RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO CAUSADO POR EDIFÍCIOS OU OUTRAS OBRAS
ESCOAMENTO DE ÁGUAS
AUTO-ESTRADA
ALTERAÇÃO DO PEDIDO
RECONSTITUIÇÃO NATURAL
CONDENAÇÃO EM OBJETO DIVERSO DO PEDIDO
PROVA VINCULADA
VIOLAÇÃO DE LEI
DOCUMENTO PARTICULAR
IMPUGNAÇÃO
Sumário


I - Entre os danos de natureza não patrimonial que merecem a tutela do direito, nos termos do art. 496.º, n.º 1, do CC, incluem-se aqueles que decorram da perceção do risco e da consternação perante os graves prejuízos que afetaram um prédio rústico dos lesados, em consequência da realização de obras de construção de uma auto-estrada que alteraram e agravaram o escoamento das águas pluviais, potenciando ou agravando os efeitos das enxurradas.
II - Tendo os lesados, na pendência da ação, procedido à reconstituição da situação através da realização de obras que normalizaram o escoamento das águas pluviais, sem que tenham, entretanto, promovido a alteração do pedido que formularam de condenação da ré na prestação de facto para o de condenação da ré no pagamento dos custos que importou a reconstituição natural da situação, é vedado ao tribunal condenar no pagamento de uma indemnização em dinheiro, uma vez que tal representaria uma alteração do objeto do processo que é impedida pelo n.º 1 do art. 609.º do CPC.

Texto Integral

I - AA e mulher BB intentaram ação declarativa sob a forma de processo ordinário contra

Aenor – Auto estradas do Norte, S.A., atualmente Ascendi Norte – Auto - Estradas do Norte, S.A., e

Norace - Construtoras de Auto - Estradas do Norte, ACE,

pedindo a sua condenação a:

a) reconhecerem que são donos e possuidores dos prédios citados, bem como das águas referidas represadas e conduzidas para os seus prédios do modo descrito;

b) reconhecerem que nos prédios que se interpõem entre a caixa de cimento referida e o Regato .... – entre eles os seus prédios – existia um sistema natural de encaminhamento de águas pluviais em regos e daí para represas e caleiras que permitia a suave condução dessas águas, mantendo a estabilidade do solo durante todo ano, entre outros, para os seus prédios;

c) reconhecerem que as obras atrás descritas de construção da auto-estrada e seus acessos, assim como com o encaminhamento das águas pluviais a que procederam, concentrando-as na referida caixa de cimento, incapaz de as suster e conter, alteraram o curso natural da água, provocaram a invasão dos seus prédios por águas pluviais desgovernadas e de grande caudal, destruíram o solo desses prédios, com criação de crateras profundas, ao longo de mais de 500 ms de extensão, arrancaram árvores, derrubaram muros e arrastaram enorme volume de terras, tendo assim violado o seu direito a fazer conduzir essas águas até aos seus terrenos;

d) reconstruirem os seus muros e terrenos recolocando seu solo no estado anterior e todas as condutas de acesso das águas acima referidas de forma tal que os seus prédios fiquem a receber as águas pluviais como sucedia antes daquela intervenção de modo descrito supra;

e) não oporem qualquer resistência, obstáculo ou modificação ao modo como exerciam o direito de propriedade sobre as águas e como as usavam;

f) pagarem-lhes a indemnização a liquidar pela privação da água e consequente subaproveitamento agrícola dos seus prédios, bem como a destruição dos muros de vedação e do solo dos seus prédios;

g) pagarem-lhes uma indemnização por danos não patrimoniais de € 5.000,00 para cada um.

Alegam que são donos de 7 prédios que formam o ..., sita em ..., freguesia de ..., concelho de ..., que agricultam, os quais ficam a uma distância variável entre 40 e 100 metros do troço da auto-estrada .../... – sublanço … –  ..., cuja construção cabe às RR., respetivamente, por via de contrato de concessão e de empreitada, sendo que as obras de construção e abertura do troço, que tiveram lugar durante 2005 e 2006, exigiram cortes de rochas e escavações de terras em diversas zonas, mudanças de caminhos e alterações de processo de condutas de águas vertentes e nascentes aí existentes, empregando explosivos e outras técnicas.

Aperceberam-se, nos fins de 2005, princípios de 2006, que a 2ª R. decidira concentrar num ponto determinado, a montante dos seus prédios, todo o fluxo das águas pluviais vertentes, com vista a evitar o seu descaminho e dispersão, mediante a construção de uma caixa de cimento no prédio de um vizinho, a 4/5 metros para norte dos seus, desviando e concentrando todas as águas pluviais que afluíam à nova auto-estrada e a uma estrada municipal próxima, a um nível superior de 3 a 7 ms dos seus prédios, sendo de prever que provocasse inundação destes devido às suas dimensões; a cerca de 60 a 70 ms após essa caixa, nos seus terrenos, a jusante, existia uma linha de água natural conduzida em caleiras de cimento, com vista a facilitar o encaminhamento e aproveitamento da mesma pelos co-utentes para irrigação agrícola, permitindo-lhes fruí-las através da condução por prédios que enumeram, designadamente, os seus; no entanto, no decurso das referidas obras, a Ré desviou as águas para a propriedade da ... e construiu a citada caixa; apesar de terem chamado técnicos das RR., fazendo ver o risco de destruição de todo o solo do sistema de condução das águas e de os mesmos as comprovarem e prometerem medidas, nada fizeram; após as primeiras chuvadas dos fins do ano de 2005, as águas, caindo em catadupa para e sobre o depósito, extravasaram-no e partiram dele desgovernadas, destruindo o solo dos seus prédios numa extensão superior a 500 ms no sentido norte-sul, abrindo valas, arrasando e destruindo culturas, matas, vedações, muros de suporte, arrancando árvores e arrastando grandes quantidades de terra.

Acrescentam que sentiram temor, consternação e revolta ao verem a violência das águas destruir e pôr em risco bens materiais e vidas de quem no local passasse.

As RR. contestaram invocando a sua ilegitimidade, alegando a 1ª R. que é concessionária de vários lanços de auto-estrada, designadamente, o lanço .../... e que celebrou com a 2ª R. um contrato de projeto e construção, cuja execução material incumbia a esta, ainda que sob subcontratação, assumindo todas as obrigações responsabilidades e riscos que para si concessionária resultassem, apenas respondendo nos termos gerais da relação comitente – comissário.

A 2ª R. sustentou que transferiu a responsabilidade pela execução material dos trabalhos a Alberto Martins de Mesquita & Filhos, Soc. de Empreitadas Adriano – Optimização de Meios para a Construção do Lote nº 5.1. da Auto-estrada A7, ACE.

Invocaram, também, a prescrição do direito dos AA., argumentando que as obras de construção do lanço de auto-estrada em questão se iniciaram em 2003.

Contrapuseram que foi construída uma caixa em cimento em domínio público para permitir a passagem das águas pluviais que afluíam à bacia hidrográfica existente no local, mantendo o caudal e o curso anterior, com medidas adequadas para suster e receber as águas, obedecendo a projetos de drenagem devidamente licenciados para aquela área; os prédios dos AA. situam-se num local de acumulação ou concentração elevada de águas pluviais, havendo vários fatores que contribuíram para o efeito, como seja a construção da EM... e a impermeabilização resultante do aglomerado urbano existente a norte do traçado da auto-estrada, sem contributo da construção do leito da auto-estrada para o efeito; os AA. taparam parcialmente a linha de água através da construção de vários caminhos no interior da sua propriedade, impedindo o natural escoamento das águas que ali acorrem.

Na réplica os AA. pugnaram pela legitimidade das RR. e concretizaram que as obras que os prejudicaram tiveram lugar entre dezembro de 2005 e abril de 2006.

Suscitaram o incidente de intervenção principal de Alberto Martins de Mesquita & Filhos, Soc. de Empreitadas Adriano – Optimização de Meios para a Construção do lote nº 5.1. da Auto-estrada A7, ACE.,., que foi admitido.

A Interveniente contestou e invocou a sua ilegitimidade, alegando que, apesar de a construção lhe ter sido adjudicada pelo empreiteiro, não executou qualquer ato material desse troço, pelo que nenhum prejuízo gerou aos AA. Referiu ainda que celebrou com a empresa SCAL-Soc. de Construções Alberto Leal., contrato de subempreitada por via do qual esta assumiu toda a responsabilidade de quaisquer danos ou prejuízos decorrentes da sua atividade, ação ou omissão do pessoal por si contratado.

Invocou, também, a prescrição do direito dos AA., reiterando a alegação das RR. quanto ao período de realização das obras; acrescentou que os danos, a verificarem-se, teriam de ocorrer logo no início da execução dos trabalhos.

Suscitou, por seu lado, o incidente de intervenção acessória, da SCAL-Soc. de Construções Alberto Leal, S.A..

Proferido despacho conhecendo oficiosamente a incompetência material do tribunal, confirmado pela Relação, o Tribunal de Conflitos veio a atribuir a competência aos tribunais judiciais.

O incidente de intervenção acessória foi admitido, mas posteriormente a instância a ser declarada extinta quanto à chamada SCAL, SA, devido a insolvência.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as exceções de ilegitimidade passiva e relegou para final o conhecimento da exceção de prescrição.

Foi proferida sentença que, julgando a ação parcialmente provada e procedente:

A) Condenou as RR. Ascendi Norte Auto-estradas do Norte, S.A., Norace – Construtoras de Auto-estradas do Norte, ACE e a Interveniente Principal Alberto Martins de Mesquita & Filhos, Soc. de Empreitadas Adriano - Optimização de Meios para a Construção do Lote nº 5.1. da Auto-estrada A7, ACE:

a) a reconhecerem que os AA. AA e mulher BB são proprietários dos prédios identificados nos pontos 4. a 6. da fundamentação de facto que integram o ...;

b) a reconhecerem que os factos identificados nos pontos 23. a 28., 32., 34. da fundamentação de facto levaram à produção dos danos elencados nos pontos 44. a 46., na proporção de 80%;

B) Declarou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto ao pedido identificado na al. d);

C) Condenou a R. Ascendi, a pagar aos AA.:

a) o que vier a ser liquidado em incidente indemnização respeitante aos danos identificados nos pontos 44. a 46. da fundamentação de facto, reduzido à proporção de 80%;

b) a quantia de € 3.000, a título de danos não patrimoniais, para cada um;

D) Absolveu as RR. Ascendi, Norace e a Interveniente Principal dos restantes pedidos formulados;

E) Absolveu a R. Norace e a Interveniente Principal do pagamento das quantias referidas supra em C).

A R. Ascendi interpôs recurso de apelação e os AA. interpuseram recurso de apelação subordinado, tendo a Relação julgado procedente o recurso de apelação principal, absolvendo a R. Ascendi do pedido de indemnização por danos não patrimoniais (supra C), al. b)), e julgado improcedente o recurso subordinado.

Os AA. interpuseram recurso de revista alegando no essencial que:

a) Tendo os autores assistido à autêntica calamidade que deflagrou sobre os seus prédios resultante de enxurradas provocadas por águas desgovernadas que cavaram no solo valas na extensão de cerca de 500 ms e 5 ms de profundidade, com arrastamento de pedras e lamas e arrancamento de árvores o que tudo lhes causou “preocupação e consternação” sendo de considerar “da experiência comum” que “qualquer pessoa reage com consternação às devastações provocadas por intempéries, com resultados tantas vezes semelhantes aos das fotografias” juntas aos autos, só por desatenção se pode supor - como o acórdão supôs - que tais danos “não são excecionais nem ultrapassam a mediania e a banalidade”.

b) Para mais, os AA. preveniram previamente as RR. e procuraram evitar esses danos, advertindo as RR. da sua inevitabilidade se não fossem tomadas providências, o que as RR. ignoraram, justificando a sustentabilidade das obras.

c) Ao contrário do decidido, valas de meio quilómetro de extensão e 5 ms de profundidade e 3 ms de largura cavadas por uma enxurrada na propriedade dos autores são suscetíveis de causar pavor e aflição, danos morais muito justificativos e relevantes, que a sentença, aliás, reconheceu, e merecem ser ressarcidos com uma indemnização para cada autor de € 5.000,00;

d) Tendo as RR. sido condenadas a reparar os danos resultantes do reconhecimento de que a força das águas destruiu causando danos e prejuízos aos AA. - consistentes (factos 44. a 46.) nas valas atrás referidas com arrastamento de grandes quantidades de terra e lamas e arrancamento de árvores e a destruição das obras identificadas no facto 16. (colunas em cimento que ao longo da propriedade dos AA. facilitavam o encaminhamento das águas para irrigação agrícola) e na destruição do solo arável dos prédios dos AA., com reposição da linha de água preexistente, não faz sentido decidir que a instância quanto ao pedido da al. d) (condenação das RR. a reconstruir muros e terrenos recolocando o seu solo no estado anterior) deve ser declarada extinta por inutilidade, mais a mais com o argumento de que essas obras foram levadas a cabo pelos AA. no decurso da ação;

e) Com efeito, os AA. sustentam que o pedido que formularam sob essa al. d) (reconstruir os muros e terrenos recolocando solo no estado anterior e as condutas de acesso no estado preexistente) no fundo foi implicitamente julgado procedente, porque a decisão constante às als. a) e b) (reconhecer que os factos identificados nos pontos 23. a 28., 32. a 34., relativos às obras de drenagem efetuadas pelas RR., e ao encaminhamento das águas pluviais para o prédio dos AA., através da propriedade da ..., da caixa de queda e das alterações do caudal da água, sem construção de qualquer bacia de dissipação) integra também a condenação na prática dos atos que constavam da al. d) que, assim, naquela condenação está subsumido.

f) Ao contrário do decidido. as RR. devem ser condenadas a reconhecerem que as obras que procederam foram as únicas causadoras da totalidade dos danos sofridos pelos AA., e não apenas na proporção de 80% (os danos causados na proporção dos restantes 20% seriam resultantes de as obras efetuadas pela RR. serem superficiais, o que teria contribuído para a destruição do solo e muros), pois nunca a substituição dos regos em terra por caleiras de cimento, a céu aberto, e com 40 cms de diâmetro e tubos subterrâneos com 80 cms de diâmetro (factos 16., 19. e 45.) pode ser considerada causa adequada de quaisquer danos, uma vez que a implantação das caleiras e tubos subterrâneos só podia ter beneficiado o encaminhamento da água que antes circulava em regos sem qualquer controle;

g) No mesmo sentido aponta o facto de em audiência de julgamento, reaberta nos termos do art. 607º, nº 1, do CC, ter sido feita prova concludente e definitiva, por documento junto pela R. Norace e com o apoio das demais RR. (e não por força do parecer dos peritos, como o acórdão erradamente sustenta), que sem qualquer autorização dos AA. e sem necessidade emergente da construção, as RR. decidiram sobrecarregar o prédio dos AA., encaminhando para eles também as águas que circulavam descendentemente na EM... (pág. 7 do relatório pericial notificado aos AA. em 31-7-17 e requerimento com documento da R. Norace, comprovando que determinou à construtora que procedesse ao prolongamento do coletor colocado sob a EM até à linha de água situada a Sul/Nascente, embora impondo-lhe, e por isso mesmo , a construção de caixas de queda e dissipação, que ficaram por construir, como se consignou nos factos 34. e 35.);

h) A junção desse documento esclarecedor de mais uma causa de enxurrada - e que a sentença, desconsiderou - levou os AA. a impugnarem a matéria de facto, sustentando que à matéria de facto dada por provada deveria acrescentar-se, com cumprimento dos ónus impostos pelo art. 640º, n º 1, al. a), do CPC, o seguinte facto, resultante da discussão da causa, inserido após o facto 27:

“27º-A – Antecedendo as obras referidas no número anterior, a R. Norace, invocando um pedido da Câmara Municipal de ..., e reclamação desta, procedeu ao prolongamento do coletor colocado sob a EM até a linha de água situada a Sul/Nascente, com vista a desviar as águas que corriam a céu aberto na EM, para o interior do prédio denominado “Propriedade da ...”, e daí para os prédios dos AA., com vista a procurar evitar o alagamento da Estrada Municipal.”,

pedido que o acórdão recorrido desatendeu;

i) Em consequência, no presente recurso de revista, os AA. suscitaram a intervenção corretora do STJ, ao abrigo do disposto no art. 674º, nºs 1, a), e 3 do CPC, por ocorrer manifesto erro na apreciação das provas e violação da lei substantiva, por não se ter entendido que aquele facto, provado por documento não impugnado, não podia deixar de ser tido por provado, o que tem como consequência ou que o STJ deve julgar de imediato a questão aditando esse facto ao probatório, ou determinar, exercendo uma “discreta censura”, a baixa do processo à 2ª instância para aí ser aditado esse facto e julgando-se sempre em conformidade.

j) Sem prescindir, e ainda que não proceda essa crítica à fixação da matéria de facto, em apoio da ideia da integral responsabilidade da conduta das RR. pelos danos causados, importa considerar que as obras dos AA. tiveram lugar após as obras feitas pelas RR. e após prevenção da inevitável tragédia que se seguiria, ao que as RR. fizeram orelhas moucas, conforme foi provado (factos 47., 48. e 49.) que, além disso, as obras efetuadas pelas RR. foram-no a montante da propriedade dos AA., enquanto as obras efetuadas por estes foram-no na própria propriedade dos AA., e, por último, que entre a data da entrada da ação e a data da decisão mediaram 13 anos, sendo inexigível aos AA. que, ante a inércia das RR., não efetuassem o mínimo de obras necessárias a repor a situação anterior, comportamento compatível quer com os princípios de boa fé, quer com os princípios gerais de direito.

k) A decisão recorrida, julgando que ocorria inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido formulado sob a al. d) (uma vez que os AA. pediam aí que as RR. fossem condenadas a refazer os seus muros e terrenos e recolocar o solo no estado anterior aos danos causados, e eles próprios realizaram essas obras no decurso da ação, o que tornava impossível a condenação na reconstituição natural da propriedade, e implicaria a necessidade de dedução de articulado superveniente, modificando o pedido inicial), desconsiderou o comando do art. 566º do CC, em cujos termos, sempre que a reconstituição natural não seja possível, a indemnização é fixada em dinheiro, questão que a jurisprudência entende só ser de considerar na sentença, pelo que, constatada a referida impossibilidade, deveriam as RR. ser condenadas no pagamento de uma indemnização, sem necessidade de dedução de qualquer pedido novo ou de modificação do primitivo.

l) De facto, sendo o momento atendível para efeitos de aplicação do art. 566º, nº 1, do CC, o encerramento da discussão (Ac. STJ, de 27-3-84, BMJ 335, 279) nesse momento já nem sequer é possível apresentar qualquer articulado superveniente.

m) Por outro lado, o Ac. da Rel. do Porto, de 16-10-06, junto aos autos por cópia e, tanto quanto se sabe não publicado, posto ante situação semelhante, em que a concessionária da mesma auto-estrada já não podia repor a situação anterior, decidiu condenar a mesma concessionária a indemnizar em dinheiro os aí AA. pelos prejuízos que lhe causou, sem qualquer novo pedido, o que tudo se compagina com o dever imposto às responsáveis pela construção financiamento exploração e conservação da referida auto-estrada de responderem “nos termos da lei geral por quaisquer prejuízos causados a terceiros no exercício das atividades que constituem o objeto da concessão, pela culpa ou pelo risco” (proc. nº 2734/03…, do … Juízo Cível de ...), bases VI, XXVIII e LXXIII do anexo ao DL 294/97 de 24/10.

Houve contra-alegações.


Cumpre decidir.


II – Factos provados:

1. Em 9-7-99, a R. Aenor - Auto-estradas de Portugal, S.A., celebrou com o Estado acordo denominado “contrato de concessão” tendo por objeto a conceção, projeto, construção, financiamento, exploração, em regime de portagem, entre outros, dos lanços:

- A/7/IC5 Póvoa de Varzim (IC1)/Famalicão;

- A7/IC5 Guimarães/Fafe;

- A7/IC5/IC25 - Fafe/IP3;

- A11/IC14 – Esposende (IC1Barcelos);

- A11/IP9 Braga/Guimarães;

- A11/IP9 – Guimarães /A4 (Castelões)

[al. A) e doc. fls. 101 a 175].

2. As RR. acordaram entre si a execução e conclusão pela 2ª R., no regime de preço firme e global e data certa, no montante de PTE 165.192.089.000$00 a pagar pela 1ª R., dos trabalhos de conceção, projeto e construção dos lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados na Zona Norte de Portugal, designada por concessão norte, identificados como:

- A/7/IC5 Póvoa de Varzim (IC1)/Famalicão;

- A7/IC5 Guimarães/Fafe;

- A7/IC5/IC25 - Fafe/IP3;

- A11/IC14 – Esposende (IC1Barcelos);

- A11/IP9 Braga/Guimarães;

- A11/IP9 – Guimarães /A4 (Castelões)  

[al. B) e doc. fls. 101 a 175].

3. A R. Norace e a Interveniente Principal acordaram entre si a execução e conclusão pela segunda, mediante o pagamento de € 40.945.821,60 pela primeira, os trabalhos de construção dos lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados na concessão norte, identificados como Obras de Estrada e Obras de Artigos Correntes(com exceção da Obra de Arte Corrente identificada como … – Eixo …) no Lote …. (Sublanço ... –  ...) [al. C) do e doc. fls. 261 a 310].

4. Por escritura pública celebrada a 14-9-07, no Cart. Not. do Dr. CC, DD e mulher EE declararam vender ao A., que declarou aceitar, pelo preço recebido de € 2.500,00, o prédio rústico denominado “...”, composto de terreno, situado no lugar do ... ou ..., freguesia de ... (...), concelho de ..., descrito na .. CRP de ... sob o nº …-... e inscrito na matriz sob o art. …64, correspondente ao art. …50 da antiga matriz [al. D) e doc. fls. 12 a 15].

5. Por escritura pública celebrada a 14-9-07, no Cart. Not. do Dr. CC, o A., outorgando por si e na qualidade de procurador de Maria da Conceição Castro, declarou, em nome da sua representada, vender a si mesmo e declarou aceitar, pelo preço global já recebido de € 97.500,00, os cinco imóveis, entre os quais:

a) prédio rústico denominado “...”, composto de terreno, situado no lugar de ..., freguesia de ... (...), concelho de ..., descrito na … CRP de ... sob o nº …-... e inscrito na matriz sob o art. …88;

b) prédio rústico denominado “...”, composto de terreno, situado no lugar de ..., freguesia de ... (...), concelho de ..., descrito na … CRP de ... sob o nº …-... e inscrito na matriz sob o art. …64;

c) prédio rústico denominado “...”, composto de terreno, situado no lugar de ..., freguesia de ... (...), concelho de ..., descrito na … CRP de ... sob o nº …-... e inscrito na matriz sob o art. …67;

d) prédio rústico denominado “...”, composto de terreno, situado no lugar de ..., freguesia de ... (...), concelho de ..., descrito na … CRP de ... sob o nº …-... e inscrito na matriz sob o art. …66 [al. E) doc. fls. 16 a 21].

6. Por escritura pública celebrada a 14-9-07, no Cart. Not. do Dr. CC, o A., outorgando por si e na qualidade de procurador de FF e mulher GG declarou, em nome do seu representado, vender a si mesmo e declarou aceitar:

a) pelo preço já recebido de € 5.000,00, o prédio rústico denominado “…”, situado no lugar de ..., freguesia de ... (...), concelho de ..., descrito na … CRP de ... sob o nº …-... e inscrito na matriz sob o art. …90;

b) pelo preço já recebido de € 1.000,00, o prédio rústico denominado “…”, situado no lugar de ..., freguesia de ... (...), concelho de ..., descrito na … CRP de ... sob o nº …-... e inscrito na matriz sob o art. …44 [al. F) e doc. fls. 22 a 26].

7. O prédio identificado em 4. encontra-se registado a favor dos AA. pela inscrição Ap… de 17-9-07 [al. G) e doc. fls. 553 a 560].

8. Os prédios identificados em 5. encontram-se registados a favor dos AA. pela inscrição Ap… de 17-9-07 [al. H) e doc. fls. 553 a 560].

9. Os prédios identificados em 6. encontram-se registados a favor dos AA. pela inscrição Ap. … de 17-9-07 [al. I) e doc. fls. 553 a 560].

10. Os prédios identificados em 4. a 6., juntos e unidos, integram o ... [6º da petição inicial].

11. Desde 2000 relativamente aos prédios identificados em 5., desde 2002 quanto aos identificados em 6., por entrega dos anteriores proprietários e desde 2007 quanto ao referido em 4., os AA. ocuparam-nos, cultivaram-nos, irrigaram-nos com as águas que ali nascem e afluem, realizaram obras, pagam a empregados [8º, 9º, 10º da petição inicial].

12. A zona mais a norte da propriedade identificada em 10. fica a distância de cerca de 120 ms do troço de auto-estrada .../... .../... sublanço ...- ..., km 45,850, sito na freguesia de ... [16º petição inicial, 2º contestação das RR.].

13. Por referência ao local referido em 12., a auto-estrada foi implantada em zona com orografia em declive, situada a cota superior em relação à EM..., esta, por sua vez, a cota superior em relação ao prédio identificado em 26. e este, igualmente, em relação à propriedade referida em 10. [20º da petição inicial].

14. Na encosta onde a auto-estrada foi implantada existe uma linha de água natural que corria a céu aberto, atravessando vários prédios, designadamente, as propriedades identificadas em 10. e 26. [25º da petição inicial].

15. A linha de água percorre, no sentido Norte-Sul, a propriedade referida em 10., numa extensão de cerca de 400 ms, até atingir o regato de ..., situado a Sul [26º, 40º da petição inicial].

16. Em momento que não foi possível apurar, mas anterior a março de 2006, por ação do A., a linha de água passou a ser conduzida na propriedade identificada em 10. através de caleiras em cimento de cerca de 30 cms, em substituição dos regos cavados pelo curso natural da água e limpos sempre que necessário, a fim de facilitar o encaminhamento e aproveitamento para irrigação agrícola [25º, 38º, 39º da petição inicial].

17. À propriedade referida em 10. afluem águas provenientes de nascentes e de outros prédios a montante [27º da petição inicial]

18. Desde data não concretamente apurada existiam também tubos subterrâneos que permitiam a condução de parte das águas referidas em 17. para outros prédios situados mais a Sul, designadamente, pertencentes a HH [27º, 31º, 35º da petição inicial].

19. Na sequência de obras realizadas no período entre 2007, 2008 e 2009, as águas referidas em 15. e parte das aludidas em 17. passaram a ser conduzidas pelo A., através de caleiras a céu aberto, com 40 cms de diâmetro e tubos subterrâneos, com 80 cms de diâmetro [31º, 32º, 37º, 38º, 40º da petição inicial].

20. As águas aludidas em 19. são recolhidas em represas, depósitos e poços, existentes na propriedade identificada em 10. servindo para irrigação das culturas que os AA. aí fazem [34º, 37º, 38º, 40º da petição inicial].

21. As obras de construção do sublanço identificado em 12. iniciaram-se em 2004 [22º da contestação das RR. e 16º da contestação da Interveniente Principal].

22. Na construção do troço de auto-estrada foram usadas máquinas que a abriram, pavimentaram e compactaram [19º da petição inicial].

23. A construção do referido troço de auto-estrada implicou a realização de obras de drenagem para a condução das águas pluviais referidas em 14., provenientes de norte, bem como das que caem na plataforma situada ao km 7,960, para uma passagem hidráulica (PH 7.2) [37º da contestação das RR.].

24. Tais águas pluviais são conduzidas em tubo com 1 m de diâmetro, que passa sob a auto-estrada, com orientação de norte para sul e, subsequentemente, através de um dreno longitudinal que vence a diferença de cota entre a plataforma da auto-estrada e a Est. Municipal …, sita a Sul [21º, 43º da petição inicial].

25. Na margem Norte da Est. Municipal existe uma caixa de queda que recebe as águas referidas em 17., bem como as águas pluviais e de drenagem dessa estrada [22º da petição inicial].

26. A partir dessa caixa de queda, as águas referidas em 23. seguem num tubo de secção circular de 1 metro de diâmetro sob a Est. Municipal, substituindo o anterior com secção quadrangular de 50 cms x 50 cms e, de seguida, no prédio denominado “Propriedade da ...”, sito a Norte da propriedade identificada em 10., numa extensão total de cerca de 75 ms [22º da petição inicial].

27. Na “Propriedade ...” foi construída uma caixa de queda em betão, com função de vencer o desnível existente e fazer a descarga das águas, cuja laje de fundo, com cerca de 1 m de largura, drena diretamente para esse terreno repondo a linha de água, a céu aberto, em trajeto correspondente ao traçado original [22º, 24º da petição inicial, 35º, 37º, 38º da contestação das RR.].

28. A caixa de queda referida em 27. encontra-se a 45 metros da estrema Norte da propriedade identificada em 10. e a uma cota superior de aproximadamente 5 ms [23º da petição inicial].

29. A execução das obras de drenagem referidas em 26. e 27. iniciou-se em março de 2006 [resposta ao art. 21º da petição inicial].

30. Os trabalhos de drenagem realizados no local correspondem ao projeto previamente aprovado para o efeito e ao estudo da bacia hidrográfica existente no local [32º da contestação das RR., 28º, 30º da contestação da Interveniente Principal].

31. Esses trabalhos foram objeto de acompanhamento técnico e monitorização para assegurar a sua boa execução [33º da contestação das RR.].

32. A obra referida em 23. a 27. produziu alterações, para mais, no caudal da água comparativamente àquele que existia na zona quando o solo era permeável e as águas eram encaminhadas a céu aberto e, sobretudo, na sua velocidade, a qual, atualmente, tem maior poder de erosão [43º da petição inicial, 36º da contestação das RR.].

33. A caixa de queda referida em 27. e 28. tem medidas adequadas para receber o caudal das águas [40º da contestação das RR.].

34. A sua execução obedeceu aos projetos de drenagem licenciados para aquela área, salvo quanto à bacia de dissipação através de tapete de enrocamento, formado por pedras, destinada a permitir a transição de velocidade da água, dissipando a sua energia antes da sua entrada em terreno natural, que não foi construída na propriedade identificada em 26. [43º da petição inicial, 41º da contestação das RR.].

35. Os prédios identificados em 4. a 6. situam-se num dos pontos mais baixos da bacia hidrográfica da linha de água que os atravessa, ocorrendo um aumento do caudal à medida que outras linhas de água se lhes juntam, correspondendo a um local de acumulação/concentração elevada de águas pluviais [43º da contestação das RR.].

36. Antes da construção da auto-estrada, a concentração de águas pluviais na zona dos prédios identificados em 4. a 6. resultava da construção da Est. Municipal ... e da impermeabilização dos terrenos decorrente do aglomerado urbano existente a Norte do traçado da auto-estrada [44º, 54º da contestação das RR.].

37. A passagem hidráulica referida em 23. corresponde às condições, especificações dos projetos de drenagem aprovados para o efeito [46º contestação das RR.].

38. Em momento anterior a março de 2006, os AA. realizaram aterros e construíram muros na propriedade identificada em 10. para facilitar a circulação de máquinas, os quais taparam parcialmente a linha de água ali existente [47º contestação das RR.].

39. Esses trabalhos, bem como as caleiras referidas em 16., dificultaram o escoamento das águas [48º da contestação das RR.].

40. As RR. não desviaram qualquer curso de água [45º da contestação das RR.].

41. No decurso das obras identificadas em 26. e 27. o A. chamou ao local os técnicos das RR., expondo-lhes as suas preocupações relativamente à possibilidade de o escoamento das águas através da “Propriedade da ...” vir a provocar danos nos prédios identificados em 4. a 6. [44º da petição inicial].

42. Em 31-3-06, os técnicos referidos em 41. deslocaram-se à propriedade identificada em 10., observaram e fotografaram o local [45º, 52º da petição inicial].

43. Em 10-4-06 o mandatário dos AA. endereçou missiva à 1ª R. e à Estradas de Portugal, EP, comunicando que o empreiteiro das obras referidas em 26. e 27. estava a conduzir as águas provenientes da auto-estrada para os terrenos da Quinta referida em 10. de forma que iriam cair “sobre uma pequena linha d’água ali existente, linha essa que está revestida de caleiro de cimento e atravessa toda a Quinta no sentido norte/sul, numa extensão de cerca de 1.000 metros” alertando que “a água provinda da …, junta aquela linha de água e considerando o acentuado declive do terreno, provocará necessariamente graves estragos” e pedindo que fosse encontrada uma solução diversa [50º da petição inicial].

44. No período compreendido entre final de outubro de 2006 e início do ano de 2007, as chuvas intensas que se fizeram sentir, saindo com grande velocidade da caixa de queda identificada em 27. e 28. formaram enxurradas que abriram valas na propriedade identificada em 10., numa extensão de cerca de 500 ms, atingindo, em alguns locais, cerca de 5 ms de profundidade e 3 ms de largura, arrastaram grandes quantidades de terra, arrancaram algumas árvores na zona do carvalhal e destruíram erva para pasto de animais cultivada num campo [44º da petição inicial].

45. A força das águas e a superficial implantação das obras referidas em 16. provocaram a sua destruição [41º da petição inicial].

46. Devido ao referido em 44., por um período de tempo não concretamente apurado, os AA. ficaram impedidos de utilizar os solos dos prédios rústicos por onde essas águas passaram e depositaram detritos, como sucedia até então, bem como de aproveitar a linha de água na irrigação da propriedade [41º, 42º da petição inicial].

47. Os AA. sentiram preocupação e consternação pelos factos referidos em 44. a 46. [58º da petição inicial].

48. Em novembro e dezembro de 2006, o mandatário dos AA. remeteu à 1ª R. e à Estradas de Portugal, EP, missivas comunicando o descrito em 44. e solicitando a tomada de providências [52º da petição inicial].

49. Na sequência das missivas identificadas em 43. e 48., a 1ª R. respondeu argumentando, em síntese, como consta dos pontos 36. e 38. e rejeitou qualquer responsabilidade pelos danos [53º, 54º da petição inicial, 58º da contestação].


III – Decidindo:

1. Pretendem os AA. que se adite à matéria de facto que as instâncias consideraram apurada o seguinte facto (como nº 27º-A):

Antecedendo as obras referidas no número anterior, a R. Norace-Construções da Auto-estrada do Norte, ACE, invocando um pedido da Câmara Municipal  ..., e reclamação desta, procedeu ao prolongamento do coletor colocado sob a Estrada Municipal até a linha de água situada a Sul/Nascente, com vista a desviar as águas que corriam a céu aberto na Estrada Municipal, para o interior do prédio denominado “Propriedade ...”, e daí para os prédios dos AA., com vista a procurar evitar o alagamento da Estrada Municipal”.

Para o efeito consideram que existe violação de direito probatório material, na medida em que tal facto está provado por documento que não foi impugnado.

1.1. Esta mesma questão foi decidida no acórdão recorrido nos termos seguintes:

“Ora, pretendendo os AA. uma alteração à matéria factual dada como provada importaria observar as regras plasmadas nos arts. 639º, nº 2 e 640º, nºs 1 e 2, do CPC, por forma a impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” - Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 3ª ed., pp. 139 a 141.

Sobre eles recaía o ónus de alegar e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – art. 639º, nº 1, do CPC - na certeza de que estas têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do nº 3 do art. 635º do CPC.

Acresce que, numa primeira linha, há que ter em conta que o objeto precípuo de cognição por parte deste tribunal se reconduz à deteção de qualquer erro de julgamento naquela decisão da matéria de facto, pelo que não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento.

Erro de julgamento esse que não é apontado em face de todas as provas produzidas, analisadas, indicadas e avaliadas pelo tribunal a quo, de forma minuciosa, detalhada e conjugada, para concluir sobre a matéria de facto como o fez e não como os AA. o entendem.

Pois, como se sabe, o julgador deverá efetuar uma análise crítica de todos os elementos probatórios e não apenas daqueles que isoladamente favorecem uma parte ou outra, sem a devida conjugação e avaliação de toda a prova.

Não pode, nesse sentido, atender-se apenas a uma referência aposta na perícia, sem levar em consideração toda a demais prova, como em sentido contrário a Ré/Recorrida o faz.

De qualquer das formas, o certo é que, tal como decorre do disposto no art. 607º do CPC, no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do mesmo, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.

De acordo com este princípio, que se contrapõe ao princípio de prova legal, vinculada pois, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas, cedendo o mesmo naquelas situações vulgarmente denominadas de «prova taxada», designadamente no caso da prova por confissão, da prova por documentos autênticos e dos autenticados e particulares devidamente reconhecidos – cf. arts. 358º, 364º e 393º do CC.

Assim sendo, prima facie, sempre se teria de atentar no facto da apreciação da prova pericial estar sujeita à liberdade de julgamento, uma vez que a força probatória das respostas dos peritos é livremente fixada pelo tribunal nos termos expressos no normativo inserto no art. 389º do CC.

Acresce, ainda, que, visando os recursos, por via da modificação de decisão impugnada, alcançar a aplicação do direito que lhes é favorável, está a reapreciação da matéria de facto limitada ao efeito útil pretendido com essa impugnação da matéria de facto.

Nesta medida, considera-se que mesmo a aditar-se a matéria pretendida pelos AA./Recorrentes subordinados, não seria a decisão de alterar na medida em que sempre inalterada ficaria a restante matéria não objeto de impugnação, concretamente aquela matéria em que se baseou o tribunal a quo para fixar em 20% a responsabilidade dos AA. na produção dos danos.

Assim, por tudo quanto se deixou exposto, deve a matéria de facto manter-se inalterada”.

1.2. Antes de mais, importa evidenciar que não existe qualquer obstáculo a que o próprio Supremo Tribunal de Justiça proceda ao aditamento de factos quando a omissão de qualquer facto por parte das instâncias traduza uma ofensa de disposição expressa de lei que fixe a força de determinado meio de prova, abarcando, designadamente, factos que estejam demonstrados por documento ou por confissão que tenham força probatória plena (art. 674º, nº 3, do CPC).

No caso, argumentam os AA. que o facto que pretendem ver aditado não decorre de uma mera observação que conste do relatório pericial, como se refere no acórdão recorrido, emergindo, sim, de um documento que foi junto pela R. Norace, com o apoio das demais RR.

Tal documento representa uma comunicação (Telefax), datada de 10-3-06, com origem na R. Norace, com o seguinte teor:

Na sequência de reclamação da Câmara Municipal ... para efeito dos efluentes do P.H. 7.2., na EM..., somos a solicitar a realização dos seguintes trabalhos:

Prolongamento do coletor colocado sob a EM, até á linha de água situada a Sul/Nascente, de acordo com o desenho em anexo, incluindo a construção de caixas de queda e dissipação necessárias para adaptação á topografia dos terrenos atravessados.

1.3. Como se disse, se acaso se tratasse de documento dotado de força probatória plena, nada obstaria a que se procedesse ao aditamento do facto correspondente. Porém, estamos perante um documento de natureza particular que foi junto pela R. Norace, por requerimento de 24-9-18, na sequência de uma determinação judicial de 26-2-18. Depois de ter sido analisado também pelos Srs. Peritos aquando da elaboração do relatório complementar junto a 14-11-18, foi apreciado pelo Mº Juiz de 1ª instância para sustentar a declaração dos factos provados e não provados, em conjugação com muitos outros elementos de prova sujeitos a livre apreciação, desde o relatório pericial e esclarecimentos, a depoimentos testemunhais e outros documentos.

Tal documento, que não foi impugnado, faz prova plena de que a referida declaração foi emitida pela R. Norace (art. 376º, nº 1, do CC), mas não legitima que, por si só, determine a prova do facto que os AA. referem e que, afinal, se traduz na realização de uma obra com determinadas características que puderam ser observadas pelos Srs. Peritos, e pelo Mº juiz de 1ª instância quando realizou a inspeção judicial. A assunção dos factos referidos em tal documento careceria da demonstração de que seriam contrários aos interesses da declarante, nos termos do nº 2 do art. 376º do CC.

Por conseguinte, independentemente do relevo que tal facto traria para a solução do caso – o qual foi negado pela Relação, decisão que e não deixaria de ser reforçada por este Supremo – não existem razões para se proceder ao seu aditamento à matéria de facto provada.

2. Sustentam os AA. que deveria ser reconhecido o direito de indemnização por danos não patrimoniais que decorreram do impacto pessoal que foi causado pela perceção do risco de enxurradas que decorria das obras em curso e pela constatação dos danos patrimoniais que, na decorrência dessas obras, afetaram os seus prédios.

Tal direito foi reconhecido na sentença de 1ª instância, que arbitrou a cada A. uma indemnização de € 3.000,00, mas a Relação considerou que os factos apurados não revelavam suficiente gravidade de forma a valorizá-los para esse efeito, nos termos do art. 496º, nº 1, do CC.

2.1. A este respeito apurou-se essencialmente que:

41. No decurso das obras identificadas em 26. e 27. o A. chamou ao local os técnicos das RR., expondo-lhes as suas preocupações relativamente à possibilidade de o escoamento das águas através da “Propriedade ...” vir a provocar danos nos prédios identificados em 4. a 6.


43. Em 10-4-06 o mandatário dos AA. endereçou missiva à 1ª R. e à Estradas de Portugal, EP, comunicando que o empreiteiro das obras referidas em 26. e 27. estava a conduzir as águas provenientes da auto-estrada para os terrenos da Quinta referida em 10. de forma que iriam cair “sobre uma pequena linha d’água ali existente, linha essa que está revestida de caleiro de cimento e atravessa toda a Quinta no sentido norte/sul, numa extensão de cerca de 1.000 metros” alertando que “a água provinda da ..., junta aquela linha de água e considerando o acentuado declive do terreno, provocará necessariamente graves estragos” e pedindo que fosse encontrada uma solução diversa.

44. No período compreendido entre final de outubro de 2006 e início do ano de 2007, as chuvas intensas que se fizeram sentir, saindo com grande velocidade da caixa de queda identificada em 27. e 28. formaram enxurradas que abriram valas na propriedade identificada em 10., numa extensão de cerca de 500 ms, atingindo, em alguns locais, cerca de 5 ms de profundidade e 3 ms de largura, arrastaram grandes quantidades de terra, arrancaram algumas árvores na zona do carvalhal e destruíram erva para pasto de animais cultivada num campo.

45. A força das águas e a superficial implantação das obras referidas em 16. provocaram a sua destruição.

46. Devido ao referido em 44., por período de tempo não concretamente apurado, os AA. ficaram impedidos de utilizar os solos dos prédios rústicos por onde essas águas passaram e depositaram detritos, como sucedia até então, bem como de aproveitar a linha de água na irrigação da propriedade.

47. Os AA. sentiram preocupação e consternação pelos factos referidos em 44. a 46.

48. Em novembro e dezembro de 2006, o mandatário dos AA. remeteu à 1ª R. e à Estradas de Portugal, EP, missivas comunicando o descrito em 44. e solicitando a tomada de providências.

49. Na sequência das missivas identificadas em 43. e 48., a 1ª R. respondeu argumentando, em síntese, como consta dos pontos 36. e 38. e rejeitou qualquer responsabilidade pelos danos.

2.2. O art. 496º, nº 1, do CC, admite que sejam ressarcidos os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

A utilização de conceitos indeterminados, naturalmente dotados da correspondente plasticidade, traduziu a vontade do legislador de tutelar, através da concessão de um direito de indemnização, danos que se projetem na esfera pessoal do lesado e que sejam causalmente imputados ao agente.

Do preceito, cujo sentido deve ser adaptado em função do nível de perceção social sobre a maior ou menor gravidade dos danos, não se extrai necessariamente que apenas devam ser tutelados danos de natureza física ou psíquica que afetem diretamente os direitos de personalidade, podendo abarcar aqueles que sejam projetados através da verificação de danos em bens materiais dos lesados. Ponto é que uns e outros tenham gravidade suficiente para receber a tutela jurídica.

O facto de o próprio ordenamento jurídico ter sido modificado de modo a integrar a tutela dos danos não patrimoniais emergentes de lesões causadas em animas de companhia, nos termos do nº 3 do art. 493º-A do CC (aditado pela Lei nº 8/17, de 3-3) revela bem que o conteúdo do que sejam danos de natureza não patrimonial relevantes não deve ser alcançado através da cristalização de uma solução, de sentido mais restrito, que se considerava, porventura, aceitável aquando da aprovação do Cód. Civil de 1966, há mais de 50 anos, mas que já não corresponda à atual sensibilidade social.

No caso, contrariando o acórdão recorrido, cremos que a apreensão, a preocupação e a consternação que os AA. sentiram quando percecionaram o perigo e, depois, quando constataram a dimensão dos prejuízos que afetaram a sua propriedade “...” não podem deixar de ser valorados para esse efeito.

Na verdade, essencialmente por causa das obras que foram executadas pelas RR. e das subsequentes enxurradas de águas pluviais que potenciaram ou agravaram, abriram-se profundos sulcos no terreno do prédio dos AA., numa extensão de cerca de 500 metros, apresentando em alguns locais cerca de 5 ms de profundidade e 3 ms de largura. As demais consequências que a matéria de facto revela (arrastamento de grandes quantidades de terra, arrancamento de árvores ou destruição de pastagens) evidenciam bem a dimensão dos efeitos erosivos que causalmente podem ser imputados a tais obras e que provocaram em cada um dos AA. mais que incómodos, uma verdadeira preocupação que a sua posterior reação acaba por comprovar.

A gravidade das consequências materiais foi, aliás, antecipada pelos AA. que comunicaram às RR. a sua preocupação e solicitaram a adoção de medidas que os pudessem evitar, avisos que, no entanto, não tiveram das RR. a reação devida, vindo os AA. a ser confrontados com a consumação dos seus justificados receios, determinando que ficassem naturalmente preocupados e consternados pelos graves prejuízos materiais que foram provocados no seu prédio e que os mobilizaram no sentido da sua reparação, sem estarem sequer à espera de uma condenação judicial.

Tendo em conta a dimensão física dos prejuízos materiais e os seus reflexos na esfera pessoal de cada um dos AA., de modo algum a situação pode ser desvalorizada ao ponto de os considerar irrelevantes para efeitos de reconhecimento de um direito de indemnização, nos termos do art. 496º, nº 1, do CC.

Por conseguinte, nesta parte procede o recurso de revista, considerando-se ajustada uma compensação que, contemplando já a percentagem da responsabilidade atribuída à R., se fixará em € 4.000,00 (€ 5.000,00 x 80%), a qual é compatível com os juízos de equidade a que obedece a quantificação de tal indemnização.

3. O terceiro aspeto que é objeto de impugnação respeita à declaração de inutilidade superveniente do pedido constante da al. d), ou seja, do pedido de condenação das RR. a “reconstruirem os seus muros e terrenos recolocando seu solo no estado anterior e todas as condutas de acesso das águas acima referidas de forma tal que os seus prédios fiquem a receber as águas pluviais como sucedia antes daquela intervenção de modo descrito supra”.

3.1. Para apreciação de tal questão importa que da matéria de facto se extraiam os elementos reveladores da situação que existia antes de as obras serem executadas pelas RR., da situação em que o prédio dos AA. ficou depois dessas obras e da situação em que agora se encontra.

a) Quanto à situação primitiva (antes de 2006):

14. Na encosta onde a auto-estrada foi implantada existia uma linha de água natural que corria a céu aberto, atravessando vários prédios, designadamente, o …, dos AA.;

15. A linha de água percorria, no sentido norte-sul, esse prédio, numa extensão de cerca de 400 ms, até atingir o regato ..., situado a Sul;

16. Antes de março de 2006, por ação do A., a linha de água passou a ser conduzida na propriedade dos AA. através de caleiras em cimento de cerca de 30 cms, em substituição dos regos cavados pelo curso natural da água, e limpos sempre que necessário, a fim de facilitar o encaminhamento e aproveitamento para irrigação agrícola;

17. À propriedade dos AA. afluíam águas provenientes de nascentes e de outros prédios a montante;

35. Os prédios dos AA. situam-se num dos pontos mais baixos da bacia hidrográfica da linha de água que os atravessa, ocorrendo um aumento do caudal à medida que outras linhas de água se lhes juntam, correspondendo a um local de acumulação/concentração elevada de águas pluviais;

18. Existiam também tubos subterrâneos que permitiam a condução de parte destas águas para outros prédios situados mais a sul;

36. Antes da construção da auto-estrada, a concentração de águas pluviais na propriedade dos AA. resultava da construção da Est. Municipal ... e da impermeabilização dos terrenos decorrente do aglomerado urbano existente a norte do traçado da auto-estrada;

38. Em momento anterior a março de 2006, os AA. realizaram aterros e construíram muros na sua propriedade para facilitar a circulação de máquinas, os quais taparam parcialmente a linha de água ali existente:

39. Esses trabalhos e as caleiras referidas em 16. dificultaram o escoamento das águas.

b) Situação decorrente das obras executadas pelas RR. depois de março de 2006:

21. e 22. As obras de construção das RR. iniciaram-se em 2004 e nelas foram usadas máquinas que a abriram, pavimentaram e compactaram;

23. e 37. Tais obras implicaram a realização de obras de drenagem para a condução das águas pluviais da linha de água referida em 14., provenientes de norte, bem como das que caem na plataforma da auto-estrada situada ao km 7,960, para uma passagem hidráulica (PH 7.2), a qual corresponde às condições, especificações dos projetos de drenagem aprovados para o efeito;

24. Tais águas pluviais passaram a ser conduzidas em tubo com 1 m de diâmetro, que passa sob a auto-estrada, com orientação de norte para sul e, subsequentemente, através de um dreno longitudinal que vence a diferença de cota entre a plataforma da auto-estrada e a EM..., sita a Sul;

25. Na margem norte da EM existe uma caixa de queda que recebe as águas provenientes de nascentes e prédios a montante, bem como as águas pluviais e de drenagem dessa estrada;

26. A partir dessa caixa de queda, as águas da linha de água seguem num tubo de secção circular de 1 metro de diâmetro sob a EM, substituindo o anterior com secção quadrangular de 50 cms x 50 cms e, de seguida, no prédio situado entre a EM e o prédio dos AA., numa extensão total de cerca de 75 ms;

27. Nesse prédio intermédio foi construída uma caixa de queda em betão, com função de vencer o desnível existente e fazer a descarga das águas, cuja laje de fundo, com cerca de 1 m de largura, drena diretamente para esse terreno repondo a linha de água, a céu aberto, em trajeto correspondente ao traçado original;

28. e 33. Essa caixa de queda que tem medidas adequadas para receber o caudal das águas, encontra-se a 45 ms da estrema norte da propriedade dos AA. e a uma cota superior de aproximadamente 5 ms;

29. A execução das obras de drenagem referidas em 26. e 27. iniciou-se em março de 2006;

31. Esses trabalhos foram objeto de acompanhamento técnico e monitorização para assegurar a sua boa execução;

32. As referidas obras de drenagem produziram alterações, para mais, no caudal da água comparativamente àquele que existia na zona quando o solo era permeável e as águas eram encaminhadas a céu aberto e, sobretudo, na sua velocidade, a qual, atualmente, tem maior poder de erosão;

34. A sua execução obedeceu aos projetos de drenagem licenciados para aquela área, salvo quanto à bacia de dissipação através de tapete de enrocamento, formado por pedras, destinada a permitir a transição de velocidade da água, dissipando a sua energia antes da sua entrada em terreno natural, que não foi construída na propriedade identificada em 26.;

40. As RR. não desviaram qualquer curso de água;

44. No período compreendido entre final de outubro de 2006 e início do ano de 2007, as chuvas intensas que se fizeram sentir, saindo com grande velocidade da caixa de queda identificada em 27. e 28. formaram enxurradas que abriram valas na propriedade dos AA., numa extensão de cerca de 500 ms, atingindo, em alguns locais, cerca de 5 ms de profundidade e 3 ms de largura, arrastaram grandes quantidades de terra, arrancaram algumas árvores na zona do carvalhal e destruíram erva para pasto de animais cultivada num campo;

45. A força das águas e a superficial implantação das obras referidas em 16. provocaram a sua destruição.

c) Situação atual:

19. Na sequência de obras realizadas no período entre 2007, 2008 e 2009, as águas da linha de água existente e parte das águas referidas em 18. passaram a ser conduzidas pelo A., através de caleiras a céu aberto, com 40 cms de diâmetro e tubos subterrâneos, com 80 cms de diâmetro;

20. Tais águas aludidas são recolhidas em represas, depósitos e poços, existentes na propriedade dos AA.;

3.2. Perante a matéria de facto apurada, não há dúvida de que, se não tivesse existido qualquer intervenção espontânea da parte dos AA., a R. não deixaria de ser corresponsabilizada pela reconstituição do prédio dos AA. no estado em que se encontrava antes das enxurradas que ocorreram nos finais de 2006 e início de 2007 e que, no essencial, se traduziram na abertura de sulcos profundos causados pela erosão.

Do mesmo modo, não deixaria de ser corresponsabilizada pela realização de obras que permitissem a condução das águas pluviais em termos semelhantes aos que ocorriam anteriormente, ou seja, através da execução das alterações necessárias a reduzir a velocidade das águas pluviais vindas da conduta subterrânea que atravessa a auto-estrada e a EM, e que, depois da caixa de queda colocada no terreno intermédio, seguia na linha de água que atravessa o prédio dos AA.

Todavia, quanto ao que fora solicitado na referida al. d), a situação acabou por ser reposta ou remediada nos seus aspetos essenciais por atuação dos próprios AA. que instalaram caleiras a céu aberto com 40 cms de diâmetro e tubos subterrâneos com 80 cms de diâmetro, estruturas que eles mesmo consideraram apropriadas a evitar a ocorrência de situações semelhantes às que se verificavam.

Aliás, já no precedente recurso de apelação subordinado os AA. não reclamavam propriamente o reconhecimento do pedido formulado na al. d), antes pretendiam que, considerando a impossibilidade de condenação na reposição natural da situação anterior, a R. fosse condenada no pagamento da indemnização correspondente.

Tal resultava da conclusão 5ª com o seguinte teor:

“A sentença recorrida julgou que ocorria inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido formulado sob a al. d) …  mas afigura-se que erradamente julgou porquanto resulta diretamente da lei a condenação, sem mais formalismos processuais no pagamento de uma indemnização (do disposto no art. 566º do CC, em cujos termos, sempre que a reconstituição natural não seja possível, a indemnização é fixada em dinheiro), pelo que constatada a referida impossibilidade, a sentença deveria condenar no pagamento de uma indemnização, sem necessidade de dedução de qualquer articulado superveniente”.

No presente recurso de revista os AA. concluíram a tal respeito que:

“…

e) Com efeito, os autores sustentam que o pedido que formularam sob essa al. d) … no fundo, foi implicitamente julgado procedente, porque a decisão constante às als. a) e b) … integra também a condenação na prática dos atos que constavam da al. d) que assim naquela condenação está subsumido.

…”.

E mais adiante:

“…

k) A decisão recorrida, julgando que ocorria inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido formulado sob a al. d) … desconsiderou o comando do art. 566º do CC, em cujos termos, sempre que a reconstituição natural não seja possível, a indemnização é fixada em dinheiro, questão que a jurisprudência entende só ser de considerar na sentença, pelo que, constatada a referida impossibilidade, deveriam as RR. ser condenadas no pagamento de uma indemnização, sem necessidade de dedução de qualquer pedido novo ou de modificação do primitivo.

…”.

3.3. Ora, em primeiro lugar, contra o que alegam os AA., não existe qualquer motivo para considerar que os segmentos decisórios das als. a) e b) da sentença determinem necessariamente o reconhecimento integral do pedido que foi formulado na al. d), já que aos factos enunciados nos pontos 23. a 28., 32. e 34. foi atribuído relevo específico para efeito de reconhecimento de um direito de indemnização pelos danos causados, na proporção de 80%.

Por outro lado, os AA., tal como o fizeram no recurso de apelação subordinada, não insistem efetivamente na condenação da R. no pedido formulado na al. d), pretendendo, sim, que lhe seja atribuída uma indemnização em dinheiro correspondente ao valor que foi despendido na reparação da situação.

Centrados, pois, neste aspeto, não vemos motivos para divergir do acórdão recorrido, na medida em que, tendo sido formulado um pedido de reconstituição natural, em face da posterior reconstituição da situação, por virtude de uma atuação espontânea dos AA., não existe base legal para condenar a R. no pagamento de uma indemnização, por tal implicar uma alteração do objeto do processo que não foi devidamente veiculada através dos mecanismos processuais que estavam acessíveis aos AA. e que, por isso, está vedada, nos termos do nº 1 do art. 609º do CPC.

Em termos de direito material, nos termos do nº 1 do art. 566º do CC, a atribuição de uma compensação de natureza pecuniária apenas é consentida nos casos em que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente o dano ou seja excessivamente onerosa para o agente.

Ora, tais circunstâncias não se confundem com a situação configurada nos autos em que a inviabilidade da reconstituição natural decorre, afinal, do facto de a mesma já ter sido executada pelos próprios lesados nos seus aspetos essenciais. A “impossibilidade de reconstituição” afere-se através de um critério objetivo, não devendo confundir-se com a desnecessidade de uma condenação na reparação natural derivada do facto de afinal já ter sido executada pelo próprio lesado.

Em termos de direito adjetivo, para situações como a dos autos, seria teoricamente viável a substituição do pedido de reconstituição natural da situação pela condenação no pagamento de uma quantia correspondente ao custo da reparação que os próprios AA. lesados, atenta a eventual urgência da situação, levaram a cabo.

Tratando-se de obras de reconstituição ou de reparação que foram realizadas já depois de ter sido instaurada a ação (em dezembro de 2007), tal deveria ter sido solicitado através do mecanismo de alteração do pedido, ao abrigo das normas que no CPC de 1961 regulavam tal matéria, com articulação dos factos que fossem supervenientes.

Naturalmente, um tal pedido deveria ser sujeito ao contraditório e ser objeto de decisão judicial. Só depois de uma decisão positiva ficaria o tribunal legitimado a proferir uma decisão de condenação no pagamento de quantia líquida ou ilíquida, em função das circunstâncias que fossem apuradas.

O que a lei não permite, por tal importar uma modificação do objeto do processo (art. 609º, nº 1, do CPC), é que numa ação em que foi pedida a condenação numa determinada prestação de facto, o tribunal, ex officio, ou a parte, sem recurso aos instrumentos processuais ajustados, altere o objeto do processo, condenando-se o réu no pagamento de uma quantia, ainda que em montante ilíquido.

Neste contexto, não existem motivos para revogar o acórdão recorrido na parte em que confirmou a existência de inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido da al. d), nem para substituir esse pedido pelo de condenação no pagamento de uma indemnização em dinheiro.

4. Por último, pretendem os AA. que se atribua à R. a responsabilidade integral pela reparação dos prejuízos causados em lugar da corresponsailização dos AA. na proporção de 20%.

Tal decisão das instâncias foi essencialmente sustentada nos factos seguintes:

38. Em momento anterior a Março de 2006, os AA. realizaram aterros e construíram muros na propriedade identificada em 10. para facilitar a circulação de máquinas, os quais taparam parcialmente a linha de água ali existente.

39. Esses trabalhos, bem como as caleiras referidas em 16., dificultaram o escoamento das águas.

Ora, sem embargo da responsabilidade que foi atribuída à R. sequencial à realização de obras de que resultaram os danos referidos, a atuação pregressa dos AA. também não foi alheia à verificação dos danos ou à sua maior gravidade, na medida em que as obras que realizaram no seu prédio também interferiram no escoamento natural das águas pluviais que anteriormente se operava através da linha de água que atravessa o seu prédio.

Ademais, atenta a ponderação das atuações dos AA. e da R. parece-nos equilibrada a distribuição das responsabilidades que foi assumida pelas instâncias.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a revista no que concerne ao pedido de indemnização, pelo que, nesta parte revoga-se o acórdão da relação e condena-se a R. Ascendi Norte - Auto-estradas do Norte, S.A., no pagamento a cada um dos AA. de uma indemnização no valor de € 4.000,00, mantendo, no mais, o acórdão da Relação.

Custas da revista a cargo dos AA. e da R. Ascendi na proporção de 4/5 e 1/5, respetivamente.

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.

Notifique.

Lisboa, 25-3-21


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo