1 - Não assume qualquer relevância a alteração, introduzida pela lei nova, em relação à natureza do crime, de semipúblico para particular, quando essa alteração ocorra em momento ulterior ao da dedução da acusação pelo Ministério Público, não tendo, nesse caso, campo de aplicação a lei mais favorável ao arguido, nos termos previstos no artigo 2º, n.º 4, do Código Penal.
2 - Outrossim não acontecerá se à data da entrada em vigor da Lei Nova a acusação ainda não tiver sido deduzida, carecendo, nessa situação, o Ministério Público de legitimidade para deduzir acusação e para a prossecução do procedimento criminal. O ofendido deverá ser notificado para se constituir assistente e para deduzir acusação particular, com a advertência de que não o fazendo, será julgado extinto o procedimento criminal.
2.2. Despacho recorrido
É do seguinte teor o despacho recorrido:
«(…)
Por despacho proferido em 17.03.2011, foi deduzida acusação pública contra (…), na qual foi imputada ao arguido a prática de um crime de furto, na forma tentada, ocorrido em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, sendo que o valor da coisa tentada subtrair se cifra em € 1,56 e foi objecto de recuperação imediata.
Na altura em que foi deduzida acusação, o procedimento criminal pela prática do referido crime, dependia apenas de apresentação de queixa pelo titular do interesse juridicamente protegido, revestindo assim a natureza semi-pública, queixa essa que foi tempestivamente apresentada pelo LIDL.
Sucede, porém que, a L. 19/2003 de 21.02 veio alterar a natureza do crime, ao aditar ao art. 207º do C.Penal um nº 2, no qual se estipula expressamente que “no caso do artigo 203º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtracção de coisas móveis expostas de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas”.
Em obediência ao disposto no art. 2º/4 do C.Penal, verificando-se que a nova lei, é mais favorável ao arguido, deverá ser objecto de aplicação imediata.
Deste modo, tendo apenas sido apresentada queixa pelo titular do interesse juridicamente protegido, não se tendo o mesmo constituído assistente ou deduzido acusação particular, mostrando-se já precludida tal possibilidade porquanto o inquérito está encerrado, carece o Ministério Público de legitimidade para o procedimento criminal pela prática do referido crime.
Nesse sentido, vide o Ac. da Relação de Évora de 25.10.2016 (Proc. 40/15.5GAORQ.E1, disponível in www.dgsi.pt).
Nessa medida, importa declarar extinto o procedimento criminal contra o arguido (…).
Sem custas.
2.3. Conhecimento do recurso
Tal como já acima referimos a questão suscitada e que há que decidir é da legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal e prossecução do procedimento criminal, tendo havido, por força da entrada em vigor de uma de Lei Nova, a alteração da natureza do crime, de semipúblico para particular.
Concretamente, trata-se de saber se num processo iniciado por um crime que a essa data tinha a natureza de semipúblico e que, posteriormente, já depois de o Ministério Público ter deduzido acusação, passou a revestir a natureza de crime particular, se a entrada em vigor da Lei Nova se repercute na legitimidade do Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal.
O Ministério Público/recorrente entende que tal questão merece resposta afirmativa, enquanto que o Tribunal a quo decidiu em sentido contrário, entendendo que o Ministério Público carece de legitimidade para o procedimento criminal.
Apreciando:
O crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do Código Penal por que o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, por factos praticados em 20/02/2010, revestia, a essa data, a natureza de crime semipúblico, o que se mantinha, à data em que ofendida (através de mandatário judicial) apresentou queixa (15/03/2010) e à data da dedução da acusação pelo Ministério Público (17/03/2011), dependendo o procedimento criminal de queixa (cf. n.º 3 do artigo 203º do Código Penal), sendo esta, portanto, uma condição de legitimidade do Ministério Público para a ação penal (cf. artigo 49º do CPP).
Em 23/03/2013, entrou em vigor a Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, que alterou o Código Penal, tendo aditado ao artigo 207º, o n.º 2, com a seguinte redação:
«No caso do artigo 203º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtração de coisas móveis expostas de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas.»
O crime de furto simples, praticado no circunstancialismo previsto na disposição legal acabada de citar, passou a revestir natureza particular, dependendo o procedimento criminal não só de queixa, mas também de acusação particular, a deduzir pelo assistente, conforme exigência do artigo 50º do CPP.
Subjacente a esta alteração legislativa e tendo em conta a exposição de motivos da Proposta de Lei 75/XII que esteve na origem da Lei 19/2013, de 21 de fevereiro, terá estado, como refere o Desembargador António Latas[1] «o propósito de evitar a sobrecarga do sistema judicial com número considerável de pequenos furtos, desencorajando os estabelecimentos comerciais de recorrerem à justiça penal em situações de pequena lesão do seu património quando não se verifiquem outras circunstâncias que justifiquem a intervenção da justiça penal mediante mera participação ou queixa, em atenção a racionalidades diversas (v.g. a falta de recuperação imediata ou o cometimento do facto com a intervenção de mais que uma pessoa).»
Os factos por cuja prática o arguido se encontra acusado, nos presentes autos, de acordo com a descrição feita na acusação, terão ocorrido no quadro previsto no n.º 2 do artigo 207º do CP.
Sucede que a entrada em vigor da enunciada alteração introduzida pela Lei n.º 19/2013, ocorreu já depois de o Ministério Público ter deduzido acusação pública, para o que, na altura, tinha legitimidade, dependendo, então, o procedimento criminal pelo crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do CP, cuja prática imputou ao arguido, apenas de queixa, a qual foi válida e tempestivamente apresentada.
Constitui entendimento maioritário na jurisprudência dos nossos tribunais superiores e que se perfilha, o de que não assume qualquer relevância, a alteração, introduzida pela lei nova, em relação à natureza do crime, de semipúblico para particular, quando essa alteração ocorra em momento ulterior ao da dedução da acusação pelo Ministério Público[2], não tendo, nesse caso, campo de aplicação a lei mais favorável ao arguido, nos termos previstos no artigo 2º, n.º 4, do Código Penal.
Como se decidiu no Ac. da RC de 12/03/2014[3], «A lei nova que altera a natureza do crime, de semi-público para particular, a menos que o processo ainda esteja em fase de inquérito e a acusação pública ainda não tenha sido deduzida, não assume qualquer relevância, por consubstanciar uma alteração de procedimentos que em nada afecta os direitos do arguido – o ofendido manifestou o desejo de perseguição criminal e o MP detinha, quando deduziu acusação, legitimidade para o efeito – não sendo, por isso, de aplicar ao caso o disposto no n.º 4 do artigo 2º do CP».
Nesta situação, o principio da tutela da confiança, inerente ao Estado de direito democrático, proclamado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, não pode deixar de ser salvaguardado, em relação ao ofendido, que é “surpreendido”, no decurso do processo criminal pela alteração legislativa que modificou a natureza do crime cometido[4].
A norma do n.º 2 do artigo 207º do Código Penal, que foi aditada pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, ao alterar a natureza do crime de furto previsto no artigo 203º, quando cometido no circunstancialismo aí descrito, de crime semipúblico para crime particular, ainda que se trate de uma norma que a doutrina vem classificando de processual material[5], não tem aplicação retroativa, quanto à exigência de dedução de acusação particular pelo assistente, aos casos em que o Ministério Público, à data da entrada em vigor da Lei Nova, já deduziu acusação pública, para o que tinha legitimidade, existindo queixa do ofendido, válida e tempestivamente exercida. Não ocorre, nessa situação, a ilegitimidade superveniente do Ministério Público para o exercício da ação penal e prossecução do procedimento criminal, validamente iniciado e mantido para os ulteriores termos do processo[6].
E, salvo o devido respeito pela posição contrária, que é defendida pelo Ministério Público/recorrente[7], em nosso entender, o ofendido, não pode, nessa situação, ficar obrigado a constituir-se assistente no processo, como condição de prossecução do procedimento criminal, não podendo ser-lhe imposto esse ónus, com as inerentes consequências, designadamente, ter de suportar os encargos com a taxa de justiça devida pela constituição nessa qualidade (cf. artigo 519º do CPP). E a não constituição da ofendida na qualidade de assistente, em nada afeta os direitos do arguido, nomeadamente o seu direito de defesa, de molde a determinar a aplicação da lei mais favorável, nos termos previstos no artigo 2º, n.º 4, do CP.
Nesta conformidade, revestindo o crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º do Código Penal, à data da prática dos factos, natureza de crime semipúblico, tendo a ofendida exercido, válida e tempestivamente, o direito de queixa, o Ministério Público tinha legitimidade para promover a ação penal e findo o inquérito, tendo deduzido acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática daquele tipo legal de crime, a entrada em vigor, em momento posterior ao da dedução da acusação e estando o processo já na fase de julgamento, da Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, que aditou o n.º 2 ao artigo 207º do Código Penal, passando o referido crime a revestir a natureza de crime particular, não tem quaisquer implicações jurídico processuais, no processo e na situação assim configurada, não retirando a legitimidade ao Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal, nem exigindo que a ofendida se constitua assistente no processo.
Em suma, tendo-se iniciado validamente o procedimento criminal, com a queixa da ofendida, se após de ter sido deduzida acusação pelo Ministério Público, entrar em vigor uma lei alterar a natureza do crime de semipúblico para particular, essa lei nova não tem aplicação retroativa, quanto à exigência de dedução de acusação particular, nem sequer à constituição do ofendido, na qualidade de assistente e, por isso, não afeta a legitimidade do Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal.
Não pode, assim, manter-se o despacho recorrido, que declarou extinto o procedimento criminal contra o arguido, por falta de legitimidade do Ministério Público, para a prossecução do procedimento criminal, pelo que, se revoga o mesmo despacho, mantendo-se o procedimento criminal contra o arguido, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.
Termos em que, embora com alcance jurídico não totalmente coincidente com o invocado pelo recorrente – requerendo que se determinasse a notificação da ofendida para se constituir assistente, sob pena de ser declarado extinto o procedimento criminal –, o recurso é procedente.
3. DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, embora com alcance jurídico não totalmente coincidente com o invocado pelo recorrente, revogam o despacho recorrido, mantendo-se o procedimento criminal contra o arguido, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.
Sem tributação.
Notifique.
Évora, 11 de maio de 2021
Fátima Bernardes
Fernando Pina
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[1] As alterações ao Código Penal Introduzidas pela Lei 19/2013, de 21 de fevereiro, pág. 34, acessível http://www.tre.mj.pt.
[2] Outrossim não acontecerá se à data da entrada em vigor da Lei Nova a acusação ainda não tiver sido deduzida, carecendo, nessa situação, o Ministério Público de legitimidade para deduzir acusação e para a prossecução do procedimento criminal. O ofendido deverá ser notificado para se constituir assistente e para deduzir acusação particular, com a advertência de que não o fazendo, será julgado extinto o procedimento criminal. Neste sentido, cfr., entre outros, Ac. da RP de 18/12/2013, proc. 236/13.4PHMTS.P1, acessível in www.dgsi.pt.
[3] Proferido no proc. n.º 308/12.2T3AND.C1. No mesmo sentido, vide, ainda, entre outros, Ac. da RC de 15/05/2013, proc. n.º 2107/12.2PCCBR.C1, acessíveis em www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, estando aí em causa a alteração da natureza de crime público para semipúblico, cf. Ac. do TC n.º 523/99, publicado in Diário da República n.º 55/2000, Série II de 06/03/2000.
[5] Vide, entre outros, Américo A. Taipa de Carvalho, in Sucessão de Leis Penais, 2ª Edição Revista, Coimbra Editora, 1997, pág. 301
[6] Neste sentido, cfr., entre outros, Prof. Germano Marques da Silva, in Direito Processual Penal Português, Noções Gerais, Sujeitos Processuais e Objecto, Vol. I, Universidade Católica Editora, 2013, págs. 120-121.
[7] No sentido de que, neste caso, embora não tenha que deduzir acusação particular, o ofendido tem de se constituir assistente e de que não se constituindo nessa qualidade, o tribunal deve determinar a ilegitimidade do Ministério Público, vide, Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República …, 3ª edição, 1009, Universidade Católica Editora, pág. 58, anotação 12.