CRIME DE BURLA
PREJUÍZO PATRIMONIAL
CRIME DE BURLA QUALIFICADA CRIME DE FALSAS DECLARAÇÕES CONCURSO EFETIVO
Sumário

Lendo o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente, consta-se, sem margem para dúvidas, que em tal requerimento não está explicitado o valor correspondente ao “prejuízo patrimonial” sofrido pela assistente, seja ele qual for (incluindo, obviamente, o valor “consideravelmente elevado” invocado agora na motivação do recurso).
Face ao preceituado no artigo 348º-A, nº 1, in fine, do Código Penal, não poderia ocorrer, caso existisse ou fosse operante o crime de burla, concurso efetivo de crimes (entre o crime de burla qualificada e o crime de falsas declarações).

Texto Integral

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Nos autos de instrução nº 1732/16.7T9STB, do Juízo de Instrução Criminal de Setúbal (Juiz 2), foi proferida a seguinte decisão instrutória:

“Nesta conformidade, julgando-se improcedente o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AKE, decido:

A) Pronunciar os arguidos LMRC, MFS, ÁAB e MJ, pelos factos e incriminações que constam da acusação de fls. 461 e segs., que aqui dou por integralmente reproduzida e para os quais remeto, ao abrigo do Artigo 307º, nº 1 a 3 do C.P.P., a fim de serem julgados em processo comum e com a intervenção do tribunal singular;

B) Não pronunciar os mesmos arguidos da prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada p. e p. pelo Artigo 217º, nº 1 e 218º, nº 1, al. a), por referência ao Artigo 202º, al. a) todos C.P., seja em concurso verdadeiro ou efetivo ou em concurso aparente de normas”.

*

Dessa decisão instrutória interpôs recurso a assistente AKE.

Apresentou as seguintes (transcritas) conclusões, extraídas da motivação do recurso:

“1.ª O presente processo conheceu despacho de arquivamento por parte do Ministério Público, ante o qual a assistente reagiu através de intervenção hierárquica a qual logrou ter sido proferido despacho de acusação pública, mas apenas quanto a crime de falsas declarações, ante o que reagiu através da instrução, imputando aos arguidos o crime de burla qualificada pelo valor elevado.

2.ª A decisão recorrida, ao afastar a verificação no caso do crime de burla qualificada pelo valor elevado, que a recorrente imputou aos arguidos no seu requerimento de abertura de instrução, enferma de erro de Direito na interpretação e aplicação dos artigos 217º, nº 1, e 218º, nº 1, a), do Código Penal, porquanto estão verificados no caso os elementos típicos deste tipo de crime na forma qualificada.

3.ª A decisão recorrida, ao afastar a verificação desse tipo qualificado de crime com fundamento em não resultar dos autos o valor do dano, por não se ter apurado o valor da parcela imobiliária cuja propriedade os arguidos lograram fazer obter por usucapião, através da escritura notarial na qual prestaram falsas declarações, enferma de erro de Direito na interpretação e aplicação dos artigos 217º, nº 1 e nº 3, 218º e 115º, nº 1, do Código Penal, por um lado, e, por outro, dos artigos 287º, nº 2, 307º, nº 1, 308º, nº 1, e, enfim, 48º e 49º, todos estes do Código de Processo Penal, porquanto ante os factos vertidos no requerimento de abertura de instrução, suportados pela prova indiciária dos autos, ocorre dano elevado, sim, mas não aquele, antes o dano que é ali especificado e mencionado, o seu valor de 37.011,02 euros, pelo que não se trata de crime de burla simples, cujo procedimento dependa de queixa, cujo direito estaria caducado pelo seu não exercício em prazo, antes burla qualificada pelo valor elevado, de natureza pública.

Nestes termos, deve ser revogada a decisão de não pronúncia e substituída por outra que ordene a pronúncia dos denunciados pelo crime que consta da acusação pública, o de falsas declarações, mas também, em autoria material e na forma consumada, em concurso real, o crime de burla qualificada pelo valor elevado, como consta do requerimento de abertura de instrução, como é de Justiça”.

*

O Exmº Magistrado do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido de ser negado provimento ao mesmo, e concluindo a sua resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“1. Interpôs a assistente AKE recurso da douta decisão instrutória proferida a fls. 606-628 dos autos supra epigrafados, que, no que ora aqui relevará, não pronunciou os arguidos LMRC, MFS, ÁAC e MJ pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos art.ºs 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, al. a), por referência ao art.º 202.º, al. a), todos do Código Penal (seja em concurso verdadeiro ou efetivo ou em concurso aparente de normas com um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo art.º 348.º-A, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma legal, tendo nestoutra parte existido decisão de pronúncia);

2. Pugna a ora recorrente pela revogação da supra referida decisão instrutória e consequente substituição desta por outra que determine a pronúncia dos arguidos pela prática do aludido crime de burla qualificada (a par, em concurso real, do de falsas declarações);

3. Estará aqui em causa, no essencial e no que ora mais interessa relativamente à douta decisão instrutória recorrida, aquilatar da alegação no RAI do “prejuízo patrimonial” correspondente ao elemento objetivo do tipo do crime de burla e, do mesmo passo, conducente à qualificação deste ilícito, bem assim da possibilidade da imputação de semelhante crime de burla qualificada em concurso real/efetivo com o crime de falsas declarações;

4. No que concerne à questão da alegação no requerimento de abertura de instrução do “prejuízo patrimonial” sofrido pela ora recorrente, que corresponda ao elemento objetivo do tipo do crime de burla e que, atento o seu valor, acarrete a subsunção dos factos (já) ao crime de burla qualificada, perfilhamos, in totum, o entendimento então expendido pela Meritíssima Juiz a quo.

5. Efetivamente, percorrendo, de modo exaustivo, os 43 artigos constantes do requerimento instrutório apresentado pela assistente AKE, certo é que em lado algum é mencionado qualquer valor correspondente ao aludido “prejuízo patrimonial”, muito menos, o valor “consideravelmente elevado” invocado pelo mesmo sujeito processual;

6. Ora, não poderá tal falta de indicação do valor correspondente àquele “prejuízo patrimonial” ser suprida pela existência de quaisquer elementos ou referências exteriores ao mesmo requerimento de abertura de instrução, inexistindo, desde logo, para tanto, qualquer remissão efetuada nesse sentido;

7. Sendo que mesmo semelhante remissão não satisfaria as formalidades legais exigidas ao assistente no nº 2 do art.º 287º do Código de Processo Penal, conforme, a título meramente exemplificativo, se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 1 de Abril de 2009, Relator Jorge Gonçalves, Processo n.º 2899/06.8TALRA.C1, acessível em www.dgsi.pt: «olvidou o assistente, por completo, que tal requerimento deveria constituir-se como uma verdadeira acusação alternativa ao despacho de arquivamento do Ministério Público, sendo certo que não é admissível a narração por remissão para a queixa e para o amplo conjunto dos documentos entretanto apresentados, como parece supor o recorrente, erradamente, atento o teor da motivação (e no requerimento de abertura da instrução também não se faz essa expressa remissão, que em todo o caso seria inadmissível)».

8. Entendendo a recorrente existir prova indiciária nos autos que permite concluir no sentido de ser o “dano” que sofreu quantificável em € 37.011,02, certo é que tal valor não traduz o “prejuízo patrimonial” correspondente ao elemento objetivo do tipo do crime de burla, dizendo, antes, e ao invés, respeito a valores diversos a ter em conta em sede de pedido de indemnização civil, sendo que se reportam a montante que aquela deixou de receber por via contratual ou a despesas efetuadas (a própria assistente chama-lhes “danos emergentes”, “perda de vantagens” ou “encargos inerentes”) e, mesmo, a danos morais.

9. E mesmo que se procurasse calcular qual possa ter sido o “prejuízo patrimonial” penalmente relevante, sempre seria de concluir no sentido de não se estar perante qualquer “valor elevado” ou “valor consideravelmente elevado” - cfr. o art.º 202.º, als. a) ou b), respetivamente, do Código Penal -, suscetíveis de qualificar o crime de burla em conformidade com o disposto no art.º 218.º, nºs 1 ou 2, al. a), ainda respetivamente, de idêntico diploma legal;

10. Efetivamente, e como (bem) refere a Meritíssima Juiz a quo: «na dúvida sobre tal valor, o Tribunal não o pode presumir, mas sempre se frisando que a escritura lhe atribui o valor de € 100,00 euros e, face à área de tal parcela - 1.250 m2 - e considerada a área total - 7.250 m2 - do prédio misto e valor tributável do mesmo - 17.710,00€ -, nunca a tal parcela poderia ser atribuído valor superior a 4.000 euros (mais próximos dos 3.000 euros, por corresponder a 5,8 da parcela total), parece-nos».

11. Não podia, pois, no aspeto ora em apreço, ser diversa a decisão instrutória proferida, sendo que, dizendo a própria assistente que caso se tratasse “de crime de burla simples cujo procedimento dependa de queixa” sempre o correspondente direito de queixa “estaria caducado pelo seu não exercício em prazo”, também a Meritíssima Juiz a quo assim decidiu, nesse exato sentido, designadamente, afirmando que «nunca os arguidos poderiam ser responsabilizados criminalmente por tal ilícito simples, por ausência da aludida condição de procedibilidade da ação penal».

12. Muito embora a questão da possibilidade da imputação do crime de burla qualificada em concurso real/efetivo com o crime de falsas declarações já se encontre prejudicada, sendo certo que não poderá in casu ser proferida decisão de pronúncia senão relativamente ao crime de falsas declarações, diga-se que apreciámos a mesma (questão) em sede de debate instrutório, sendo que afigura-se-nos ser, neste momento, de manter, in totum, essa posição.

13. Conforme referimos então: «sempre se refira, ainda, ex abundanti, que, tendo em conta o disposto no art.º 348.º-A, n.º 1, in fine do Código Penal – (…) “se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal” –, não se vê que pudesse estar em causa a verificação do supra aludido concurso real. Como refere Maria de Fátima dos Anjos Colaço, Breve Comentário ao “Novo” Crime de Falsas Declarações, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais, Coimbra, 2016, Universidade de Coimbra (Orientador: Professor Doutor Manuel da Costa Andrade), “[relativamente ao concurso entre as falsas declarações e o crime de falsificação de documento (…). Em todos os outros casos já apontados de burlas, fraudes na obtenção de subsídio (nomeadamente para atribuição indevida de R.S.I.), favorecimento pessoal, entram em vigor as regras que regem a aplicação do princípio da subsidiariedade, tal como está previsto na parte final deste art.º 348.º-A, n.º 1, do Código Penal, não se aplicando este crime”. Face a todo o exposto, devera em conformidade, deverá ser proferida decisão de pronúncia, nos exatos termos constantes da acusação».

Face a todo o exposto, e sufragando o constante da douta decisão instrutória recorrida, somos de entendimento de que deverá o recurso ora interposto pela assistente AKE improceder”.

*

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, a assistente respondeu, mantendo o já alegado na motivação do recurso e pugnando pela procedência do recurso, e os arguidos não apresentaram qualquer resposta.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1- Delimitação do objeto do recurso.

No caso destes autos, e face às conclusões da motivação do recurso, são as seguintes (em síntese) as questões a conhecer:

1ª - A existência, ou não, de “prejuízo patrimonial” para a assistente, decorrente da atuação dos arguidos, que integre o elemento objetivo do tipo do crime de burla, e, também, que possibilite a qualificação de tal tipo legal de crime.

2ª - A existência da possibilidade, ou não, da imputação do crime de burla qualificada em concurso efetivo com o crime de falsas declarações (pelo qual os arguidos foram pronunciados).

2 - A decisão recorrida.

O despacho revidendo é do seguinte teor:

“1 – Sujeitos processuais:

Arguidos:

LMRC, filha de AMC e de FR, nascida a …, natural da freguesia de …, concelho de …, casada, residente na ..., … e portadora do C.C. nº …,

E

MFS, filho de AFS e de ASJ, nascido a …, casado, natural da freguesia da …, concelho de …, residente na …, portador do C.C. nº …,

E

MJ, filho de FAJ de CMJ, nascido a …, casado, natural da freguesia de …, concelho de …, residente na …, portador do C.C. nº …,

E

ÁAC, filho de BC e de EMA, nascido a …, viúvo, natural da freguesia de …, concelho de …, residente na …, portador do C.C. nº ….

Assistente:

AKE, também AKS, natural da …, de nacionalidade …, casada, residente nem …

– Decisão comprovanda:

Despacho de acusação de fls. 461 e segs., proferido pelo Magistrado do Ministério Público, imputando a cada um dos quatro arguidos a prática, em coautoria material e na forma consumada, um crime de falsas declarações p.e p. pelo Artigo 348º-A, nºs 1 e 2 do C.P. (aditado pela Lei nº 29/2013 de 21/02 e em vigor 30 dias após a sua publicação).

3 – Fundamentos da abertura de instrução:

A assistente AKE veio requerer a abertura de instrução, concluindo no sentido da pronúncia dos quatro arguidos, em concurso verdadeiro e efetivo, também pela prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelo Artigo 217º e 218º, nº 1, al. a) (valor elevado), a acrescer ao crime de falsas declarações já imputado pelo M.P. aos arguidos.

4 – Diligências realizadas:

Procedeu-se à realização de debate instrutório, com observância do legal formalismo, sem a produção de prova em sede de instrução.

5 – Pressupostos processuais:

O Tribunal é competente.

O Ministério Público tem legitimidade para exercer a ação penal.

O processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem e de que cumpra apreciar. Inexistem questões prévias ou incidentais das quais cumpra conhecer.

6 – Apreciação e discussão:

A fase de instrução consiste numa fase processual, de natureza facultativa, dirigida por um Juiz de Direito, que visa a comprovação judicial da decisão do Magistrado do Ministério Pública de deduzir acusação e/ou arquivamento, em ordem a submeter a causa a julgamento (Artigos 286º, nº1 e 2 do C.P.P.).

Pretende-se aferir, mormente, da suficiência ou não dos indícios recolhidos em sede de inquérito (Artigo 308º, nº 1 do C.P.P.), por forma a verificarem-se estarem ou não preenchidos os requisitos para submeter determinada pessoa a julgamento.

Para que surja uma decisão de pronuncia, a lei não exige a prova no sentido da certeza, mas a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória, não constitui pressuposto da decisão de mérito final. Trata-se antes de mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase de julgamento.

Para fundar uma decisão de pronuncia, não é necessária uma certeza da infração, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a que, da sua lógica conjugação e relacionação, se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e, bem assim, da sua integração jurídico-criminal.

Indícios suficientes são aqueles que permitem concluir que a probabilidade de a determinada pessoa ser aplicada determinada pena criminal ou medida de segurança é maior do que a sua não probabilidade (artigo 283º, nº 2 do C.P.P.).

Conforme Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 777 “(…) mas o âmbito desta discussão é limitado pela lei, ou melhor, pelo objetivo que a lei estabelece para aquela discussão. Nela pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança (artigo 308º, nº 1). Portanto, a instrução visa discutir a discussão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do MP de inexistência de indícios suficientes e discutir a discussão de acusação apenas no que respeita ao juízo do MP de existência de indícios suficientes”.

Nas palavras de Nuno Brandão, “A nova face da instrução”, in RPCC, Ano 18, nºs 2 e 3, abril-setembro de 2008, a instrução, como fase facultativa, de um determinado processo em curso, é um “puro instrumento de controlo”.

Segundo Pedro Daniel dos Anjos Frias, in “Com o Sol e a Peneira: Um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade…”, in “Revista Julgar, nº 19, janeiro-abril de 2013, Coimbra Editora, “(...) Primeira: A instrução tem por fim apenas a comprovação judicial da decisão de acusar. Segue-se daqui que a instrução não pode servir para outra finalidade que não esta, a que a lei lhe determina. Designadamente, não pode ser utilizada para repetir o que na investigação já se efetuou, para a realizar de novo, ou para ensaiar a defesa antecipando o julgamento, etc.

Nenhuma destas realidades respeita o valor semântico do enunciado escolhido pelo legislador e, por sobre tudo, a realidade teleológica que lhe subjaz: comprovar (em face do que já existe).

Segunda: na instrução a única atividade a desenvolver é a de comprovação judicial e este tem por objeto, desde logo, o inquérito lato sensu.

Terceira: A comprovação judicial carece de ser despoletada, o que acontece mediante a apresentação do requerimento, onde têm que constar os fundamentos necessários a servir de apoio ou arrimo a essa atividade (as razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Pública esgrimidas pelo arguido).

Quarta: A instrução configura unicamente um momento de “controlo” da conformidade/legalidade da atividade do Ministério Público que culminou com a decisão de acusar e nada mais.

De igual modo, o mesmo autor acrescenta, a fls. (…) a discordância (por parte do requerente da instrução, acréscimo nosso) relevante é vinculada. Exerce-se relativamente à acusação que é, e é-o sempre, sublinhe-se, o corolário de uma atividade pretérita: o inquérito. De igual modo, acrescenta, a fls. 109” (…) a atividade de comprovação carece, por sua própria natureza, de dois pontos de apoio para se poder realizar. Um é o inquérito (lato sensu); o outro, o requerimento de abertura de instrução que trará as razões de discordância”.

Desta maneira, podemos concluir que, num direito processual penal de natureza acusatória, em que vigora o principio da vinculação temática, a atividade do Juiz de Instrução está limitada, contida e enformada, pela acusação/arquivamento prolatados por um lado, que se alicerça no inquérito que lhe subjaz e, por outro, pelo requerimento de abertura de instrução apresentado.

Isto para dizer, que a atividade do Juiz de Instrução não abrange todo o objeto do processo, nem sequer todos os factos da acusação/arquivamento, mas tão só aqueles factos ou questões de direito que constituem as razões da discordância e fundam o requerimento de abertura de instrução.

Assim, no caso presente, a questão relevante é a de se apurar se no caso presente foram apurados em sede de inquérito indícios suficientes da prática pelos quatro arguidos dos factos que lhes são imputados pela assistente, por um lado e, se tais factos imputados integram ou não, a prática pelos mesmos de um crime de burla qualificada p. e p. pelo Artigo 217º e 218º, nº 1, al. a) ambos do C.P., a que acresce, em termos sucessivos, a apreciação da questão de saber-se se tal ilícito, a verificar-se “in casu”, concorre em termos verdadeiros e efetivos com aquele imputado aos arguidos pelo M.P. ou, ao invés, se estamos perante um mero concurso aparente de crimes.

Diligências realizadas em sede de inquérito, com relevância para a causa (o qual incorpora um outro inquérito):

- Certidão de fls. 2 e segs., extraída dos autos nº 340/14.2TBSTB que correram termos no Juiz 2, Juízo Central Cível de Setúbal, que contém articulado superveniente, certidão predial do prédio descrito na matriz predial sob o nº … (prédio misto com casa térrea para habitação), de onde consta o registo a favor da assistente, por sucessão hereditária) e descrição do prédio descrito na CRP sob o nº…, desanexado do anterior (com terreno de semeadura e árvores de fruta) com registo a favor de LC por usucapião), comprovativo de participação de transmissões gratuitas, de fls. 13 e segs., cópia da caderneta predial de fls. 16 e segs., cópia da escritura notarial de justificação, pedido de registo de aquisição a favor de LC a fls. 23 e segs.,

- Cópia de informação de fls. 50 e segs., prestada pelo Cartório Notarial ….,

- Auto de inquirição de testemunha MJ de fls. 65 e segs.,

- Auto de inquirição de testemunha ÁAC de fls. 67 e segs., - Auto de inquirição de testemunha MFS, de fls. 69 e segs.,

- Auto de inquirição de testemunha de LMRC, a fls. 76 e segs.,

Das declarações prestadas pelos arguidos como testemunhas é claro que, quanto aos três arguidos que atestaram a veracidade do declarado pela arguida L na escritura outorgada, são todos das relações desta e dos seus pais. Têm conhecimento geral da situação, em concreto que a casa e o prédio à volta da mesma era pertença do pai de L AC, que o mesmo matou alguém na mesma e que era intenção do pai deixar à filha de herança, tal prédio e casa, razão pela qual aceitaram desempenhar o papel que desempenharam na escritura aqui em apreço.

Só mencionam terem visto o aludido A ou seus irmãos (tios) no prédio, não a filha. Desconhecem a quem pertence atualmente e se continua a pertencer ao mesmo A. Uma das testemunhas alude a doação à filha pelo pai, mas não sabe se foi juridicamente assim consta. Outra aludiu ao homicídio que teve lugar em tal local.

Outra testemunha ainda refere que a mãe de AC o traiu, vendendo o que era deste, incluindo a casa.

- Auto de interrogatório da arguida LMRC de fls. 275 e segs., que afirma que apenas residiu na propriedade enquanto criança, mas que os pais habitaram a casa mesmo após o seu casamento e o pai vivia lá desde 1960.

- Certidão de fls. 92 e segs.,

- Escritura pública de fls. 126 e segs.,

- Relação de bens apresentada por óbito de MC, e pela viúva e cabeça de casal, MJ, em 26/10/1970, de onde consta a verba única que corresponde ao prédio aqui em mérito, encontrando-se na parte rústica duas casas térreas dos herdeiros AM e JJ, em construção e uma já habitada, pertença do herdeiro AMC,

- Requerimentos para efeitos de instauração de inventário por óbito de MC, de fls. 135 e segs., incluindo certidões da CRCP, com todas as inscrições e averbamentos em vigor,

- Petição inicial para instauração de ação de divisão de coisa comum, por apenso aos autos de inventário por óbito de MC, de fls. 145 e segs.,

- Certidão de fls. 148 e segs. e requerimentos apresentados pela cabeça de casal, diversos,

- Cópia de certidão predial de fls. 157 e segs., de onde consta que o prédio foi adquirido por MC a CC e mulher, por escritura de 08 de junho de 1966,

- Ata de conferência de interessados, em 12 de janeiro de 1977, no âmbito dos autos de inventário que correram termos nº 165/76 aberto por óbito de MC, em que não foi possível obter o acordo por ausência de todos os interessados e pelos presentes foi declarado que pretendiam manter sem divisão e na proporção das respetivas quotas o prédio que constituía a verba única relacionada.

- Mapa de partilha de fl. 162 e segs.,

- Despacho de homologação judicial de fls. 165 e segs. e auto de arrematação de fls. 166 e segs., em ação especial de divisão de coisa comum nº 165-A/76, que foi arrematado à empresa leiloeira “agência de leilões …”, pelo valor de 2.020.000$00, não tendo os interessados exercido o seu direito de preferência, em 11/06/1991

- Auto de diligência de fls. 132 e segs., em 14/12/1994, dando conta do óbito de duas pessoas, o serralheiro e um dos representantes da agência de leilões, licitante, por via de disparos produzidos por AC,

- Requerimento de fls. 171 e segs., competente despacho, auto de diligência de fls. 140 e segs., ofícios e auto de entrega de fls. 177 e segs., de 27/11/1997, de onde consta o arrombamento da porta e retirada de dois cães que ali se encontravam, substituição de fechaduras, bem como retirada de todos os bens móveis do local e entrega do imóvel ao representante da agência leiloeira, licitante de tal prédio.

- Cópia do assento de óbito de MS de fls. 179 e segs.,

- Cópia de escritura de compra e venda de fls. 180 e segs., em que foram vendedores “Agência de Leilões …” e compradora MS, por referência à totalidade do prédio aqui em apreço, de que aqui está em causa uma parcela do mesmo,

- Cópia de certidão do prédio descrito na CRP sob o nº 640/201191, de onde consta o registo de arrendamento do prédio a terceiro, por 300 anos, a aquisição a favor da agência de Leilões …, a favor de MS e o averbamento provisória da ação judicial instaurada por EG contra MS.

- Cópia de caderneta predial rústica de fls. 190 e segs.,

- Petição inicia da ação instaurada por EG contra MS a fls. 192 e segs.

- Cópia de parte da certidão predial do prédio em causa de fls. 198 e segs.

- Cópia de contrato promessa de fls. 201 e segs. e cópia dos cheques emitidos para pagamento de parte do preço e a título de sinal.

- Pedido de licenciamento de fls. 213 e segs., pagamento de receita de fls. 212 e segs., troca de missivas entre MS e EG de fls. 214 e segs., levantamento topográfico de fls. 218, pedido de inscrição no cadastro de fls. 219, comprovativos de participação de transmissões gratuitas, cópia de caderneta predial, cópia de certidão de fls. 224 e segs., pedido de registo a favor de LC de fls. 231 e segs., cópia de certidão permanente predial de fls. 234 e segs., cópia de escritura de habilitação de herdeiros de fls. 235 e segs.,

- Cópia de petição inicial para instauração de inventário por óbito de MC, assento de óbito deste, procuração

- Certidão permanente de fls. 250 e segs., quanto à sociedade “Agência de Leilões …”,

- Auto de interrogatório do arguido MFS, de fls. 282 e segs., que não prestou declarações,

- Auto de interrogatório do arguido ÁC de fls. 289 e segs., que não prestou declarações,

- Auto de interrogatório do arguido MJ, de fls. 297 e segs., que não prestou declarações,

- Auto de inquirição da testemunha AMC, pai da arguida LC de fls. 303 e segs.,

- Auto de inquirição de fls. 305 e segs., da testemunha EG,

- Auto de inquirição de fls. 307 e segs., da testemunha AJSS,

- Auto de inquirição de fls. 309 e segs., da testemunha SLSC, esposa da arguida LC,

- Auto de inquirição de fls. 316 e segs., da testemunha JSOF, que sobre os factos nada sabia,

- Auto de inquirição da testemunha MPCPALVL, de fls. 328 e segs.,

- Auto de inquirição da testemunha FMBLVL, de fls. 330 e segs.,

- Declaração escrita e assinada por MS de fls. 375 e segs., datada de 09.12.2002, declarando que a casa de habitação, sita na sua propriedade sita na …, em …, em anterior terreno pertença de MJ é propriedade de AC e que “cederá o terreno (800m) onde o referido imóvel se encontra implantado ao seu legítimo proprietário da já citada benfeitoria, mediante acordo de cedência, a negociar entre o Sr. AC e a proprietária do terreno MS”.

Mais consta de tal documento a menção manuscrita a “original entregue a Sr. A em 02/09/08”.

- Certidão de fls. 395 e segs., de onde consta, para além do mais, a sentença proferida nos autos nº 2416/17.4T9STB. pelo Juiz 1, Juízo Local Cível de Setúbal, onde se afirma que da prova produzida resulta que, desde 1974, quem reside no aludido prédio, dele usufruindo, sem oposição, de modo pacífico e à vista de todos é AC, pai da arguida L e não esta, pelo que as declarações proferidas na escritura de justificação notarial outorgada não correspondem à realidade, sendo falsas tais declarações.

Mais se decidiu em tais autos e decisão “declarar ineficaz e de nenhum efeito a escritura pública de justificação outorgada no dia 31.03.2014, no Cartório Notarial de …, em …, exarada de fls. 103 a 105 verso do Livro de escrituras diversas n …, por a Ré não ter adquirido o terreno nela identificado por usucapião” e ordenou-se o “cancelamento de quaisquer registos operados com base na referida escritura”.

- Escritura pública de justificação notarial de fls. 425 e segs. de fls. 430 e segs.

- Auto de inquirição de JMPCL de fls. 460 e segs., - Contrato promessa de compra e vende fls. 491 e segs., outorgado por MS e EG, em 22 de março de 1999, atinente a 3.000 m de terreno a destacar de um prédio misto, sito em …, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … Secção … e na matriz predial urbana sob o Artigo … e descrito na CRP de … sob o nº …,

- Fatura do levantamento topográfico pedido pela mãe da assistente, a fls. 494 e segs., para cumprimento do acordado no contrato promessa de compra e venda, supra elencado, com data de 21/12/2015,

- Cópia da sentença proferida nos autos nº 3410/14.2TBSTB que correram termos no J2, Instância Central Cível de Setúbal, em ação instaurada por EG contra MS, em que a Ré foi absolvida do pedido (execução específica do contrato-promessa), julgando-se a ação improcedente, de fls. 495 e segs.,

- Documentos juntos com o RAI, incluindo petição inicial apresentada por EG nos autos já supramencionados, a fls. 514 e segs.

Factos indiciados (com relevo para a causa):

Os constantes da acusação pública e os constantes do RAI, quanto aos seus Artigos 11º a 42º que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

Factos não indiciados (com relevo para a causa):

Não existem (mormente por referência aos alegados no RAI).

Apreciação dos indícios recolhidos em sede de inquérito:

Em face da documentação junta aos autos, resulta de forma clara e manifesta que MC e esposa, eram titulares de um prédio misto, no qual se encontravam em construção duas habitações por dois dos seus filhos e já construída uma terceira habitação por parte de um outro seu filho, de nome AC.

Por óbito deste MC, foi instaurado inventário judicial, tendo sido a todos os herdeiros, viúva e filhos, adjudicado, o prédio em causa, única verba relacionada.

Foi instaurada ação judicial de divisão de coisa comum, por apenso a tal processo de inventário e, nela, foi licitada tal verba por uma agência leiloeira, em 27 de junho de 1991 (fls. 166 e segs.), que só tomou posse efetiva da verba licitada em 27 de novembro de 1997 (fls. 177 e segs.), muito embora em 14 de dezembro de 1994, tenha ocorrido uma tentativa nesse sentido, que culminou com o homicídio de duas pessoas por AC (fls. 169 e segs.).

Tal agência de leilões vendeu, em 03/12/1992 (fls. 180 e segs.), a MS o prédio em causa, a qual emitiu uma declaração, afirmando que a casa de habitação e prédio onde a mesma se mostra edificada, eram propriedade de AC, e tinha intenção de formalizar tal declaração.

Tal, porém, nunca chegou a ocorrer, o que implicou que, formalmente e em termos legais, nenhuns direitos assistam ao aludido AC, uma vez que nunca veio este a instaurar ação judicial tendente a reconhecer o seu direito de propriedade por acessão imobiliária e as transferências sucessivas do prédio misto foram sempre, formalmente, realizadas atendendo à parcela no seu todo.

MS faleceu, em 27/08/2008, sucedendo-lhe a sua única filha, a aqui assistente.

Foi outorgada a escritura pública de justificação notarial em 31 de março de 2014, pela arguida LC, cujas declarações foram confirmadas por três testemunhas, os demais aqui arguidos, conforme fls. 127 e segs..

Nela, a primeira outorgante declara que, com exclusão de outrem é dona e legítima possuidora de uma parcela de terreno rústica, com área total de 1.250m2, a destacar do prédio misto descrito na CRP da freguesia da … sob o nº ….

Que a totalidade do prédio foi adquirida por compra e venda verbal pelo seu pai a CC, que o pai procedeu à divisão do prédio em cinco parcelas distintas, fisicamente separadas e dou-as ao seu avô, MC. Com o óbito deste, tais parcelas foram adjudicadas por cada um dos seus 5 filhos e uma delas, por AC, que a doou verbalmente à sua filha a aqui LC ainda no estado de solteira, no ano de 198, tendo esta entrado na posse do mesmo prédio em tal ano.

Assim, há mais de 20 anos, tem a primeira outorgante, o que declara em tal escritura, a posse em nome próprio, sem interrupção deste o início, respeitando divisórias e extremas, sempre praticando todos os atos de posse suscetíveis de serem praticados, na convicção de exercer direito próprio, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, sendo por isso tal posse pública, pacífica, contínua e de boa fé.

Manifestamente, do elenco “histórico” correlacionado com as transmissões do prédio misto aqui em apreço de que faz parte a dita parcela justificada, resulta claro que tais declarações não correspondem à verdade, mais não seja porquanto em 1991 o prédio na sua totalidade foi adjudicado à mencionada agência leiloeira, que dele tomou posse efetiva em 1997, encontrando-se a habitar a casa de habitação a mãe de LC, em tal data – 1997 - e o pai, presumivelmente detido. Já em 1994, fora realizada uma primeira tentativa de entrega efetiva do prédio, em concreto da parcela em causa, no que se inclui a casa de habitação construída por AC e que este habitou até 1997 (ou a sua esposa, dado que detido o mesmo), que culminou em dois homicídios.

Desta forma, nunca a aludida L exerceu na aludida parcela, pelo menos a partir de 1994 e 1997, uma posse pacífica, pública e na convicção de a exercer em nome próprio.

Sempre foram os seus pais que habitaram a parcela, a casa construída pelo seu pai e tais pais viram-se dela desapossados pelo menos em 1997, de forma efetiva (a esposa).

Assim, para além de não se comprovar a efetiva prática de atos de posse por parte da aludida L (isto o “corpus”) – que não se comprovou (a mesma afirma que abandonou a casa paterna após o casamento), nunca tal posse - a existir - teria as características necessárias para determinar a aquisição da aludida parcela pelo instituto do usucapião (faltando-lhe, incluindo, o “animus”) e, muito menos, tal posse teria sido contínua por mais de 20 anos (a escritura é outorgada em Março de 2014 e em Dezembro de 1994 já ocorrera uma tentativa de entrega efetiva da parcela à agência leiloeira licitante).

Desta forma, a aludida documentação claramente demostra a falsidade dos factos declarados no âmbito da escritura pública de justificação notarial outorgada pelos arguidos.

Ainda que assim não fosse, tal falsidade foi constatada em ação judicial.

Tal falsidade tem que ser do conhecimento da arguida LC, filha de AC, dada tal relação e qualidade, não podendo esta desconhecer os factos supra.

E, também das três testemunhas, aqui arguidos, que necessariamente tiveram conhecimento dos aludidos homicídios, face à sua repercussão.

São todos pessoas das relações da arguida LC e dos seus pais, claramente demonstrando que conhecem tais homicídios (aliás, face à repercussão de tais acontecimentos, seria impossível não terem conhecimento dos mesmos) e a “traição” da mãe de AC, a que uma delas alude (uma ao homicídio e outra à traição). Todas pretenderam beneficiar pai e filha, o que claramente afirmam - para esta ficar com a herança - que entendem serem fruto de uma injustiça.

Ademais, face a tais relações e ao teor das declarações prestadas na qualidade de testemunhas, não demonstraram terem conhecimento preciso dos factos confirmados, isto é, que a L (e não o seu pai ou seus tios, dado que nunca à aludida L aludem) exerceu, de forma efetiva, durante mais de vinte anos, atos de posse, sobre a parcela aqui em apreço, posse contínua, pacífica, pública, de boa fé, em nome próprio. Todas têm um conhecimento muito geral dos factos e sendo o declarado falso, não poderiam, necessariamente, dele ter conhecimento. Portanto, ao confirmarem as declarações da arguida LC necessariamente faltaram à verdade.

Que o intuito de todos foi beneficiarem a aludida L e seu pai, AC igualmente resulta evidente, bem como evidente que tal ocorreu. Por via da escritura outorgada, à primeira outorgante foi reconhecido um suposto direito de propriedade sobre a parcela em causa, através da figura da usucapião, que constitui um modo de aquisição originária de propriedade, com efeitos na ordem jurídica.

Por seu turno, saliente-se que o registo predial só tem efeito publicitário e essencialmente declarativo.

Isto é, por via da outorga da escritura em causa, e tão só, e não por via do registo na Conservatória do Registo Predial subsequente, reconheceu-se e por via de tal reconhecimento operou-se na esfera jurídica de LC uma aquisição de um direito de propriedade (artigo 1316º e 1317º, al. c) do C.C.) da parcela em causa, logo, o ato do notário foi de molde a produzir na esfera jurídica de tal pessoa um imediato enriquecimento e um inerente empobrecimento na esfera de MS, ambos ilegítimos, porquanto falsas as declarações prestadas no âmbito da aludida escritura, como já supra referenciado, sendo utilizado um meio enganoso - falsas declarações por todos prestadas - para determinar o notário a tal ato de que derivou tais empobrecimentos/enriquecimentos.

Não deixa de se fazer notar que o notário, se conhecedor de tal falsidade, não poderia ter outorgado a escritura, nos termos em que o fez. Ainda que não tenha como funções aferir da bondade ou veracidade do que é, perante si declarado, não pode praticar atos contrários aos deveres da sua função. Conforme o Ac. do TRP de 05/12/2016, relatado por Miguel Baldaia de Morais, no processo 406/14.8BMAI.P1, www.dgsi.p, “mostra-se consagrado entre nós o denominado sistema ou modelo do notariado latino, sendo que à luz deste sistema o notário é um jurista ao serviço das relações jurídico-privadas encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim, mas ao mesmo tempo é um oficial público que recebe uma delegação da autoridade pública para redigir documentos autênticos dotados de fé pública”.

E “a função do notário não consiste em dar fé a tudo o que veja ou oiça, seja válido ou nulo, mas em dar fé em conformidade com a lei, competindo-lhe, por isso, o controlo da legalidade do negócio, visando, designadamente, detetar incapacidades, erros de direito ou de facto, coações encobertas, fraudes à lei e, eventualmente, reservas mentais e simulações, absolutas ou relativas” (…).

Também é para nós claro que o engano do notário foi astuciosamente provocado, exatamente por via da prestação de tais falsas declarações, seja por banda de LC, seja por banda das demais três testemunhas que confirmaram tais declarações por estas prestadas.

Nesta medida, consideramos que a figura do notário é passível de ser enganada, não se lhe aplicando os fundamentos ou argumentos por exemplo utilizados para as burlas processuais. E, mesmo quanto a estas, a jurisprudência não é unânime (vide, Ac. do TRP de 04/10/2007, relatado por Simas Santos, no processo 07P2599, in www.dgsi.pt).

Assim, é o engano astuciosamente provocado que vai determinar um ato do notário - a outorga da escritura - (outrem, havendo aqui divergência entre lesado e engando), esta que, por sua vez, vai determinar/causar um inerente e direto enriquecimento/empobrecimento ilegítimo, todos os quatro arguidos agindo com tal intuito, no âmbito de um mesmo plano, a que os demais três arguidos aderiram, com tal intuito, e todos agindo de forma concertada.

Nesta medida, consideramos assim indiciados todos os factos alegados e constantes do RAI apresentado pela assistente.

Do crime de burla qualificada:

Dispõe o Artº. 217º, nº 1, do CP, que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

Por seu turno, dispõe o Artigo 218º, nº 1, do C.P., que “quem praticar o facto previsto no nº 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias”.

O nº 2 estipula que a pena é de prisão de 2 a 8 anos se o prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado.

O valor da UC era, em 2014, 102 euros.

O crime de burla é um crime de material ou de resultado, apenas se consumando com a saída das coisas ou dos valores da “disponibilidade fáctica” do sujeito passivo ou da vítima.

Por outro lado, constitui um crime de delito de execução vinculada, em que lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma forma particular de comportamento.

Finalmente, constitui um crime de resultado parcial ou cortado, caracterizado por uma falta de descontinuidade entre o correspondente tipo subjetivo e objetivo.

São, assim, elementos constitutivos do ilícito aqui em mérito:

- a intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo; - a indução em erro ou engano de outrem, com astúcia do agente;

- que o empobrecimento ilegítimo provenha dessa indução;

- que, através de tais meios, se determine o ofendido ou outrem à prática de atos causadores de prejuízos materiais;

O elemento essencial consiste na criação ou aproveitamento do erro (falsa ou nenhuma representação da realidade, por dedução falaciosa, por indução sem fundamento, por deficiência da vontade ou da inteligência), ou do engano (a mentira), realizados através de múltiplas formas - palavras ou afirmações expressas, atos concludentes ou por omissão -.

Ponto é que esse erro ou engano sejam astuciosamente provocados, que haja habilidade para enganar, subtileza para defraudar e engenho para criar a aparência de uma realidade que não existe ou para falsear a realidade.

Não são necessários processos rebuscados, mas, tão só, os necessários à finalidade do burlão, sendo que a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características concretas do burlado, tais como a fragilidade intelectual, a inexperiência ou especiais relações de confiança (cfr. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, II, págs. 298 e 295).

Tem-se entendido, que há necessidade de que ocorra uma situação mais intensa que a mera malícia nos negócios, que ocorra o escopo não do lucro do negócio, mas de um lucro ilícito.

É, porém, essencial que o emprego de meio enganoso consubstancie a causa efetiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo e, por outro lado, que a situação de erro ou engano causados sejam a causa da prática pelo burlado ou terceiro de atos de que decorrem os prejuízos patrimoniais.

É, pois, necessário que ocorra um duplo nexo de imputação objetiva, entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado ou terceiro, de atos tendentes a diminuição do património e entre tais atos e a efetivação do prejuízo patrimonial.

O elemento subjetivo implica um dolo específico, consubstanciado na vontade de defraudar outrem e na intenção de obter um enriquecimento ilegítimo á custa de património alheio.

Ora, no caso presente, em face dos factos supra indiciados (que se elencaram, ainda que por remissão), entendemos mostrarem-se verificados, no caso presente, os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de burla simples, mas já não o crime na sua forma qualificada, conforme veremos.

Conforme já se disse, entendemos que a conduta dos arguidos é de molde a enganar o notário que outorgou a escritura de justificação notarial, levando-o à prática da mesma, o qual, se por si conhecida a falsidade das declarações prestadas por tais pessoas, perante si, não teria praticado tal ato, por contrário às suas funções, também, de controlo da legalidade dos atos praticados.

A nosso ver, de igual modo, no caso presente, tal engano, foi provocado de forma astuciosa, mediante a prestação pela primeira outorgante e pelos demais três outorgantes, todos testemunhas, de falsas declarações, conforme já supra referido, em termos equivalentes a um qualquer uso de documento falso.

A outorga da escritura notarial de justificação implicou o reconhecimento da aquisição do direito de propriedade da parcela em causa, na esfera jurídica de LC, desde o início da sua suposta posse e, daí, o provocar um imediato enriquecimento patrimonial na sua esfera jurídica, correspondente ao valor de tal parcela, bem como inerente prejuízo patrimonial na esfera jurídica da assistente, efeito derivado da escritura per se.

Contudo, não se apurou qual o valor da parcela a destacar e justificada.

Nem a assistente o alega no RAI, compulsado o seu teor. Alude a danos causados na sua esfera jurídica, de que pretende ser ressarcida, mas diversos do valor da parcela, até porque foi declarada já a ineficácia e sem nenhum efeito da escritura aqui em causa. Tal falta de alegação não pode ser suprida pelo Tribunal, em conformidade com a jurisprudência estabelecida quanto a esta matéria (acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, em conformidade quanto a alteração de factos, suprindo deficiências de alegação dos assistentes conforme Ac. do STJ nº 7/2005, publicado no DR nº 212/2005, I-S de 04/11/2005 (Armindo dos Santos Monteiro).

Na dúvida sobre tal valor, o Tribunal não o pode presumir, mas sempre se frisando que a escritura lhe atribui o valor de €100,00 euros e, face à área de tal parcela - 1.250 m2 - e considerada a área total - 7.250 m2 - do prédio misto e valor tributável do mesmo - 17.710,00€ -, nunca a tal parcela poderia ser atribuído valor superior a 4.000 euros (mais próximos dos 3.000 euros, por corresponder a 5,8 da parcela total), parece-nos.

Do que deriva - seja da ausência de alegação, não suprida, seja do que parece ser valor real inferior ao constante do conceito “valor elevado”, face à data dos factos -, que estejamos perante um crime de burla simples e não qualificado.

Ora, se assim é, este crime é de natureza semipública, conforme o Artigo 217º, nº 3, do C.P., para o que se impõe, como condição de procedibilidade da ação penal, a apresentação no prazo de 6 meses, de denúncia crime, nos termos do Artigo 115º, nº 1, do C.P., e 49º do C.P.P.

Ora, os autos (sejam os presentes, sejam os incorporados) tiveram início com uma certidão extraída de autos cíveis. Nunca a assistente foi nos mesmos ouvida, nem há apresentação por mandatário judicial ou procurador com poderes especiais, de queixa ou denúncia crime.

Assim, nunca os arguidos poderiam ser responsabilizados criminalmente por tal ilícito simples, por ausência da aludida condição de procedibilidade da ação penal.

Não é, pois, possível, concluir pela prática pelos arguidos no caso presente de um crime de burla simples, ou qualificada, pelas razões supra enunciadas.

Acresce que, conhecidos os factos e seus agentes em, sensivelmente, novembro de 2015, por via do pedido de levantamento topográfico e sua realização, nunca a reclamação de fls. 114 e segs., apresentada em 18 de março de 2018, intitulando-se nela a assistente denunciante, poderia ser tempestivamente considerada como denúncia ou queixa crime (conforme artigo 41º da aludida reclamação).

Finalmente, o Artigo 348º-A do C.P. estatui um caso de concurso aparente de normas, ao dizer-se “(…) se pena mais grave não lhe couber por força de disposição legal”, o que seria aplicável no caso presente, em que o crime fim é mais gravemente punido que o crime meio.

Assim, mesmo a verificarem-se preenchidas as normas do crime de burla simples ou qualificado, em tese (o que não ocorreu, pelas razões elencadas supra), nunca poderia ocorrer concurso de crimes efetivo e verdadeiro, devendo ser preterido o crime de falsas declarações, pelo crime de burla qualificada, sendo somente os arguidos criminalmente responsabilizados pelo segundo.

7 – Decisão:

Nesta conformidade, julgando-se improcedente o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AKEl, decido:

A) Pronunciar os arguidos LMRC, MFS, ÁAB e MJ, pelos factos e incriminações que constam da acusação de fls. 461 e segs., que aqui dou por integralmente reproduzida e para os quais remeto, ao abrigo do Artigo 307º, nºs 1 a 3, do C.P.P., a fim de serem julgados em processo comum e com a intervenção do tribunal singular;

B) Não pronunciar os mesmos arguidos da prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelo Artigo 217º, nº 1, e 218º, nº 1, al. a), por referência ao Artigo 202º, al. a), todos C.P., seja em concurso verdadeiro ou efetivo ou em concurso aparente de normas.

Prova, toda a que consta da acusação pública, para que remeto ao abrigo do Artigo 307º, nºs 1 e 3, do C.P.P.

Determino a correção da taxa de justiça autoliquidada pela assistente, para 2 Uc, dado o teor do Artigo 8º, nº 2, do RCP, atendendo-se ao valor por si já autoliquidado (102 euros)”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da burla qualificada.

Alega a assistente, em breve síntese, a existência, in casu, de prejuízo patrimonial de valor elevado, decorrente da atuação dos arguidos, pelo que se verificam os elementos, objetivos e subjetivos, do crime de burla qualificada.

Cumpre decidir.

A propósito da questão agora em apreço, escreve-se na decisão revidenda: “ora, no caso presente, em face dos factos supra indiciados (que se elencaram, ainda que por remissão), entendemos mostrarem-se verificados, no caso presente, os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de burla simples, mas já não o crime na sua forma qualificada, conforme veremos. (….) A outorga da escritura notarial de justificação implicou o reconhecimento da aquisição do direito de propriedade da parcela em causa, na esfera jurídica de LC, desde o início da sua suposta posse e, daí, o provocar um imediato enriquecimento patrimonial na sua esfera jurídica, correspondente ao valor de tal parcela, bem como inerente prejuízo patrimonial na esfera jurídica da assistente, efeito derivado da escritura per se. Contudo, não se apurou qual o valor da parcela a destacar e justificada. Nem a assistente o alega no RAI, compulsado o seu teor. Alude a danos causados na sua esfera jurídica, de que pretende ser ressarcida, mas diversos do valor da parcela, até porque foi declarada já a ineficácia e sem nenhum efeito da escritura aqui em causa. Tal falta de alegação não pode ser suprida pelo Tribunal, em conformidade com a jurisprudência estabelecida quanto a esta matéria (acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, em conformidade quanto a alteração de factos, suprindo deficiências de alegação dos assistentes conforme Ac. do STJ n.º 7/2005, publicado no DR n.º 212/2005, I-S de 04/11/2005 (Armindo dos Santos Monteiro). Na dúvida sobre tal valor, o Tribunal não o pode presumir, mas sempre se frisando que a escritura lhe atribui o valor de €100,00 euros e, face à área de tal parcela – 1.250 m2 – e considerada a área total – 7.250 m2 – do prédio misto e valor tributável do mesmo – 17.710,00€ –, nunca a tal parcela poderia ser atribuído valor superior a 4.000 euros (mais próximos dos 3.000 euros, por corresponder a 5,8 da parcela total), parece-nos. Do que deriva - seja da ausência de alegação, não suprida, seja do que parece ser valor real inferior ao constante do conceito “valor elevado”, face à data dos factos -, que estejamos perante um crime de burla simples e não qualificado. Ora, se assim é, este crime é de natureza semipúblico, conforme o Artigo 217.º, n.º 3, do C.P., para o que se impõe, como condição de procedibilidade da ação penal, a apresentação no prazo de 6 meses, de denúncia crime, nos termos do Artigo 115.º, n.º 1, do C.P., e 49.º do C.P.P. Ora, os autos (sejam os presentes, sejam os incorporados) tiveram início com uma certidão extraída de autos cíveis. Nunca a assistente foi nos mesmos ouvida, nem há apresentação por mandatário judicial ou procurador com poderes especiais, de queixa ou denúncia crime. Assim, nunca os arguidos poderiam ser responsabilizados criminalmente por tal ilícito simples, por ausência da aludida condição de procedibilidade da ação penal. Não é, pois, possível, concluir pela prática pelos arguidos no caso presente de um crime de burla simples, ou qualificada, pelas razões supra enunciadas. Acresce que, conhecidos os factos e seus agentes em, sensivelmente, novembro de 2015, por via do pedido de levantamento topográfico e sua realização, nunca a reclamação de fls. 114 e segs., apresentada em 18 de março de 2018, intitulando-se nela a assistente denunciante, poderia ser tempestivamente considerada como denúncia ou queixa crime (conforme artigo 41.º da aludida reclamação)”.

Subscrevemos integralmente os considerandos expendidos pela Exmª Juíza que proferiu a decisão instrutória e que acabámos de transcrever.

Senão vejamos.

I - Em primeiro lugar, lendo (e relendo) o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente, consta-se, sem margem para dúvidas, que em tal requerimento não está explicitado o valor correspondente ao “prejuízo patrimonial” sofrido pela assistente, seja ele qual for (incluindo, obviamente, o valor “consideravelmente elevado” invocado agora na motivação do recurso).

Ora, a nosso ver, essa falta de indicação, no requerimento para abertura da instrução, do concreto valor do prejuízo causado à assistente com a atuação dos arguidos, não pode ser suprida pelo Juiz de Instrução Criminal na fase da instrução.

Com efeito, o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente tem de constituir-se como uma verdadeira acusação, alternativa ao despacho de arquivamento do Ministério Público, não sendo admissível a narração dos factos por remissão para a queixa e/ou para o conjunto dos documentos juntos ao processo (como parece entender a recorrente).

É o que decorre, em nosso entender, do preceituado no artigo 287º, nº 2, do C. P. Penal, em conjugação com o disposto no artigo 283º, nº 3, al. b), do mesmo diploma legal.

II - Em segundo lugar, a recorrente alega, na motivação do recurso, que a atuação dos arguidos lhe causou um prejuízo quantificável em € 37.011,02.

Contudo, perante os próprios termos da alegação da recorrente, afigura-se-nos que esse montante não traduz, em bom rigor, o “prejuízo patrimonial” correspondente ao elemento objetivo do tipo do crime de burla qualificada, dizendo respeito, isso sim, a legítimos e atendíveis “danos”, a serem eventualmente ressarcidos pelos arguidos em sede de pedido de indemnização civil.

É que, esses “danos”, ou pelo menos alguns deles, reportam-se a montantes que a assistente deixou de receber por via contratual, ou a despesas efetuadas, etc. (note-se, por ser significativo do que acabámos de dizer, que a própria assistente chama, a tais invocados danos, “danos emergentes”, ou “perda de vantagens”, ou “encargos inerentes”, ou, mesmo, “danos morais”).

III - Em terceiro lugar, mesmo que procurássemos calcular qual possa ter sido o “prejuízo patrimonial” penalmente relevante, não existem nos autos elementos indiciários suficientes para, com fundamento, podermos concluir estarmos, in casu, perante um “valor elevado”, ou face a um “valor consideravelmente elevado” (cfr. o disposto no artigo 202º, als. a) e b), do Código Penal), ou seja, valores suscetíveis de qualificar o crime de burla (em conformidade com o estabelecido no artigo 218º, nºs 1 e 2, al. a), do mesmo diploma legal).

Neste ponto, e como bem escreve a Exmª Juíza na decisão revidenda, “na dúvida sobre tal valor, o Tribunal não o pode presumir, mas sempre se frisando que a escritura lhe atribui o valor de € 100,00 euros e, face à área de tal parcela – 1.250 m2 – e considerada a área total – 7.250 m2 – do prédio misto e valor tributável do mesmo – 17.710,00€ –, nunca a tal parcela poderia ser atribuído valor superior a 4.000 euros (mais próximos dos 3.000 euros, por corresponder a 5,8 da parcela total)”.

IV - Por último, cumpre apenas frisar que a própria assistente reconhece, na motivação do recurso, que, caso estejamos perante um crime de burla simples (como estamos, em nosso entender), cujo procedimento depende de queixa, o correspondente direito de queixa está caducado, pelo seu não exercício no prazo legalmente estabelecido.

Foi precisamente isso que a Exmª Juíza, e bem, decidiu, ao deixar consignado, na decisão recorrida, que “nunca os arguidos poderiam ser responsabilizados criminalmente por tal ilícito simples, por ausência da aludida condição de procedibilidade da ação penal”.

Em conclusão: nesta primeira vertente (existência de crime de burla qualificada), o recurso da assistente não merece provimento.

b) Do concurso efetivo de crimes.

Entende a assistente que a imputação do crime de burla qualificada deve ser feita em concurso efetivo com o crime de falsas declarações (crime este pelo qual os arguidos foram pronunciados).

Cabe decidir.

O conhecimento e a decisão da questão suscitada pela assistente (possibilidade da imputação do crime de burla qualificada em concurso efetivo com o crime de falsas declarações) estão, obviamente, prejudicados pela decisão da questão acima tratada.

Com efeito, não ocorrendo crime de burla qualificada, nem podendo os arguidos ser responsabilizados criminalmente por crime de burla simples (por ausência de apresentação tempestiva de queixa - condição de procedibilidade da ação penal por este último crime -), não podemos estar a apreciar a questão (meramente teórica, na presente situação) de determinar se é ou não possível a imputação do crime de burla em concurso efetivo com o crime de falsas declarações.

O conhecimento dessa questão é, pois, inútil no presente caso, estando prejudicado pela inexistência ou pela inoperância do crime de burla.

Porém, e a título de mero acrescento, sempre diremos que subscrevemos, nesta matéria, o que consta da decisão revidenda: “o artigo 348º-A do C.P. estatui um caso de concurso aparente de normas, ao dizer-se “(…) se pena mais grave não lhe couber por força de disposição legal”, o que seria aplicável no caso presente, em que o crime fim é mais gravemente punido que o crime meio. Assim, mesmo a verificarem-se preenchidas as normas do crime de burla simples ou qualificado, em tese (o que não ocorreu, pelas razões elencadas supra), nunca poderia ocorrer concurso de crimes efetivo e verdadeiro, devendo ser preterido o crime de falsas declarações, pelo crime de burla qualificada, sendo somente os arguidos criminalmente responsabilizados pelo segundo”.

Por outras palavras: face ao preceituado no artigo 348º-A, nº 1, in fine, do Código Penal, não poderia ocorrer, caso existisse ou fosse operante o crime de burla, concurso efetivo de crimes (entre o crime de burla qualificada e o crime de falsas declarações).

Assim, e também neste último segmento, o recurso da assistente não merece provimento.

Face a tudo o predito, o recurso da assistente é totalmente de improceder.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora decidem negar provimento ao recurso interposto pela assistente, confirmando totalmente a douta decisão instrutória.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 13 de abril de 2021

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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Edgar Gouveia Valente)