CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
FIANÇA
Sumário

I - A fiança constitui uma garantia pessoal das obrigações, passando o património de um terceiro – o fiador – a responder, cumulativamente com o património do devedor, pelo pagamento da dívida.
II - A vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal.
III - A intervenção e subscrição do contrato de arrendamento por um terceiro outorgante em que apenas é referida a sua qualidade de fiador, não se traduz numa declaração de vontade do mesmo de prestar fiança capaz de satisfazer os requisitos previstos no nº 1 do artigo 628º do C.C.

Texto Integral

Apelação nº 13932/19.3T8PRT.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B… e C… intentaram ação com processo comum de declaração contra D… e E…; F… e G…, pedindo:
a) Que se declare resolvido o contrato de arrendamento, ao abrigo do disposto no artigo 1083º, nº 3, e 1084º, nº 2, do C.C., e artigo 9º, nº 7, alínea c), do NRAU;
b) Que se condenem os réus D… e E… a desocupar o locado e a entregá-lo aos autores livre de pessoas e bens;
c) Que os réus sejam condenados a pagar, solidariamente, ao abrigo do disposto nos artigos 1038º, alínea a), 638º e 640º, alínea a), do C.C., o valor das rendas em atraso – €3.400,00;
d) Que os réus sejam condenados a pagar, solidariamente, uma indemnização pelo atraso na restituição da coisa, desde 26/05/2019, em conformidade com o previsto no disposto no artigo 1045º, valor da renda que, atualmente ascende a €800,00 (relativamente a um mês vencido a 01/06), bem como a uma indemnização por cada mês de atraso na restituição da coisa locada que entretanto se vença, no valor da renda em dobro por cada mês – €800,00;
e) Que, ao abrigo do disposto no artigo 829º-A, nº 1, do C.C., os réus sejam condenados numa sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na entrega do locado, desde a data da sentença que venha a recair sobre os presentes autos até integral e efetivo pagamento, em valor nunca inferior a €30,00/dia.

A fundamentar aqueles pedidos, em síntese, alegam que são proprietários da fração autónoma designada pela letra P, que corresponde ao 3º andar do prédio sito no …, nº …, inscrito à matriz sob o artigo 14736º.
Por contrato de arrendamento escrito, deram de arrendamento a referida fração autónoma aos 1ºs réus, mediante o pagamento da renda mensal de €400,00.
Desde agosto de 2018, que os arrendatários não pagam a renda devida, razão pela qual, os autores pedem que seja declarada a resolução do contrato.
Os 2ºs réus intervieram na celebração do referido contrato, constituindo-se como fiadores.

Os réus F… e G… apresentaram contestação, através da qual impugnam os factos quanto às rendas em dívida, relativamente a si e já não quanto aos 1ºs réus.
Invocam a nulidade da fiança, por falta de declaração expressa.
Não compreendem o pedido apresentado pelos autores, no sentido de o tribunal declarar a resolução do contrato, pois o mesmo já foi resolvido extrajudicialmente.
Ainda que não se entenda que a fiança é nula, com a resolução extrajudicial do contrato, a mesma extinguiu-se.
Ainda que não se entenda que a fiança é nula verifica-se o privilégio da excussão prévia.
Inexiste fundamento legal para condenar os réus numa sanção pecuniária compulsória.

Concedido o exercício do contraditório aos autores relativamente à matéria de exceção alegada pelos réus, vieram os autores declarar que a fiança foi validamente constituída e que a invocação da nulidade constitui abuso do direito, desde logo, porque notificados da notificação judicial avulsa não vieram alegar que não eram fiadores; se assinaram o contrato na qualidade de fiadores deveriam saber que estavam a garantir o crédito.
Inexiste o benefício da excussão prévia, porquanto os réus assumiram-se como principais pagadores na cláusula 14ª do contrato de arrendamento.

Procedeu-se à realização da audiência prévia, na qual, considerando que o processo continha os elementos necessários, foi proferido despacho saneador destinado a conhecer do mérito da causa nos termos do artigo 595º, nº 1, alínea b), do C.P.C., no qual a ação foi julgada parcialmente procedente e, em consequência:
– Reconhecida a validade da resolução extrajudicial do contrato de arrendamento junto aos autos de fls. 9/verso a fls. 11 e, por conseguinte, condenados os réus D… e E… a despejar o arrendado, entregando-o aos autores livre de pessoas e bens;
– Condenados os réus D… e E… a pagar aos Autores a quantia de €3.400,00 (três mil e quatrocentos euros) correspondentes às rendas vencidas e não pagas desde metade do mês de agosto de 2018 (inclusive) até abril de 2019 (inclusive), acrescida do montante mensal de €400,00 (quatrocentos euros) relativa aos mês de maio de 2019 e; acrescida do montante de €800,00 (oitocentos euros) desde junho de 2019 (inclusive) até à efetiva entrega do arrendado aos autores;
– Absolvidos os réus D… e E… do demais peticionado pelos autores e;
– Absolvidos os réus F… e G… do pedido.

Inconformados, os autores recorreram para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:
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Os réus F… e G… apresentaram contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação de facto:
a) Encontra-se inscrita à matriz predial urbana sob o artigo 14736.º, a favor do autor, a fração autónoma denominada pela letra “P” destinada a habitação que se situa no 3º andar direito do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, sito no …, n.º …, …, …. – … Gondomar (cfr. certidão matricial junta aos autos a fls. 8/verso e a fls. 9).
b) Os autores celebraram com os réus o contrato de arrendamento com prazo certo de dois anos, que tem por objeto a fração autónoma identificada em a), no dia 1 de maio de 2017 (cfr. contrato de arrendamento junto aos autos de fls. 9/verso a fls. 11).
c) Os réus D… e E… assumiram no contrato referido em b) a qualidade de arrendatários (cfr. contrato de arrendamento junto aos autos de fls. 9/verso a fls. 11).
d) Os réus D… e E… obrigaram-se a pagar a renda mensal no montante de €400,00, por meio de transferência bancária entre o dia 1 e o dia 8 do mês anterior àquele a que disser respeito a renda (cfr. contrato de arrendamento junto aos autos de fls. 9/verso a fls. 11).
e) Os réus não pagaram metade da renda do mês de agosto de 2018, nem as rendas de setembro de 2018 a abril de 2019 (ausência de contestação/operância da revelia).
f) Os réus D… e E… foram notificados por notificação judicial avulsa em 03/04/2019 que “(…) 10.º Atualmente, estão em dívida mais de cinco rendas, não tendo sido paga metade da renda de agosto de 2018 bem como as rendas devidas em setembro, outubro, novembro e dezembro de 2018 e a renda devida em janeiro de 2019. 11.º O que perfaz o valor global de €2.200,00. 12.º Nos termos do previsto no artigo 1083º, nº 3, do C.C. “É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda”. 13.º Deste modo, vêm os requerentes pela presente notificar os requeridos da resolução do contrato de arrendamento ao abrigo do disposto nos artigos 1083º, nº 3, 1084º, nº 2, do C.C., e artigo 9º, nº 7, alínea a), do Novo Regime do Arrendamento Urbano. 14.º Devendo os requeridos desocupar o locado, deixando-o livre de pessoas e bens, no prazo de um mês. 15.º Bem como proceder ao pagamento das rendas em dívida, que ascende a €2.200,00, no prazo máximo de um mês. 16º Sob pena de nos vermos obrigados a recorrer aos meios judiciais à nossa disposição para vermos desocupado o locado e lograrmos obter o pagamento das rendas em dívida” (cfr. certidão de notificação judicial avulsa de fls. 12 a fls. 24)
g) Os réus F… e G… foram notificados por notificação judicial avulsa em 26/04/2019 que “(…) 10.º Atualmente, estão em dívida mais de cinco rendas, não tendo sido paga metade da renda de agosto de 2018 bem como as rendas devidas em setembro, outubro, novembro e dezembro de 2018 e a renda devida em janeiro de 2019. 11.º O que perfaz o valor global de €2.200,00. 12.º Nos termos do previsto no artigo 1083º, nº 3, do C.C., “É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda”. 13.º Deste modo, vêm os requerentes pela presente notificar os requeridos da resolução do contrato de arrendamento ao abrigo do disposto nos artigos 1083º, n.º 3, 1084º, nº 2, do C.C., e artigo 9º, nº 7, alínea a), do Novo Regime do Arrendamento Urbano. 14º Devendo os requeridos desocupar o locado, deixando-o livre de pessoas e bens, no prazo de um mês. 15º Bem como proceder ao pagamento das rendas em dívida, que ascende a €2.200,00, no prazo máximo de um mês. 16.º Sob pena de nos vermos obrigados a recorrer aos meios judiciais à nossa disposição para vermos desocupado o locado e lograrmos obter o pagamento das rendas em dívida” (cfr. certidão de notificação judicial avulsa de fls. 27 a fls. 30).
h) Consta do contrato de arredamento “Terceiros Outorgantes: F…, portador do cartão de n.º …….., contribuinte fiscal n.º ………, casado no regime de comunhão de adquiridos com G…, portador do cartão de cidadão n.º …….., contribuinte ………, ambos residentes na rua … nº …, 2.º esquerdo freguesia de Valongo e concelho de Valongo, na qualidade de fiadores” (cfr. contrato de arrendamento junto aos autos de fls. 9/verso a fls. 11).
i) Consta do contrato de arrendamento “Cláusula 14ª: os outorgantes obrigam-se a cumprir pontualmente as obrigações emergentes do presente contrato que, no omisso é regido pela lei portuguesa, ficando desde já estipulado para a resolução de todas as questões emergentes do presente contrato o foro da comarca do Porto, com renúncia expressa a qualquer outro” (cfr. contrato de arrendamento junto aos autos de fls. 9/verso a fls. 11).
j) Consta do contrato de arrendamento “Os Terceiros Outorgantes: Fiadores” (cfr. contrato de arrendamento junto aos autos de fls. 9/verso a fls. 11).

São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do C.P.C.
Questões a decidir: inexistência da fiança por falta de declaração negocial expressa por parte dos fiadores; abuso do direito.

I. Os autores pedem a condenação dos réus F… e G… a pagar, em regime de solidariedade com os réus D… e E…, as quantias em que estes fossem condenados, na qualidade de fiadores.
No despacho saneador recorrido foi entendido que se verificava a nulidade da fiança, pois, inexiste no contrato declaração expressa dos réus F… e G… a garantir a satisfação do crédito e de que ficaram pessoalmente obrigados perante os credores, seja por que palavras forem.
Os autores/apelantes, por sua vez, reafirmam que os 2ºs réus outorgaram o contrato de arrendamento como terceiros outorgantes, na qualidade de fiadores, referindo-se, ainda, na cláusula 14ª, que os outorgantes se obrigam a cumprir pontualmente todas as obrigações emergentes do contrato.
Dispõe o artigo 627º, nº 1, do C.C., que o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.
A fiança constitui, pois, uma garantia pessoal das obrigações, passando o património de um terceiro – o fiador – a responder, cumulativamente com o património do devedor, pelo pagamento da dívida; distingue-se, contudo, do aval pela acessoriedade e subsidiariedade que a caraterizam.
Com efeito, a natureza acessória da fiança – expressa pelo princípio acessorium sequitur principale – resulta expressamente do preceituado no artigo 627º, nº 2, do C.C., e tem importantes consequências que se refletem no seu regime jurídico.
Assim, quanto à sua forma, exige o nº 1 do artigo 628º do C.C. que a vontade de prestar fiança seja expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal.
No que a este aspeto diz respeito, no intróito contrato de arrendamento junto consta a identificação completa dos autores/senhorios (primeiros outorgantes), dos réus/arrendatários (segundos outorgantes) e dos réus F… e G… (terceiros outorgantes), estes na qualidade de fiadores.
Como refere Manuel Januário da Costa Gomes, a declaração do fiador “tem de ser exteriorizada através de um meio direto, por palavras, por escrito ou qualquer outro meio frontal e imediato de expressão de vontade, não satisfazendo o requisito legal a declaração de prestar fiança cujo sentido se depreende a latere de factos concludentes” (pág.), pois, “O que não é possível é considerar eficaz, como declaração de fiança, uma vontade que resulte deduzida – indiretamente, portanto – de facta concludentia” (págs. 471/472). Assunção Fidejussória de Dívida, 2000, Almedina.
Referindo-se aos elementos ou dados que devem constar da declaração de fiança, o mesmo autor considera que, em princípio, “a declaração do fiador deve identificar a dívida garantida, o devedor, o credor e o tempo de vinculação” (pág. 515). ob. cit.
No caso em apreço, a intervenção dos réus F… e G…, subscrevendo o contrato de arrendamento em que apenas é referida a sua qualidade de fiadores, não se traduz numa declaração de vontade dos mesmos de prestar fiança capaz de satisfazer os requisitos previstos no nº 1 do artigo 628º do C.C.
Como se refere no acórdão desta Relação, de 15.6.2020, “a vontade de prestar fiança tem de ser expressamente declarada e tal não sucede quando os recorridos, ainda que referenciados como fiadores num contrato de arrendamento e tendo-o assinado como terceiros outorgantes não prestaram uma só declaração de onde aquela vontade pudesse resultar”.
No mesmo sentido, diz-se no acórdão da Relação de Lisboa, de 10.2.2015, que “a intervenção de quem assina documento onde se menciona a sua participação como fiadora no contrato que dele consta, não traduz uma declaração tácita de fiança que seja válida; melhor, embora possa traduzir uma declaração tácita de fiança, não pode ser aceite com essa eficácia por a lei exigir para tal uma declaração expressa”.
A cláusula 14ª que os apelantes invocam a favor da sua tese, na qual se estabelece que “os outorgantes se obrigam a cumprir pontualmente todas as obrigações emergentes do presente contrato”, não corresponde à declaração de um garante pessoal, mas à assunção da responsabilidade das partes no contrato.
Concorda-se, portanto, não existir no contrato de arrendamento uma declaração expressa, nos termos do nº 1 do citado artigo 628º do C.C., por parte dos réus D… e E…, suscetível de traduzir a vontade dos mesmos de prestarem fiança.

II. Do abuso do direito
Os autores alegam que os réus D… e E… permitiram que fosse interposta a presente ação, como tinham anunciado fazer na sua notificação judicial avulsa, caso não fossem pagas as rendas em dívida e desocupado o locado, para virem invocar, em manifesto abuso do direito, a nulidade da fiança.
Estabelece o artigo 334º do C.C. que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Um dos modos de verificação do abuso de direito mais frequente constitui o chamado venire contra factum proprium.
Nesses casos, o titular do direito exerce-o em contradição com a sua conduta anterior, conduta essa que conduziu a outra parte à convicção de que não seria exercido se, interpretando-se à luz da boa-fé e ou dos bons costumes ou ainda do fim desse direito, fundadamente confiou que assim seria.
A proibição de venire contra factum proprium insere-se no citado artigo 334º do C.C., quando se refere aos limites impostos pela boa-fé, traduzindo-se em alguém exercer um direito, após criar a aparência a outrem de que nunca o faria, causando-lhe essa convicção.
As notificações judiciais avulsas não admitem oposição e, portanto, os réus contestantes exerceram o direito de invocar a inexistência da fiança nesta ação, que era o momento próprio.
O factum proprium seria um eventual comportamento dos réus que, censuravelmente pudesse ter contribuído para a inexistência da fiança, criando nos autores a convicção de que mais tarde essa mesma inexistência não seria invocada.
O abuso do direito residiria, então, na invocação da referida inexistência para a qual antes se contribuiu de forma censurável.
Não foi alegada pelos autores uma qualquer situação de confiança, anterior ou contemporânea do contrato, criada pelos réus e que tivesse contribuído para a dita inexistência da fiança. Os réus aceitaram fazer parte do contrato, na qualidade de fiadores, fornecendo os seus elementos de identificação e subscrevendo-o, mas não sobressai que tenham provocado ou contribuído para a inexistência da declaração expressa de prestar fiança, nos termos do nº 1 do citado artigo 628º do C.C.
Em suma, não existe fiança por falta de declaração expressa dos fiadores, nem se revela uma qualquer conduta censurável e injustificada por parte dos réus que deva ser neutralizada com fundamento no abuso do direito.
Improcede, deste modo, o recurso dos autores B… e C….

Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, consequentemente confirmar o despacho saneador recorrido.

Custas pelos apelantes.

Sumário:
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Porto, 12.4.2021
Augusto de Carvalho
José Eusébio Almeida
Carlos Gil