ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
VALIDADE
FORMA ESCRITA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO ARRENDATÁRIO
ERRO DE JULGAMENTO
VIOLAÇÃO DE LEI
ÓNUS DA PROVA
DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
Sumário


I - Ainda que não tenha sido impugnado, um documento particular emitido por terceiro não faz prova plena dos factos aí constantes; pois se, nos termos do n.º 1 do art. 376.º do CC, a autoria do documento se encontra reconhecida, quanto ao conteúdo do mesmo, não estão reunidos os requisitos previstos no n.º 2 do mesmo preceito, conjugado com o art. 358.º, n.º 2, do CC, de que depende a prova de factos contrários aos interesses da contraparte.
II - Aprovou a AR, na pendência da presente acção, a Lei n.º 13/2019, de 12-08, na qual, entre outras inovações, introduziu no CC a norma do n.º 2 do art. 1069.º que permite que a prova do contrato de arrendamento seja feita mediante qualquer meio de prova admitido em direito.
III - Atendendo à finalidade expressamente enunciada pelo legislador de, com o novo regime legal, se alcançar uma maior protecção dos interesses dos arrendatários, temos como certo que a determinação de aplicação desse novo regime aos arrendamentos existentes à data da sua entrada em vigor (art. 14.º, n.º 2, da Lei n.º 13/2019) abrange os casos apreciados em acções pendentes, como a presente, desde que verificados os respectivos requisitos.
IV - Exige o n.º 2 do art. 1069.º do CC que a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento não seja imputável ao arrendatário e ainda que se demonstre a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio, assim como o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.
V - No que se refere a estes dois últimos requisitos, da factualidade dada como provada resulta que a ré e, antes dela o seu marido, utilizam a fracção autónoma em causa há mais de quatro décadas, sem oposição dos sucessivos proprietários, pagando mensalmente a respectiva renda.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. Vírgula Brilhante – Investimentos Imobiliários, S.A. intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo que:

a) Seja reconhecido o direito de propriedade da A. sobre a fracção autónoma designada pela letra “F” pertencente ao prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.os ... a ..., freguesia da ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º …81 da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …46 da freguesia da ..., com a consequente restituição do que lhe pertence;

b) Seja a R. condenada a pagar à A. a quantia mensal de € 2.000,00 correspondente ao valor locativo do imóvel, a calcular desde a citação da R., até à sua efectiva entrega à A., acrescida de juros de mora, à taxa legal.

Para tanto, alegou, em síntese: que adquiriu o prédio, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.os ... a ..., freguesia da ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º …81 da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …49 da freguesia da ...; que a R. habita o … andar do referido prédio sem qualquer direito que legitime tal ocupação; que o valor locativo do aludido espaço corresponde, no mínimo, à quantia de €2.000,00.

A R. contestou por impugnação e por excepção, alegando que ocupa o imóvel ao abrigo de um contrato de arrendamento, nele habitando desde 1980; mais alegando que não é proprietária nem inquilina de qualquer outro imóvel no concelho de ... ou nos concelhos limítrofes.

Por sentença de 3 de Julho de 2019, foi a acção julgada parcialmente procedente, decidindo-se:

«a) Reconhecer o direito de propriedade da Autora VÍRGULA BRILHANTE – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, S.A. sobre a fração autónoma designada pela letra “F” pertencente ao prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sita na Rua ..., n.º ... a ..., freguesia da ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ….81 da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ….46 da freguesia de ... e condenar a Ré AA a restituir à Autora a referida fração.

b) Condenar a Ré no pagamento de indemnização pelos prejuízos sofridos - privação de uso – no valor de € 660,50 (seiscentos e sessenta Euros e cinquenta cêntimos) mensais, desde a citação até à efetiva restituição pela Ré à Autora do local reivindicado, a que acresce juros de mora à taxa legal desde a citação até integral e efetivo pagamento.

c) Absolver a Ré do demais peticionado a título de indemnização.

Custas pela Autora e pela Ré, na proporção de 1/10 para a Autora e 9/10 para a Ré, sem prejuízo ao apoio judiciário concedido à Ré (fls. 55) – artigo 527.º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Civil.»

Inconformada, a R. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 5 de Maio de 2020 foi alterada a matéria de facto e, a final, proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, e de harmonia com as disposições legais citadas, na procedência da apelação, altera-se a decisão recorrida e, por isso,

(i)    mantém-se o decidido na al. c) e na parte em que, na al. a) reconhece o direito de propriedade da Autora VÍRGULA BRILHANTE – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, S.A. sobre a fração autónoma designada pela letra “F” pertencente ao prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sita na Rua ..., n.º ... a ..., freguesia da ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ..81. da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …46 da freguesia de ... e

(ii) revoga-se o decidido quanto à entrega do locado e ao pagamento da indemnização, absolvendo-se a R. destes pedidos.

Custas pela apelada.»


2. Veio a A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«A. O douto Tribunal da Relação entendeu proceder à reapreciação da prova gravada e alterou a matéria de facto fixada pela Primeira Instância, decidindo dar como provadas as alíneas b) a e) constantes da matéria de facto dada como não provada por esta última.

B. A alteração da matéria de facto nestes termos, violou reiteradamente normas legais de direito probatório, pelo que merece censura.

C. O Tribunal “a quo” não podia ter alterado a matéria de facto nos termos em que o fez, pois que, ao fazê-lo, violou a regra sobre o ónus da prova, constante do artigo 342.º n.º 2 do Código Civil.

D. Atente-se que a sociedade V..., S.A., anterior proprietária do imóvel, juntou aos autos, por ordem da Meritíssima Juiz de Direito do Tribunal de Primeira Instância, declaração (cfr. Fls.78) onde informou que não tem registo, nem conhecimento de quaisquer pagamentos recebidos que tenham sido efetuados por BB.

E. Este documento NÃO foi impugnado pela Recorrida.

F. Com efeito, caso a ora Recorrida pretendesse abalar a validade de algum documento constante nos autos, fosse particular, autêntico ou autenticado, estava obrigada a impugnar o mesmo, tal como é exigível pelo Código Civil (CC) – artigo 362º a 387º - e pelo Código de Processo Civil (CPC) – artigo 444º a 447º.

G. Não tendo impugnado o documento em causa, ao Tribunal “a quo” não restava outra alternativa que não fosse dar como provados os factos extraídos do referido documento, tendo em consequência o Tribunal a quo violado expressamente as normas legais estatuídas nos artigos 362º a 387º do Código Civil, em especial, o regime de prova plasmado no artigo 376, bem como os artigos 444º a 447º do Código de Processo Civil (CPC).

H. Violou o Tribunal “a quo” igualmente o disposto no nº 1 do artigo 394º do Código Civil (…), segundo o qual “É inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas, quer sejam posteriores”.

I. Acresce que, o acórdão recorrido não podia ter concluído pela existência de uma relação de arrendamento entre as partes, tendo mais uma vez violado as regras legais imperativas de direito probatório.

J. Mesmo alterada a matéria de facto considerada como provada pela Primeira Instância, nos termos em que o foi, tais alterações não podiam permitir ao acórdão recorrido concluir pela existência de uma relação de arrendamento.

K. Esta questão não é uma questão de apreciação ou reapreciação da prova, vedada a este Supremo Tribunal de Justiça, é outrossim uma questão de boa aplicação do direito aos factos considerados como provados.

L. O Tribunal Recorrido reconheceu uma relação de arrendamento sem precisar tampouco em que data se iniciou, quem é o primitivo titular de tal arrendamento e qual a causa de transmissão do mesmo, acaso esta existisse de facto.

M. No entanto, o acórdão recorrido fixou que o contrato de arrendamento se terá constituído anteriormente ao RAU – Dec. Lei nº 321-B/90, portanto anteriormente a 1990.

N. E é certo que, tanto o artigo 1088.º do Código Civil, em vigor anteriormente ao RAU, e posteriormente este, estabelecem que o contrato de arrendamento deve ser reduzido a escrito e só pode provar-se mediante exibição do recibo de renda.

O. Por mera hipótese de patrocínio, caso o referido arrendamento existisse, a lei vigente ao tempo em que foi ficcionada a celebração do negócio, impunha uma disciplina normativa clara - A inobservância da forma escrita só pode ser suprida pela exibição do recibo de renda!

P. Recibo este que para ser idóneo e fazer a prova do contrato deve conter a identificação cabal do locado, dos fins a que se destina, do valor da renda, do período a que respeita, a identificação do locador e deverá ser emitido em nome do arrendatário.

Q. Ora os recibos de renda juntos aos autos eram emitidos em nome de CC, logo não comprovam de forma alguma a existência de um contrato de arrendamento verbal a favor da Recorrida ou do seu falecido marido.

R. Assim a factualidade acolhida pelo Tribunal da Relação, porque decorrente, exclusivamente, da produção de prova testemunhal, é desprovida de qualquer relevância, tendo a mesma de ser havida por não provada, nos termos conjugados do preceituado nos arts. 674º, nº 3 e 682º, nº 2, ambos do CPC, uma vez que traduz ofensa de disposição expressa de lei que exige a espécie de prova mencionada previamente para a existência do facto que tal prova testemunhal habilitou a ter como integrado, ou seja, a exibição dos correspondentes recibos de renda.

S. A prova documental dos autos de fls. 42, 64 a 65, 70 a 72, 78, 106 vs. a 112, apontam no sentido claro de que a Recorrida não cumpriu o seu ónus de provar existência do contrato de arrendamento.

T. Ao considerar a existência de um contrato de arrendamento verbal entre a Recorrida e Recorrente, o tribunal “a quo” violou os artigos 342.º n° 1 e 1311, n°s 1 e 2 do C. Civil.

U. O Tribunal “a quo” nunca poderia ter aplicado ao caso concreto o regime estatuído no artigo 1069.º, na redação da Lei n.º 31/2012, de 14/08 com o acrescento do n.º 2 da Lei n.º 13/2019, sob pena de violação expressa dos artigos 342.º n° 1 e 1311, n°s 1 e 2 do C. Civil.

V. Não resulta da matéria de facto provada a não oposição do senhorio da utilização do locado, nem o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.

W. Pode o falecido marido da Recorrida ter procedido ao pagamento de valores equivalentes ao valor da renda, mas esse pagamento não foi feito em seu nome, mas sempre em nome da única arrendatária que existiu neste imóvel, CC, sendo do desconhecimento do anterior proprietário o pagamento das rendas pelo falecido marido da Recorrida e posteriormente por esta.

X. Ainda que se tenha provado que (i) o marido da Recorrida, já falecido, pagava a importância correspondente à renda (fazendo-o em nome de terceiros); (ii) que após o falecimento deste a Recorrida continuou a pagar o valor correspondente à renda mensal de € 85,00 (também em nome de terceiros); (iii) e que, lhe eram entregues os recibos de renda (também em nome de terceiro), daqui não poderia a Relação de Lisboa ter concluído pela existência de um contrato de arrendamento.

Y. Não tendo sido emitidos recibos em nome do falecido marido da Recorrida ou desta última, não podem outros recibos emitidos em nome de terceiros servir para provar qualquer existência de arrendamento.

Z. Ainda assim, no caso hipotético de o arrendamento ser considerado, o que apenas se concede por mero dever de patrocínio, estamos perante, uma incompatibilidade de direito pessoal de gozo, e um direito real de gozo, sendo que quer por força do artigo 407.º de Código Civil quer por força do nº 5 do artigo 5º do Código de Registo predial, prevalece o direito real sujeito a registo (da Recorrente), por o direito de arrendamento em causa ser de duração superior a seis anos, não registado, e, consequentemente, não ser oponível a terceiros.

AA. O acórdão recorrido situa a constituição do arrendamento em data anterior a 1990, tendo a Recorrente adquirido o imóvel, livre de ónus ou encargos em 2016, pelo que, ainda que se considerasse que teria existido um contrato de arrendamento com o falecido marido da Recorrente ou com esta última, tal contrato, por não se encontrar registado conforme impõe o artigo 5º do Código do Registo Predial, não é oponível à ora Recorrente por terem já decorrido muito mais de seis anos desde a sua constituição.

BB. A Recorrente desconhecia a existência da Recorrida, nunca deu de arrendamento o referido imóvel, nem recebeu quaisquer rendas, portanto caso fosse reconhecido o referido contrato, tal não seria oponível à Recorrente, enquanto terceiro de boa-fé.

CC. Por não ter procedido à declaração de inoponibilidade, o Tribunal recorrido violou o disposto no nº 5, do artigo 5º do Código do Registo Predial, devendo assim este Supremo Tribunal de Justiça, concluir pela inoponibilidade de tal contrato à ora Recorrente e, consequentemente, ordenar a restituição do imóvel a esta.

DD. Sendo entendimento da Recorrente que o Acórdão recorrido deve ser revogado, repristinando-se a decisão e fundamentação da decisão proferida em 1ª instância, também a matéria referente à condenação da R. no pagamento de indemnização pelos prejuízos sofridos se deverá manter.»

A Recorrida contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:

«A. Vem o presente recurso de Revista do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que julgou procedente o recurso de apelação e, consequentemente, revogou o decidido pela 1.ª instância quanto à entrega do locado e ao pagamento da indemnização, absolvendo-se a aqui Recorrida destes pedidos.

B. Sucede que este Tribunal não pode reapreciar a decisão sobre a matéria de facto.

C. Com efeito, da mera leitura das conclusões decorre que a Recorrente não concretizou os pontos que pretende ver alterados, nem afirmou a sua pretensão no sentido da alteração de cada ponto da decisão sobre a matéria de facto que entende terem sido incorrectamente julgados pelo Tribunal a quo.

D. A Recorrente não deu cumprimento ao disposto no artigo 640.º do CPC, uma vez que devia ter indicado (i) os pontos da decisão sobre a matéria de facto que entendia impugnar, (ii) os concretos meios probatórios que, sobre cada um dos pontos impugnados, impunham decisão diversa da recorrida e (iii) especificar ainda a decisão concreta a proferir sobre cada um dos diversos pontos da matéria de facto impugnados.

E. Verificando-se qualquer uma destas omissões o recurso deve ser rejeitado – na parte relativa à impugnação da decisão da matéria de facto – não havendo lugar a convite para aperfeiçoamento.

F. Sem conceder, ao contrário do que alega a Recorrente, os factos constantes de um documento particular não devem ser considerados provados

G. Antes, a força probatória material de um documento particular limita-se a atestar que o signatário emitiu as declarações constantes do aludido documento.

H. O Tribunal a quo fez uma análise cuidada de todos os meios de prova que foram produzidos nos autos – incluindo o documento particular identificado pela Recorrente – e alterou a decisão sobre a matéria de facto.

I. O Tribunal a quo não violou qualquer disposição expressa ou disposição que fixe a força de determinado meio de prova, pelo que este Tribunal não pode apreciar se existiu – ou não – erro na apreciação da prova.

J. Nas alegações sob resposta a Recorrente vem, pela primeira vez, suscitar uma alegada inadmissibilidade da prova testemunhal.

K. Primeiramente, não é possível identificar nem nas conclusões nem nas alegações sob resposta qual o documento particular a que alude a Recorrente para fundamentar o argumento de que a prova testemunhal seria inadmissível.

L. Por outro lado, nenhuma das testemunhas inquiridas tomou posição sobre qualquer convenção contrária ou adicional ao conteúdo de um documento particular que tenha força probatória plena.

M. Assim, não pode restar qualquer dúvida que o artigo 394.º do CC não é aplicável ao caso sub judice, razão pela qual a prova testemunhal produzida nos autos é admissível para mais quando o contrato de arrendamento em questão pode ser demonstrado por qualquer meio de prova admissível.

N. Quanto ao recurso interposto do segmento do acórdão que apreciou a matéria de direito também o mesmo não pode proceder.

O. Isto porque andou bem o Tribunal a quo quando concluiu que a prova de um arrendamento verbal pode ser feita por qualquer meio de prova admitido em direito, pelo que não tem fundamento a tese exposta nas alegações sob resposta.

P. Com efeito, tal como referido no acórdão recorrido – mas ignorado pela Recorrente nas suas alegações – as sucessivas leis (nomeadamente, o Decreto-Lei n.º 188/76, de 12 de Março, e o Decreto-Lei n.º 13/86, de 23 de Janeiro) consagraram que o locatário pode provar a existência do contrato de arrendamento por qualquer meio de prova admitido em direito.

Q. Mas, mesmo que se ignorasse in totum a existência do Decreto-Lei n.º 188/76, de 12 de Março, e o Decreto-Lei n.º 13/86, de 23 de Janeiro, então, não podia restar qualquer dúvida que a actual redacção do n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil seria aplicável ao caso sub judice.

R. Isto porque o artigo 14.º da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, prevê que o n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil é aplicável a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma.

S. Face aos factos que ficaram provados, bem andou o Tribunal a quo quando concluiu que “a R. logrou a prova de existência do contrato de arrendamento”.

T. A título subsidiário a Recorrente vem expor uma nova questão que respeita a uma alegada não oponibilidade do contrato de arrendamento.

U. Como é pacífico na nossa Jurisprudência, os recursos visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento.

V. Nessa medida, não pode ser apreciada a questão relativa à alegada não oponibilidade do contrato de arrendamento dado que não corresponde a qualquer pedido anteriormente formulado pela Recorrente nos presentes autos e apenas foi suscitada no recurso sob resposta.

W. Sem conceder, o n.º 5 do artigo 5.º do CRPredial que é invocado pela Recorrente não tem aplicação ao caso sub judice, uma vez que o n.º 5 apenas foi aditado pelo artigo 8.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, quando o contrato de arrendamento em questão é anterior à entrada em vigor do RAU.

X. Ao contrário do que procura sustentar a Recorrente, não é o período que a Recorrida vive no apartamento que impõe – ou não – se um determinado contrato de arrendamento está sujeito a registo.

Y. O artigo 2.º do CRPredial prevê que apenas os contratos de arrendamento celebrados por um prazo superior a seis anos é que estão sujeitos a registo.

Z. Adicionalmente, a Recorrente faz também tábua rasa da decisão sobre a matéria de facto tudo para conseguir aplicar o seu Direito, uma vez que desta decisão não consta que o contrato de arrendamento tenha sido celebrado por um prazo superior a seis anos.

AA. Nessa medida, o contrato de arrendamento é válido e eficaz, sendo que a posição da anterior locadora foi transmitido para a Recorrente ao abrigo do princípio emptio non tollit locatum.

BB. Face ao exposto, a Recorrida não pode deixar de pugnar pela manutenção do acórdão recorrido dado que este corresponde a uma decisão rigorosa e bem fundamentada quanto aos factos e ao direito.»

O recurso foi admitido por despacho de 30 de Setembro de 2020, sendo os autos remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça por ofício de 6 de Novembro de 2020.

Cumpre apreciar e decidir.


3. Vem provado o seguinte (mantêm-se a sistematização e a redacção das instâncias):

Factos admitidos por acordo (audiência prévia):

A - A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à compra, venda, revenda, gestão e arrendamento de imóveis (artigo 1.º da petição inicial).

B - No âmbito da sua atividade, a Autora adquiriu o prédio a que pertence a fração autónoma designada pela letra “F” pertencente ao prédio urbano, e que se encontra atualmente em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ... n.º ... a ..., freguesia da ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...81. da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …46 da freguesia de ... (artigo 2.º da petição inicial).

C - A referida aquisição pode verificar-se através da inscrição correspondente à AP. … de 2016/03/15 (artigo 3.º da petição inicial).

D - Resulta da escritura pública de compra e venda, celebrada sobre o referido imóvel, em 29 de Fevereiro de 2016, que a Autora comprou o prédio supra identificado livre de ónus ou encargos (artigo 4.º da petição inicial).

E - A Ré não é familiar, amiga, ou possui qualquer contacto e/ou relação pessoal com a Autora (artigo 6.º da petição inicial).

F – A Autora não conhece a R. (artigo 7.º da petição inicial).

G - A Ré habita a fração autónoma supra identificada (artigo 10.º da petição inicial).

H - A fração autónoma tem um valor patrimonial de € 118.890,00 (cento e dezoito mil oitocentos e noventa Euros) (artigo 15.º da petição inicial).

I – No dia 6 de Dezembro de 1980, a Ré casou com BB (artigo 8.º da contestação).

J – Por carta registada datada de 7 de Junho de 2018 e enviada no dia 8 de Junho, a Ré deu conhecimento à Autora desse depósito (artigo 54.º da contestação).

Factos provados em audiência final:

1 – A R. nasceu a ... de Novembro de 1943 (artigo 7.º da contestação).

2 – Após o casamento, a R. foi viver para a casa onde já residia o seu marido (artigo 9.º da contestação).

3 – Vivendo ali ininterruptamente com o seu marido (artigo 10.º da contestação).

4 – E posteriormente também com o seu filho (artigo 11.º da contestação).

5 – Em 2002, a R. tinha o seu domicílio fiscal na fração em causa nos autos (artigo 13.º da contestação, com alteração).

6 – BB faleceu no dia ... de Fevereiro de 2015 (artigo 16.º da contestação), no estado de casado com a R. (artigo 17.º da contestação).

Factos dados como provados pela Relação:

b) CC deixou o apartamento antes da R. ter ido viver para lá. (redacção da Relação – cfr. artigo 23.º da contestação)

c) Desde data indeterminada localizada pelo menos há cerca de 40 anos, que a importância correspondente à renda era paga pelo marido da R.. (redacção da Relação – cfr. artigo 24.º da contestação)

d) Após o falecimento do marido, a R. continuou a pagar a renda mensal no valor de € 85,00 – artigo 29.º da contestação.

e) Tendo-lhe sido entregues os respetivos recibos – artigo 30.º da contestação.


4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem por objecto as seguintes questões:

- Violação das regras de direito probatório, designadamente dos arts. 342.º n.os 1 e 2, 394.º, e 1311.º n.os 1 e 2 do Código Civil, ao ter a Relação considerado provados os factos constantes das alíneas b) a e) (factos dados como não provados pela 1.ª instância);

- Ainda que a matéria de facto se mantenha inalterada, não existência de relação contratual de arrendamento entre as partes (sendo inaplicável ao caso o regime do n.º 2 do art. 1069.º do Código Civil, aditado pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro);

- Subsidiariamente, incompatibilidade entre o direito real de propriedade da A. e o direito pessoal da R. arrendatária, uma vez que este último não está registado, tendo assim o acórdão recorrido desrespeitado o disposto no art. 407.º do Código Civil conjugado com a previsão do art. 5.º, n.º 5, do Código do Registo Predial;

- Como consequência de não dispor a R. de título de arrendatária, deve ser repristinada a decisão da 1.ª instância, sendo a mesma condenada a entregar à A. a fracção autónoma e a pagar-lhe indemnização pela ocupação ilegal da dita fracção.


5. A sentença da 1.ª instância julgou parcialmente procedente a presente acção, reconhecendo o direito de propriedade da A. sobre a fracção autónoma dos autos e dando como não provado – com a fundamentação que se segue – que a R. a ocupasse a título de arrendatária:

«(...) a Ré alega expressamente que ocupa o imóvel ao abrigo de um contrato de arrendamento (artigo 3.º da contestação). No entanto, o único contrato de arrendamento escrito que foi junto aos autos não contém o nome, nem do falecido marido da Ré, nem da Ré, não tendo logrado fazer prova de qualquer transmissão do arrendamento.

Mesmo considerando que o contrato de arrendamento não teria sido reduzido a escrito em nome do falecido marido da Ré, não resultou provado que este tenha procedido ao pagamento das rendas. Pode tê-lo feito em termos materiais – entrega das rendas – mas não o fez em nome próprio, porquanto como foi dito na fundamentação da matéria de facto, os recibos eram emitidos em nome de CC.

Mesmo que se entendesse pela aplicação do disposto no artigo 1069.º, n.º 2 do Código Civil, aditado pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro e que entrou em vigor já na pendência da presente acção, não resulta da matéria de facto provada a não oposição do senhorio da utilização do locado, nem o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses. Pois, tal como já foi referido, pode o falecido marido da Ré ter procedido ao pagamento de rendas, mas esse pagamento não foi feito em seu nome, mas sempre em nome de CC, sendo do desconhecimento do anterior proprietário o pagamento das rendas pelo falecido marido da Ré.

Ora, face aos elementos já juntos aos autos, a Ré não juntando contrato de arrendamento escrito, nem juntando os recibos de renda em seu nome ou em nome do seu falecido marido, nunca poderia ser havida como provada a matéria alegada pela Ré quanto à existência de um contrato de arrendamento[negritos nossos]

Em consequência, condenou a R. a restituir à A. a fracção autónoma e a pagar indemnização pelo dano de privação de uso, no montante de € 660,50 mensais, desde a citação até à efectiva restituição, acrescida de juros moratórios.

Tendo a R. interposto recurso de apelação, impugnando a matéria de facto e pedindo a reapreciação da decisão de direito, o Tribunal da Relação, alterando a matéria de facto, julgou o recurso procedente e, em consequência, manteve o reconhecimento do direito de propriedade da A. sobre a fracção, mas revogou o decidido quanto à restituição da mesma e ao pagamento de indemnização.

Entendeu a Relação que, entre os anteriores proprietários da fracção e uma tal CC, fora celebrado o contrato de arrendamento que consta dos autos, tendo aquela locatária deixado de habitar o locado em data não apurada, mas anterior a Dezembro de 1980; e tendo, primeiro o marido da R., e depois - desde Dezembro de 1980 - também a própria R., passado a residir na fracção em causa.

Considerou o tribunal a quo que, sendo esta situação anterior ao RAU (Regime do Arrendamento Urbano), e sendo aplicável ao caso o regime do n.º 2 do art. 1069.º do Código Civil, aditado pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, pode a R. provar a existência de arrendamento através de qualquer meio de prova, o que logrou alcançar através de prova documental e testemunhal.

Contra esta decisão insurge-se a Recorrente, invocando erro de julgamento, tanto de facto como de direito. Erro de facto por, alegadamente, a alteração da matéria de facto ter desrespeitado regras de direito probatório; e erro de direito por entender que, mesmo que não se reconheça o invocado erro de facto, sempre se deve afirmar não existir entre as partes qualquer relação contratual de arrendamento.

Quid iuris?


6.1. Pugna a Recorrida pelo não conhecimento do recurso na parte relativa à decisão de facto por falta de cumprimento do ónus do art. 640.º do CPC. Este preceito, porém, respeita à impugnação da matéria de facto em sede de apelação, não sendo aplicável ao recurso de revista, como resulta, a contrario, do art. 679.º do CPC.

A apreciação das questões recursórias relativas à decisão de facto encontra-se sim condicionada pela regra segundo a qual este Supremo Tribunal não tem competência para sindicar os alegados erros na apreciação da prova, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova ou que fixe a força de determinado meio de prova (art. 674.º, n.º 3, do CPC).


6.2. Consideremos, pois, a questão da invocada violação pela Relação de regras de direito probatório, designadamente dos arts. 342.º n.os 1 e 2, 394.º, e 1311.º n.os 1 e 2 do CC, ao ter dado como provados os factos constantes das alíneas b) a e), que a 1.ª instância dera como não provados.

Compulsada a fundamentação do acórdão recorrido, na parte respeitante à apreciação da impugnação da matéria de facto, verifica-se que, com base tanto em prova documental como testemunhal, entendeu a Relação, de forma fundamentada, que os factos indicados pela apelante, constantes dos pontos b) a e), se encontram provados.

Ora a Recorrente não especifica concretamente qual a violação das normas de direito probatório previstas nos arts. 342.º e 1311.º do CC, limitando-se a indicar genericamente que existiu violação, pelo que não cabe pronunciar-nos sobre tal alegação.

Quanto ao eventual desrespeito pela regra do art. 394.º do CC, a propósito do aditamento do ponto c) aos factos provados, alega a Recorrente o seguinte:

«Atente-se que a sociedade V..., S.A., anterior proprietária do imóvel, juntou aos autos, por ordem da Meritíssima Juiz de Direito do Tribunal de Primeira Instância, declaração (cfr. Fls.78) onde informou que não tem registo, nem conhecimento de quaisquer pagamentos recebidos que tenham sido efetuados por BB. Este documento NÃO foi impugnado pela Recorrida. (...) Não tendo impugnado o documento em causa, ao Tribunal “a quo” não restava outra alternativa que não fosse dar como provados os factos extraídos do referido documento, tendo em consequência o Tribunal a quo violado expressamente as normas legais estatuídas nos artigos 362º a 387º do Código Civil, em especial, o regime de prova plasmado no artigo 376, bem como os artigos 444º a 447º do Código de Processo Civil (...). Violou o Tribunal “a quo” igualmente o disposto no nº 1 do artigo 394º do Código Civil (…), segundo o qual “É inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas, quer sejam posteriores”».

Vejamos.

Ainda que o documento constante de fls. 78, junto pela A. (declaração da sociedade Vasconcelos e Gonçalves, S.A., anterior proprietária da fracção, de não ter registo nem conhecimento de quaisquer pagamentos efectuados pelo marido da R.), não tenha sido impugnado, sendo um documento particular emitido por terceiro não faz prova plena dos factos aí constantes.

Com efeito, se, nos termos do n.º 1 do art. 376.º do Código Civil, a autoria do documento se encontra reconhecida, quanto ao conteúdo do mesmo, não estão reunidos os requisitos previstos no n.º 2 do mesmo preceito, conjugado com o art. 358.º, n.º 2, do CC, de que depende a prova de factos contrários aos interesses da R..

Assim, o documento em causa constitui apenas um elemento de prova sujeito ao princípio da livre apreciação, pelo que, ao alterar a decisão relativa à matéria de facto, a Relação não desrespeitou qualquer disposição legal que exija certa espécie de prova ou que fixe a força de determinado meio de prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 674.º, n.º 3, do CPC. Estamos, pois, perante meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal recorrido, o que não é sindicável por este Supremo Tribunal.

Conclui-se, deste modo, pela não verificação da alegada violação de regras de direito probatório.


7. Relativamente à questão de saber se, ainda que a matéria de facto se mantenha inalterada, se deve considerar não existir entre as partes qualquer relação contratual de arrendamento, consideremos os seguintes factos provados:

A - A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à compra, venda, revenda, gestão e arrendamento de imóveis

B - No âmbito da sua atividade, a Autora adquiriu o prédio a que pertence a fração autónoma designada pela letra “F” pertencente ao prédio urbano (...)

C - A referida aquisição pode verificar-se através da inscrição correspondente à AP. … de 2016/03/15

D - Resulta da escritura pública de compra e venda, celebrada sobre o referido imóvel, em 29 de Fevereiro de 2016, que a Autora comprou o prédio supra identificado livre de ónus ou encargos

F - A Autora não conhece a R.

G - A Ré habita a fração autónoma supra identificada

I – No dia 6 de Dezembro de 1980, a Ré casou com BB

2 - Após o casamento, a R. foi viver para a casa onde já residia o seu marido

3 - Vivendo ali ininterruptamente com o seu marido

4 - E posteriormente também com o seu filho

5 - Em 2002, a R. tinha o seu domicílio fiscal na fração em causa nos autos

6 - BB faleceu no dia ... de Fevereiro de 2015, no estado de casado com a R.

Factos dados como provados pela Relação:

b) CC deixou o apartamento antes da R. ter ido viver para lá.

c) Desde data indeterminada localizada pelo menos há cerca de 40 anos, que a importância correspondente à renda era paga pelo marido da R..

d) Após o falecimento do marido, a R. continuou a pagar a renda mensal no valor de € 85,00

e) Tendo-lhe sido entregues os respetivos recibos

Antes de mais, esclareça-se que o facto de ter sido dado como provado que a A. não conhece a R. e que, da escritura pública de compra e venda do prédio em causa, consta que o negócio foi celebrado “livre de ónus ou encargos” não releva para o efeito.

Com efeito, o que importa é saber se a lei determina que entre a anterior proprietária da fracção autónoma e o marido da R. existia uma relação contratual de arrendamento, caso em que, conforme previsto no art. 1106.º, n.º 2, do CC, com a morte do marido da R., a posição de arrendatária se transmitiu para esta; e, de acordo com a norma do art. 1057.º do CC, com a aquisição da propriedade do prédio, a posição de locador se transmitiu para a A., sendo as cláusulas do contrato de compra e venda inoponíveis à arrendatária.

Esclareça-se também não estar em causa uma situação de sub-arrendamento da fracção autónoma pelo que, diversamente do alegado pela Recorrente, não é convocável o regime do art. 1088.º, n.º 1, do CC.

Importa sim considerar que, tendo sido dado como provados os pontos b) a e) da matéria de facto, a Relação considerou existente o contrato de arrendamento invocado pela R., com a seguinte fundamentação:

«Estamos em presença de um arrendamento anterior ao RAU.

À luz do C.C. o contrato de arrendamento para habitação não tinha de ser reduzido a escrito. Todavia, o locatário podia prová-lo através da exibição do recibo de renda.

O DL. n.º 445/74 tornou obrigatório a redução a escrito do contrato de arrendamento para fins habitacionais.

No DL. n.º 188/76, de 12.03, reafirmou-se o princípio da redução a escrito do contrato de arrendamento para habitação, presumindo-se que a falta de observância dessa forma era imputável ao locador e a respetiva nulidade só pelo locatário podia ser invocada e, nos termos do n.º 3 do artigo 1.º, o locatário poderia provar a existência do contrato de arrendamento por qualquer meio de prova. O artigo 2.º deste diploma veio tornar aplicável o n.º 3 do artigo 1.º aos arrendamentos já existentes.

Por seu turno, também o DL. n.º 13/86, de 53 de janeiro, veio corroborar o anteriormente estabelecido.

Por sua vez, o R.A.U. (DL. n.º 321-B/90, de 15 de outubro), que veio derrogar o DL. n.º 13/86, manteve a exigência da forma escrita para os arrendamentos urbanos, e estatuiu que, em caso de inobservância da forma escrita, a mesma só podia ser suprida pela exibição do recibo de renda (artigo 7.º).

No âmbito do NRAU, o artigo 1069.º manteve a exigência da redução a escrito do arrendamento urbano desde que a respetiva duração fosse superior a 6 meses.

Nos termos do artigo 1069.º, na redação da L. n.º 31/2012, de 14.08, com o acrescento do n.º 2 da L. n.º 13/2019, de 12.02, mantem-se a submissão do contrato a escrito. Todavia o n.º 2 estatui expressamente que: “na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de 6 meses”.

Nos termos do artigo 14.º desta mesma lei, o disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do CC, com as alterações por ela introduzidas, aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma lei.

Deste encadeamento legislativo retira-se que a R. é admitida a provar o contrato de arrendamento quer pela exibição do recibo de renda quer pela produção de prova testemunhal quer ainda por qualquer outra forma admitida em direito.

Note-se que a A. não alegou que a falta de redução a escrito do contrato em presença se possa considerar imputável ao arrendatário e esta matéria era, a nosso ver, da carga probatória da A..

Pelo contrário, a R. logrou a prova de existência do contrato de arrendamento [negrito nosso]

Da sucessão de regimes legais em matéria de arrendamento urbano resulta ser decisivo confirmar se é ou não aplicável ao caso dos autos a norma do n.º 2 do art. 1069.º do Código Civil, aditada pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, na qual se dispõe o seguinte:

«Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses

Com a indicação preambular de «Medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade», aprovou a Assembleia da República, na pendência da presente acção, a referida Lei n.º 13/2019, na qual, entre outras inovações, introduziu no Código Civil a referida norma que permite que a prova do contrato de arrendamento seja feita mediante qualquer meio de prova admitido em direito, incluindo portanto a prova testemunhal de que, juntamente com prova documental, o tribunal a quo lançou mão para dar como provada a existência da relação contratual de arrendamento.

Como assinala Maria Olinda Garcia (“Alterações em matéria de arrendamento urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019”, in Julgar (online), Março 2019, pág. 8):

«[A] forma do contrato tem agora natureza inequivocamente ad probationem».

E sendo que, o n.º 2 do art. 14.º da mesma Lei n.º 13/2019, determina que:

«O disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela presente lei, aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma

Nas palavras de David Magalhães (“Algumas alterações do regime jurídico do arrendamento urbano (Leis n.º 12/2019 e 13/2019, de 12 de Fevereiro) – O recrusdecer do vinculismo”, in BFDUC, Vol. XCV, Tomo I, pág. 565), tal:

«[S]ignifica que todos os contratos de arrendamento existentes, independentemente da época da sua celebração, passam a ser disciplinados pelo artigo 1069.º/2 CC, cujo regime prevalece sobre as normas anteriormente incompatíveis».

Ora, atendendo à finalidade expressamente enunciada pelo legislador de, com o novo regime legal, se alcançar uma maior protecção dos interesses dos arrendatários, temos como certo que a determinação legal de aplicação aos arrendamentos existentes à data da entrada em vigor desse mesmo regime abrange também as acções pendentes, como a presente, desde que verificados os respectivos requisitos.

Vejamos.

Exige o n.º 2 do art. 1069.º do CC que a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento não seja imputável ao arrendatário e ainda que se demonstre a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio, assim como o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.

No que se refere a estes dois últimos requisitos, da factualidade dada como provada, com a alteração introduzida pela Relação, resulta que a R. e, antes dela o seu marido, utilizam a fracção autónoma em causa há mais de quatro décadas, sem oposição dos sucessivos proprietários, pagando mensalmente a respectiva renda.

Quanto ao requisito de que a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento não seja imputável ao arrendatário, apurar a quem cabe o ónus da prova não pode ser realizado – como, até certo ponto, parece ter sido feito pelo tribunal a quo – sem ter em conta a sucessão de leis no tempo em matéria de forma do arrendamento para habitação.

Com efeito, na apreciação do caso sub judice, temos de ter em conta estar em causa uma situação de arrendamento iniciada pelo marido da R., em data anterior ao seu casamento com a R., que teve lugar em Dezembro de1980.

Deste modo, e ainda que não se conheça a data precisa do início dessa situação fáctica, a que o legislador veio atribuir eficácia contratual, deve ter-se em conta, no que se refere ao regime da forma, relevante para o caso dos autos, que:

(i) O regime originário do Código Civil de 1966 não exigia forma escrita para o arrendamento para habitação (art. 1029.º, n.º 1, a contrario);

(ii) O regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 445/74, de 12 de Setembro apenas exigia tal forma para os contratos de habitação futuros (art. 14.º);

(iii) O regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 188/76, de 12 de Março passou a aplicar a exigência de forma escrita (art. 1.º, n.º 1) aos contratos anteriores (cfr. os diversos números do art. 2.º), mas com a ressalva de que “A falta de contrato escrito presume-se imputável ao locador e a respectiva nulidade só é invocável pelo locatário” (art. 1.º, n.º 2), regime este mantido pelo Decreto-Lei n.º 13/86, de 23 de Janeiro (art. 1.º, n.os 1, 2 e 3).

Tendo em conta que os diplomas subsequentes, que regularam o arrendamento para habitação, não se ocupam da aplicação das exigências de forma aos arrendamentos antigos, somos levados a concluir que, quanto à situação de arrendamento dos autos, se mantém válida a presunção de que a falta de redução da relação contratual a escrito é imputável ao locador e não ao arrendatário, não se vislumbrando na matéria de facto provada quaisquer indícios de que esta presunção tenha sido ilidida.

Assim, encontram-se reunidos todos os requisitos da norma do n.º 2 do art. 1069.º do CC, aditada pela Lei n.º 13/2019, aplicável ao caso dos autos, pelo que não merece censura o juízo do tribunal a quo ao dar como provado que a R. ocupa a fracção autónoma a título de arrendatária.

Juízo este que assenta nos factos essenciais dados como provados e, ainda, em factos instrumentais ou complementares que – no uso de presunções judiciais que não cabe a este Supremo Tribunal sindicar – a Relação deu como provados, ao afirmar:

«Não vá também sem se dizer que, ao longo do processo de negociações com vista a pôr fim à ocupação da casa pela R., a A. tratou-a como habitualmente se tratam os inquilinos. A testemunha DD foi clara: “contactou com todos os inquilinos, nomeadamente com a D.ª AA” e tentou saber se ela tinha interesse em se deslocar para outro sítio ou até receber alguma pequena compensação para poder pagar renda noutro lado.

Para além do mais, daqui se depreende que a R. foi tratada como uma inquilina e não como uma ocupante sem qualquer título. Verificamos, pois, que a circunstância de lhe ser admitido o pagamento das rendas por si, ou, precedentemente pelo seu marido, o facto de lhe terem sido entregues os recibos, e o facto de os proprietários saberem que a primitiva arrendatária havia muitos anos que não morava no locado, revelam suficientemente que os proprietários não ignoravam que era ela que ocupava a posição de arrendatária. Pensamos, pois, que com razoável segurança, a R. logrou a prova que sobre ela dependia, da existência de um contrato de arrendamento. A este circunstancialismo, embora desnecessário, poder-se-ia, ainda, acrescentar a forma como a A. foi tratada no processo de negociações no âmbito do qual foi tratada como inquilina: foi-lhe oferecida a possibilidade de opção por uma compensação monetária ou até outro local para morar[negritos nossos]

A terminar, assinale-se que a situação dos autos se apresenta como paradigmática daquelas situações que o legislador pretendeu acautelar ao introduzir no Código Civil a nova regra do n.º 2 do art. 1069.º. Na verdade, estamos perante um caso em que a R., ainda que não dispondo – em seu nome ou no do seu marido – de contrato de arrendamento escrito e/ou de recibos de renda comprovativos, logrou provar, através de prova documental e testemunhal, que, há mais de quarenta anos, habitam (ela e, antes dela, o seu falecido marido) a fracção autónoma, pagando mensalmente a respectiva renda.

Conclui-se, pois, não merecer censura o acórdão recorrido ao reconhecer dispor a R. de título de arrendatária da fracção autónoma em causa.


8. Subsidiariamente, para o caso de ser reconhecido à R. o titulo de arrendatária, invoca a Recorrente existir incompatibilidade entre o seu direito real de propriedade e o direito pessoal da mesma R. arrendatária, uma vez que este último não está registado, tendo assim o acórdão recorrido desrespeitado o disposto no art. 407.º do CC, conjugado com a previsão do art. 5.º, n.º 5 do Código do Registo Predial.

Trata-se de questão nova, suscitada pela primeira vez em sede de revista. Ora, os recursos apenas se destinam a reapreciar as decisões objecto dos mesmos e, por isso, a reapreciar as questões que, tendo sido oportunamente suscitadas, foram já apreciadas por tais decisões, e não a apreciar questões novas, salvo tratando-se de questões que sejam de conhecimento oficioso, o que não é o caso.


9. Dando-se como provado que a R. ocupa a fracção autónoma dos autos a título de arrendatária, tal ocupação é lícita, não havendo lugar a qualquer indemnização por dano de privação de uso.


10. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.


Custas pela Recorrente.


Lisboa, 25 de Março de 2021

Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade das Exmas. Senhoras Conselheiras Maria Rosa Tching e Catarina Serra que compõem este colectivo.

Maria da Graça Trigo (relatora)