesmo considerando o referido princípio da livre apreciação da prova, não se vislumbram regras de experiência comum e/ou de lógica, que permitam, com segurança e objectividade necessárias, afirmar, com segurança probatória, que, à data dos factos, a licença de condução referida no Artº2 da factualidade apurada não estava válida à data dos factos.
Importa trazer à colação o já afirmado em Acórdão deste Tribunal da Relação, em 03/05/07, proferido no processo n.º 80/07-3 disponível no sítio da internet www.dgsi.pt,
«O erro na apreciação das provas relevante para a alteração da decisão de facto pressupõe, pois, que estas (as provas) deveriam conduzir a uma decisão necessária e forçosamente diversa e não uma decisão possivelmente diferente; se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior; a decisão proferida com base numa interpretação e valoração (ainda que discutíveis) fundamentadas nas provas produzidas contida no espaço definido pela livre apreciação das provas e pela convicção por elas criada no espírito do juiz, não pode ser alterada, a menos que contra ela se apresentem provas irrefutáveis, já existentes nos autos e desconsideradas ou supervenientes. Por outras palavras: a sindicância da decisão de facto deve limitar-se à aferição da sua razoabilidade em face das provas produzidas … … A segunda instância em matéria de facto não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas tão só apreciar se a convicção expressa pelo tribunal a quo na decisão da matéria de facto tem suporte razoável …»
Esta é, com o devido respeito, a situação dos autos.
Assim, sem a existência de elementos de prova que o permitam afirmar, e por aplicação do princípio in dubio pro reo, parece-nos pouco razoável chegar ao juízo de segurança exigível no âmbito do processo penal português e dar por assente, como fez o tribunal recorrido, que o arguido, à data dos factos, não era titular de licença de condução válida, conclusão que, com o devido respeito, apenas poderia ser alcançada com uma informação, nesse sentido, emitida pelas autoridades angolanas.
Houve assim, nesta parte, uma errada apreciação e valoração das provas, fundada numa deficiente interpretação e aplicação do Artº 125 do C. da Estrada, o que se reconduz a um erro de julgamento da matéria de facto, verificável pela ponderação concertada das provas produzidas e respectivo exame crítico, de onde não resulta a formulação do juízo efectuado pela instância sindicada.
A decisão, nesta matéria, do tribunal recorrido, foi proferida com base numa interpretação e valoração que não se apoiou em quaisquer meios de prova e sem respaldo nas regras de experiência ou no sentido das coisas, assim se desenhando um raciocínio condenatório que carece da consistência necessária, razão pela qual, merecendo essa censura, deve ser alterado.
Não pode assim este Tribunal ad quem deixar de julgar procedente a impugnação da matéria de facto efectuada pelo recorrente e em consequência, proceder à alteração da factualidade dada por provada em função do que resulta do atrás exposto e retirar daí as óbvias consequências jurídicas.
Nessa medida, não deixando o título de condução emitido pela República de Angola de ser reconhecido pelo estado Português e não se tendo provado que esta já não era válido aos olhos do direito interno angolano, a conduta do arguido apenas poderia ser censurada em sede de contraordenação, por não ter procedido à troca do título de condução em Portugal, como o exige o normativo supracitado.
Todavia, como se diz no Acórdão da Relação do Porto de 07/01/15:
“Entendemos que o conhecimento desta contra-ordenação não compete a esta Relação, mas antes à autoridade administrativa. «Da inserção sistemática do art.º 77º se pode concluir que o processo contra-ordenacional só pode ser conhecido pelos tribunais se e quando o mesmo processo versar sobre crimes e contra-ordenações em cumulação (cfr. art.º 38º do RGCO).
Ou seja, e em conclusão:
1. Se, pelo mesmo facto, uma pessoa responder a título de crime e de contra-ordenação, será competente para conhecer de ambos os ilícitos o tribunal;
2. Se uma pessoa responder a título de crime e outra a título de contra-ordenação, verificando-se os requisitos da conexão subjectiva, é competente para conhecer de ambos os ilícitos o tribunal criminal.
3. Em todos os restantes casos, em que não estão reunidos os requisitos da conexão, é sempre competente para conhecer da contra-ordenação a Autoridade Administrativa.» - Ac.R.Porto de 16/12/2009, proc. n.º82/09.0GCAMT.P1, e no sentido de que a contra-ordenação não pode ser conhecida nos autos de recurso, v. ainda, entre outros, Ac.R.Coimbra de 26/3/2014, proc. n.º84/13.1GAFVN.C1, e Ac.R.Évora de 28/2/2012, proc. n.º81/10.9GCMMN.E1”.
Pelo exposto, o recurso não pode deixar de proceder, com a sua absolvição do crime pelo qual foi condenado, ficando naturalmente prejudicado, quer o conhecimento da eventual contraordenação por si cometida, quer a apreciação da outra questão por si suscitada no recurso e que se prendia com a aplicação da pena.
3. DECISÃO
Nestes termos, decide-se: Conceder provimento ao recurso e em consequência, considerando-se como não provados os Artsº 2 e 5 da factualidade apurada,revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se o arguido (...), da prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, em que foi condenado.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que a presente decisão foi elaborada pelo relator e integralmente revista pelos signatários.
xxx
Évora, 11 de Maio de 2021
Renato Barroso (Relator)
Maria Fátima Bernardes (Adjunta)
(Assinaturas digitais)