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REPÚDIO DA HERANÇA
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
ABUSO DO DIREITO
COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO
Sumário
I - A habilitação de herdeiros em acção pendente não implica a aceitação tácita da herança por parte do habilitado, pelo que mesmo não tendo contestado a habilitação este pode repudiar a herança. II - Como a lei não estabelece prazo para o exercício do direito de aceitar ou repudiar a herança, mas tão só um prazo de caducidade, o exercício do direito ao repúdio só será abusivo se for determinado pelo propósito de perturbar o processo.
Texto Integral
Apelação n.º 3286/17.8T8MTS.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
B…, S.A., pessoa coletiva nº. ………, com sede na Av.ª …, .., Lisboa, intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra:
1º) –C… e mulher, D…, casados, contribuintes fiscais n.ºs ……… e ………, respectivamente, residentes na Rua …, n.º …, freguesia …, concelho de Matosinhos,;
2º) – E…, solteiro, maior, contribuinte fiscal n.º ………, residente na Rua …, n.º …, freguesia …, concelho de Matosinhos;
3º) – F…, solteira, maior, contribuinte fiscal n.º ………, residente na Rua …, n.º …, freguesia …, concelho de Matosinhos,
Pedindo que:
a) – a transmissão do direito de propriedade do 1.º imóvel feita pelos 1.ºs RR. para os 2.º e 3.º RR., celebrada por escritura de 07.12.2012, seja declarada ineficaz relativamente à A;
b) –a transmissão do direito ao quinhão hereditário feita pelos 1.ºs RR. para os 2.º e 3.º RR., celebrada por escritura de 07.12.2012, seja declarada ineficaz relativamente à A;
c) - os RR. sejam condenados a reconhecer o direito da A. à restituição do imóvel e do quinhão hereditário ao património dos 1.ºs RR., bem como o direito da A. a executar os mesmos ainda que no património do 2.º e 3º. RR., na medida do seu interesse e para pagamento do crédito que detêm sobre os mencionados RR., tudo nos termos e para os efeitos previstos, designadamente, nos artigos 610.º e 616.º CC..
Caso assim não se julgue,
d) - Devem ser declaradas nulas, por simulação, as transmissões do direito de propriedade do imóvel e do quinhão hereditário feita pelos 1.ºs RR. para os 2.º e 3.ª, titulados pelas escrituras de 07.12.2012, nos termos e para os efeitos dos artigos 240,º, 241,º, 286,º e 289,º, CC..
Contestaram os RR..
Falecido o R. C…, a instância foi suspensa e, após vicissitudes várias, a R. D… juntou habilitação de herdeiros.
Notificados para os termos da habilitação, os herdeiros não contestaram tendo a apelada D… Gomes junto declaração de repúdio dos co-RR., seus filhos.
Habilitada como única sucessora do de cujus, seu marido, juntou igualmente declaração de repúdio da herança.
Foi, então, proferido despacho que, julgando válido o repúdio, por parte da apelada D…, da herança aberta por óbito de seu marido, C…, declarou suspensa a instância até que se mostre efetuada a habilitação dos sucessores deste último, em conformidade com o disposto no artigos 269, n.º 1, alínea a), e 270, n.º 1, CPC.
Inconformada, apelou a A., apresentando as seguintes conclusões:
a) Contrariamente ao decidido pelo “Tribunal a quo” o repúdio da herança pela Apelada D… efetuado no dia 11.02.2020 deve ser julgado ineficaz porquanto a herança do R C…, falecido em 19.10.2017, já tinha sido previamente aceite por esta. Na verdade;
b) Por um lado, por requerimento de 01.01.2018 a B… requereu no dia 01.01.2018, ao abrigo do princípio da cooperação, que a Apelada D… fosse notificada para vir informar aos autos quem eram os herdeiros legitimários do falecido para além dela e dos outros Co-Réus, tendo em vista instaurar a respetiva habilitação de herdeiros;
c) Como os RR não cumpriram o ordenado pelo M.Juiz “a quo” no sentido de prestarem tais informações, foram estes condenados em multa, tendo a Apelada D… recorrido de tal despacho para este douto Tribunal da Relação do Porto;
d) Na sequência da improcedência do recurso a Apelada D… veio então em 02.20.2018 juntar uma escritura de habilitação de herdeiros celebrada no dia 26.10.2017 na qual constam como herdeiros legitimários do falecido, além dela própria, os seus filhos e também RR na presente acção pauliana, E… e F….
e) Ora, a junção pela Apelada D… da escritura de habilitação feita sem fazer qualquer destrinça ou restrição como parte legitima ab initio na acção de impugnação pauliana e/ou como herdeira já reconhecida da escritura de habilitação, significa que aceita a escritura de habilitação como sendo sua e com a inerente aceitação expressa do título de herdeira;
f) Por outro lado, como a Apelada não deduziu qualquer oposição ao incidente de habitação de herdeiros, ou apresentou de documento legal de repúdio, dentro do prazo fixado, a herança se tem por aceite;
g) Ficou, assim, a Apelada como legitimidade para a causa (além da que já tinha como parte primitiva) uma vez que o seu marido já era parte legítima quando faleceu;
h) Por outro lado ainda, por requerimento de 26.11.2019 veio a Recorrente D… juntar escritura de repúdio da Herança daqueles dois herdeiros e também Co-Réus na acção de impugnação pauliana;
i) Também este seu comportamento afigura-se-nos claramente revelador concludente e inequívoco de uma aceitação tácita da herança, pois se não a tivesse aceitado bastaria também. A Recorrida D… teve intervenção ativa nos seguintes actos processuais (sem fazer qualquer destrinça da qualidade em que intervinha) que ultrapassa a mera investidura processual decorrente da procedência do incidente de habilitação e que são reveladores da aceitação tácita da herança:
1. Recorreu do despacho que condenou os RR por não identificarem os outros herdeiros legitimários para além deles próprios
2. Por requerimento 02.10.2018 juntou aos autos a escritura de habilitação de herdeiros celebrada 26.10.2017
3. Por requerimento de 16.11.2018 veio juntar aos autos duas escrituras de repúdio da herança de outros RR:
4. Por sentença de proferida em 20.12.2018 a Apelada D… foi julgada a única habilitada para com ela prosseguir a acção principal na posição do réu falecido.
5. Em 09.04.2019 a Apelada D… não prescinde da realização da Audiência Prévia, requerendo inclusive que a mesma deve ser realizada tendo em vista uma possível tentativa de conciliação.
6. Na audiência prévia do dia 26.06.2019 a Apelada D… deduziu um articulado superveniente
7. No dia 19.19.2019 interpôs recurso do indeferimento do articulado superveniente.
8. Junto requerimento probatório, bem como praticou outros actos referentes à tramitação da impugnação pauliana.
j) A Recorrida D… teve intervenção ativa nos seguintes actos processuais (sem fazer qualquer destrinça da qualidade em que intervinha) que ultrapassa a mera investidura processual decorrente da procedência do incidente de habilitação e que são reveladores da aceitação tácita da herança:
1. Recorreu do despacho que condenou os RR por não identificarem os outros herdeiros legitimários para além deles próprios
2. Por requerimento 02.10.2018 juntou aos autos a escritura de habilitação de herdeiros celebrada 26.10.2017
3. Por requerimento de 16.11.2018 veio juntar aos autos duas escrituras de repúdio da herança de outros RR:
4. Por sentença de proferida em 20.12.2018 a Apelada D… foi julgada a única habilitada para com ela prosseguir a acção principal na posição do réu falecido.
5. Em 09.04.2019 a Apelada D… não prescinde da realização da Audiência Prévia, requerendo inclusive que a mesma deve ser realizada tendo em vista uma possível tentativa de conciliação.
6. Na audiência prévia do dia 26.06.2019 a Apelada D… deduziu um articulado superveniente
7. No dia 19.19.2019 interpôs recurso do indeferimento do articulado superveniente.
8. Junto requerimento probatório, bem como praticou outros actos referentes à tramitação da impugnação pauliana.
k) Tal actuação traduz um comportamento que, interpretado segundo a boa-fé e a referência aos sociais, deixa entender a vontade de reter a herança, configurando uma aceitação tácita da mesma, conforme o disposto no artigo 2056, nº1, do C.Civil.
l) Por fim, a Apelada incutiu de forma adequada na B… a confiança que estava assente de uma forma ou de outra a aceitação da herança;
m) Com o seu repúdio de Fevereiro do corrente ano a Apelada assume um comportamento contraditório e abusivo com o anteriormente assumido, pelo que sempre existiria abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, nos termos do artigo 334, do C. Civil.
n) O repúdio da Apelada D… decorridos 3 anos desde o falecimento do seu marido visa apenas perturbar o decurso normal dos presente autos, o que também é confirmado pelo facto de quando juntou a escritura de habilitação não ter feito qualquer referência ao repúdio por parte dos outros Co-Réus F… e E…, o que também é revelador do seu abuso de direito.
o) Por todo o exposto, por erro de interpretação e aplicação violou a decisão recorrida os preceitos legais supra citados, pelo que o repúdio da herança da Apelada deve ser julgado ineficaz, não devendo, em consequência, ser suspensa a instância.
Deverá, assim, ser dado provimento ao presente recurso e, como tal, revogada a decisão recorrida.
Assim decidindo, far-se-á
JUSTIÇA
Contra-alegou a apelada D…, assim concluindo:
1. A apelada não procedeu à aceitação, quer expressa, quer tácita, da herança.
2. A escritura de habilitação de herdeiros junta pela apelada aos autos por imposição do Tribunal, não consigna nenhuma declaração de aceitação da herança, nem revela qualquer intenção de a adquirir, pelo que não está aqui em causa qualquer aceitação expressa da herança, como a apelante pretende fazer crer nas suas alegações.
3. Os meros atos de administração praticados pelo sucessível, por imposição do tribunal, não implicam a aceitação tácita da herança, pelo que, o facto de a apelada juntar escritura de habilitação de herdeiros, não revela qualquer comportamento do qual se possa extrair a aceitação tácita da mesma.
4. O facto de ter ocorrido um incidente de habilitação de herdeiros e o facto de a ora apelada não se ter oposto ao mesmo, não se configura igualmente como uma aceitação tácita da herança, pois o objetivo do incidente de habilitação é aferir se o habilitando reúne as condições necessárias para substituir o de cujos no processo, pelo que ser habilitado não pressupõe que este esteja a aceitar tacitamente a herança.
5. No Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 01.03.2018, estabelece-se que “A simples não oposição ao incidente de habilitação de herdeiros não pode desde logo fazer presumir pela aceitação da herança”.
6. O tribunal a quo, por todas estas razões considerou a escritura de repúdio da herança eficaz, sendo também este o entendimento da maioria da jurisprudência atual, pelo que o alegado pela apelante é descabido e comporta uma tentativa de ludibriar este tribunal em sentido oposto.
7. Tal como definido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.02.2015, “Sendo a lei especialmente exigente na determinação dos factos donde se deduz a vontade de o sucessível aceitar a herança (jacente), a aceitação tácita desta terá de traduzir-se em actos que a indiquem inequivocamente ou, pelo menos, mais concludentemente do que a administração dos bens, no sentido de não deixar dúvidas que, embora não expressa pelo sucessível, foi por ele querida”.
8. A posição que a apelante sustenta nas suas alegações é totalmente infundada, pois, nunca a aqui apelada demonstrou qualquer intenção de aceitar a referida herança, nem expressa, nem tacitamente.
9. Perante a inexistência de qualquer aceitação da herança, a escritura de repúdio de herança, não só é válida, como é eficaz, retroagindo todos os seus efeitos à data da abertura da sucessão – 19 de outubro de 2017.
TERMOS EM QUE,
e nos demais que V. Exas. se dignarão suprir, deve o presente recurso ser julgado improcedente e, consequentemente, ser confirmada a douta decisão recorrida, assim se fazendo a costumada
Justiça
2. Fundamentos de facto
São os seguintes os factos relevantes para a apreciação do recurso (factos considerados ao abrigo do disposto no artigo 607.º, n.º 4, ex vi artigo 663.º, n.º 2, CPC):
1. O R. C… faleceu em 19.10.2017.
2. A instância foi suspensa em 06.12.2017 ao abrigo do artigo 269.º, n.º 1, alínea a) e 270.º, n.º 1, ambos CPC.
3. A apelante, alegando desconhecer se existiam outros herdeiros para além da apelada D…, viúva do falecido, e dos co-RR. E… e F…, seus filhos, requereu em 01.01.2018, ao abrigo do princípio da cooperação, que a apelada D… fosse notificada para informar aos autos quem eram os herdeiros legitimários do falecido tendo em vista instaurar a respectiva habilitação de herdeiros.
4. Por despacho de 26.01.2018 o Tribunal recorrido notificou a apelada D… e outros co-RR. para prestar as informações solicitadas.
5. Na ausência de resposta, foi renovado despacho e os RR. condenados em multa por falta de colaboração com o Tribunal.
6. Por não se conformar com a decisão, apelada D… interpôs recurso para a Relação do Porto, que o julgou improcedente.
7. Na sequência desse acórdão, a apelada D…, em 02.10.2018, juntou uma escritura de habilitação de herdeiros celebrada em 26.10.2017, e na qual não teve intervenção, e onde constavam como herdeiros legitimários do falecido, além dela própria, os seus filhos E… e F…, também RR. na acção.
8. Em 25.10.2018 a apelante deduziu incidente de habilitação de herdeiros requerendo a habilitação da apelada e dos demais RR. enquanto sucessores do falecido R..
9. Notificada para contestar a habilitação, a R., em 16.11.2018, juntou certidão da escritura de repúdio da herança por parte dos apelados seus filhos.
10. Não tendo sido deduzida contestação ao incidente de habilitação, a apelada D… foi habilitada, por sentença de proferida em 20.12.2019, para com ela prosseguir a acção principal, na posição do falecido R..
11. Em 09.04.2019 a apelada D… não prescindiu da realização da audiência prévia, requerendo inclusive que a mesma deveria ser realizada tendo em vista uma possível tentativa de conciliação
12. Na audiência prévia de 26.06.2019 apelada apresentou articulado superveniente.
13. Em 19.19.2019 interpôs recurso do indeferimento do articulado superveniente.
14. Por escritura pública celebrada em 11.02.2020, a apelada, D… repudiou a herança aberta por óbito de seu marido.
3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigos 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se em saber:
— se o repúdio da herança por óbito de C… por parte da apelada D… deve ser considerado ineficaz por aquela ter praticado actos donde se infere a aceitação da herança;
— se a referida apelada incorreu em abuso do direito.
3.1. Da (in)eficácia do repúdio da herança por parte da apelada D…
Resulta dos autos que a apelada, depois de ter sido declarada a única sucessora do falecido R., seu marido, em virtude de os demais RR., seus filhos, terem repudiado a herança em momento anterior à sentença de habilitação.
A apelada D… repudiou igualmente a herança do falecido, mas em momento à sentença que a habilitou como sucessora do de cujus.
A questão que de imediato se suscita é a de saber se, tendo sido julgada habilitada, pode repudiar a herança.
De acordo com o n.º 1, do artigo 2056.º, CC, a aceitação da herança pode ser expressa ou tácita.
Ocorre aceitação expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado
à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir (n.º 2).
Devido ao elevado grau de exigência estabelecido para a aceitação expressa, será seguramente mais frequente a aceitação tácita.
Contrariamente ao que sucedia no direito pregresso, a lei não define aceitação tácita, valendo aqui o disposto no artigo 217.º CC, cujo n.º 1 dispõe: A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.
No entanto, não deixou o legislador de enunciar situações que entendeu afastar do conceito de aceitação tácita.
Assim, de acordo com o n.º 3 do artigo 2056.º CC, e em consonânciacom o disposto no artigo 2047.º do mesmo diploma, Os actos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança.
Por outro lado, segundo o n.º 1 do artigo 2057.º CC, Não importa aceitação a alienação da herança, quando feita gratuitamente em benefício de todos aqueles a quem ela caberia se o alienante a repudiasse.
O n.º 2 deste artigo esclarece, porém, que se entende que aceita a herança e a aliena aquele que declara renunciar a ela, se o faz a favor apenas de algum ou alguns dos sucessíveis que seriam chamados na sua falta.
Entende maioritariamente a doutrina que quer a aceitação da herança, quer o seu repúdio, configuram actos jurídicos unilaterais, não receptícios, individuais e livres, que retroagem ao momento da abertura da sucessão (artigos 2050.º, n.º 2, e 2060.º, CC, respectivamente), são irrevogáveis (artigos 2061.º e 2066.º, respectivamente), e caducam, em regra, ao fim de dez anos a contar do momento em que o sucessível teve conhecimento de ter sido chamado à sucessão (artigo 2059.º, n.º 1, CC) (cfr. Rabindranah Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Coimbra Editora, vol. II, 3.ª edição, pgs. 13-17)
Tratando-se de actos jurídicos de sentido oposto, são naturalmente incompatíveis, e, por força da sua irrevogabilidade, a herança aceite, expressa ou tacitamente, não pode ser repudiada, da mesma forma que a herança repudiada não pode ser objecto de aceitação posterior.
Sendo inequívoco que no caso sob recurso não correu aceitação expressa, impõe-se averiguar se houve aceitação tácita.
Entende a apelante que sim, esgrimindo argumentos em várias vertentes.
Sustenta que a apresentação pela apelada D… da escritura de habilitação de herdeiros, sem fazer qualquer destrinça como parte legitima ab initio e/ou como herdeira já reconhecida da escritura de habilitação, significa que confessou expressamente que é herdeira e aceitou a herança, consubstanciando aceitação expressa.
Defende ainda a existência de vários factos que, em seu entender, revelam a intenção de aceitar a herança, configurando aceitação tácita:
— falta de dedução de qualquer oposição ao incidente de habilitação de herdeiros, em que a apelada D… foi julgada como sucessora do seu falecido marido;
— intervenção em variados actos processuais sem fazer qualquer destrinça da qualidade em que intervinha, que ultrapassa a mera investidura processual decorrente da procedência do incidente de habilitação e que são, na sua óptica, reveladores da aceitação tácita da herança.
A falta de contestação do incidente de habilitação, com a sua consequente habilitação, contrariamente ao pretendido pela apelante, não implica aceitação da herança.
Louva-se a apelante em quatro acórdãos:
— Relação de Guimarães, de 04.10.2017, www.dgsi.pt.jtrg, proc. n.º 1336/15.1T8VRL.G1: “Pendente ação contra o falecido e sendo os seus herdeiros sucessíveis citados para com eles prosseguirem os termos da demanda, em incidente de habilitação deduzido, pelo comparte ou pela parte contrária, é de entender que, na falta de contestação ou apresentação de documento legal de repúdio, dentro do prazo fixado, a herança se tem por aceite, sendo aqueles habilitados como sucessores, não relevando a apresentação de documento de repúdio em momento posterior, ainda que dele conste data anterior.”;
— Relação de Lisboa, de 13.03.2007, www.dgsi.pt.jtrl, proc. n.º 933/2007: “Aceita tacitamente a herança aquele que não contesta o incidente de habilitação de herdeiros, não recorre da sentença que o julga habilitado e intervém nessa qualidade na audiência de discussão e julgamento. A declaração de repúdio da herança posterior às referidas circunstâncias é ineficaz.”;
— Relação de Lisboa, de 06.12.2005, www.dgsi.pt.jtrl, proc. n.º 9068/2005: “Na habilitação incidental a sentença limita-se a verificar se os habilitandos têm a qualidade de herdeiros, colocando-os no lugar do falecido em processo pendente, a fim de que a causa prossiga com aqueles ou contra aqueles. Essa sentença produz efeitos limitados ao respectivo processo e apenas perante o opositor da parte falecida no litígio judicial pendente. Neste contexto, cabia ao embargante quando foi citado para contestar a habilitação, nos termos do disposto no artigo 372º nº 1 do Código de Processo Civil, impugnar a sua qualidade de herdeiro com fundamento na não aceitação ou no repúdio da herança. Não o tendo feito, aceitou tacitamente nos autos o chamamento à herança, adquirindo a sentença que o julgou habilitado como herdeiro da parte falecida, transitada em julgado, força obrigatória dentro do processo por virtude do caso julgado formal (artigo 672º do Código de Processo Civil)”.
— Relação do Porto, de 26.05.2009,www.dgsi.pt.jtrp, proc. n.º 4593/03.2TBSTS-C.P1 (com a particularidade de exigir a presença de outros elementos): “É certo que, em tese geral, se pode afirmar – como fez o STJ, em Acórdão de 8/7/1975 (apud CAPELO DE SOUSA, idem, p. 16) – que «a habilitação, tomada isoladamente, não é índice, por si só, seguro de aceitação tácita da herança». Contudo, não pode deixar de relevar, no caso concreto, a circunstância de o habilitado não ter contestado o requerimento de habilitação, permitindo que se produzisse o respectivo efeito cominatório (confissão do facto da qualidade de herdeiro), e de, posteriormente, ter intervindo no processo de execução como herdeiro e executado, durante mais de 3 anos desde a decisão de habilitação (de 27/5/2004), sem expressar qualquer «repúdio da herança» (cujo documento, datado de 31/10/2007, só foi apresentado em 5/11/2007, mais de 7 anos após a sua morte). Essa actuação afigura-se-nos claramente reveladora de uma aceitação tácita da herança – tudo levando a crer que a edição do documento de «repúdio da herança» não foi mais que um expediente para obviar ao prosseguimento da efectivação da penhora do seu vencimento, mas que não poderia ter qualquer efeito, face à anterior aceitação (irrevogável) da herança”.
Não se afigura ser esta a posição mais correcta, pois habilitação e aceitação da herança são questões independentes: a habilitação como sucessor da parte falecida não implica a aceitação da herança.
A habilitação incidental prevista nos artigos 351.º e ss., CPC, tem carácter obrigatório, destinando-se a providenciar o andamento do processo após a sua suspensão por óbito da parte (artigos 269.º, n.º 1, alínea a), e 276.º, n.º 1, alínea a), CPC).
O que está em causa é, pois, a substituição da parte falecida através de um mecanismo célere e simplificado para o processo poder prosseguir os seus termos, e não saber se o habilitado aceitou ou não a herança.
Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra, de 11.05.2010, www.dgsi.pt.jtrc, proc. n.º 2431/07.6TBVIS-B.C1, enquanto a herança não tiver sido aceite, o sucessível pode ser habilitado através de incidente, mantendo incólumes as suas faculdades de aceitação ou repúdio da herança, atendendo o limitado interesse da habilitação.
Segundo o acórdão do STJ, de 08.07.1975, BMJ 248.º/434, a habilitação isoladamente considerada não constitui índice seguro da aceitação da herança, pois a sua finalidade consiste tão só em averiguar se os habilitandos preenchem os requisitos legais que os legitimem a substituir no processo a parte falecida.
No mesmo sentido, os acórdãos do STJ, de 08.07.1975, BMJ 249.º/502, da Relação do Porto, de 02.02.2015, www.dgsi.pt.jtrp, proc. n.º 102048/12.7YIPRT.P1, da Relação de Lisboa, de 24.02.2000, CJ, I, 125,
Importa concluir que, não implicando a habilitação a aceitação tácita da herança, o habilitado que não contestou o incidente pode repudiar a herança.
Outra linha de argumentação da apelante passa pela enunciação de diversos actos processuais em que apelada D… interveio sem destrinça da qualidade em que o fazia, que ultrapassam a mera investidura processual decorrente da procedência do incidente de habilitação e que são, na sua óptica, reveladores da aceitação tácita da herança.
Os actos referidos são os seguintes:
— Recorreu do despacho que condenou os RR. por não identificarem os outros herdeiros legitimários para além deles próprios;
— Por requerimento 02.10.2018 juntou aos autos a escritura de habilitação de herdeiros celebrada 26.10.2017;
— Por requerimento de 16.11.2018 juntou aos autos duas escrituras de repúdio da herança dos outros RR.;
— Por sentença de proferida em 20.12.2018 a apelada D… foi julgada a única habilitada para com ela prosseguir a acção principal na posição do R. falecido;
— Em 09.04.2019 a apelada D… não prescindiu da realização da audiência prévia, requerendo inclusive que a mesma fosse realizada tendo em vista uma possível tentativa de conciliação;
— Na audiência prévia do dia 26.06.2019 a apelada D… deduziu um articulado superveniente;
— No dia 19.19.2019 interpôs recurso do indeferimento do articulado superveniente;
— Junto requerimento probatório, bem como praticou outros actos referentes à tramitação da impugnação pauliana.
Como se referiu supra, a lei não define a aceitação tácita da herança, devendo por isso fazer-se apelo ao critério enunciado no artigo 217.º CC.
A aceitação será tácita quando a vontade de chamar a si a herança se deduz de factos que com toda a probabilidade a revelam.
Esses factos devem exprimir uma intenção inequívoca de aceitar a herança.
A este propósito, escreveu-se no acórdão do STJ, de 18.04.2006, www.dgsi.pt.jstj,
proc. n.º 06A719:
A aceitação, como manifestação de vontade positiva, pode ser feita expressa ou tacitamente, é irrevogável e, na modalidade de expressa, não está sujeita à forma exigida para a alienação da herança (artigos 2056º e 2063º "a contrario" e ainda 2061º do Código Civil).
A distinção tem a ver com a natureza directa ou indirecta da declaração.
Por este critério, o Prof. Manuel de Andrade explicava ser "expressa a declaração que se destina unicamente ou em primeira linha a exteriorizar certa vontade negocial (declaração directa ou imediata); e tácita a que se destina unicamente ou em via principal a outro fim, mas "a latere" permite concluir com bastante segurança uma dada vontade negocial (declaração indirecta ou mediata)".
E continua: "Na declaração tácita o comportamento declarativo não aparece como visando directamente - como que de modo frontal - a exteriorização da vontade que se considera declarada por essa forma.
Apenas dele se infere que o declarante, em via mediata, oblíqua, lateral, quis também exteriorizar uma tal vontade - ou pelo menos teve consciência disso. Costuma falar-se, a este propósito, em procedimento concludente, em factos concludentes (facta concludentia: facta ex quibus voluntas concludi potest), acrescentando-se que tais factos devem ser inequívocos". (apud "Teoria Geral da Relação Jurídica", 80, 81; cf. ainda Prof. Rui de Alarcão - "Declarações expressas e declarações tácitas", BMJ 86-233).
O artigo 2056º nº 2 do Código Civil define a aceitação expressa.
Já para a aceitação tácita deixa ao intérprete a integração do conceito, ao contrário do Código Civil de 1867 ("È tácita, quando o herdeiro pratica algum facto de que necessariamente se deduz a intenção de aceitar, ou de tal natureza, que ele não poderia praticá-la senão na qualidade de herdeiro" - nº 2 do artigo 2027º) do Anteprojecto das Sucessões, que segue na mesma linha (nº 3 do artigo 29º - BMJ 54-33) e do Projecto do Código Civil (nº 3 do artigo 2056º).
Note-se que os actos de administração não implicam aceitação tácita (nº 3 do artigo 2056º), tal como a declaração de óbito prestada pelo herdeiro no processo de liquidação do imposto de sucessões e doações, e o pedido do cabeça de casal de prorrogação do prazo de apresentação da respectiva relação de bens, por se tratar apenas de cumprimento de obrigações fiscais. (cf. os Acórdãos deste STJ de 12 de Janeiro de 1975 - BMJ 248-434 e de 20 de Março de 2001 - 01 A455).
Ora, aduziu a apelante que estes factos são idóneos para se indeferir a aceitação tácita da herança pela apelada D…, por que, ao praticá-los, ela não destrinçou a qualidade em que o fazia, que ultrapassa a mera investidura processual decorrente da procedência do incidente de habilitação.
Sem razão, porém.
É óbvio que a qualidade em que a apelante interveio foi a qualidade que sempre deteve desde o momento da instauração da acção — a de R..
Se pretendesse intervir na qualidade de herdeira habilitada é que deveria especificá-lo; nada dizendo, tem de entender-se que actua na qualidade de parte primitiva.
Aliás, em algumas situações apenas podia intervir naquela qualidade: a condenação em multa, de que recorreu, teve lugar antes da sua habilitação, precisamente por recusa de colaboração com o Tribunal na identificação de outros herdeiros legitimários para além dela e dos dois filhos que já figuravam na acção como RR..
A junção da escritura de habilitação de herdeiros, em que, aliás, não interveio (artigo 83.º, 1, Código do Notariado — A habilitação notarial consiste na declaração, feita em escritura pública, por três pessoas, que o notário considere dignas de crédito, de que os habilitandos são herdeiros do falecido e não há quem lhes prefira na sucessão ou quem concorra com eles), ocorreu na sequência de uma obrigação de colaboração com o Tribunal, cuja omissão dera origem a um a condenação em multa confirmada pelo Tribunal superior.
A junção das escritura de repúdio dos demais RR., seus filhos, não permite inferir a sua aceitação da herança, com base no raciocínio sustentado pela apelante de que, se pretendia repudiar a herança, deveria tê-lo feito nessa altura.
Com efeito, a lei não impõe qualquer prazo para a aceitação da herança, estabelecendo, sim, para o efeito um prazo de caducidade de dez anos a contar do momento em que o sucessível teve conhecimento de ter sido chamado à sucessão (artigo 2059.º, n.º 1, CC).
Nessa conformidade, nada obrigava a apelada D… a repudiar a herança no mesmo momento em que os seus filhos fizeram, não se podendo daí extrair qualquer ilação no sentido de assumir a posição oposta — a aceitação.
Nenhum dos factos indicados pela apelante legitimam a interpretação no sentido de a apelada ter aceitado a herança do seu falecido marido.
Os aludidos factos poderiam levar a essa interpretação de a apelada D… não fosse já parte na acção.
Com efeito, se um herdeiro habilitado, que ainda não figura na acção como parte, passa a exercer todos os poderes processuais que cabem no estatuto da parte a que sucede, fazendo requerimentos, interpondo recursos, intervindo em diligências, transigindo ou desistindo do pedido ou da instância, obviamente que se impõe a conclusão que aceitou a herança.
Concluindo-se que a apelada D… não aceitou a herança, o repúdio é válido, tal como se considerou na sentença da 1.ª instância.
3.2. Do alegado abuso do direito
Afirma a apelante que a apelada D…, com a sua conduta, incutiu-lhe a confiança que estava assente, de uma forma ou de outra, a aceitação da herança.
Entende, assim, que com o repúdio assumiu um comportamento contraditório com o anteriormente assumido; o exercício do direito ultrapassou de forma intolerável, inadmissível, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim económico do direito, pelo que sempre exsitiria abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium .
Aduziu ainda que o repúdio, decorridos três anos após o falecimento do seu marido, visou apenas perturbar o decurso normal dos autos, o que também é confirmado pelo facto de, quando juntou a escritura de habilitação, não ter feito qualquer referência ao repúdio por parte dos outros co-RR. F… e E….
Não podemos acompanhar o raciocínio da apelante.
Ao invocar o abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, a apelante assinala comportamentos contraditórios: o repúdio da herança estaria em contradição com a anterior aceitação da herança.
No entanto, e como já se referiu, se a herança tivesse sido aceite, a irrevogabilidade da aceitação impediria a eficácia do repúdio, razão por que não se poderia falar em abuso do direito, mas na inexistência do direito ao repúdio ou ineficácia do repúdio.
Por outras palavras, o comportamento contraditório não é travado pelo artigo 334.º CC, que prevê o abuso do direito, mas pelo artigo 2061.º do mesmo diploma (irrevogabilidade da aceitação).
Como refere Antunes Varela, BMJ 114º/75, «o abuso de direito (ao invés da falta ou carência de direito) pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo, bem como das faculdades ou liberdades reconhecidas pela ordem jurídica a determinadas pessoas)».
No mesmo sentido, o acórdão do STJ, de 06.06.2002, www.dgsi.pt.jstj, proc. n.º 02B1479.
Noutra linha de argumentação, cita Castro Mendes, Direito processual Civil, II volume, pg. 317:
“ … o repúdio da herança representa o desaparecimento - embora não físico, mas jurídico – dos sucessores do habilitado. É obrigatório comunicar esse repúdio no processo, seguindo-se suspensão da instância e nova habilitação. Se a demora no repúdio foi determinado pelo desejo de perturbar ou demorar o processo, verifica-se abuso de direito”.
Como já se referiu, a lei não estabelece prazo para o exercício do direito de aceitar ou repudiar a herança, mas tão só um prazo de caducidade.
O exercício do direito ao repúdio só será abusivo se for determinado pelo propósito de perturbar o processo.
No caso vertente, desconhecemos por que razão o repúdio ocorreu apenas três anos após o óbito, não se podendo extrair do simples decurso do prazo, sem outros adjuvantes, qualquer intenção dilatória.
O mero decurso do tempo após o falecimento parte, desacompanhado de qualquer outro elemento, que não legitima, por si só, a ilação de que houve aceitação tácita da herança, igualmente impede um juízo de censura ética quanto à não tomada de posição por parte da habilitada.
Seja como for, a apelante dispunha de um mecanismo legal para pôr termo à situação de indefinição acerca da titularidade da herança no caso de não haver aceitação expressa: o processo cominatório de aceitação ou repúdio (actio interrogatória) prevista no artigo 2049.º CC, adjectivado nos artigos 1039.º e ss. CPC.
Assim, de acordo com o n.º 1 do artigo 2049.º, CC, Se o sucessível chamado à herança, sendo conhecido, a não aceitar nem repudiar dentro dos quinze dias seguintes, pode o tribunal, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado, mandá-lo notificar para, no prazo que lhe for fixado, declarar se a aceita ou repudia.
O n.º 2 do preceito estabelece a cominação: Na falta de declaração de aceitação, ou não sendo apresentado documento legal de repúdio dentro do prazo fixado, a herança tem-se por aceita.
Improcede, pois, o recurso.
4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante (artigo 527.º CPC).
Porto, 15 de Dezembro de 2020
Márcia Portela
Carlos Querido
José Igreja Matos