Os erros da decisão suscetíveis de retificação são os que respeitam à expressão material da vontade do julgador, evidenciados pelo contexto da decisão em que se inserem e não os erros que possam ter influído na formação dessa vontade.
(Sumário do Relator)
2. O requerimento foi indeferido com amparo, designadamente, na seguinte fundamentação:
“Salvo melhor opinião e discutida a disciplina jurídica aqui aplicável, entende-se que o pretendido pelos oponentes / requerentes não se enquadra na previsão do artigo 614.º, n.º 1, do C.P.C.
Da consulta dos autos, essencialmente do despacho proferido em Janeiro de 2019 (que antecede a decisão de deserção) e da advertência nele vertida, conclui-se que a decisão ora colocada em crise foi precisamente aquela que o julgador entendeu ser a adequada à tramitação em causa e ao estado dos autos, em consonância com a lei.
O que, na verdade, os oponentes/requerentes pretendem é modificar o sentido da decisão proferida, por não concordarem com a posição aí pugnada.
Todavia, este não é o meio legal próprio para alcançar tal fim.
Para além de que o poder jurisdicional do juiz de 1ª instância encontra-se esgotado.
Por conseguinte, deve ser indeferida a retificação requerida, por inexistência de lapso na decisão proferida em 30.09.2019 quanto à matéria da causa, proferida que esteja a sentença, como é o caso dos autos.”
3. Os Oponentes recorrem deste despacho e concluem assim a motivação do recurso:
“1. Os Recorrentes não se conformam, nem podem conformar com a decisão
proferida pelo Tribunal recorrido e que indeferiu o pedido de retificação da sentença proferida nos autos, tal como havia sido requerido pela ora Recorrente, sendo que tal despacho não se pode manter na ordem jurídica e que, contrariamente ao decidido, a sentença proferida nestes autos carece de ser reformada.
2. Tal como decorre do histórico destes autos, os Recorrentes foram oportunamente citados para os autos de execução e deduziram embargos, tendo sido criado o correspondente apenso.
3. Os demais executados embargaram também a execução, tendo igualmente sido criados os respetivos apensos autónomos entre si.
4. Nos apensos E, F, G e H foi proferido um despacho onde se ordenou a apensação de todos os embargos no apenso D, o que serve para demonstrar que até esse momento todos os embargos eram (e são) autónomos entre si, sem prejuízo da sua tramitação processual unitária.
5. Por requerimento de 10 de Janeiro de 2019 apresentado pelo Dr. (…), foi dado conhecimento aos autos da morte do opoente (…).
6. Em 16 de Janeiro de 2019 o Tribunal ordenou que fosse junto o assento de óbito do mencionado (…) e decretou igualmente a suspensão da instância até que se mostrasse notificada a decisão que considerasse habilitados os seus sucessores.
7. Tal assento de óbito foi oportunamente junto.
8. Em Setembro de 2019, por sentença proferida a 30 de Setembro de 2019, o Tribunal recorrido decidiu declarar extinta a instância por deserção, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 277.º, alínea c) e 281.º, nº. 1, ex vi artigo 732.º, nº. 2, do Código de Processo Civil.
9. Posteriormente, em 4 de Dezembro de 2019, os Recorrentes, apercebendo-se do lapso manifesto em que a sentença proferida a 30 de Setembro de 2019 incorreu, apresentaram um requerimento com a referência CITIUS nº. 34211669, nos termos do qual pediram ao Tribunal que retificasse a sentença proferida e sobretudo quanto aos seus efeitos.
10. Alegaram e demonstraram que as suas oposições à execução foram oportunamente apresentadas e que tinham autonomia face às demais, à exceção da tramitação processual unitária.
11. Após as oposições terem sido liminarmente admitidas, o Tribunal ordenou a notificação da Recorrida para, querendo, contestar, tendo sido apresentadas as competentes contestações a cada um dos embargos autónomos entre si.
12. O Tribunal recorrido procurou agendar datas para tentativa de conciliação, tendo marcado uma data, que ficou sem efeito por despacho de 16 de Janeiro de 2019, em virtude da morte do opoente (…).
13. Por tal despacho declarou-se ainda a suspensão da instância até que se mostrasse notificada a decisão que considerasse habilitados os sucessores do opoente que, entretanto, morreu.
14. Ora, tendo em conta que quem morreu foi, apenas, um dos opoentes, é ponto assente que a instância só podia ser suspensa relativamente a ele próprio e não relativamente aos demais opoentes, atenta a autonomia das suas oposições.
15. Consequentemente, não podia igualmente ter declarado deserta a instância relativamente a todos os demais opoentes por força da autonomia das oposições.
16. Nos termos do artigo 732.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, “se forem recebidos os embargos, o exequente é notificado para contestar dentro do prazo de vinte dias, seguindo-se, sem mais articulados, os termos do processo comum declarativo”.
17. Tal serve para demonstrar que foram praticados todos os atos processuais que a cada uma das partes competia, tendo estas ficado a aguardar que o Tribunal agendasse data para audiência prévia e posterior julgamento.
18. Decorre, portanto, que não foi por inércia das partes que o processo esteve parado por mais de seis meses, mas sim do Tribunal que não agendou, nem a audiência prévia, nem a audiência de discussão e julgamento para produção de prova, não tendo o Tribunal, sequer, apreciado “se a falta de impulso processual se ficou a dever à negligência das partes” e não valorou o “comportamento processual das partes, por forma a poder concluir se a falta de impulso resulta, efetivamente, da negligência destas”.
19. Os Recorrentes demonstraram claramente que o despacho de deserção da instância apenas podia dizer respeito ao processo de oposição à execução apresentada pelo Executado que veio a morrer na pendência dos autos.
20. Conforme demonstrado, o Tribunal apenas poderia ter dado como suspensa a instância relativamente ao executado opoente que, entretanto, morreu (…) e posteriormente deserta apenas relativamente à sua oposição.
21. Decorre das regras do processo civil que, em sede de processo executivo, as oposições à execução são todas autónomas umas das outras e se um executado apresentar oposição e os demais não apresentarem, a sua própria oposição não aproveita aos demais, conforme resulta expressamente das disposições conjugadas dos artigos 728.º, n.º 1 e 569.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil.
22. Deste modo, é ponto assente que o despacho proferido pelo Tribunal e que julgou deserta a instância está inquinado por erro material, na medida em que a deserção só poderia ter operado relativamente ao opoente que, entretanto, morreu e que motivou a suspensão da instância relativamente a ele.
23. Valha, inclusivamente, a seguinte analogia: se um dos opoentes à execução tivesse desistido da sua oposição, tal desistência do pedido apenas produziria efeitos quanto a si e não quanto aos demais opoentes, razão pela qual é manifesto que o Tribunal recorrido não podia ter declarado a instância deserta relativamente a todos os demais opoentes.
24. Este entendimento é, de resto, sufragado pelo despacho que foi proferido a fls. […] nos apensos E, F, G e H, onde se escreveu que “uma vez que a dedução de oposição à execução é equiparável ao articulado “Contestação”, não faz sentido existirem tantas oposições à execução, quanto aos executados que as deduzem. Deste modo, dê baixa deste apenso e incorpore no Apenso D toda a tramitação a ele respeitante, por forma a que as oposições à execução apresentadas formem apenas um único apenso, evitando-se decisões contraditórias, atos inúteis e contribuindo para a formação do caso julgado relativamente a todos os executados opoentes”.
25. Tal como demonstrado, esta apensação funcionou apenas em vista a uma tramitação processual unitária, sem que houvesse confusão entre os fundamentos de cada uma das oposições, autónomas entre si.
26. Deste modo, os Recorrentes não podem ser prejudicados nos seus direitos de defesa pelo facto de não ter havido impulso processual nuns embargos, e não no dos ora opoentes, aquando da morte de um dos executados/opoentes, por referência a outros embargos que não os dos ora opoentes.
27. Deste modo, a suspensão e deserção da instância apenas podiam referir-se se àquele executado e aos seus embargos e não a quaisquer outros executados e embargos.
28. O Tribunal entendeu, contudo, que não se verificava qualquer situação de erro manifesto na sentença proferida e por despacho de 17 de Fevereiro de 2020, confirmou a decisão de Setembro de 2019.
29. No entanto, fê-lo erradamente, porquanto os Recorrentes não tinham, por um lado, qualquer legitimidade para deduzir o incidente de habilitação de herdeiros de (…) e, por outro, os seus embargos [de …] nunca lhes aproveitariam.
30. Acresce que o Tribunal recorrido ignorou também o facto de a apensação num único processo apenas serve para uma mais célere tramitação processual.
31. Ou seja, o mesmo é dizer que se não tem havido uma apensação unitária, todos os apensos continuavam a ser autónomos entre si, caso em que nunca se verificaria uma situação de deserção relativamente aos demais opoentes.
32. É, portanto, ponto assente que a deserção não pode operar relativamente aos ora Recorrentes.
33. Por semelhante ordem de razões é ponto assente que despacho recorrido carece de ser removido da ordem jurídica e ordenado o prosseguimento dos autos relativamente aos ora opoentes, tudo com as consequências legais que daí são emergentes.
Termos em que e nos melhores de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, retificada a sentença, seguindo-se os ulteriores termos legais.”
Respondeu a Exequente por forma a defender a improcedência do recurso.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.
II. Objeto do recurso
Tendo em conta que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir se a decisão que julgou deserta instância é retificável por forma a não operar relativamente aos Recorrentes.
III. Fundamentação
1. Factos
Para além dos factos que resultam do relatório supra, importa ainda considerar o seguinte que corresponde ao teor do despacho retificando: “Por inércia das partes em promover os termos do presente processo, o mesmo encontra-se parado há mais de seis meses. Assim, nos termos do disposto nos artigos 277.º, al. c) e 281.º, n.º 1, ex vi 732.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, declaro extinta a instância, por deserção”.
2. Direito
A decisão recorrida indeferiu o requerimento de retificação do despacho que julgou deserta a instância por considerar, em essência, que o despacho expressou, sem erros materiais, a vontade (real) do julgador.
Os Recorrentes divergem argumentando, em resumo, que praticaram todos os atos processuais que lhe incumbiam, que aguardavam o agendamento de uma audiência prévia, que a oposição que deduziram é autónoma da oposição deduzida por (…), falecido na pendência da ação e que “é ponto assente que o despacho (…) que julgou deserta a instância está inquinado por erro material, na medida em que a deserção só poderia ter operado relativamente ao opoente que, entretanto, morreu e que motivou a suspensão da instância relativamente a ele”.
Evidencia esta sinopse de razões que elas não se opõem aos fundamentos do despacho recorrido, opõem-se ao despacho que declarou deserta a instância, o qual não é, nem foi, objeto de recurso, ou seja, os Recorrentes recorrem do despacho que indeferiu a retificação com argumentos que, a procederem, justificariam a alteração do despacho que julgou deserta a instância e esta constatação bastaria, a nosso ver, para julgar improcedente o recurso, uma vez que o recurso não vem interposto do despacho que julgou deserta a instância, mas do despacho que indeferiu a retificação e se os Recorrentes não indicam as razões pelas quais discordam deste, não há motivos para o alterar.
Ainda assim, o despacho recorrido parece-nos certo.
Em regra, proferida a sentença (ou o despacho) fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, ou seja, depois de proferida a decisão o juiz não tem o poder de a revogar, a decisão só pode ser modificada por via de recurso, nos casos em que a lei o admite (artigos 613.º, nºs 1 e 3, 627.º, n.º 1 e 629.º do CPC).
A extinção do poder jurisdicional quanto à matéria da causa subsequente à prolação da decisão têm, no entanto limitações e, entre elas, a faculdade do juiz que proferiu a sentença retificar erros materiais e suprir nulidades (artigo 613.º, n.os 1 e 2, aplicável aos acórdãos da Relação ex vi do artigo 666.º, n.º 1, do CPC).
Institutos que não se confundem com os recursos, elementar é dizê-lo, destinando-se a suprir erros de construção da sentença e não erros de julgamento, como é próprio dos recursos; o seu campo de aplicação é, pois, limitado aos fundamentos que a lei especial e taxativamente prevê e situando-se o erro fora do âmbito destas previsões obsta ao seu conhecimento o princípio geral da extinção do poder jurisdicional de que a retificação de erros materiais e a supressão das nulidades constituem exceções.
Esta aceção tem uma consequência; suscitando a parte a nulidade da sentença ou erros materiais inerentes à sua elaboração impõe-se, como ato prévio ao seu conhecimento, verificar se as alegações são suscetíveis de tal qualificação antes de se entrar no seu conhecimento propriamente dito e isto independentemente do bem ou mal fundado das razões aduzidas, pois que, emitir este juízo de valor, já significa conhecer o que supõe a montante resolvida a admissibilidade legal do conhecimento.
Seguindo este método, importa, quanto aos erros materiais, recordar o disposto no artigo 614.º, n.º 1, do CPC, que diz assim:
“Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento das partes ou por iniciativa do juiz.”
Interessa-nos o segmento das inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pois é para ele que aponta o fundamento da retificação requerida e, assim, precisar, desde logo, que estas inexatidões devidas a omissões ou lapsos manifestos, suscetíveis de retificação, surgem associadas aos erros de escrita ou de cálculo, ou seja, a erros para cuja sindicabilidade basta a própria decisão; se o apontado erro da decisão não decorre da desconformidade entre os pressupostos nela consignados e o resultado que expressou e decorre, v. g. de uma errada valoração dos pressupostos em que assentou, o erro é de julgamento e não um erro material.
Nas sempre claras palavras de A. Reis: “Importa distinguir cuidadosamente o erro material do erro de julgamento. O erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. O juiz queria escrever «absolvo» e por lapso, inconsideração, distração, escreveu precisamente o contrário: condeno. O erro de julgamento é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer; mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz, logo a seguir se convença de que errou, não pode socorrer-se do artigo 667.º para emendar o erro”[1] [Código de Processo Civil, anotado, 1952, vol. 5º, pág. 130].
Também assim Rodrigues Bastos, “os erros ou inexatidões a que se refere o preceito são apenas aqueles que respeitam à expressão material da vontade do julgador, e não os erros que possam ter influído na formação daquela vontade”[2] e de forma uniforme a jurisprudência [cfr. v.g. Acs S.T.J. de 20/1/77, no BMJ. Nº 263º, pág. 210; de 19/3/81, no BMJ, nº 305, pág. 230; de 3/4/91, na A.J., ano 18º, pág. 11; de 2/3/94, no BMJ, nº 435, pág. 710].
Assentamos, pois, que os erros da decisão suscetíveis de retificação são os que respeitam à expressão material da vontade do julgador e não os erros que possam ter influído na formação desta vontade [v g uma errada valoração dos pressupostos em que assentou] e é com este argumento que tornamos ao caso dos autos para dizer o que foi dito em 1ª instância e nos parece claro, os erros apontados pelo Recorrentes à decisão que julgou deserta a instância são erros que se reportam à formação da vontade do julgador (a instância não devia ser julgada deserta quanto aos Recorrentes uma vez que a oposição que deduziram à execução é autónima daquela que foi deduzida pelo executado que veio a falecer na pendência da causa, dando causa à suspensão da instância) e não erros expressão dessa vontade, o que significa que a sua correção envolve uma alteração do juízo de declarar extinta a instância e não uma mera retificação da expressão de tal juízo, como é próprio do instrumento processual impulsionado pelos Recorrentes.
O erro apontado ao despacho que julgou deserta a instância é um erro de julgamento e não um erro material, razão pela qual não é retificável por via de reclamação.
Havendo sido este o sentido da decisão recorrida, resta confirmá-la.
Improcede o recurso.
3. Custas
Vencidos no recurso, incumbe aos Recorrente o pagamento das custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).
Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)
IV. Dispositivo.
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Évora, 15/4/2021
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
__________________________________________________
[1] O artigo 614.º do CPC vigente corresponde, com alterações irrelevantes para o caso, ao artigo 667.º do CPC de 39.
[2] Notas ao Código de Processo Civil, 2001, vol. 3º, pág. 193.