Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ENCERRAMENTO DO INQUÉRITO
PROCEDIMENTO TRIBUTÁRIO DE LIQUIDAÇÃO
Sumário
1 - Se o Ministério Público procedeu, na sua acusação, à determinação do imposto em dívida, o procedimento administrativo tributário de liquidação surge como meio probatório destinado a aferir o acerto das contas de quem acusou. Ou seja, surge como elemento que não despoletou o processo penal tributário, mas sim como um elemento a nele considerar, a jusante. Porque sem interferência da autoridade tributária é também possível determinar, no processo penal, o que se deve ao erário público.
2 - O que permite concluir que, face ao teor da acusação, nada impedia que o Ministério Público encerrasse o inquérito sem que nele se mostrasse realizado o procedimento administrativo-tributário de liquidação relativo à Arguida.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora
I. RELATÓRIO
No processo de inquérito que, com o n.º 37/14.2F1EVR, correu termos pela 2.ª Secção de Santarém do Departamento de Investigação e Ação Penal da Procuradoria da República de Santarém, o Ministério Público acusou: (i) (…),
pela prática, em autoria material e na forma continuada,
- de um crime qualificado de introdução fraudulenta no consumo, previsto e punível pelos artigo 96.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 97.º, alíneas b) e c), por referência aos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 66.º, n.º 2, alínea m) e n.º 3, 72.º e 76.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo;
- de um crime qualificado de fraude fiscal, previsto e punível pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 104.º, n.º 2, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias;
- de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), por referências aos artigos 2.º, n.º 1, alíneas p), s) e ae), 3.º, n.º 6, alínea a), e 2.º, n.º 3, alínea e), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro;
(ii) (…),
pela prática, em autoria material e na forma continuada,
- de um crime qualificado de introdução fraudulenta no consumo, previsto e punível pelos artigo 96.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 97.º, alíneas b) e c), por referência aos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 66.º, n.º 2, alínea m) e n.º 3, 72.º e 76.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo;
- de um crime qualificado de fraude fiscal, previsto e punível pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 104.º, n.º 2, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias;
(iii) (…),
pela prática, em autoria material e na forma continuada,
- de um crime qualificado de introdução fraudulenta no consumo, previsto e punível pelos artigo 96.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 97.º, alíneas b) e c), por referência aos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 66.º, n.º 2, alínea m) e n.º 3, 72.º e 76.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo;
- de um crime qualificado de fraude fiscal, previsto e punível pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 104.º, n.º 2, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias;
(iv) (…),
pela prática, em autoria material e na forma continuada,
- de um crime qualificado de introdução fraudulenta no consumo, previsto e punível pelos artigo 96.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 97.º, alíneas b) e c), por referência aos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 66.º, n.º 2, alínea m) e n.º 3, 72.º e 76.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo;
- de um crime qualificado de fraude fiscal, previsto e punível pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 104.º, n.º 2, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias;
(v) (…),
pela prática, em autoria material e na forma continuada,
- de um crime qualificado de introdução fraudulenta no consumo, previsto e punível pelos artigo 96.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 97.º, alíneas b) e c), por referência aos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 66.º, n.º 2, alínea m) e n.º 3, 72.º e 76.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo;
- de um crime qualificado de fraude fiscal, previsto e punível pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 104.º, n.º 2, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias;
(vi) (…),
pela prática, em autoria material e na forma continuada,
- de um crime qualificado de introdução fraudulenta no consumo, previsto e punível pelos artigo 96.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 97.º, alíneas b) e c), por referência aos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 66.º, n.º 2, alínea m) e n.º 3, 72.º e 76.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo;
- de um crime qualificado de fraude fiscal, previsto e punível pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 104.º, n.º 2, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias;
(vii) (…)
pela prática, em autoria material e na forma continuada,
- de um crime qualificado de introdução fraudulenta no consumo, previsto e punível pelos artigo 96.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 97.º, alíneas b) e c), por referência aos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 66.º, n.º 2, alínea m) e n.º 3, 72.º e 76.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo;
- de um crime qualificado de fraude fiscal, previsto e punível pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 104.º, n.º 2, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias;
(viii) (…),
pela prática, em autoria material e na forma continuada,
- de um crime qualificado de introdução fraudulenta no consumo, previsto e punível pelos artigo 96.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 97.º, alíneas b) e c), por referência aos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 66.º, n.º 2, alínea m) e n.º 3, 72.º e 76.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo;
- de um crime qualificado de fraude fiscal, previsto e punível pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 104.º, n.º 2, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias;
(ix) (…),
pela prática, em autoria material e na forma continuada,
- de um crime qualificado de introdução fraudulenta no consumo, previsto e punível pelos artigo 96.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 97.º, alíneas b) e c), por referência aos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 66.º, n.º 2, alínea m) e n.º 3, 72.º e 76.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo;
- de um crime qualificado de fraude fiscal, previsto e punível pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 104.º, n.º 2, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias;
(x) (…),
pela prática, em autoria material e na forma continuada,
- de um crime qualificado de introdução fraudulenta no consumo, previsto e punível pelos artigo 96.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 97.º, alíneas b) e c), por referência aos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 66.º, n.º 2, alínea m) e n.º 3, 72.º e 76.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo;
- de um crime qualificado de fraude fiscal, previsto e punível pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 104.º, n.º 2, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias;
(xi) (…),
pela prática, em autoria material e na forma continuada,
- de um crime qualificado de introdução fraudulenta no consumo, previsto e punível pelos artigo 96.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 97.º, alíneas b) e c), por referência aos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 66.º, n.º 2, alínea m) e n.º 3, 72.º e 76.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo;
- de um crime qualificado de fraude fiscal, previsto e punível pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 104.º, n.º 2, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias
Requereram a abertura da instrução os Arguidos (…).
Em fase processual prévia à instrução, em 3 de julho de 2020, foi decidido
«(…) a) Declarar a nulidade do despacho que declara encerrado o inquérito; b) Declarar afetados por esta nulidade e como tal inválidos: - o despacho final de acusação e suas notificações; - o pedido cível deduzido pelo MºPº em representação do Estado Português; - os requerimentos de abertura de instrução; c) Ressalvar dos efeitos desta nulidade agora declarada todos os demais termos do processo, incluindo toda a prova documental junta após a acusação; d) Em consequência, determinar a devolução dos autos ao MºPº, a título definitivo, com as competentes baixas. (…)»
Inconformado com tal decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«I- O presente recuso é interposto da douta decisão que declarou a nulidade do despacho que declarou encerrado o inquérito e que consequentemente declarou afetados por esta nulidade e como tal inválidos o despacho final de acusação e suas notificações, o pedido cível deduzido pelo MºPº em representação do Estado Português, os requerimentos de abertura de instrução e, em consequência, determinou a devolução dos autos ao MºPº, a título definitivo. II- Entendeu o Mm.º Juiz a quo em suma que sendo aplicável aos presentes autos o artigo 42.º, n.º 4 do RGIT, quanto aos crimes tributários que neles se investigam, não poderia ter sido encerrado o inquérito sem a prática do ato administrativo de apuramento da situação tributária da arguido (…). III- No entanto, a Alfândega de Peniche, a solicitação do Tribunal, veio informar que nem tão pouco deu início a qualquer processo de liquidação do IABA respeitante aos factos vertidos na acusação, vindo assim confirmar o que já havia sido comunicado pela arguida (…) – cfr. fls. 4117. IV- A questão essencial a apreciar é saber se efetivamente houve preterição de atos legalmente obrigatórios em sede de inquérito, designadamente o apuramento da situação tributária da arguida no âmbito do competente procedimento tributário – tendo sido encerrado o inquérito antes da prática desse ato e, se a prática deste ato de apuramento era obrigatória. V- Dúvidas não restam que a investigação de infrações de natureza fiscal e aduaneira (como é o caso dos autos) está sujeita ao regime do RGIT, como estatui o seu artigo 1.º. VI- Por outro lado, não nos podemos olvidar do regime previsto na Lei Geral Tributária que regula as relações jurídico-tributárias. VII- E, no seu artigo 45.º, n.º 1, dispõe que o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro, sendo que nos termos do n.º 5, da mesma disposição legal se prevê que: Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano. VIII- In casu, verifica-se que efetivamente não houve lugar ao apuramento da situação tributária da arguida no âmbito do competente procedimento tributário e que efetivamente o inquérito foi encerrado, antes da prática desse ato e, contudo entendemos que o referido ato de apuramento não era obrigatório. IX- Ou seja, a relação jurídica tributária na sua vertente material e substantiva pode ou não ser conhecida capazmente no processo penal, neste sentido pode ver-se Rui Marques, A liquidação do imposto e o processo penal tributário, Ver. Do MP, n.º 145, pp 160 e 161, “Para efeitos do conhecimento da matéria penal fiscal e consequente apuramento da responsabilidade penal, torna-se mister conhecer da relação jurídica tributária na sua vertente material e substantiva, que pode ou não ser conhecida capazmente no processo penal. O princípio da suficiência do processo penal surge consagrado no art.º 7.º do CPP como regra (…)”. X- E, bem assim, o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no processo n.º 266/07-5TATNV.E1, datado de 02 de julho de 2019, onde se afirma que “(…) Sem prejuízo da apreciação que possa merecer na decisão da impugnação da matéria de facto, refira-se ainda que a inexistência de liquidações adicionais, invocada nos recursos, não represente em concreto qualquer obstáculo ao conhecimento dos factos e à condenação por crime de fraude fiscal. Na verdade, há que distinguir da liquidação o ato de apuramento da situação tributária, em particular no âmbito do processo penal tributário. (…) o processo penal avança, qualificando-se a liquidação somente como meio de prova e, quando inexistente, operando-se a quantificação ou apuramento da situação tributária através de outros meios de probatórios. (…) Não se julgue pois que o processo penal tributário está, em regra, dependente do procedimento administrativo-tributário de liquidação, como atesta, por exemplo e desde logo, o disposto no n.º 5 do art.º 45.º da LGT (…).” XI- Assim sendo, o Ministério Público podia, como fez, encerrar o inquérito sem que a situação tributária da arguida (…) Estivesse apurada no procedimento respetivo, uma vez que a liquidação podia ser efetuada até ao trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano, cf. art. 45.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária e, assim sendo não houve preterição de atos legalmente obrigatórios e, como tal o despacho de encerramento de inquérito não enferma de qualquer vício, designadamente de nulidade. XII- Não correu a violação de qualquer preceito legal. XIII- Pelo que deve ser dado provimento ao presente recurso, e substituída a douta decisão proferida, por outra que não declare a nulidade do inquérito, ordenando o prosseguimento dos autos para julgamento, após ser proferida decisão de pronúncia.
Porém, Vossas Excelências decidirão Conforme for de JUSTIÇA»
O recurso foi admitido.
Não houve resposta.
û
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu o parecer que se transcreve:
«Somos de parecer que o recurso interposto merece provimento. Acompanhamos a motivação e conclusões do magistrado recorrente. Porque aquelas nos aprecem fundamentadas, qualquer adenda de substância seria despiciente.
Pelo exposto, entendemos que o recurso interposto deve ser julgado procedente.»
Observou-se o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal.
Na resposta que apresentaram, os Arguidos (…) pugnaram pela rejeição do recurso, porque extemporâneo.
Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Posto isto, e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância é colocada, apenas, a questão da obrigatoriedade do apuramento da situação tributária da Arguida (...) antes do encerramento do inquérito.
û
A decisão recorrida tem o seguinte teor [transcrição]:
«Da invocada nulidade por insuficiência de inquérito: Com o RAI foi invocada a existência de nulidade de inquérito que cumpre decidir, pois é logicamente prévia ao conhecimento das demais questões suscitadas.
*
No caso dos autos, vêm os arguidos acusados de crimes de introdução fraudulenta no consumo qualificada (artigos 96º, n.º 1, als. a) e b) e 97º, als. b) e c) do RGIT) e fraude fiscal qualificada, (artigos 103º, n.º 1, als. a) e b) e 104º, n.º 2, al. b) do RGIT). Em síntese alega-se que as arguidas (…) produziam bebidas espirituosas (aguardente, ginga, bagaço, licor, etc…) e faziam transportar tais bebidas para sedes das sociedades (…).”, mediante contrapartidas monetárias não declaradas à ATA. As duas últimas sociedades, bem como a (…) vendiam tais produtos em sacos e caixas opacas (vulgarmente designadas por bag-in-box) identificando-as como se fossem vinho e transportando-as com guias de transporte identificando tais produtos como vinho, vendendo-as de forma não declarada e abaixo do preço de mercado a terceiros, evadindo-se ilicitamente a tributação devida a título de IVA, IRC e Imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas (IABA). Os arguidos (…), requereram a abertura da instrução alegando para além do mais a existência de nulidade por violação do disposto nos artigos 42º e 47º do RGIT, nos termos do artigo 120º, n.º 1, al. d) do CPP (insuficiência de inquérito por omissão de ato legalmente obrigatório). Isto ocorre desde logo porque o IABA devido decorrente dos factos descritos na acusação ainda não foi tão pouco alvo de liquidação por parte da ATA, sendo esta liquidação obrigatória para o encerramento do inquérito, nos termos do artigo 42º, n.ºs 2 e 4 do RGIT. O MºPº pronunciou-se nos termos que constam de fls. 3960 e ss..
*
Cumpre decidir. O artigo 42º, do RGIT estatui que: “1 - Os atos de inquérito delegados nos órgãos da administração tributária, da segurança social ou nos órgãos de polícia criminal devem estar concluídos no prazo máximo de oito meses contados da data em que foi adquirida a notícia do crime. 2 - No caso de ser intentado procedimento ou processo tributário em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos, não é encerrado o inquérito enquanto não for praticado ato definitivo ou proferida decisão final sobre a referida situação tributária, suspendendo-se, entretanto, o prazo a que se refere o número anterior. 3 - Concluídas as investigações relativas ao inquérito, o órgão da administração tributária, da segurança social ou de polícia criminal competente emite parecer fundamentado que remete ao Ministério Público juntamente com o auto de inquérito. 4 - Não serão concluídas as investigações enquanto não for apurada a situação tributária ou contributiva da qual dependa a qualificação criminal dos factos, cujo procedimento tem prioridade sobre outros da mesma natureza.”. A menção no n.º 4 deste artigo ao termo “procedimento” torna claro que tal procedimento é o tributário levado a cabo pela Administração Tributária de apuramento da matéria coletável e de liquidação do imposto em falta. Notamos pois que a investigação de infrações de natureza fiscal e aduaneira (como é o caso dos autos) está sujeita ao regime do RGIT, como estatui o seu artigo 1º. Pelo exposto, e sendo aplicável aos presentes autos o artigo 42º, n.º 4 do RGIT, quanto aos crimes tributários que neles se investiga, não poderia ter sido encerrado o inquérito sem a prática do ato administrativo de apuramento da situação tributária da arguida (…). Nos termos da norma citada o procedimento respetivo, deveria mesmo ter prioridade sobre outros da mesma natureza.
*
No entanto, a alfândega de Peniche, a solicitação do Tribunal, veio informar que nem tão pouco deu início a qualquer processo de liquidação do IABA respeitante aos factos vertidos na acusação, vindo assim confirmar o que já havia sido comunicado pela arguida (…) – cfr. fls. 4117. Vê-se assim esta arguida na insólita situação de lhe ser exigido um imposto que não foi alvo de liquidação por parte das entidades competentes, vendo assim cerceado o recurso os meios de impugnação (graciosa ou contenciosa) previstos na lei fiscal, por não haver decisão a impugnar (cfr. tb. resulta da informação da alfândega de Peniche que dá conta de que a reclamação da arguida/contribuinte será arquivada por “falta de objeto”.
*
Já quanto ao IVA existe impugnação judicial pendente na qual ainda não foi proferida sentença – cfr. fls. 3964 e ss..
*
Note-se que o artigo 42º supra citado não pode analisar-se desacompanhado dos artigos 47º e 48º do RGIT. O artigo 47º, do RGIT estatui que: “1 - Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respetivas sentenças. 2 - Se o processo penal tributário for suspenso, nos termos do número anterior, o processo que deu causa à suspensão tem prioridade sobre todos os outros da mesma espécie.”. Já o artigo 48º do mesmo diploma estatui que “A sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição de executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram.”. Existe pois uma clara intenção do legislador de que, nos crimes tributários, exista uma prévia definição da situação tributária do contribuinte/infrator por parte da administração tributária/aduaneira e mesmo da jurisdição fiscal se a sua intervenção tiver sido devidamente suscitada antes da decisão sobre a responsabilidade penal deste quanto a segunda depender da primeira. Isto é claramente uma exceção ao princípio da suficiência do processo penal, estabelecido no artigo 7º do CPP, segundo o qual “O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa” sendo a devolução de eventuais questões prejudiciais excecional e sujeita a um juízo discricionário/casuístico do Tribunal. As questões jurídicas de natureza tributária têm especificidades técnicas que os Tribunais Judiciais, que com elas têm menor contacto, estão menos aptos a conhecer do que a jurisdição especializada. Acresce também aqui a intenção clara do legislador de evitar decisões contraditórias ao nível dos seus vários órgãos, tendo em conta a natureza dos interesses em jogo em especial no processo penal, cujas decisões são por natureza suscetíveis de afetar direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos. Que dizer se um arguido é submetido a julgamento ou mesmo condenado por um crime fiscal ou aduaneiro que pressuponha a evasão a determinado tributo e em momento posterior a ATA ou a Jurisdição Fiscal vierem dizer que tal tributo nem tão pouco é devido. Entendeu então o legislador que a verdade fiscal deve em primeira linha ser apurada no âmbito do procedimento tributário competente e só após deverá o Ministério Público encerrar o inquérito quando a decisão final dependa desse apuramento. Se após a liquidação do tributo (deduzida ou não a acusação) for intentado processo de impugnação judicial ou oposição à execução na jurisdição fiscal onde se discutam questões relevantes para a responsabilidade penal do arguido, então ocorre a suspensão do processo penal tributário, até tais questões terem sido definitivamente decididas. No caso dos autos, em face do supra exposto, não poderia o MºPº ter encerrado o inquérito sem que a situação Tributária da arguida (…) estivesse apurada no procedimento respetivo (sem prejuízo da faculdade que lhe assistia de ordenar a separação de processos quanto aos crimes que não dependiam desse apuramento). No caso, temos pois que o procedimento/processo de liquidação não só não foi concluído mas quanto ao IABA nem tão pouco se iniciou. Omitiu-se pois um ato legalmente obrigatório – o apuramento da situação tributária da arguida no âmbito do competente procedimento tributário – tendo sido encerrado o inquérito antes da prática desse ato. O artigo 120º, n.º 2, al. d) do CPP, comina de nulidade dependente de arguição “A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios…”. Tal nulidade, respeitante ao inquérito, pode ser arguida pelos interessados “até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.”, (n.º 3, al. c) do citado artigo). Temos pois que a invocada nulidade existe e a sua arguição no RAI é tempestiva.
*
Do âmbito da nulidade em causa e dos atos processuais por esta afetados: O artigo 122º, n.º 2 do CPP estatui que: “As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que deles dependerem e aqueles puderem afetar.”. Cabe assim determinar quais os atos concretos afetados pela nulidade, devendo ser aproveitados todos os que ainda possam produzir efeito útil. O ato diretamente afetado pela nulidade é desde logo o despacho que declara encerrado o inquérito de fls. 3589 e ss., pois era esse o ato que não deveria ter sido praticado. O despacho subsequente de acusação (que está logicamente dependente do encerramento do inquérito) fica também afetado pela nulidade, bem como as respetivas notificações. Fica também afetado o pedido cível deduzido pelo MºPº em representação do Estado Português/Fazenda Nacional e os requerimentos de abertura de instrução (que são logicamente dependentes da acusação) sem prejuízo de se poder aproveitar a prova documental com estes junta. Tal implicará, necessariamente, a devolução dos autos ao MºPº, a título definitivo, regressando estes à fase de inquérito, a fim de ser suprida a nulidade ora declarada. (…)»
û
Conhecendo.
(i)Questão prévia A (in)tempestividade do recurso
Como decorre do que já se deixou dito, os Arguidos (…) entendem que o recurso do Ministério Público deve ser rejeitado, porque extemporâneo.
Da compulsa dos autos resulta que a decisão recorrida foi prolatada a 3 de julho de 2020 e notificada ao Ministério Publico no dia 8 de julho seguinte.
Dela interpôs o Ministério Público recurso no dia 20 de julho de 2020.
Sendo de 30 (trinta) dias o prazo para interposição de recurso, contados a partir da notificação da decisão – artigo 411.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal –, é patente não ter sido o mesmo ultrapassado na apresentação do recurso que nos ocupa.
Não havendo lugar, por isso, à sua rejeição.
(ii) Da obrigatoriedade do apuramento da situação tributária da Arguida (...) antes do encerramento do inquérito
Como bem consta da decisão recorrida, no enquadramento da questão que tratou e que agora também nos ocupa, «No caso dos autos, vêm os arguidos acusados de crimes de introdução fraudulenta no consumo qualificada (artigos 96º, n.º 1, als. a) e b) e 97º, als. b) e c) do RGIT) e fraude fiscal qualificada, (artigos 103º, n.º 1, als. a) e b) e 104º, n.º 2, al. b) do RGIT). Em síntese alega-se que as arguidas (…) produziam bebidas espirituosas (aguardente, ginga, bagaço, licor, etc…) e faziam transportar tais bebidas para sedes das sociedades (…), mediante contrapartidas monetárias não declaradas à ATA. As duas últimas sociedades, bem como a (…) vendiam tais produtos em sacos e caixas opacas (vulgarmente designadas por bag-in-box) identificando-as como se fossem vinho e transportando-as com guias de transporte identificando tais produtos como vinho, vendendo-as de forma não declarada e abaixo do preço de mercado a terceiros, evadindo-se ilicitamente a tributação devida a título de IVA, IRC e Imposto sobre o álcool e as bebidas alcoólicas (IABA). Os arguidos (…), requereram a abertura da instrução alegando para além do mais a existência de nulidade por violação do disposto nos artigos 42º e 47º do RGIT, nos termos do artigo 120º, n.º 1, al. d) do CPP (insuficiência de inquérito por omissão de ato legalmente obrigatório). Isto ocorre desde logo porque o IABA devido decorrente dos factos descritos na acusação ainda não foi tão pouco alvo de liquidação por parte da ATA, sendo esta liquidação obrigatória para o encerramento do inquérito, nos termos do artigo 42º, n.ºs 2 e 4 do RGIT.»
Na acusação deduzida no processo – de fls. 3596 a 3631, e em concreto a fls. 3616 e 3617 – encontra-se apurado o valor que, no entendimento do Ministério Público, a Arguida (…) tem em dívida à Fazenda Nacional: € 287 116,50 (duzentos e oitenta e sete mil cento e dezasseis euros e cinquenta cêntimos), sendo que deste € 88 299,56 (oitenta e oito mil duzentos e noventa e nove euros e cinquenta e seis cêntimos) são a título de IEC/IABA, € 113 619,92 (cento e treze mil seiscentos e dezanove euros e noventa e dois cêntimos) são a título de IVA e € 85 197,02 (oitenta e oito mil cento e noventa e sete euros e dois cêntimos) são a título de IRC.
As investigações de infrações de natureza fiscal e aduaneira estão sujeitas ao Regime Geral das Infrações Tributárias, como decorre do seu artigo 1.º.
E nesta matéria rege o disposto no artigo 42.º, para cuja interpretação deve convocar-se o constante dos artigos 47.º e 48.º. É o que resulta da decisão recorrida, que neste segmento acompanhamos, nos termos supra transcritos.
Todavia, a decisão em causa não atribuiu qualquer relevo ao que consta do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, cuja aplicação in casu é indiscutível.
Nem atentou num dos princípios estruturantes do processo penal, que é o da sua suficiência, consagrado no artigo 7.º do respetivo código.
Como se refere no acórdão desta Relação de 2 de julho de 2019, proferido no processo n.º 266/07-5TATNV.E1 e acessível em www.dgsi.pt, «(…) Não se julgue pois que o processo penal tributário está, em regra, dependente do procedimento administrativo-tributário de liquidação, como o atesta, por exemplo e desde logo, o disposto no n.º 5 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária. (…) Para efeitos do conhecimento da matéria penal fiscal e consequente apuramento da responsabilidade penal, torna-se mister conhecer da relação jurídica tributária na sua vertente material e substantiva, que pode ou não ser conhecida capazmente no processo penal. O princípio da suficiência do processo penal surge consagrado no artigo 7.º do Código de Processo Penal como regra (…)” (“Rui Marques, A liquidação do imposto e o processo penal tributário”, Revista do Ministério Público, n.º 145, páginas 160 e 161).»
O que equivale a afirmar que se o Ministério Público procedeu, na sua acusação, à determinação do imposto em dívida, o procedimento administrativo tributário de liquidação surge como meio probatório destinado a aferir o acerto das contas de quem acusou. Ou seja, surge como elemento que não despoletou o processo penal tributária, mas sim como um elemento a nele considerar, a jusante.
Porque sem interferência da autoridade tributária é também possível determinar, no processo penal, o que se deve ao erário público.
O que permite desde já concluir que, face ao teor da acusação, nada impedia que o Ministério Público encerrasse o inquérito sem que nele se mostrasse realizado o procedimento administrativo-tributário de liquidação relativo à Arguida (...).
Pelo que não ocorre qualquer invalidade, nomeadamente a prevenida na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal.
E o recurso procede.
III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que dê início à fase processual da instrução.
Sem tributação.
û
Évora, 2021 maio 11
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
______________________________________________
(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)