HERANÇA
SONEGAÇÃO DE BENS
Sumário

I - A sonegação de bens prevista no artigo 2096º do Código Civil trata-se de um fenómeno de ocultação de bens, que pressupõe um facto negativo (omissão de declaração) cumulado com um facto positivo (o dever de declarar por parte do omitente), exigindo-se ainda que essa ocultação seja dolosa.
II - A disciplina do artigo 2096º do Código Civil, com as sanções neste previstas, pode ser aplicada quer a ocultação tenha lugar existindo processo de inventário quer não.
III - Não havendo processo de inventário, terá de recorrer-se ao processo comum de declaração.
IV - A sonegação de bens pode ocorrer em momento anterior ao óbito, designadamente quando, através da movimentação de contas bancárias do falecido, se teve o objetivo de se subtrair valores existentes nestas contas à futura massa hereditária.

Texto Integral

Proc. nº 8061/17.7 T8STB.P1
Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 2
Apelação
Recorrente: B…
Recorridos: C… e outros
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Carlos Querido

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
O autor B…, residente na Rua …, nº ., 1º esq., Setúbal, veio intentar ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra os réus C…, residente na Avenida …, nº …, 2.º, …, Porto, D…, residente na Rua …, nº …, 1º dt.º frt, Porto e E…, residente na Rua …, nº …, 3.º, Porto, formulando, no final da sua petição inicial, o seguinte pedido:
“Nestes termos e nos mais de direito, deve a presente acção ser julgada procedente e dada por provada e em consequência:
a) se declare pertença da herança de F…, as quantias discriminadas nos artigos 37.º a 40.º da PI, que perfazem a quantia de €61.250,20 (sessenta e um mil, duzentos e cinquenta euros e vinte cêntimos);
b) se declare, em benefício do autor, a perda do direito que os réus, como herdeiros, pudessem ter em relação às mesmas;
c) se condenem os réus a entregar ao autor a quantia de €61.250,20, acrescida de juros, desde a citação até efectivo pagamento;
d) a expedição de ofícios ao Banco de Portugal, para fornecer dados sobre as instituições bancárias nas quais o falecido F… foi titular de contas e respetivos saldos bancários;
e) apurando-se a final o valor líquido das quantias sonegadas e corrigindo-se o valor da causa em conformidade.”
Para tanto, e no essencial, alegou os seguintes factos:
- No dia 14.5.2016 faleceu F…, pai do autor, no estado de casado com C…, sua mãe, ora primeira ré, sob o regime da comunhão geral de bens;
- São seus irmãos os ora segundo e terceiro réus, filhos do extinto casal acima referido;
- O seu falecido pai era enfermeiro reformado e padeceu de debilitações ao nível físico/motor e mental nos últimos seis anos da sua vida, que o conduziram a um estado equiparado ao de acamado, mais concretamente, não se deslocava por si só e pelos seus meios, necessitando do auxílio de outrem, sendo assistido na sua locomoção e apenas da sua cama para lugares sentados da sua residência e durante esse período ficou sempre aos cuidados da esposa, primeira ré;
- Após o óbito do seu pai, veio ao ter conhecimento da correspondência de duas instituições bancárias endereçadas ao pai, através das quais verificou que existiam depósitos bancários significativos e aplicações financeiras em nome exclusivo do de cujus;
- A saber, o falecido deixou depósitos bancários, que em exclusivo lhe pertenciam, na conta n.º ……………. domiciliada no Banco G…, S.A. e conta n.º .-…….-…-… domiciliada no Banco H…, S.A.;
- A conta n.º ….............., domiciliada no Banco G…, S.A., apresentava os seguintes saldos ativos:
- Em 31.1.2013, o total de €52.847,78, do qual €2,45 corresponde ao saldo de Conta à Ordem, €32.008,00 de Carteira de Títulos e €20.837,33 correspondente ao saldo de Conta Rendimento e Poupança;
- Em 30.8.2013, o total de €51.202,26, do qual €2,57 corresponde ao saldo de Conta à Ordem, €33.063,40 de Carteira de Títulos e €18.136,29 correspondente ao saldo de Conta Rendimento e Poupança;
- Em 31.3.2014, o total de €47.196,51, do qual €11,30 corresponde ao saldo de Conta à Ordem, €34.045,60 de Carteira de Títulos e €13.162,21 correspondente ao saldo de Conta Rendimento e Poupança;
- Em 30.6.2015, o total de €37.259,64, do qual €26.666,44 corresponde ao saldo de Conta à Ordem e €10.593,20 correspondente ao saldo de Conta Rendimento e Poupança;
- Em 30.11.2015, o total de €34.745,09, do qual €24.147,90 corresponde ao saldo de Conta à Ordem e €10.597,19 correspondente ao saldo de Conta Rendimento e Poupança;
- Ora, daqui resulta uma diferença de saldo de €15.588,14, num lapso temporal de dois anos, entre 2013 e 2015;
- O de cujus era ainda titular da conta n.º .-…….-…-… domiciliada no banco H…, que apresentava à data de Janeiro de 2013 o saldo de €7.481,97 em aplicações de prazo fixo com a designação Conta Poupança Reformado;
- Os réus fizeram os seguintes levantamentos/transferências da conta n.º ……………. (G…a):
a) No dia 11.5.2011, a quantia de €935,00;
b) No dia 16.7.2015, a quantia de €2.500,00.
- Eram feitas com uma regularidade mensal transferências desta conta, da reforma do de cujus, para a conta pessoal da 1ª ré, também domiciliada nesse banco, o que se apurou ter sido feito nos seguintes montantes:
a) €505,53 em 13.2.2013;
b) €438,53 em 11.1.2013;
c) €437,67 em 26.1.2016;
d) €441,15 em 15.2.2016;
e) €439,41 em 21.3.2016 e
f) €439,41 em 18.4.2016.
- Tendo questionado a mãe, 1ª ré, sobre estes saldos bancários esta respondeu-lhe que não existia nada a partilhar e os 2º e 3º réus, interpelados também pelo autor, recusaram o diálogo a esse respeito;
- Quem tinha em seu poder os cartões bancários era a mãe do autor que, sendo iletrada, movimentava as referidas contas com o auxílio e através dos irmãos do autor, ora segundo e terceiro réus;
- Todas as quantias que se encontravam depositadas nas supracitadas contas foram subtraídas com o conhecimento e consentimento da primeira ré e com o total desconhecimento do de cujus, que não se poderia mobilizar por si só, ou para tanto possuía as faculdades mentais necessárias;
- Assim, os réus, em comunhão de esforços e intentos, ocultaram ao autor os levantamentos que efetuaram, ainda em vida do falecido, e após a sua morte, que utilizaram em proveito próprio e sabiam não lhes pertencer, e não prestaram contas dos mesmos;
- Não foi apresentada na Repartição de Finanças competente a relação dos bens deixados pelo falecido;
- Ao atuarem da forma descrita, os réus subtraíram e ocultaram bens da herança do de cujus, com a finalidade de prejudicarem o autor, enquanto herdeiro, apropriando-se ilegitimamente daqueles montantes, com consciência dolosa na sua ocultação.
A primeira ré, viúva, apresentou contestação, na qual alegou ter sido casada sob o regime da comunhão geral de bens com o de cujus, sendo portanto as contas bancárias tituladas por si sua pertença em comunhão com o seu falecido marido (numa das contas era ainda co-titular a segunda ré). Referiu também que em virtude do estado de saúde do de cujus foram muitas as despesas a suportar, sendo que os bens/valores créditos e/ou débitos do de cujus existentes à data do seu óbito deverão ser relacionados em processo de inventário.
Em sede de despacho saneador foi proferida decisão que julgou a ação manifestamente improcedente e absolveu os réus dos pedidos formulados pelo autor.
Inconformado com o decidido interpôs recurso o autor que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
a) Vem a presente Apelação da Douta Sentença a fls. e seguintes dos autos.
b) Face à análise do teor da matéria consignada na decisão recorrida, não podemos deixar de discordar quanto ao seu enquadramento jurídico e à interpretação dada ao preceituado no art. 2096.º do C. Civil.
c) A douta sentença recorrida considerou que as quantias levantadas pelos RR. em datas anteriores ao óbito não integram a herança do falecido, em primeira linha pela possibilidade da disposição em vida desses bens da forma que entender.
Com efeito,
d) Nos termos do artigo 2031.º e 2050.º do C. Civil, é aberta a sucessão com o chamamento dos herdeiros no momento da morte do seu autor, cujo domínio dos bens da herança se adquire pela aceitação.
e) De onde decorre que os bens existentes no património do autor da herança à data da sua morte passam para a titularidade dos seus herdeiros legais.
f) Porém, o acervo patrimonial que deve ser levado à relação de bens, com a morte do autor da herança, deve compreender ainda os bens existentes anteriormente ao óbito, pois integram a massa hereditária.
g) Resultou demonstrado que à data do óbito, existiam quantias na conta bancária do “de cujus” detida no Banco H…, no valor de 7.400,00€ (Cfr. Doc. 4 junto com a P.I. e Doc. 8 junto por req. do autor com a ref.ª 35428473).
h) Mais ficou provado que cerca de 4 meses antes do óbito de F…, o 2.º Réu E…, transferiu para uma conta pessoal a quantia de 32.241,35€, traduzindo um levantamento puro e simples, sem causa legítima que justifique os referidos saldos serem excluídos do acervo hereditário.
i) Mais resultou demonstrado que nos 3 anos anteriores ao óbito foram sendo levantadas quantias em dinheiro, que se apuraram no valor global de 61.250,20€, conforme vertido na PI (Doc. n.º 3 a 11).
j) Quantias pertencentes ao “de cujus” apropriadas pelos RR. sem autorização ou consentimento deste, considerando o seu estado de notória vulnerabilidade, e que não foram justificadas pelos RR.
k) O estado debilitado do pai do A. nos últimos 6 anos da sua vida, com a consequente ausência de autonomia, permitem concluir sem necessidade de maior prova, que este não detinha as faculdades necessárias para dispor validamente dos seus bens.
l) Nem resultou demonstrado da prova carreada para os autos a alegada co-titularidade e eventual compropriedade dos réus relativamente às verbas detidas nas contas bancárias do “de cujus”.
m) No caso em apreço, à data da prolação do Despacho Saneador-Sentença, não resultou demonstrado que o “de cujus” tivesse validamente disposto deles em vida, nos casos legalmente previstos, seja por doação, disposição testamentária, ou ainda se o respectivo dinheiro fosse utilizado para satisfazer uma dívida contraída em vida do “de cujus” (artigos 940.º, n.º 1 e 947.º, n.º 2 do C.C.).
n) Por maioria de razão, forçoso é de concluir que a apropriação daquelas quantias pelos RR. foi ilegítima e com o escopo de encobrimento perante o Autor, co-herdeiro da herança.
o) Não tendo sido provada a finalidade, destino ou justificação das verbas em apreço, as mesmas teriam que ser relacionadas e entrar na massa hereditária do falecido.
p) A sonegação de bens como fenómeno de ocultação de bens da herança, não raras vezes ocorre em momento anterior ao óbito, cujo propósito reside na subtracção de certos bens do futuro acervo hereditário.
q) Neste sentido tem-se debruçado a jurisprudência, destacando-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 01.07.2010, de 12.03.2009, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 26.04.2018, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
r) Verificando-se manifesto erro na apreciação da qualificação jurídica, que deveria ter subsumido a matéria do objecto da acção no regime da sonegação de bens previsto no art. 2096.º do C.Civil, devendo o Tribunal ad quem alterar a decisão do Tribunal a quo.
s) Em sede de matéria de facto consignada na decisão recorrida, impugna-se o vertido nos seus parágrafos 10.º e 12.º, que declaram a ausência de bens ou quantias em dinheiro à data do óbito do “de cujus”.
t) De salientar que o A. diligenciou pela averiguação do destino das quantias levantadas das contas em apreço pelos réus, no sentido de se declarar que tais valores fossem declarados pertença da herança de seu pai.
u) Não se pode deixar de sublinhar a falta de colaboração dos réus no processo para esse efeito, denunciadora no plano subjectivo de dolo e má-fé.
v) Como se veio a demonstrar, além das verbas descritas na P.I., nas contas bancárias do “de cujus”, figuravam quantias significativas que foram apropriadas pelos réus, a saber, na conta domiciliada no banco G…, SA, no dia 20.01.2016 foi transferida a quantia de €32.241,35 para a conta pessoal do 2.º R. E… (Doc. 1 a 5 junto por req. do autor com a ref.ª 36089384).
w) Bem como, na conta n.º .-…….-…-… domiciliada no banco H…, foram resgatadas as aplicações de Conta Poupança Reformado do “de cujus” em 19.05.2016, no valor de €7.400,00 (Cfr. Doc. 4 junto com a P.I. e Doc. 8 junto por req. do autor com a ref.ª 35428473).
x) Pelo que, o Douto Tribunal a quo ignorou o resgate das quantias desta poupança, apesar de provado, não constando na decisão recorrida, como deveria.
y) A prolação da decisão final de mérito em saneador-sentença que declarou a inexistência de quantias pertencentes ao “de cujus” à data do óbito, desconsiderou a prova documental em sentido inverso e articulada pelas partes, que impunham a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da sonegação de bens.
z) Face a todo exposto, parece ser de concluir existir manifesto erro de julgamento, pois que a concreta apreciação das questões em I. e II. das Alegações foi efectuada em desconformidade com a Lei.
aa) Ao não ter em conta essa factualidade o Tribunal a quo não só violou os artigos 24.º e 25.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, artigo 9º e 2096° do Cód. Civil, como não teve em conta a jurisprudência maioritária que tem vindo a sancionar o sonegador com os ditames do artigo 2096° do Cód. Civil.
Pretende assim que se revogue a sentença recorrida e se julgue a matéria objecto da ação declarativa sujeita ao regime da sonegação de bens prevista no art. 2096.º do Cód. Civil, e se determine o prosseguimento da causa com a realização de audiência de julgamento, com vista à produção de prova que se mostrar necessária.
Sem prescindir, pretende que seja corrigida a sentença recorrida, na consignação da existência de quantias em dinheiro à data do óbito, pertença da herança do “de cujus”, com as legais consequências.
A ré C… apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido, tendo formulado as seguintes conclusões:
1ª A sonegação de bens é um instituto que em princípio, não abrange a gestão do património que cada pessoa faça em vida, não afetando, portanto, a disposição inteiramente livre do património, salvo se ocorrer a afetação da legítima de herdeiros legitimários;
2ª A invocação da sonegação de bens exige a instauração de uma ação especial de partilha em inventário judicial a fim de se ativarem nessa sede processual todos os mecanismos que permitam a definição do acervo hereditário e da partilha dos bens.
3ª A douta sentença recorrida não merece, pois, qualquer censura, devendo manter-se nos seus precisos termos.
Cumpre então apreciar e decidir.

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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se as movimentações bancárias alegadas pelo autor, ocorridas em momento anterior ao óbito do “de cujus”, são suscetíveis de poder integrar o conceito de sonegação de bens.
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Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso constam do antecedente relatório.
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Passemos à apreciação jurídica.
1. O art. 2096º do Cód. Civil, com a epígrafe “Sonegação de bens” dispõe o seguinte:
«1. O herdeiro que sonegar bens da herança, ocultando dolosamente a sua existência, seja ou não cabeça-de-casal, perde em benefício dos co-herdeiros o direito que possa ter a qualquer parte dos bens sonegados, além de incorrer nas mais sanções que forem aplicáveis.
2. O que sonegar bens da herança é considerado mero detentor desses bens
Este artigo, que reproduz nos seus traços essenciais o conceito de sonegação dado no Anteprojecto de Galvão Telles e o tratamento jurídico nele proposto, define a sonegação, tendo em vista a forma de distorção da verdade que, neste ponto, mais importa reprimir, no próprio plano civilístico, como a ocultação dolosa, por parte do herdeiro, da existência de bens pertencentes à herança.
É uma noção na qual se reúnem elementos de facto com algumas componentes de direito.
Trata-se, em primeiro lugar, de um fenómeno de ocultação de bens – o qual pressupõe, obviamente, um facto negativo (a omissão de uma declaração) cumulado com um facto jurídico de carácter positivo (o dever de declarar, por parte do omitente).
Em segundo lugar, importa também destacar que só há verdadeira sonegação quando a omissão (ou mesmo a ocultação) seja dolosa, cabendo neste conceito tanto as manobras ativas (sugestões ou artifícios), como a atitude (passiva) da dissimulação do erro[1] – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. VI, Coimbra Editora, 1998, págs. 156/157.
Prosseguindo, há a referir que a disciplina do art. 2096º do Cód. Civil com as sanções nele previstas, pode ser aplicada quer a ocultação tenha lugar existindo processo de inventário quer não. Havendo processo de inventário, a sanção de perda de bens é decretada nos termos previstos no nº 4 do art. 35º da Lei nº 23/2013, de 5.3[2] [Regime Jurídico do Processo de Inventário – RJPI]. Não havendo processo de inventário, terá de recorrer-se ao processo comum de declaração – cfr. Capelo de Sousa, “Lições de Direito das Sucessões”, vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, págs. 60/61, nota 163[3]; Ac. STJ de 1.7.2010, proc. 1315/05.7TCLRS.L1.S1, relator Serra Baptista, disponível in www.dgsi.p.
2. No caso dos autos, o autor alega na sua petição inicial que das contas bancárias tituladas pelo falecido F… foram feitos levantamentos e transferências em benefício dos réus, desde pelo menos o ano de 2013 e até à data do seu óbito ocorrido em 14.5.2016, movimentações bancárias essas que lhe foram ocultadas.
Certo é que a sucessão se abre no momento da morte do seu autor e que aberta esta são chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade – cfr. arts. 2031 e 2032º, nº 1 do Cód. Civil.
Sucessores são herdeiros ou legatários, sendo herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados – cfr. art. 2030, nºs 1 e 2 do Cód. Civil.
Não tendo o falecido disposto válida e eficazmente, no todo ou em parte, dos bens de que podia dispor para depois da morte, são chamados à sucessão desses bens os seus herdeiros legítimos – cfr. art. 2131º do Cód. Civil.
A ordem por que são chamados os herdeiros é a seguinte: a) cônjuge e descendentes; b) cônjuge e ascendentes; c) irmãos e seus descendentes; d) outros colaterais até ao quarto grau; e) Estado – cfr. art. 2133º, nº 1 do Cód. Civil.
A legítima é a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários e estes são o cônjuge, os descendentes e os ascendentes – cfr. arts. 2156º e 2157º do Cód. Civil.
No cálculo da legítima deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança – cfr. art. 2162º do Cód. Civil.
Tal como se afirmou na decisão recorrida, não se ignora que, em vida, qualquer pessoa no gozo da sua capacidade jurídica pode dispor dos seus bens como melhor entender.
Com esse argumento, o Mmº Juiz “a quo” entendeu que os valores levantados das contas do falecido em data anterior ao seu óbito não integram a respetiva herança e, por isso, afastou “in casu”, e de forma liminar, a ocorrência de sonegação de bens.
3. Não concordamos, porém, com esta posição, pois não se pode ignorar que o autor na sua petição inicial veio alegar que os movimentos bancários aí mencionados foram efetuados pelos réus com o total desconhecimento do de cujus e com o propósito de subtraírem e ocultarem bens da herança e assim prejudicarem o autor, enquanto herdeiro, apropriando-se ilegitimamente dos montantes respetivos, sempre com consciência dolosa na sua ocultação.
Ou seja, esses movimentos bancários relativos às duas contas tituladas pelo falecido, na alegação do autor, realizaram-se com o propósito dos réus procederem à sonegação de bens à massa hereditária do de cujus.
Com efeito, a ausência das quantias pecuniárias mencionadas na petição inicial dos bens da herança decorre, na afirmação do autor, da atuação dos réus no sentido da apropriação da quase totalidade das verbas do de cujus ainda em vida deste e prevalecendo-se do seu estado de incapacitado.
Por outro lado, o autor alega ainda que não foi apresentada na Repartição de Finanças a relação dos bens deixados pelo falecido, sendo certo que essa alegada omissão de declaração ao fisco, conjugada com o correspetivo dever de declarar e com a ocultação, neste caso, de saldos bancários, constitui pressuposto da sonegação de bens.
Sucede que a primeira ré, na sua contestação, para além de alegar ter sido casada com o falecido no regime da comunhão geral de bens, referiu ainda que os movimentos bancários aqui em causa se justificaram pelo estado de saúde do de cujus que esteve longos anos doente, tendo sido muitas as despesas a suportar.
Assim, e porque a sonegação de bens pode ocorrer em momento anterior ao óbito[4], com o objetivo de se subtrair certos bens à futura massa hereditária, não foi, a nosso ver, correta a decisão da 1ª Instância de julgar improcedente, já em sede de despacho saneador, a presente acção.
É que se impunha produzir prova relativamente à factualidade alegada pelo autor na petição inicial, sendo certo que é sobre este que recai o ónus de provar os factos constitutivos da invocada sonegação de bens prevista no art. 2096º do Cód. Civil, onde se destaca o seu carácter doloso[5] – cfr. art. 342º, nº 1 do Cód. Civil.
Por conseguinte, há que revogar a decisão recorrida, prosseguindo os autos a sua normal tramitação com vista à realização de audiência de discussão e julgamento e devendo previamente ser proferido despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova – cfr. art. 596º do Cód. de Proc. Civil.
Face à prova – testemunhal/documental – produzida concluir-se-á então pelo preenchimento, ou não, dos pressupostos da sonegação de bens.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo autor B… e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos com vista à realização de audiência de discussão e julgamento.
Custas conforme vencimento a final.

Porto, 13.4.202
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Carlos Querido
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[1] Cfr. art. 253º do Cód. Civil.
[2] É a seguinte a redação deste preceito: «A existência de sonegação de bens, nos termos da lei civil, é apreciada conjuntamente com a invocação da falta de bens relacionados, aplicando-se, quando provada, a sanção civil que se mostre adequada, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 17º.» Neste segundo preceito dispõe-se, por seu turno, o seguinte: «Só é admissível a resolução provisória, ou a remessa dos interessados para os meios judiciais comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar a redução das garantias das partes
[3] Cfr. também Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, vol. I, 5ª ed., Almedina, págs. 619/623.
[4] Cfr., neste sentido, Ac. STJ de 1.7.2010, proc. 1315/05.7TCLRS.L1.S1, relator Serra Baptista, Ac. Rel. Guimarães de 26.4.2018, proc. 1056/05.5TBFAF.G2, relator Fernando Freitas, ambos disponíveis in www.dgsi.p.
[5] À figura do dolo direto (violação direta, consciente ou intencional da norma) serão equiparadas as situações afins de dolo indireto e também do chamado dolo eventual – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e loc. cit.