CONDENAÇÃO EM CUSTAS
REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA
ESPECIAL COMPLEXIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
INTERPRETAÇÃO DA LEI
REFORMA DE ACÓRDÃO
Sumário


A norma constante do n.º 7 do art. 6.º do RCP deve ser interpretada no sentido de que ao juiz é lícito dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fração ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa e/ou do recurso exceder o patamar de € 275 000,00 consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade da tramitação processual, comportamento processual das partes e complexidade substancial das questões a decidir), à luz dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.

Texto Integral



ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL

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I. Relatório


1. A ré Medway – Operador Ferroviário e Logístico de Mercadorias, S.A, notificada do acórdão proferido por este  Supremo Tribunal nos presentes autos em 28 de janeiro de 2021 e que julgou improcedente o  recurso  de revista por ela interposto, determinando que « As custas das revistas ficam a cargo da recorrente», vem, nos termos do disposto no art. 616º, nº 1, ex vi arts. 666º e 685º, todos do CPC, requerer a reforma do referido acórdão quanto a custas.

Alega, para tanto e em síntese, que, tendo a ação o valor de € 4.972.037,59 e considerando que o recurso de revista por ela interposto não revestiu especial complexidade e que a sua atuação processual pautou-se pela correção e colaboração para com o Tribunal e a contraparte, impõe-se moderar o excesso da taxa de justiça  devida, à luz do princípio da proporcionalidade, dispensando-se o requerente do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Termos em que requer a reforma do acórdão em causa quanto a custas, dispensando-se a requerente do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida nos termos do disposto no art. 6º, nº 7 do Regulamento das Custas Processuais.  

2. A recorrida Alberto Fernandes & Fernandes Ldª não respondeu.

3. O Srº Procurador Geral Adjunto, pronunciou-se no sentido do deferimento da requerida dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida nesta instância recursiva.

4. Dispensados os vistos, cumpre decidir.


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II. Do mérito do pedido de reforma

Considerando que o pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça  foi  formulado pela ré Medway – Operador Ferroviário e Logístico de Mercadorias, S.A, em 11.02.2021, antes, portanto, do trânsito em julgado do acórdão proferido, em 28.01.2021, determinando que as custas das revistas  ficavam a cargo da recorrente,  nenhum impedimento legal existe ao seu conhecimento, na medida em que estamos ante um pedido atinente  ao recurso de revista e que, conforme resulta do disposto nos arts 527º, nº 1 e 529º, nº1, ambos do CPC e art. 1º, nº 2 e 6º, nºs 1 e 2, do Regulamento das Custas Processuais  (RCP ) e nas tabelas I-A e I-B anexas, os incidentes, as ações e os recursos são considerados  processos ou procedimentos autónomos  para efeito de sujeição ao pagamento de custas stricto sensu e de taxa de justiça, funcionando entre eles  o princípio da autonomia.

Assim, a questão a dirimir consiste em saber se, no caso dos autos e tendo a  requerente  pago a taxa de justiça no valor de € 816,00 ( correspondente a 8 UC’s), de acordo com o disposto  no art. 6º, nº 2,  do RCP, justifica-se, ou não, a dispensa  do pagamento do remanescente da taxa de justiça para além do valor de € 275.000,00, nos termos do nº 7 deste mesmo artigo.


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No que respeita às custas processuais e na parte que aqui interessa analisar, dispõe o nº 1 do art. 529º do CPC, que «As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de partes», estabelecendo o nº 2 deste mesmo artigo que «A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente e é fixado em função do valor e complexidade da causa, nos termos do Regulamento das Custas Processuais».

E estipula o 530º, nº 7 do CPC que «Para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça, consideram-se de especial complexidade as acções e os procedimentos cautelares que:

Contenham articulados ou alegações prolixas;

Digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; ou

Impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas».

Por sua vez, dispõe o art. 6º do RCP (na redação dada pela Lei nº 7/2012, de 13 de fevereiro), na parte com interesse para a decisão do presente incidente, que:

«1. A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor e complexidade da causa de acordo com o presente Regulamento, aplicando-se, na falta de disposição especial, os valores constantes da tabela I-A, que faz parte integrante do presente Regulamento.

(…)

5. O juiz pode determinar, a final, a aplicação dos valores de taxa de justiça constantes da tabela I-C, que faz parte integrante do presente Regulamento, às acções e recursos que revelem especial complexidade.

7. Nas causas de valor superior a € 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento».   

E, de acordo com a  mencionada  Tabela I, estão previstos treze escalões de taxa de justiça fixados em função dos valores da ação até ao montante de € 275.000,00, a que acresce, para além desse limiar « a final, por cada € 25 000 ou fracção, 3UC, no caso da col. A, 1,5UC, no caso da Col. B, e 4,5UC, no caso da col. C. ».  

Constata-se, assim, perante este quadro legal, que, não obstante as alterações trazidas pelo RCP[1] ( que revogou o Código das Custas Judiciais, aprovado pelo DL nº 224-A/96, de 26 de novembro), a taxa de justiça continua a apresentar-se, como «a prestação pecuniária que o Estado, em regra, exige aos utentes do serviço judiciário no quadro da função jurisdicional por eles causada, ou seja, trata-se do valor que os sujeitos processuais devem prestar como contrapartida mínima relativa à prestação daquele serviço»[2], sendo, por isso, o impulso processual de cada parte ou sujeito processual, o factor que desencadeia,  automaticamente, a responsabilidade pelo pagamento da taxa de justiça[3]

Mas se é certo que, tal como já acontecia no regime do Código das Custas Judiciais, a taxa de justiça continua a ser fixada, em regra, “em função do valor e complexidade da causa”, por referência a uma tabela, há que reconhecer, contudo, ter-se registado uma grande mudança nos mecanismos de fixação do valor deste tributo a pagar, na medida em que, de acordo com as novas tabelas, o valor da taxa de justiça deixou de ser fixado com base numa mera correspondência face ao valor da ação, estabelecendo-se, agora, tal como se refere no preâmbulo do RCP, «um sistema misto que assenta no valor da ação, até um certo limite máximo, e na possibilidade de correção da taxa de justiça quando se trate de processos especialmente complexos, independentemente do valor económico atribuído à causa»[4].    

E pese embora o RCP, na sua redação originária, contemplar apenas a complexidade da causa como fator de majoração do montante da taxa de justiça, admitindo a intervenção judicial no sentido da agravação do valor da taxa de justiça pela especial complexidade da ação ou do recurso (nº 5 do citado art. 6º ), não estando prevista a possibilidade de aplicação, a final, de valores de taxa de justiça inferiores aos resultantes da tabela aplicável, a verdade é que, dando voz à orientação jurisprudencial, em especial à emanada do Tribunal Constitucional, a Lei nº 7/2012, de 13 de fevereiro, em estreito paralelismo com a norma que figurava no art. 27º, nº 3 do CCJ, veio aditar ao art. 6º do RCP o nº 7, acima transcrito, ficando, desde então, consagrada legalmente «a possibilidade de intervenção do juiz no sentido da correção, a final, dos montantes da taxa de justiça, quando  da sua fixação unicamente em função do valor da causa resultem valores excessivos e desadequados à natureza e complexidade da causa»[5].     

Neste mesmo sentido, refere o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 18.01.2018 (revista nº 7831/16.8T8LSB.L1.S1)[6] que « O valor da taxa de justiça passou, deste modo, a poder ser objeto de correção por parte do julgador, não apenas no sentido da sua agravação a ser determinada, nos termos do nº 5 do art. 6º, pela especial complexidade da ação ou do recurso, mas agora também no sentido da dispensa ou redução da taxa de justiça remanescente devida nas causas de valor superior a € 275.000,00, caso a especificidade do caso o reclame, tomando-se em consideração, designadamente, a complexidade da causa e a conduta das partes».

Com efeito, há que reconhecer, como nos dá conta o Acórdão do Tribunal Constitucional  nº 421/2013, de 15.07.2013[7], que  « os critérios de cálculo da taxa de justiça, integrando normação que condiciona o exercício do direito fundamental de acesso à justiça (artigo 20.º da Constituição), constituem, pois, a essa luz, zona constitucionalmente sensível, sujeita, por isso, a parâmetros de conformação material que garantam um mínimo de proporcionalidade entre o valor cobrado ao cidadão que recorre ao sistema público de administração da justiça e o custo/utilidade do serviço que efetivamente lhe foi prestado (artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da mesma Lei Fundamental), de modo a impedir a adoção de soluções de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efetivo exercício de um tal direito».

Daí sufragar-se o entendimento expendido no Acórdão do STJ de 12.12.2013 ( revista nº 1319/12.3TVLSB-B.L1.S1)[8] de que «a norma constante do nº 7 do art. 6º do RCP deve ser interpretada em termos de ao juiz ser lícito dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de €275.000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), iluminada pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade».

Ora, assente que o citado art. 6º, nº 7, confere ao juiz o poder-dever de flexibilizar  o montante global da taxa de justiça devida em  procedimentos de valor particularmente elevado, adequando o valor remanescente  da taxa de justiça, a liquidar adicionalmente, na parte em que o valor da causa exceda o montante de € 275.000,00, importa, agora, indagar se, no caso dos autos, existe fundamento para  aplicação deste normativo.

Ou seja, saber se, considerando  que o valor da ação e do recurso é de € 4.972.037,59, nos termos do disposto no art. 12º, nº 2, parte final, do RCP, sendo, por isso, caso de aplicação da Tabela I B, a utilidade económica do direito  em litígio, o comportamento processual dos litigantes, a complexidade da tramitação processual ou da causa, legitimam, ou não, em termos de adequação e proporcionalidade, a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça para além do valor de € 275.000,00, nos termos do art. 6º, nº 7,  do Regulamento das Custas Processuais.

Dito ainda de outro modo, se esta norma permite, nas circunstâncias dos autos, que seja desconsiderado o valor do remanescente da taxa de justiça devida pelo recurso, para além do valor de € 275.000,00, e que não foram objeto de liquidação prévia pela parte.

A este respeito, importa realçar que, quanto à utilidade ou valor económico dos interesses envolvidos, dúvidas não restam de que movemo-nos no âmbito de uma ação de valor pouco elevado.

No que concerne à tramitação processual, não se vê que a mesma se tenha revestido, em sede de recurso, de grande complexidade.

E o mesmo vale dizer relativamente à complexidade substancial da questão decidir – saber se o acórdão recorrido ao determinar o aproveitamento da nova petição inicial apresentada pela autora na sequência de convite ao respetivo aperfeiçoamento, violou o caso julgado formal formado por anterior despacho judicial.

Mas se é certo que, relativamente à atuação processual da recorrente, não se descortina qualquer atuação suscetível de violação dos deveres de boa fé e de cooperação, a verdade é que a falta de consistência dos fundamentos invocados na interposição do recurso de revista, mais não representa do que um mero interesse da recorrente em aceder ao terceiro grau de jurisdição.

Daí que, sopesando todos estes factores se entenda, à luz da interpretação dada à norma do nº 7 do art. 6º do RCP, não haver fundamento para deferir a pretendida dispensa  total de pagamento da taxa de justiça remanescente, considerando-se, todavia, adequado dispensar os requerentes do pagamento de 70% do valor da taxa de justiça remanescente devida pelo recurso, para além do valor de € 275.000,00.


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III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em deferir parcialmente o pedido formulado pela recorrente, Medway – Operador Ferroviário e Logístico de Mercadorias, S.A, requerente, dispensando-se a mesma do pagamento de 70% do valor da taxa de justiça remanescente, devida pelo recurso de revista, correspondente ao valor da causa, na parcela excedente a  € 275.000,00. 

Sem custas.


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Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª. Senhora Conselheira Catarina Serra e do Exmº Senhor Conselheiro Paulo Rijo Ferreira que compõem este coletivo.

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Supremo Tribunal de Justiça, 25 de março de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

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[1] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro e posteriormente alterado pela Lei n.º 43/2008, de 27 de agosto; pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de agosto; pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro; pela Lei n.º 3-B /2010, de 28 de abril; pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de abril; pela Lei n.º 7/2012, de 13 de fevereiro; pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro; pelo Decreto-Lei n.º 126/2013, de 30 de agosto e pela Lei n.º 72/2014, de 2 de Setembro.
[2] Cfr. Salvador da Costa, in, “Regulamento das Custas Processuais”, 4ª edição, Almedina 2012, págs. 6 e 7.
[3]Cfr. citado comentário de Salvador da Costa in https://blogippc.blogspot.com/2017/11/algumas-questoes-sobre-taxa-de-justica.html.
[4] No mesmo sentido, cfr. Salvador da Costa, in, “Regulamento das Custas Processuais, Anotado e Comentado, Almedina, 21012, 4ª edição, pág. 231.
[5] Neste sentido, Guia Prático sobre Custas, Centro de Estudos Judiciários, 4ª edição, pág. 87.
[6] Publicado in www dgsi.pt.
[7] Que decidiu «julgar inconstitucionais, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, segunda parte, da Constituição, as normas contidas nos artigos 6.º e 11.º, conjugadas com a tabela I-A anexa, do Regulamento das Custas Processuais, na redação introduzida pelo DL 52/2011, de 13 de abril, quando interpretadas no sentido de que o montante da taxa de justiça é definido em função do valor da ação sem qualquer limite máximo, não se permitindo ao tribunal que reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a complexidade do processo e o caráter manifestamente desproporcional do montante exigido a esse título.»
[8] Publicado in www. dgsi.pt.