EMBARGO DE OBRA NOVA
REQUISITOS
INDEFERIMENTO LIMINAR
Sumário


I- Os vícios substanciais que podem servir de fundamento à imediata rejeição da petição inicial em procedimento cautelar restringem-se a situações em que seja inequívoca ou manifesta a improcedência do procedimento à luz das diferentes interpretações jurídicas que poderão merecer os preceitos legais aplicáveis à facticidade alegada no requerimento inicial.
II- Feito o enquadramento dos preceitos legais aplicáveis à situação factual configurada pelos requerentes resulta consistente o entendimento de que a inclusão da gestão de combustíveis da responsabilidade dos proprietários em torno das edificações inseridas em espaços rurais - designadamente numa faixa de largura não inferior a 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, sempre que esta faixa abranja terrenos ocupados com floresta, matos ou pastagens naturais - consubstancia uma obrigação legal imposta em função da titularidade do direito de propriedade incidente sobre terreno confinante a edifícios inseridos em espaços rurais, de acordo com os restantes requisitos e com as normas constantes do Dec. Lei 124/2006 de 28-06.
III- Tal imposição deriva de norma jurídica expressa, configurando uma limitação imposta à permissão normativa de afetação tendencialmente absoluta do bem de que beneficia o titular do direito de propriedade sobre o prédio confinante com a edificação.
IV- Se é certo que nos termos do disposto no artigo 1305.º do CC, o proprietário está sujeito às restrições ou limitações que a lei lhe impõe, também resulta notório que a limitação que decorre para o direito de propriedade dos requerentes em função das obrigações decorrentes do artigo 15.º, n.º 2, do Dec. Lei 124/2006, de 28-06 só pode operar, na situação concreta configurada pelos requerentes, com a consolidação da edificação resultante da construção que é objeto do procedimento cautelar em referência e que vem imputada de ilegal pelos ora recorrentes.
V- Alegando os requerentes de forma percetível os factos em que se traduz ou virá a traduzir a violação ilícita do seu direito e com esta a forma como entendem será prejudicado ou ofendido o respetivo direito de propriedade através da execução da nova obra e sendo defensável o entendimento segundo o qual o embargo de obra nova encontra justificação sempre que dela decorra uma limitação ao uso e fruição da coisa, ainda que a obra esteja a ser realizada dentro dos limites do prédio dos requeridos, não deve a petição ser liminarmente indeferida.

Texto Integral


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

J. S. e M. F., instauraram procedimento cautelar de embargo de obra nova contra A. S. e M. A., requerendo a suspensão imediata dos trabalhos e serviços que estão a ser executados para a construção da casa - habitação unifamiliar - enunciada na petição inicial.

Alegam, para o efeito, em síntese:
- são proprietários de um prédio rústico denominado “Bouça ...”, composto por pinhal e mato, com a área de 1.600m2, o qual confronta atualmente a poente com o prédio dos requeridos - este inscrito na matriz rústica sob o art.º ....º de ..., com a área declarada de 4.700m2 - sendo a separação entre os dois prédios feita por uma parede em pedra, com a altura máxima de 1,2 metros;
- em 23 de novembro de 2020, os requeridos deram início no respetivo prédio à construção de uma habitação unifamiliar para a qual obtiveram prévio licenciamento na Câmara Municipal de ..., conforme processo n.º LE-EDI-4/2015 e alvará de construção 34/2017;
- a construção e implantação da casa situa-se na sua vertente nascente, em relação ao prédio dos requerentes, a 6,5 metros de distância, não garantindo uma faixa de 50 metros de distância para o prédio rústico propriedade dos requerentes, distância essa imposta pelo Dec. Lei 124/2006 de 28-06 (1), sendo que o terreno dos requerentes é uma bouça de pinheiros, eucaliptos e mato, desde o local de confrontação com o prédio dos requeridos, e por toda a sua área, situando-se a construção licenciada pelos requeridos, face ao atual PDM, e sempre se manteve, mesmo à data do licenciamento, em espaço rural (área agro florestal);
- a licença administrativa que ordenou a emissão do alvará de licenciamento, com as vicissitudes e atropelos alegados, é claramente nula (não anulável) por violação da lei, e deveria ser imediatamente revogada pela autarquia, questão a decidir em fórum próprio, que não este tribunal; porém, o não distanciamento de 50 metros trará para os requerentes a obrigatoriedade de proceder à gestão de combustíveis no seu prédio numa faixa de 50 metros, nos termos do disposto no artigo 15.º do Dec. Lei 124/2006 de 28-06 pelo que a referida construção, com o distanciamento referido, não é permitida por lei e cria ex novo um ónus legal gerador de obrigações para o prédio e pessoa dos requeridos, e para toda a vida.
Concluem que os trabalhos de construção, iniciados em 23 de novembro de 2020, para além da ameaça aos seus direitos e interesses, causam prejuízos atuais e futuros aos requerentes, ofendendo o seu direito de propriedade, posse e gozo do prédio de que são donos, através do ónus legal que se cria e impõe a gestão de combustível das árvores situadas numa faixa de 50 metros de largura na zona confinante com o prédio e casa dos requeridos.
De seguida foi proferido despacho liminar, indeferindo liminarmente o procedimento cautelar.

Nessa decisão consignou-se, além do mais, o seguinte:
«(…) Ora, analisados os fundamentos do requerente, verifica-se imediatamente que a obra em causa não viola o direito de propriedade do autor, nem tal é alegado.
Com efeito, o que se alega é que a construção, que é feita dentro dos limites do prédio dos requeridos, sem violar o direito de propriedade ou a posse dos requerentes, irá fazer emergir para os requerentes uma obrigação legal, a obrigação de procederem à gestão do combustível no seu prédio.
No entanto, salvo o devido respeito, essa circunstância não constitui a violação do direito de propriedade, mas um ónus a que qualquer proprietário rural está sujeito.
Assim sendo, será de indeferir liminarmente a providência em causa.

**
Pelo exposto, indefere-se liminarmente se o presente procedimento.
Custas pelos requerente.
Notifique e registe».

Inconformados, os requerentes vieram interpor recurso de apelação pugnando no sentido da revogação da decisão e que a mesma seja substituída por outra que ordene o prosseguimento do procedimento de embargo judicial requerido, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1. Os Apelantes no seu requerimento inicial, alegaram factos que consubstanciam todos os requisitos legais e típicos do embargo, exigidos pelo nº1 do art. 397º do C.P.C.
- Alegaram o direito de propriedade e posse sobre o prédio de que dizem ser donos;
- Alegaram o inicio de construção duma casa, pelos Apelados, há menos de 30 dias, num prédio destes, e a uma distância inferior a 6,5 metros da extrema do prédio dos recorrentes, com o qual confronta directamente;
- Alegaram que essa construção é ilegal, face à lei, pareceres técnicos e até do recorrido.
- Alegaram a ofensa que essa construção opera no direito de propriedade, posse, direito de uso, fruição e disposição, dos Apelantes sobre o seu prédio.
Por tudo isto, o embargo devia ser deferido.
2. Estando em causa, e sendo único fundamento do indeferimento liminar da sentença, a ausência e inverificação da ofensa do direito de propriedade e posse sobre o prédio dos Requerentes, por causa da obra em construção levada a efeito pelos requeridos, nos termos que já alegamos, e que não repetimos, mas damos por inteiramente reproduzidos; a construção dos requeridos, além de manifestamente ilegal no seu licenciamento, ofende claramente o direito de propriedade dos Apelantes sobre o prédio de que são donos, e a posse, com a consequente liberdade de livre disposição do mesmo, uso e fruição.
3. Os Apelados alteraram a função do prédio de que eram donos: passou de agro-florestal para terreno de construção.
Com essa alteração que é actual, pretendem criar um ónus sobre o prédio rústico dos vizinhos confrontantes, ao aí pretenderem construir uma casa.
Esse ónus e suas obrigações nunca existiram na lei.
É agora criado de novo pelos Apelados e pela sua acção, num manifesto VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM – o que é ilegal. O ónus é a pretendida e actual construção da casa.
4. A douta sentença, claramente violou, entre outros, os arts. 397º e sgs. Do C.Civil, e arts. 15 e 16º do D.L. 124/2006 de 28 de Junho».
O recorrido apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência da apelação e a consequente manutenção do decidido.
O recurso foi admitido para subir de imediato, nos próprios autos, e com efeito suspensivo da decisão
Foi determinada a citação dos requeridos tanto para os termos do recurso como para os termos da ação, nos termos do artigo 641.º, n.º 7, do CPC, não tendo sido apresentadas contra-alegações.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, confirmando-se a admissão do recurso nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) - o objeto da presente apelação circunscreve-se à reapreciação do despacho que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar de embargo de obra nova, aferindo se deve ser determinado o prosseguimento da providência requerida; para o efeito, importa saber se as circunstâncias fácticas que foram alegadas pelos requerentes em sede de petição inicial são suscetíveis de permitir consubstanciar - desde que sumariamente demonstradas - os requisitos necessários ao deferimento do procedimento cautelar de embargo de obra nova, em especial quanto à eventual conformação da invocada ofensa ao direito de propriedade dos requerentes.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos
1.1.Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra relevando ainda as seguintes incidências processuais que se consideram devidamente documentadas nos autos:
1.1.1. Mediante requerimento inicial apresentado a 17-12-2020, os requerentes instauraram procedimento cautelar de embargo de obra nova alegando, além do mais, o seguinte:
«1. Os requerentes são os únicos donos e legítimos possuidores do prédio rústico, denominado “Bouça ...”, composto por pinhal e mato, com a área de 1.600m2, o qual confronta a Norte com C. P., a nascente com Z. M., a Sul com A. A. e outro, a Poente com C. S. e outro, actualmente com os requeridos que adquiriram o prédio por herança, sito no lugar da Porta, freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial rústica sob o art.105 – Doc.1 – e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº … – freguesia de ... – Doc.1 e 2.
2. O direito de propriedade do prédio está registado em nome dos requerentes na respectiva Conservatória do Registo Predial – Doc.2.
3. E são donos deste prédio, pelo mesmo lhes ter sido adjudicado em acto de partilhas e por sucessão hereditária, conforme o Doc.1 e 2 que se junta e cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido;
4. Mas os requerentes, já adquiriram o direito de propriedade sobre o imóvel, por posse, já que há muito mais de vinte anos, que por si e antepossuidores, estão na posse pública, pacífica, titulada e ininterrupta do referido prédio, à vista de toda a gente, com animus de verdadeiros donos, cientes e conscientes de não lesarem direitos ou interesses alheios;
5. E por todo esse lapso de tempo, têm roçado o mato nesta bouça, abatendo pinheiros que utilizam no aquecimento de sua casa, vendendo ou doando a terceiros, pagando os respectivos impostos e taxas inerentes à condição de donos que são.
6. Os requerentes adquiriram o direito de propriedade sobre a identificada bouça, quer por via derivada, quer por via originária – através de usucapião – que expressamente invocam.
7. Aliás, presumem-se donos desse prédio, face ao registo do direito de propriedade em nome próprio, na respectiva Conservatória do Registo Predial – art.7º do C. R. Predial – Doc.2.
8. Conforme o que já se alegou, o prédio dos requerentes atrás referenciado, confronta do seu lado Poente, com um prédio dos requeridos.
Este prédio estás inscrito na matriz rústica sob o art....º (rústico) de ..., tem a área declarada de 4700m2 – Doc.3.
9. A Poente, o prédio dos aqui requerentes confronta directamente com o prédio dos requeridos, sendo a separação entre eles feita por uma parede em pedra, com a altura máxima de 1,2 metros.
10. Esta confrontação sempre existiu, assim como o muro divisório, há mais de 20 anos.
11. O prédio dos requeridos pertenceu a C. S., mãe da requerida esposa.
Hoje é propriedade dos requeridos, por via hereditária e sucessão.
12. Os requeridos obtiveram licenciamento na Câmara Municipal de ..., para construírem uma habitação unifamiliar, conforme processo dessa Câmara com o nºLE-EDI-4/2015 e alvará de construção 34/2017.
13. Face ao deferimento do projecto de construção e emissão da respectiva licença camarária, os requerentes apresentaram na Câmara Municipal de ..., em 29 de Julho de 2019, a reclamação que ora apresentam e cujo conteúdo dão por inteiramente reproduzido – Doc.4.
Em síntese, e pelos fundamentos apresentados na reclamação, os requerentes solicitavam a revogação do alvará de licenciamento, e a não autorização da construção – Doc.4.
14. A exposição do requerente marido, foi submetida à apreciação dos Serviços Superiores da Câmara.
Em 31 de Julho de 2019, mereceu a apreciação do técnico superior – A. M. – Doc.5.
Dá-se por integralmente reproduzido o seu conteúdo.
15. Em 31 de Julho de 2019, o Chefe de Divisão da Câmara – J. O. – ordena aos serviços “que respondam objectivamente à verificação das causas de invalidade de licenciamento suscitado” – sic. Doc.6, que se junta e cujo conteúdo se dá por reproduzido; - Doc.6.
16. Com data de 01 de Agosto de 2019, o técnico Superior da Câmara – A. M. – dá resposta à solicitação enunciada no art. anterior, e cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido – Doc.7.

Porque de especial interesse, enfatizam-se as seguintes respostas:
Resposta 2: “No pedido de licenciamento formulado pelo requerente (ora requerido), constata-se que o autor do projecto de arquitectura, omitiu a aplicabilidade do D.L. 124/2006 de 28 de Junho, não tendo por isso sido tratada a eventual conformação com o mesmo diploma”.
Resposta 5: “ Verifica-se que a implantação do edifício no terreno não garante a distância à extrema da propriedade numa faixa de protecção de 50 metros, aspecto a verificar no âmbito previsto na alínea a) do art.16º do D.L. 124/2006 de 28 de Junho”.
Resposta 6 – “ Em face dos elementos constantes no citado processo, entendemos que a referida norma legal não foi atendida em devido tempo, aspecto que poderá/deverá resultar na invalidade do licenciamento/revogação do acto.” (sic. Doc.7).
17. Na posse destes pareceres técnicos, e pelos motivos constantes do doc. que se junta, emitido e assinado em 16 de Agosto, pelo Chefe de Divisão – J. O., este solicitou parecer jurídico sobre se o município pode proceder à revogação do acto licenciado, ora em caso – Doc.8, cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido; - Doc.8.
18. Em 16 de Agosto de 2019, o gabinete jurídico do Município de ..., emite parecer, cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido na íntegra, e que conclui desta forma:
“Somos de parecer que o vício em causa configura causa de anulabilidade, estando o Município impedido de lançar mão da anulação administrativa, por força do disposto no art.168 nº2 do C.P.A., por ter ocorrido mais de um ano sobre a data da prolação do acto de licenciamento” (sic. Doc.9).
Com este parecer concordou o vice presidente da Câmara – Doc.9.
19. Confortado com o parecer jurídico, é ordenada a notificação do requerente marido, e dos demais interessados através do documento que ora se junta, e cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido – Doc.9.
20. Por requerimento entrado no Município de ..., em 11 de Setembro de 2019, o requerido marido – A. L. -, através da sua advogada – Dra. F. C. – entregou na Câmara Municipal o requerimento que agora se junta – Doc.10, e cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido.

Nesse requerimento diz o A. L.:
- “Os Serviços Municipais e a Comissão Municipal de Defesa da Floresta, tinham perfeito conhecimento da localização da implantação da obra e nunca levantaram obstáculos ou, sequer, quaisquer esclarecimentos aos requerentes” – nº5 do requerimento;
- “De facto, de acordo com o projecto aprovado e licença concedida pela Câmara Municipal de …, tal distância (50m) não está prevista”, - nº7 do requerimento;
- “O requerente não pretende desrespeitar as disposições legais aplicáveis, não só por uma questão de princípio, mas também, porque tais disposições se destinam a acautelar o interesse público, prevenindo situações de risco” – nº8 do requerimento.
- “Neste sentido, o requerente estará disponível para alterar o local de edificabilidade, dentro dos limites da sua propriedade, por forma a respeitar as distâncias legais, e assim ultrapassar o erro da Câmara” – nº12 do requerimento.
Dá-se por integralmente reproduzido todo o conteúdo deste requerimento, que por ser longo se não repete – Doc.10.
21. Para além de analisar o assunto com objectividade e critério, o requerido só peca num aspecto:
- Os trabalhos da construção da casa, só tiveram inicio em 23 de Novembro de 2020;
- Não está correcto o escrito nos nºs 6 e 9 do requerimento que apresentou.
22. Em 23 de Novembro de 2020, os requeridos deram inicio à construção da casa, que temos vindo a referir, no âmbito do alvará de licenciamento nº34/2017 de 12 de Outubro.
23. Deslocaram para o local 3 homens, que iniciaram trabalhos de abertura de valas para os alicerces da casa; para o local deslocaram areia, verguinha, cimento, ferros e outros materiais próprios e típicos para a construção, assim como maquinaria apropriada para esse efeito, iniciando o levantamento de pilares.
24. A construção e implantação da casa, situa-se na sua vertente nascente (em relação ao prédio dos requerentes), a 6,5 metros de distância.
25. Apesar de todos os pareceres técnicos da C. Municipal, consubstanciados nos documentos que se juntam;
26. Apesar do próprio requerido ter manifestado no processo o seu conhecimento e consciência de que estava a violar a lei, e disponibilizando-se para alterar a implantação do edifício de forma a respeitar o distanciamento legal – vide Doc.10.
27. Apesar do parecer jurídico da Câmara Municipal (doc.9), que obviamente está errado, no enquadramento legal da situação e suas consequências, mas que confirma a ilegalidade,
Cabe perguntar:
Que se terá passado nos serviços da Câmara e respectivas decisores, para permitirem a construção da casa, nas condições requeridas inicialmente de forma ilegal?
Só a Câmara Municipal e seus responsáveis poderão dar resposta.
Os Requerentes, em processo e tribunal próprio irão, evidentemente, requerer responsabilidades.
28. A construção licenciada aos requeridos, mantém-se, no actual PDM, em espaços rurais, o que necessariamente remete para a necessidade de verificação e cumprimento do D.L. 124/2006 de 28 de Junho, vide docs. 5 e 7 – designadamente para a alínea a) do asrt.16º.
29. Dispõe o art.16º do D.L. 124/2006 de 28 de Junho, depois de todas as alterações introduzidas por vários decretos, de que resultou a seguinte redacção final:
“Condicionalismos à edificação”
nº4: “A construção de novos edifícios ou a ampliação de edifícios existentes apenas são permitidas fora das áreas edificadas consolidadas, nas áreas classificadas na cartografia de perigosidade de incêndio rural definidas em PMDFCI, como média, baixa e muito baixa perigosidade, desde que cumpram, cumulativamente os seguintes condicionalismos:
nº4 alínea a) – “Garantir na sua implantação no terreno, a distância à estrema da propriedade de uma faixa de protecção nunca inferior a 50 metros, quando confronta com terrenos ocupados com florestas, matas ou pastagens naturais, ou dimensão definida no PMDFCI respectivo, …”
30. A construção licenciada aos requeridos, situa-se, face ao actual PDM, e sempre se manteve, mesmo à data de licenciamento, em espaço rural (área agro florestal) – vide informação técnica do município, prestada pelo técnico superior A. M. – Doc. 7 – e memória descritiva e justificativa apresentada pelo Arquitecto A. B., responsável pela obra a expensas dos requerentes – Doc. 11.
31. O prédio rústico dos requerentes é um terreno de mato com árvores – pinheiros, eucaliptos e outros – em toda a bouça, até ao limite e junto ao muro de pedra que faz a separação e delimitação de prédio dos requeridos.
32. O Município de ..., em 29 de Janeiro de 2020, pede parecer à Comissão Municipal da Defesa da Floresta, nos termos do requerimento que se junta – Doc.12.
Dos vários itens desse requerimento, enviados pela Câmara Municipal de ... a esta Comissão, destacam-se:
- O envio do levantamento topográfico;
- Localização: Solo rural fora de área edificada consolidada;
- Construção dum edifício novo;
- Informa que “cumpre 14 metros de distância à extrema da propriedade (com o mínimo de 10 metros), conforme o definido em PMDFCI aprovado, por confinar exclusivamente com terrenos ocupados com agricultura, estando assegurados 50 metros sem ocupação florestal” – sic. item 5 – distância à extrema.
33. A solicitação do parecer à C.M.D.F., é emitido como favorável, face aos condicionalismos e factualidade que lhe é transmitida pelo Municipio de ..., e que é falso, a saber:
No item 5 : distância à estrema:
É falso que o terreno dos requerentes seja ocupado com agricultura.
O terreno dos requerentes é uma bouça de pinheiros, eucaliptos e mato, desde o local de confrontação com o prédio dos requeridos, e por toda a sua área. Estas árvores ficam a distar 6,5 metros da casa dos requeridos se esta for construída.
A distância a observar para a construção dos requeridos será obrigatoriamente de 50 metros, conforme o item 5.1. do requerimento do parecer e da lei.
Apenas e só, com o envio das condições objectivas erradas, a Comissão terá dado parecer favorável;
34. Em qualquer caso, e conforme o que já se alegou, a construção dos requeridos, dista 6.5 metros do limite de propriedade dos ora requerentes.
35. Perante o estatuído no art.15º do D.L. 124/2006 de 28 de Junho:
“Os proprietários, arrendatários ou usufrutuários ou entidades que, a qualquer título, detenham terrenos confinantes a edifícios inseridos em espaços rurais, são obrigados a proceder à gestão de combustível, de acordo com as normas constantes em anexo do presente D. Lei que dele faz parte integrante, uma faixa com as seguintes dimensões:
Largura não inferior a 50m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, sempre que esta faixa abranja terreno ocupado com floresta, matas ou pastagens naturais”. – Al.a) do nº2 do art.15º do D.L. 124/2006 de 28.06, pela redacção actual.
Isto é:
36. Pelo facto dos requeridos estarem a construir uma habitação (casa), no terreno que lhes pertence, a 6,5 m (seis metros e meio) de distancia da delimitação deste prédio com a bouça dos requerentes, ficam estes com a obrigação de proceder à gestão de combustível, numa faixa de largura não inferior a 50 m (cinquenta metros), na bouça de que são donos e na parte confinante com a bouça dos requeridos, – Al.a) nº2 do art.15º do D.L. 124/2006.
37. Esta gestão de combustível está prevista no anexo ao D.L.124/2006, designadamente nos seus nºs 1, 2, 3 e 4, quer quanto ao estrato arbóreo, quer quanto ao estrato arbustivo, quer quanto ao distanciamento das copas das árvores e outras.
38. In casu, a construção da casa que está a ser levada a efeito pelos requeridos, nas circunstâncias atrás descritas, como construção nova que é, em um terreno de agro-florestal, origina e acarreta um ónus para os requerentes de terem de proceder à gestão de combustível no seu prédio, nos termos alegados no supra art. 29º.
E a constituição deste ónus, com as obrigações daí advenientes, resultam do facto dos requerentes procederem à construção da casa, infringindo de forma notória a lei, os diversos pareceres técnicos da Câmara Municipal.
39. O próprio requerido – A. L. – que apresentou um requerimento em 11.09.2019, doc.nº10, onde compreendeu e admitiu a ilegalidade que estava a cometer, e apresentou novo projecto de implantação da casa, agora respeitando a lei. Porém, em 29 de Janeiro de 2020, apresenta novo requerimento, subscrito por C. L., onde se lê: “Venho solicitar que seja dado sem efeito o pedido de alteração de licenciamento formulado no requerimento com entrada em 09 de Outubro de 2019 (sic), mantendo-se o projecto que foi dado através do alvará de licenciamento de obras de construção nº34/2017 de 12 de Outubro – Doc.13.
40. Dispõe o art.397º nº1 do C.P.C.:
“Aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo, pode requerer dentro de 30 dias, a contar do conhecimento do facto, que a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente.
IN CASU:
- Os requerentes são donos e possuidores do prédio rústico que descriminam nos arts.1º e sgs. deste requerimento;
- Este prédio dos requerentes, confronta a poente com o prédio dos requeridos alegado e referenciado no art.8 deste requerimento;
- Os requeridos estão a construir no seu prédio uma casa, que do lado nascente dista 6,5 metros do limite e divisória deste prédio, com o prédio dos requerentes.
- Esta construção, com o distanciamento referido, gera e cria ex novo, um ónus gerador de obrigações para o prédio e pessoa dos requeridos, que se traduz na criação da gestão de combustível, numa faixa com a extensão de 50 metros de largura – nº2 do art.15º do D.L. 124/2006 e respectivo anexo, e por toda a vida.
- A construção que os requeridos estão a levar a efeito, não é permitida por lei face ao estatuído no nº2 do art.15º do D.L. 124/2006 e respectivo anexo.
- A licença administrativa que ordenou a emissão do alvará de licenciamento, com as vicissitudes e atropelos já referidos e que não se repetem, é claramente nula (não anulável) por violação da lei, e deveria ser imediatamente revogada pela autarquia; questão a decidir em fórum próprio, que não este tribunal.
41. Os trabalhos de construção, iniciaram-se em 23 de Novembro de 2020, e por certo, para além da ameaça aos direitos e interesses, que é notória, causam prejuízos actuais e futuros aos requerentes, ofendendo o seu direito de propriedade, posse e gozo do prédio de que são donos, através do ónus legal que se cria e impõe a gestão de combustível das arvores situadas numa faixa requeridos.
Pelos motivos expostos, produzida a prova que se apresenta, e ouvidos os requeridos se Vª Exª assim o entender, deve ser julgado PROCEDENTE o requerimento de embargo que ora se apresenta, e por via disso ordenar a SUSPENSÃO IMEDIATA dos trabalhos e serviços que estão a ser executados para a construção da casa, conforme o alegado nesta p.i., condenando os requeridos nessa conformidade, e ainda nas custas e despesas do processo. Decretado o embargo, deve este ser feito com elaboração de auto judicial com a descrição minuciosa do estado da obra, e sua medição, auto esse assinado pelo funcionário judicial que o lavre e pelo dono da obra, ou por quem a dirigir, se aquele não estiver presente, notificando-os de todos esses factos e para não continuarem a obra. Deve ainda ser permitido aos embargantes tirar fotografias da obra para serem juntas ao processo, facto esse a consignar no auto».
*
2. Apreciação sobre o objeto do recurso: aferir se as circunstâncias que foram alegadas pelos requerentes no âmbito do presente procedimento cautelar são suficientes para permitir o prosseguimento do procedimento cautelar de embargo de obra nova em causa, em especial quanto à necessária conformação da invocada ofensa ao direito de propriedade dos requerentes.

Importa começar por considerar que o despacho recorrido apresenta natureza liminar.
A possibilidade de indeferimento liminar da petição inicial encontra-se prevista expressamente no artigo 590.º, n.º 1, do CPC, segundo o qual, «[n]os casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º».
Tal como decorre do enunciado preceito legal, os casos de indeferimento liminar devem corresponder a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitam antever, logo nesta fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor, ou a verificação de exceções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição (2).
Neste contexto, compreende-se que os vícios substanciais que podem servir de fundamento à imediata rejeição da petição inicial se restrinjam a situações em que seja manifesto que a ação nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação que se faça dos preceitos legais aplicáveis à situação factual configurada pelo autor, ou quando seja inequívoca a caducidade reportada a direitos indisponíveis (3).
Tal como esclarecem Lebre de Freitas-Isabel Alexandre a propósito do regime previsto no citado artigo 590.º, n.º1, do CPC, o preenchimento do pressuposto atinente à manifesta improcedência do pedido faz-se casuisticamente, havendo que apurar, em função do pedido e dos seus fundamentos de facto e de direito, se ele é “manifestamente improcedente”, o que sucederá nos casos de caducidade de conhecimento oficioso do direito que se pretende fazer valer, bem como quando não possa haver dúvida sobre a inexistência dos factos que o constituiriam ou sobre a existência, revelada pelo próprio autos, de factos impeditivos ou extintivos desse direito (4).
Transpondo para os procedimentos cautelares os critérios enunciados a propósito dos vícios substanciais que podem servir de fundamento à imediata rejeição da petição inicial, salienta o Ac. TRG de 23-05-2019 (5): «O indeferimento liminar de providência cautelar está reservado a situações em que ocorram exceções dilatórias insupríveis, de que o juiz possa conhecer oficiosamente, ou quando a tese do requerente não tenha qualquer possibilidade de ser acolhida perante a lei em vigor e a interpretação que dela faz a doutrina e a jurisprudência, sendo, por isso, o pedido manifestamente improcedente».
Em idêntico sentido decidiu o Ac. TRL de 1-10-2009 (6): «Os despachos liminares de indeferimento das providências cautelares terão de ser reservados para situações de manifesta e indiscutível improcedência do pedido, pois que nos casos de fronteira, onde a dúvida se coloca, deverá dar-se seguimento ao procedimento, ainda que se admite à partida a eventualidade do seu insucesso dentro da sua normal tramitação».

No caso em apreciação, o Tribunal de 1.ª instância baseou a decisão de indeferimento liminar em razões exclusivamente substanciais, entendendo que da matéria alegada pelos próprios requerentes decorria já que a construção em causa no procedimento está a ser feita dentro dos limites do prédio dos requeridos. E mesmo reconhecendo que da referida alegação resultava que a construção em causa irá fazer emergir para os requerentes a obrigação de procederem à gestão do combustível no seu prédio, concluiu que tal configurava uma obrigação legal e, por isso, não representava qualquer violação do direito de propriedade dos requerentes antes configurando um ónus a que qualquer proprietário rural está sujeito.
Os recorrentes insurgem-se contra o entendimento adotado na decisão recorrida, sustentando, no essencial, que os referidos trabalhos de construção, para além da ameaça aos seus direitos e interesses, que é notória, causam prejuízos atuais e futuros aos requerentes, ofendendo o seu direito de propriedade, posse e gozo do prédio de que são donos, através do ónus legal que criam, impondo a gestão de combustível das árvores situadas numa faixa confinante com o prédio dos requeridos, encargo que resulta unicamente do facto dos requerentes procederem à referida construção em notória infração da lei, o que foi admitido pelo próprio requerido ao apresentar posteriormente novo projeto de implantação da casa junto da competente Câmara Municipal, agora respeitando a lei, mas do qual veio a desistir.
O procedimento cautelar de embargo de obra nova encontra-se regulado nos artigos 397.º a 402.º do CPC.

O artigo 397.º do CPC, sob a epígrafe Fundamento do embargo - Embargo extrajudicial, dispõe o seguinte:

1 - Aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo, pode requerer, dentro de 30 dias a contar do conhecimento do facto, que a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente.
2 - O interessado pode também fazer diretamente o embargo por via extrajudicial, notificando verbalmente, perante duas testemunhas, o dono da obra, ou, na sua falta, o encarregado ou quem o substituir para a não continuar.
3 - O embargo previsto no número anterior fica, porém, sem efeito se, dentro de cinco dias, não for requerida a ratificação judicial.

Tal como explica Marco Filipe Carvalho Fernandes (7), para que o embargo de obra nova possa ser decretado, torna-se necessário o preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos:
«- execução de uma obra, trabalho ou serviço novo, que não se mostre já concluído;
- ofensa de um direito real ou pessoal de gozo ou da posse em consequência dessa obra;
- existência de um prejuízo ou ameaça de prejuízo».
Como se viu, o artigo 397.º, n.º1, do CPC reporta-se a obra, trabalho ou serviço novo, consagrando desta forma um sentido abrangente e lato de obra, de forma a compreender trabalho ou serviço novo que cause ou ameace causar prejuízo.
Por outro lado, e tal como vem sendo amplamente defendido na doutrina e jurisprudência, o prejuízo, como requisito de embargo de obra nova, não carece de valoração autónoma, derivando sempre pura e simplesmente da própria violação do direito, bastando a ilicitude para haver prejuízo (8).
Não obstante, sempre depende da alegação e prova da existência de um justo receio de lesão iminente em função da obra impugnanda. Com efeito, ainda que o requerente do embargo de obra nova se encontre dispensado de alegar e provar os danos concretos que para ele resultam do começo de uma obra, trabalho ou serviço novo, já o deve fazer em relação aos “factos em que se traduz ou virá a traduzir a violação do seu direito, isto é, da forma como será prejudicado ou ofendido esse direito através da execução da nova obra” (9).
Assim, tal como salienta o Ac. TRC de 15-09-2015 (10) «[a] lei, no caso de embargo de obra nova (ou respectiva ratificação judicial), contenta-se com a verificação de um dano jurídico, bastando, pois, que o facto tenha a feição de ilícito porque contrário à ordem jurídica concretizada num direito de propriedade ou noutro direito real (num direito de servidão) para que haja de considerar-se prejudicial para os efeitos de tal embargo de obra nova».
Com a redação consagrada no artigo 397.º, n.º1, do CPC o legislador pretendeu pôr termo às dúvidas que anteriormente se colocavam quanto à extensão do conceito de obra, designadamente quanto à questão de saber se este conceito apenas abrangia construções ou se englobava também “demolições, cortes de árvores, extracções de cortiça e actos semelhantes de abertura de valas para plantações, destruição de canais condutores de água e semelhantes” (11).

No caso vertente, o Tribunal a quo não suscitou em sede liminar qualquer reserva relativamente à invocação pelos requerentes de factos que permitam consubstanciar a alegação do primeiro requisito cumulativo do decretamento do procedimento cautelar especificado em referência, concretamente, que os atos que se alega terem sido praticados pelos requeridos, ou por sua determinação e no seu interesse, constituem uma obra nova para efeitos do procedimento em causa.
Assim, no caso dos autos é indiscutível a alegação de que os requeridos deram início à construção de uma habitação unifamiliar, no respetivo prédio, para a qual obtiveram prévio licenciamento na Câmara Municipal de ..., conforme processo n.º LE-EDI-4/2015 e alvará de construção 34/2017.
Contudo, e de acordo com o alegado pelos requerentes, a totalidade da obra está a ser erigida sobre o prédio dos próprios requeridos.
Neste âmbito, verifica-se que a decisão recorrida alude à concreta localização da referida construção, que vem alegada pelos próprios requerentes como estando a ser feita dentro dos limites do prédio dos requeridos, para concluir que a mesma não viola o direito de propriedade ou a posse dos requerentes.
Porém, em sede liminar tal circunstância não basta para se concluir que a referida construção não é suscetível de violar o direito de propriedade ou a posse dos requerentes, tal como concluiu a decisão recorrida.
Com efeito, para o decretamento do embargo de obra nova nem sequer é essencial que a obra nova seja contígua, vizinha ou próxima da coisa ou lugar sobre que incide o direito do requerente, porque a possibilidade ou probabilidade do prejuízo pode igualmente verificar-se distanciadamente como, por exemplo, no caso de uma servidão non edificandi ou altius non tollendi (12).
Ora, no caso vem efetivamente alegado pelos requerentes que a ofensa do respetivo direito de propriedade, e os prejuízos que invocam para fundamentar o embargo requerido decorrem de uma obra que está a ser realizada dentro dos limites do prédio dos requeridos, explicitando ainda os requerentes que o não distanciamento de 50 metros relativamente ao prédio rústico de que são proprietários e que com aquele confina trará para os requerentes a obrigatoriedade de proceder à gestão de combustíveis no seu prédio numa faixa de 50 metros, nos termos do disposto no artigo 15.º do Dec. Lei 124/2006 de 28-06.
Concluem que a referida construção, com o distanciamento referido, não é permitida por lei e cria ex novo um ónus legal gerador de obrigações para o prédio e pessoa dos requeridos, e por toda a vida.
Julgamos, assim, que os requerentes alegaram de forma percetível os factos em que se traduz ou virá a traduzir a violação ilícita do seu direito e com esta invocaram suficientemente a forma como entendem será prejudicado ou ofendido o respetivo direito de propriedade através da execução da nova obra.
Por outro lado, não se afigura que seja desde logo indubitável e manifesta a improcedência do procedimento qualquer que seja a interpretação que se faça dos preceitos legais aplicáveis à situação factual configurada/alegada pelos requerentes.
Assim, o artigo 16.º, n.º 4, do Dec. Lei 124/2006 de 28-06, com a epígrafe «Condicionalismos à edificação», estabelece, entre outros, o seguinte condicionalismo: «[a] construção de novos edifícios ou a ampliação de edifícios existentes apenas são permitidas fora das áreas edificadas consolidadas, nas áreas classificadas na cartografia de perigosidade de incêndio rural definida em PMDFCI como de média, baixa e muito baixa perigosidade, desde que se cumpram, cumulativamente, os seguintes condicionalismos:
a) Garantir, na sua implantação no terreno, a distância à estrema da propriedade de uma faixa de proteção nunca inferior a 50 m, quando confinantes com terrenos ocupados com floresta, matos ou pastagens naturais, ou a dimensão definida no PMDFCI respetivo, quando inseridas ou confinantes com outras ocupações, de acordo com os critérios estabelecidos no anexo ao presente decreto-lei;(…)».
Por outro lado, o referido diploma, que estabelece as medidas e ações a desenvolver no âmbito do Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios, prevê no seu artigo 15.º, n.º 2, as seguintes obrigações:
«Os proprietários, arrendatários, usufrutuários ou entidades que, a qualquer título, detenham terrenos confinantes a edifícios inseridos em espaços rurais, são obrigados a proceder à gestão de combustível, de acordo com as normas constantes no anexo do presente decreto-lei e que dele faz parte integrante, numa faixa com as seguintes dimensões:
a) Largura não inferior a 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, sempre que esta faixa abranja terrenos ocupados com floresta, matos ou pastagens naturais;
b) Largura definida no PMDFCI, com o mínimo de 10 m e o máximo de 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, quando a faixa abranja exclusivamente terrenos ocupados com outras ocupações».

Obrigações que vêm regulamentadas nos subsequentes n.ºs 3 a 9, nos seguintes termos:
«3 - Os trabalhos definidos no número anterior devem decorrer entre o final do período crítico do ano anterior e 30 de abril de cada ano.
4 - Em caso de incumprimento do disposto nos números anteriores, a câmara municipal notifica as entidades responsáveis pelos trabalhos.
5 - Verificado o incumprimento, a câmara municipal poderá realizar os trabalhos de gestão de combustível, com a faculdade de se ressarcir, desencadeando os mecanismos necessários ao ressarcimento da despesa efetuada.
6 - Na ausência de intervenção até 31 de maio de cada ano, nos termos dos números anteriores, os proprietários ou outras entidades que detenham a qualquer título a administração de edifícios inseridos na área prevista no n.º 2, podem substituir-se aos proprietários e outros produtores florestais, procedendo à gestão de combustível prevista no número anterior, mediante comunicação aos proprietários e, na falta de resposta em 10 dias, por aviso a afixar no local dos trabalhos, num prazo não inferior a 5 dias, nos termos previstos no artigo 21.º
7 - Em caso de substituição, os proprietários e outros produtores florestais são obrigados a permitir o acesso dos proprietários ou gestores dos edifícios inseridos na área prevista no n.º 2 aos seus terrenos e a ressarci-los das despesas efetuadas com a gestão de combustível.
8 - Sempre que os materiais resultantes da ação de gestão de combustível referida no número anterior possuam valor comercial, o produto obtido dessa forma é pertença do proprietário ou produtor florestal respetivo, podendo contudo ser vendido pelo proprietário ou entidade que procedeu à gestão de combustível.
9 - Quem tiver procedido à gestão de combustível pode exercer o direito de compensação de créditos pelo produto da venda, na respetiva proporção das despesas incorridas, mediante notificação escrita ao proprietário ou produtor florestal respetivo, nos termos previstos nos artigos 847.º e seguintes do Código Civil».
Tal como resulta do disposto no artigo 1305.º do Código Civil (CC), o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
Da análise da 2.ª parte deste preceito resulta claro o propósito do legislador em colocar as faculdades inerentes ao direito de propriedade dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas, o que se reconduz ao denominado conteúdo negativo do direito de propriedade, correspondente às posições jurídicas passivas através das quais o exercício da função conhece limitações e restrições (13).
O referido conteúdo negativo do direito de propriedade comporta um vasto universo de situações jurídicas de que o titular é sujeito passivo e que podem ser classificadas e separadas entre limitações e restrições ao direito real.
Assim, enquanto as limitações são exceções impostas à permissão normativa de afetação do bem de que beneficia o titular do direito real, podendo ser gerais ou especiais, consoante derivem de princípio gerais de direito ou de normas jurídicas expressas, as restrições são permissões conferidas a terceiros em relação à mesma coisa/objeto da permissão de aproveitamento de que beneficia o titular do direito real, configurando exceções à regra geral de não interferência na afetação de uma coisa a outrem, própria da absolutidade do direito real. Corporizam-se, normalmente, em direitos daqueles terceiros (14).
Feito o enquadramento dos preceitos legais aplicáveis à situação factual configurada pelos requerentes resulta consistente o entendimento de que a inclusão da gestão de combustíveis da responsabilidade dos proprietários em torno das edificações inseridas em espaços rurais - designadamente numa faixa de largura não inferior a 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, sempre que esta faixa abranja terrenos ocupados com floresta, matos ou pastagens naturais - consubstancia uma obrigação legal imposta em função da titularidade do direito de propriedade incidente sobre terreno confinante a edifícios inseridos em espaços rurais, de acordo com os restantes requisitos e com as normas constantes do invocado Dec. Lei 124/2006 de 28-06.
Tal imposição deriva de norma jurídica expressa, configurando assim indiscutivelmente uma limitação imposta à permissão normativa de afetação tendencialmente absoluta do bem de que beneficia o titular do direito de propriedade sobre o prédio confinante com a edificação.
Ora, se é certo que nos termos do disposto no artigo 1305.º do CC, o proprietário está sujeito às restrições ou limitações que a lei lhe impõe, também resulta manifesto que a limitação que decorre para o direito de propriedade dos requerentes em função das obrigações decorrentes do artigo 15.º, n.º 2, do Dec. Lei 124/2006, de 28-06 só pode operar, na situação concreta configurada pelos requerentes, com a consolidação da edificação resultante da construção que é objeto do procedimento cautelar em referência e que vem imputada de ilegal pelos ora recorrentes.
Assim sendo, julgamos que a invocada derrogação dos condicionalismos legais à edificação, emergente do artigo 16.º, n.º 4, do Dec. Lei 124/2006 de 28-06, sempre poderá assumir relevância direta no âmbito da defesa do direito de propriedade dos recorrentes porquanto, no que em particular se refere à ofensa do direito de propriedade ou de outro direito real menor de gozo, se afigura defensável o entendimento segundo o qual o embargo de obra nova encontra justificação sempre que dela decorra uma limitação ao uso e fruição da coisa, ainda que esse direito já se achasse legalmente comprimido (15).
Por último, mesmo configurando os condicionalismos legais emergentes do citado Dec. Lei 124/2006 de 28-06 como restrições emergentes de direito público ou visando satisfazer predominantemente interesses públicos, por estabelecerem as medidas e ações a desenvolver no âmbito do Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios, importa constatar que a jurisprudência dos nosso tribunais superiores não é unívoca no que respeita à possibilidade da invocação direta de limitações legais ditadas por razões de interesse público no âmbito da tutela de interesses particulares, tratando-se de questão que tem recebido respostas divergentes na jurisprudência, sobretudo tendo por base as regras do Regime Geral das Edificações Urbanas, como exaustivamente elucida o Ac. TRE de 08-03-2007 (16), e no qual se citam vários arestos representativos das correntes mais significativas sobre esta matéria.
Ora, no âmbito da jurisprudência que julgamos representativa sobre esta questão importa salientar a orientação jurisprudencial que vem sendo seguida em diversos arestos do Supremo Tribunal de Justiça e da qual é exemplo o Ac. do STJ de 11-03-2010 (17) ao explicitar que «[o] círculo de interesses tutelados por determinados preceitos de direito público, atinentes à disciplina urbanística, pode envolver a atribuição aos particulares lesados pela violação de tais normas de verdadeiros direitos subjectivos ou, pelo menos, de interesses juridicamente tutelados - podendo a respectiva violação originar infracção de norma legal destinada a proteger interesses alheios, de modo a resultar preenchido o pressuposto «ilicitude», nos termos da parte final do nº 1 do art.483º do CC, mesmo que se não mostre preenchida a «fattispecie» de algum dos preceitos do CC que disciplinam as relações jurídicas reais de vizinhança entre imóveis».
Seguindo idêntica orientação, salientou-se no Ac. STJ de 14-02-2017 (18): «[c]ada vez mais se acentua a evidência de que a situação de vizinhança de prédios implica limitações ao exercício do direito de propriedade – que não se quedam pelas explicitamente prevenidas no CC (como as previstas, p. ex., nas normas dos arts. 1346.º a 1348.º ou 1350.º, ou as dos arts. 492.º e 493.º) – através da ponderação dos direitos conexos com essa relação de vizinhança, para fundar um direito à protecção do proprietário através da responsabilização do proprietário do prédio vizinho por todas os actos ou omissões que provoquem uma ruptura do equilíbrio imobiliário existente e que exprimam ou realizem a violação de um dever geral de prevenção do perigo».
Por conseguinte, resta concluir que os recorrentes alegaram de forma percetível os factos em que se traduz ou virá a traduzir a violação ilícita do seu direito e com esta invocaram suficientemente a forma como entendem será prejudicado ou ofendido o respetivo direito de propriedade através da execução da nova obra, também não se revelando inequívoca ou manifesta a improcedência do procedimento à luz das diferentes interpretações jurídicas que poderão merecer os preceitos legais aplicáveis à facticidade alegada no requerimento inicial.
Pelo que, não sendo a petição inicial manifestamente improcedente nem ocorrendo, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, não havia razão suficiente para o indeferimento liminar do requerimento inicial.
Daí que proceda a apelação, devendo o processado seguir os ulteriores termos do procedimento cautelar em referência.

Síntese conclusiva:

I - Os vícios substanciais que podem servir de fundamento à imediata rejeição da petição inicial em procedimento cautelar restringem-se a situações em que seja inequívoca ou manifesta a improcedência do procedimento à luz das diferentes interpretações jurídicas que poderão merecer os preceitos legais aplicáveis à facticidade alegada no requerimento inicial.
II - Feito o enquadramento dos preceitos legais aplicáveis à situação factual configurada pelos requerentes resulta consistente o entendimento de que a inclusão da gestão de combustíveis da responsabilidade dos proprietários em torno das edificações inseridas em espaços rurais - designadamente numa faixa de largura não inferior a 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, sempre que esta faixa abranja terrenos ocupados com floresta, matos ou pastagens naturais - consubstancia uma obrigação legal imposta em função da titularidade do direito de propriedade incidente sobre terreno confinante a edifícios inseridos em espaços rurais, de acordo com os restantes requisitos e com as normas constantes do Dec. Lei 124/2006 de 28-06.
III - Tal imposição deriva de norma jurídica expressa, configurando uma limitação imposta à permissão normativa de afetação tendencialmente absoluta do bem de que beneficia o titular do direito de propriedade sobre o prédio confinante com a edificação.
IV - Se é certo que nos termos do disposto no artigo 1305.º do CC, o proprietário está sujeito às restrições ou limitações que a lei lhe impõe, também resulta notório que a limitação que decorre para o direito de propriedade dos requerentes em função das obrigações decorrentes do artigo 15.º, n.º 2, do Dec. Lei 124/2006, de 28-06 só pode operar, na situação concreta configurada pelos requerentes, com a consolidação da edificação resultante da construção que é objeto do procedimento cautelar em referência e que vem imputada de ilegal pelos ora recorrentes.
V - Alegando os requerentes de forma percetível os factos em que se traduz ou virá a traduzir a violação ilícita do seu direito e com esta a forma como entendem será prejudicado ou ofendido o respetivo direito de propriedade através da execução da nova obra e sendo defensável o entendimento segundo o qual o embargo de obra nova encontra justificação sempre que dela decorra uma limitação ao uso e fruição da coisa, ainda que a obra esteja a ser realizada dentro dos limites do prédio dos requeridos, não deve a petição ser liminarmente indeferida.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, determinando a admissão liminar do requerimento inicial em causa com o consequente prosseguimento do procedimento.
Custas da apelação pelos apelantes, a atender a final (artigo 539.º do CPC).
Guimarães, 29 de abril de 2021
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (relator)
Joaquim Espinheira Baltar (1.º adjunto)
Luísa Duarte Ramos (2.º adjunto)


1. Diploma que estabelece as medidas e ações a desenvolver no âmbito do Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios.
2. Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 674.
3. Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Ob. cit., p. 674.
4. Cf. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, pgs. 623-624.
5. Relator José Alberto Moreira Dias, p. n.º 2259/19.0T8BRG.G1, disponível em www.dgsi.pt.
6. Relator Fernando Pereira Rodrigues, p. n.º 1617/08.0TBSCR.L1-6, disponível em www.dgsi.pt.
7. Cf. Marco Filipe Carvalho Fernandes, Providências Cautelares, 2017 - 3.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 280.
8. Cf. L.P. Moitinho de Almeida, Embargo ou Nunciação de Obra Nova, 3.ª Edição atualizada, 1994, Coimbra Editora, 19.
9. Cf. Marco Filipe Carvalho Fernandes, Ob. cit., pgs. 286-287.
10. Relator Moreira do Carmo, p. 6871/14.6T8CBR.C1, disponível em www.dgsi.pt.
11. Cf. Marco Filipe Carvalho Fernandes, Ob. cit., p. 280.
12. Cf. L.P. Moitinho de Almeida, Ob. cit., p. 14.
13. Cf. Rui Pinto, Cláudia Trindade, Código Civil, Anotado, Coord. Ana Prata, Volume II, Coimbra, Almedina, 2017, p. 86.
14. Cf. Rui Pinto, Cláudia Trindade, Ob. cit., p. 89.
15. Cf. Marco Filipe Carvalho Fernandes, Ob. cit., p. 283.
16. Relatora Maria Alexandra Santos, p. n.º 1453/06-2, disponível em www.dgsi.pt.
17. Relator Lopes do Rego, p. n.º 449/09.3YRLSB.S1 – 7.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
18. Relator Alexandre Reis, p. n.º 528/09.7TCFUN.L2.S1 – 1.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.