CRIME SEMI-PÚBLICO
CRIME PARTICULAR
LEI PENAL MAIS FAVORÁVEL
Sumário


1 - Não assume qualquer relevância a alteração, introduzida pela lei nova, em relação à natureza do crime, de semipúblico para particular, quando essa alteração ocorra em momento ulterior ao da dedução da acusação pelo Ministério Público, não tendo, nesse caso, campo de aplicação a lei mais favorável ao arguido, nos termos previstos no artigo 2º, n.º 4, do Código Penal.

2 - Outrossim não acontecerá se à data da entrada em vigor da Lei Nova a acusação ainda não tiver sido deduzida, carecendo, nessa situação, o Ministério Público de legitimidade para deduzir acusação e para a prossecução do procedimento criminal. O ofendido deverá ser notificado para se constituir assistente e para deduzir acusação particular, com a advertência de que não o fazendo, será julgado extinto o procedimento criminal.

Texto Integral




Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Nestes autos, foi deduzida acusação pelo Ministério Público, em 17/03/2011, contra o arguido (…), melhor identificado a fls. 50, sendo-lhe imputada a prática, em 20/02/2010, em autoria material de um crime de furto, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, n.ºs 1 e 2, 22º e 23º, todos do Código Penal.
1.2. Recebida a acusação, sendo desconhecido o paradeiro do arguido, não foi designada data para julgamento, tendo o arguido sido declarado contumaz, por despacho proferido em 27/09/2012.
1.3. Em face da entrada em vigor, em 21/03/2013, da Lei n.º 19/2013, que alterou a redação do artigo 207º, n.º 2, do Código Penal, que alterou a natureza do crime de furto simples por cuja prática o arguido foi acusado, de semipúblico para particular, promoveu o Ministério Público, em 22/06/2020, que se notificasse o ofendido para se constituir assistente (artigo 246º, n.º 4, do CPP), no prazo de 10 dias, com a advertência de que não o fazendo, os autos seriam arquivados, por falta de legitimidade do MP para prosseguir o procedimento criminal.
1.4. Por despacho judicial proferido em 09/12/2020, foi declarado extinto o procedimento criminal contra o arguido, por falta de por falta de legitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal, pela prática do crime de furto simples por o arguido foi acusado nos autos – em face da entrada em vigor da Lei n.º 19/2013, de 21 fevereiro, que alterou a natureza de tal crime e por força da aplicação de lei penal mais favorável ao arguido, nos termos previstos no artigo 2º, n.º 4, do CPP – e determinado o oportuno arquivamento dos autos.
1.5. Inconformado com o decidido no referido despacho, recorreu o Ministério Público, para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação do recurso apresentada, as seguintes conclusões:
«I - Nos presentes autos, o arguido (…) foi acusado pela prática de um crime de furto simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203.º, nºs 1 e 2, 22.º e 23.º, todos do Código Penal.
II - Sucede que, por despacho de fls. 302-303, a Mma. Juíza a quo declarou extinto o procedimento criminal, atenta a entrada em vigor da Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, que alterou a natureza do crime em causa, entendendo ser este o regime mais favorável a aplicar ao arguido, e consequentemente declarou extinto o procedimento criminal pela prática de tal ilícito, por entender que o Ministério Público carece de legitimidade para tal, uma vez que o ofendido apenas apresentou queixa mas não se constituiu assistente, decisão de que discordamos.
III - Face à entrada em vigor da Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, o crime de furto passou de facto a ter natureza particular, desde que verificadas as circunstâncias previstas no art. 207.º, n.º 2, do CP, que, no caso dos autos, estão verificadas. Sucede que, quando o Ministério Público deduziu acusação, em 17/03/2011, tal lei não se encontrava em vigor (o que ocorreu a 23.03.2013).
IV - Estamos, assim, salvo o devido respeito por opinião diversa, perante uma sucessão de leis no tempo, sendo aplicável às normas processuais materiais o princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais favorável, e da irretroatividade desfavorável.
V - Aliás, estamos em crer que, presentemente e após o Prof. Taipa de Carvalho ter reintroduzido esta matéria em discussão (in Sucessão de Leis penais, Coimbra Edit. 1990, pág. 218), é já unanimemente aceite, quer pela doutrina quer pela jurisprudência, a existência de normais processuais penais materiais e que, por isso, são de aplicação retroactiva, quando forem mais favoráveis ao arguido, estando neste campo as normas sobre as condições de procedibilidade, incluindo os pressupostos processuais (neste sentido, Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra edit. 2005, pág 661, 663 e 698 e ss; Barreiros, J. António, in Processo Penal-1, Almedina Coimbra, 1991, pág. 204 e ss; Germano Marques da Silva, in Curso de Proc. Penal, I Vol, Verbo 2008, pág. 106 e notas, Acórdão do Tribunal Constitucional - Ac. 523/99, de 28/9/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 4/7/2005, disponível em www.dgsi.pt, relator Ricardo Silva).
VI - Como salienta também o Acórdão do STJ, de 7/11/1996, disponível em www.dgsi.pt: “II - O direito de queixa, uma vez que funciona como condição de procedibilidade insere-se no campo processual; porém, dados os efeitos substantivos que decorrem do seu exercício ou da sua desistência, integram as chamadas leis processuais materiais ou normas processuais de natureza substantiva. III - A ratio político-criminal consagrada no artigo 29, n. 4, 2. parte, da CRP, conduz à aplicação retroactiva das normas processuais materiais favoráveis, como é o caso da exigência da queixa como condição objectiva de procedibilidade.”
VII - Assim, concluímos, como Taipa de Carvalho, in ob. cit. pág. 242, que as normas relativas à queixa e à acusação particular são de natureza processual penal material e, por isso, são-lhe aplicáveis o principio da retroactividade da lei penal mais favorável, e da irretroactividade desfavorável.
VIII - Revertendo ao caso dos autos, e tendo em conta todas as considerações supra expedidas, concorda-se com a Mma. Juiz a quo, quando conclui que a lei nova se apresenta como mais favorável ao arguido e, como tal, tem aplicação imediata e retroactiva.
IX - Contudo, já não se poderá concordar com as consequências que daí foram extraídas - de declarar a ilegitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal pelo crime em causa nos autos e, em consequência, julgar extinto o mesmo, como foi feito no despacho recorrido, sem sequer se conceder à ofendida a oportunidade de se constituir assistente e deduzir acusação particular, como agora é exigido pelo artigo 207.º, n.º 2, do Código Penal.
X - Assim, em nossa opinião, a solução perfilhada pela Mma. Juíza a quo não é correcta.
XI - Salvo o devido respeito, deveria ter sido determinado, como promovido, o cumprimento do disposto no artigo 246.º, n.º 4, do CPP, e notificada a ofendida para se constituir assistente, no prazo de 10 dias, sob pena de não o fazendo, terem os autos de ser arquivados, por falta de legitimidade para prosseguir o procedimento criminal, após o que, caso a mesma cumprisse tais formalidades, seria notificada para deduzir acusação particular.
XII - Na verdade, tendo o ilícito em causa passado a revestir natureza particular, é a ofendida a principal interessada no desfecho dos autos, devendo ser ela a decidir se quer, ou não, que o procedimento criminal avance. Por outro lado, é, das duas, a solução que mais beneficia o arguido, exigindo uma actuação por parte da ofendida.
XIII - De resto, sempre se dirá que, ao proferir o despacho recorrido, a Mma. Juiz a quo violou o princípio da protecção da confiança, que encontra várias manifestações no texto da nossa Constituição, como sejam o princípio da não retroactividade das leis penais (artigo 29.º) e, em geral, das leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 3).
XIV - Ao ter decido de forma diversa, violou o despacho recorrido o disposto no artigo 207.º, n.º 2, 68.º, n.º 2, e 246.º, n.º 4, todos do Código Penal.
XV - Razão pela qual deverá ser substituída por outra que determine o cumprimento do disposto no artigo 246.º, n.º 4, do CPP, e a notificação da ofendida para se constituir assistente, no prazo de 10 dias, sob pena de não o fazendo, terem os autos de ser arquivados, por falta de legitimidade para prosseguir o procedimento criminal ou, caso assim não se entenda, determina a remessa dos autos ao Ministério Público, para cumprimento dessas formalidades.
Termos em deverá ser dado provimento ao recurso e a sentença recorrida ser revogada em conformidade com o exposto.
Contudo V. Ex.as decidirão conforme for de JUSTIÇA!»
1.5. O recurso foi regularmente admitido.
1.6. O arguido não apresentou resposta ao recurso.
1.7. Neste Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso dever merecer provimento.
1.8. Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta.
1.8. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
É consabido que as conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cf. artigos 402º, 403º e 412º, todos do C.P.P. –, sem prejuízo do conhecimento dos vícios e nulidades principais, como tal tipificadas na lei, de conhecimento oficioso.
No caso vertente, atentas as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso apresentada a questão suscitada é a da legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal e prossecução do procedimento criminal, tendo havido, por força da entrada em vigor de uma de Lei Nova, a alteração da natureza do crime, de semipúblico para particular.

2.2. Despacho recorrido
É do seguinte teor o despacho recorrido:
«(…)
Por despacho proferido em 17.03.2011, foi deduzida acusação pública contra (…), na qual foi imputada ao arguido a prática de um crime de furto, na forma tentada, ocorrido em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, sendo que o valor da coisa tentada subtrair se cifra em € 1,56 e foi objecto de recuperação imediata.
Na altura em que foi deduzida acusação, o procedimento criminal pela prática do referido crime, dependia apenas de apresentação de queixa pelo titular do interesse juridicamente protegido, revestindo assim a natureza semi-pública, queixa essa que foi tempestivamente apresentada pelo LIDL.
Sucede, porém que, a L. 19/2003 de 21.02 veio alterar a natureza do crime, ao aditar ao art. 207º do C.Penal um nº 2, no qual se estipula expressamente que “no caso do artigo 203º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtracção de coisas móveis expostas de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas”.
Em obediência ao disposto no art. 2º/4 do C.Penal, verificando-se que a nova lei, é mais favorável ao arguido, deverá ser objecto de aplicação imediata.
Deste modo, tendo apenas sido apresentada queixa pelo titular do interesse juridicamente protegido, não se tendo o mesmo constituído assistente ou deduzido acusação particular, mostrando-se já precludida tal possibilidade porquanto o inquérito está encerrado, carece o Ministério Público de legitimidade para o procedimento criminal pela prática do referido crime.
Nesse sentido, vide o Ac. da Relação de Évora de 25.10.2016 (Proc. 40/15.5GAORQ.E1, disponível in www.dgsi.pt).
Nessa medida, importa declarar extinto o procedimento criminal contra o arguido (…).
Sem custas.

*
Declara-se cessada a contumácia.
Notifique.
Remeta boletim ao registo.
Após, oportunamente, arquivem-se os autos.»

2.3. Com interesse para a decisão há a considerar o seguinte desenvolvimento processual:
a) - Os presentes autos iniciaram-se com a queixa apresentada, em 15/03/2010, por (…), contra (...) (cfr. fls. 2 a 4)
b) - Findo o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação, em 17/03/2011, contra o arguido (...), melhor identificado a fls. 50 dos autos, imputando-lhe a prática, em 20/02/2010, como autor material de um crime de furto, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, n.ºs 1 e 2, 22º e 23º, todos do Código Penal (cf. fls. 50 e 51).
c) - Recebida a acusação, por despacho proferido em 17/10/2011, não foi designada data para julgamento, por não ser conhecido o paradeiro do arguido (cf. fls. 65 e 66);
d) - O arguido foi declarado contumaz, por despacho proferido em 27/09/2012 (cf. fls. 95).
e) - Em 22/06/2020, promoveu o Ministério Público, em face da entrada em vigor, em 21/03/2013, da Lei n.º 19/2013, que alterou a redação do artigo 207º, n.º 2, do Código Penal, que alterou a natureza do crime de furto simples por cuja prática o arguido foi acusado, de semipúblico para particular, se notificasse o ofendido para se constituir assistente (artigo 246º, n.º 4, do CPP), no prazo de 10 dias, com a advertência de que não o fazendo, os autos seriam arquivados, por falta de legitimidade para prosseguir o procedimento criminal.
f) - Em 09/12/2020, foi proferido despacho judicial recorrido, a declarar extinto o procedimento criminal contra o arguido, com o teor supra transcrito em 2.2.

2.3. Conhecimento do recurso
Tal como já acima referimos a questão suscitada e que há que decidir é da legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal e prossecução do procedimento criminal, tendo havido, por força da entrada em vigor de uma de Lei Nova, a alteração da natureza do crime, de semipúblico para particular.
Concretamente, trata-se de saber se num processo iniciado por um crime que a essa data tinha a natureza de semipúblico e que, posteriormente, já depois de o Ministério Público ter deduzido acusação, passou a revestir a natureza de crime particular, se a entrada em vigor da Lei Nova se repercute na legitimidade do Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal.
O Ministério Público/recorrente entende que tal questão merece resposta afirmativa, enquanto que o Tribunal a quo decidiu em sentido contrário, entendendo que o Ministério Público carece de legitimidade para o procedimento criminal.
Apreciando:
O crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do Código Penal por que o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, por factos praticados em 20/02/2010, revestia, a essa data, a natureza de crime semipúblico, o que se mantinha, à data em que ofendida (através de mandatário judicial) apresentou queixa (15/03/2010) e à data da dedução da acusação pelo Ministério Público (17/03/2011), dependendo o procedimento criminal de queixa (cf. n.º 3 do artigo 203º do Código Penal), sendo esta, portanto, uma condição de legitimidade do Ministério Público para a ação penal (cf. artigo 49º do CPP).
Em 23/03/2013, entrou em vigor a Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, que alterou o Código Penal, tendo aditado ao artigo 207º, o n.º 2, com a seguinte redação:
«No caso do artigo 203º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtração de coisas móveis expostas de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas
O crime de furto simples, praticado no circunstancialismo previsto na disposição legal acabada de citar, passou a revestir natureza particular, dependendo o procedimento criminal não só de queixa, mas também de acusação particular, a deduzir pelo assistente, conforme exigência do artigo 50º do CPP.
Subjacente a esta alteração legislativa e tendo em conta a exposição de motivos da Proposta de Lei 75/XII que esteve na origem da Lei 19/2013, de 21 de fevereiro, terá estado, como refere o Desembargador António Latas[1] «o propósito de evitar a sobrecarga do sistema judicial com número considerável de pequenos furtos, desencorajando os estabelecimentos comerciais de recorrerem à justiça penal em situações de pequena lesão do seu património quando não se verifiquem outras circunstâncias que justifiquem a intervenção da justiça penal mediante mera participação ou queixa, em atenção a racionalidades diversas (v.g. a falta de recuperação imediata ou o cometimento do facto com a intervenção de mais que uma pessoa).»
Os factos por cuja prática o arguido se encontra acusado, nos presentes autos, de acordo com a descrição feita na acusação, terão ocorrido no quadro previsto no n.º 2 do artigo 207º do CP.
Sucede que a entrada em vigor da enunciada alteração introduzida pela Lei n.º 19/2013, ocorreu já depois de o Ministério Público ter deduzido acusação pública, para o que, na altura, tinha legitimidade, dependendo, então, o procedimento criminal pelo crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do CP, cuja prática imputou ao arguido, apenas de queixa, a qual foi válida e tempestivamente apresentada.
Constitui entendimento maioritário na jurisprudência dos nossos tribunais superiores e que se perfilha, o de que não assume qualquer relevância, a alteração, introduzida pela lei nova, em relação à natureza do crime, de semipúblico para particular, quando essa alteração ocorra em momento ulterior ao da dedução da acusação pelo Ministério Público[2], não tendo, nesse caso, campo de aplicação a lei mais favorável ao arguido, nos termos previstos no artigo 2º, n.º 4, do Código Penal.
Como se decidiu no Ac. da RC de 12/03/2014[3], «A lei nova que altera a natureza do crime, de semi-público para particular, a menos que o processo ainda esteja em fase de inquérito e a acusação pública ainda não tenha sido deduzida, não assume qualquer relevância, por consubstanciar uma alteração de procedimentos que em nada afecta os direitos do arguido – o ofendido manifestou o desejo de perseguição criminal e o MP detinha, quando deduziu acusação, legitimidade para o efeito – não sendo, por isso, de aplicar ao caso o disposto no n.º 4 do artigo 2º do CP».
Nesta situação, o principio da tutela da confiança, inerente ao Estado de direito democrático, proclamado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, não pode deixar de ser salvaguardado, em relação ao ofendido, que é “surpreendido”, no decurso do processo criminal pela alteração legislativa que modificou a natureza do crime cometido[4].
A norma do n.º 2 do artigo 207º do Código Penal, que foi aditada pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, ao alterar a natureza do crime de furto previsto no artigo 203º, quando cometido no circunstancialismo aí descrito, de crime semipúblico para crime particular, ainda que se trate de uma norma que a doutrina vem classificando de processual material[5], não tem aplicação retroativa, quanto à exigência de dedução de acusação particular pelo assistente, aos casos em que o Ministério Público, à data da entrada em vigor da Lei Nova, já deduziu acusação pública, para o que tinha legitimidade, existindo queixa do ofendido, válida e tempestivamente exercida. Não ocorre, nessa situação, a ilegitimidade superveniente do Ministério Público para o exercício da ação penal e prossecução do procedimento criminal, validamente iniciado e mantido para os ulteriores termos do processo[6].
E, salvo o devido respeito pela posição contrária, que é defendida pelo Ministério Público/recorrente[7], em nosso entender, o ofendido, não pode, nessa situação, ficar obrigado a constituir-se assistente no processo, como condição de prossecução do procedimento criminal, não podendo ser-lhe imposto esse ónus, com as inerentes consequências, designadamente, ter de suportar os encargos com a taxa de justiça devida pela constituição nessa qualidade (cf. artigo 519º do CPP). E a não constituição da ofendida na qualidade de assistente, em nada afeta os direitos do arguido, nomeadamente o seu direito de defesa, de molde a determinar a aplicação da lei mais favorável, nos termos previstos no artigo 2º, n.º 4, do CP.
Nesta conformidade, revestindo o crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º do Código Penal, à data da prática dos factos, natureza de crime semipúblico, tendo a ofendida exercido, válida e tempestivamente, o direito de queixa, o Ministério Público tinha legitimidade para promover a ação penal e findo o inquérito, tendo deduzido acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática daquele tipo legal de crime, a entrada em vigor, em momento posterior ao da dedução da acusação e estando o processo já na fase de julgamento, da Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, que aditou o n.º 2 ao artigo 207º do Código Penal, passando o referido crime a revestir a natureza de crime particular, não tem quaisquer implicações jurídico processuais, no processo e na situação assim configurada, não retirando a legitimidade ao Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal, nem exigindo que a ofendida se constitua assistente no processo.
Em suma, tendo-se iniciado validamente o procedimento criminal, com a queixa da ofendida, se após de ter sido deduzida acusação pelo Ministério Público, entrar em vigor uma lei alterar a natureza do crime de semipúblico para particular, essa lei nova não tem aplicação retroativa, quanto à exigência de dedução de acusação particular, nem sequer à constituição do ofendido, na qualidade de assistente e, por isso, não afeta a legitimidade do Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal.
Não pode, assim, manter-se o despacho recorrido, que declarou extinto o procedimento criminal contra o arguido, por falta de legitimidade do Ministério Público, para a prossecução do procedimento criminal, pelo que, se revoga o mesmo despacho, mantendo-se o procedimento criminal contra o arguido, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.
Termos em que, embora com alcance jurídico não totalmente coincidente com o invocado pelo recorrente – requerendo que se determinasse a notificação da ofendida para se constituir assistente, sob pena de ser declarado extinto o procedimento criminal –, o recurso é procedente.

3. DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, embora com alcance jurídico não totalmente coincidente com o invocado pelo recorrente, revogam o despacho recorrido, mantendo-se o procedimento criminal contra o arguido, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.

Sem tributação.

Notifique.

Évora, 11 de maio de 2021

Fátima Bernardes

Fernando Pina

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[1] As alterações ao Código Penal Introduzidas pela Lei 19/2013, de 21 de fevereiro, pág. 34, acessível http://www.tre.mj.pt.

[2] Outrossim não acontecerá se à data da entrada em vigor da Lei Nova a acusação ainda não tiver sido deduzida, carecendo, nessa situação, o Ministério Público de legitimidade para deduzir acusação e para a prossecução do procedimento criminal. O ofendido deverá ser notificado para se constituir assistente e para deduzir acusação particular, com a advertência de que não o fazendo, será julgado extinto o procedimento criminal. Neste sentido, cfr., entre outros, Ac. da RP de 18/12/2013, proc. 236/13.4PHMTS.P1, acessível in www.dgsi.pt.

[3] Proferido no proc. n.º 308/12.2T3AND.C1. No mesmo sentido, vide, ainda, entre outros, Ac. da RC de 15/05/2013, proc. n.º 2107/12.2PCCBR.C1, acessíveis em www.dgsi.pt.

[4] Neste sentido, estando aí em causa a alteração da natureza de crime público para semipúblico, cf. Ac. do TC n.º 523/99, publicado in Diário da República n.º 55/2000, Série II de 06/03/2000.

[5] Vide, entre outros, Américo A. Taipa de Carvalho, in Sucessão de Leis Penais, 2ª Edição Revista, Coimbra Editora, 1997, pág. 301

[6] Neste sentido, cfr., entre outros, Prof. Germano Marques da Silva, in Direito Processual Penal Português, Noções Gerais, Sujeitos Processuais e Objecto, Vol. I, Universidade Católica Editora, 2013, págs. 120-121.

[7] No sentido de que, neste caso, embora não tenha que deduzir acusação particular, o ofendido tem de se constituir assistente e de que não se constituindo nessa qualidade, o tribunal deve determinar a ilegitimidade do Ministério Público, vide, Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República …, 3ª edição, 1009, Universidade Católica Editora, pág. 58, anotação 12.