REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
NÃO RECONHECIMENTO DE DIVÓRCIO
Sumário

1. Para considerar que os efeitos patrimoniais de um divórcio possam estender-se e produzir efeitos em Portugal, em face da nossa Ordem Jurídica, por via do reconhecimento de uma sentença do Tribunal do Reino Unido que os definiu, não podemos deixar de ter previamente como assente a existência de um divórcio que pode ser invocado e que é eficaz em Portugal.

2. Sendo invocado pela Requerente que as partes se encontram divorciadas por ter sido confirmado o seu divórcio pelo Tribunal Sharia dos Emirados Árabes Unidos, ao abrigo da Lei Islâmica, a eficácia de tal divórcio em Portugal está dependente da confirmação ou revisão de tal decisão em Portugal, de acordo com o disposto no art.º 978.º n.º 1 do CPC, dependendo ainda do seu averbamento no registo civil, nos termos dos art.º 1.º, 2º e 7.º do C. Registo Civil, onde se constata que está registado o casamento das partes mas não o seu divórcio.

3. O entendimento e afirmação feita pelo Tribunal do Reino Unido no âmbito da sentença cujo reconhecimento é peticionado, no sentido de que as partes estão divorciadas, não é suscetível de se impor ao estado português, por via da previsão normativa do art.º 21.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, na medida em que tal só seria possível se tivesse sido aquele tribunal a decretar o divórcio entre as partes, por à data ser um tribunal de um Estado Membro da União Europeia, o que não aconteceu.

Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC)

Texto Integral

Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1. Relatório


Sareh …vem instaurar a presente ação especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira contra Abdul …, pedindo que seja confirmada a sentença proferida a 12 de outubro de 2016 na Divisão de Família do High Court of Justice, composta pela fundamentação e decisão constante dos documentos que junta, que decidiu sobre a partilha dos bens do casal, de forma a que a mesma possa produzir os seus efeitos em Portugal.
Alega, em síntese, que tal sentença reconhece o direito da Requerente a 50% dos bens do seu marido, que identifica, entre os quais se incluem dois bens imóveis sitos em Portugal, tendo transitado em julgado. Refere que a sentença provem de tribunal competente por a Requerente ser residente habitual em Inglaterra, tendo-lhe sido reconhecido o direito de agir judicialmente a coberto da parte III do Matrimonial and Family Procedings act de 1984, não se tratando de questão de competência exclusiva dos Tribunais Portugueses, não se verificando também a exceção de litispendência ou caso julgado. O Requerido foi citado no processo que correu termos, tendo sido assegurado o contraditório, verificando-se todos os requisitos que permitem a revisão da sentença requerida.
Junta documentos e as respetivas traduções.
Procedeu-se à citação do Requerido que veio apresentar contestação, opondo-se ao pedido formulado e pugnando pela sua improcedência.
Alega, em síntese, que a sentença cuja revisão é pedida foi proferida ao arrepio dos princípios basilares do Estado de Direito. Refere que não existe qualquer divórcio entre as partes confirmado no Reino Unido ou em Portugal, não obstante tenha sido decretado em julho de 2015, nos Emirados Árabes Unidos, o divórcio religioso entre as partes – Talaq – de acordo com a Sharia law. Informa que em 4 de março de 2015 intentou em Portugal ação de divórcio contra aqui Requerente, que se encontra suspensa. Mais refere que as partes, ambos com a nacionalidade portuguesa, contraíram casamento religioso islâmico em 5 de junho de 1969, sob o regime da separação de bens e que a propositura da ação em Inglaterra visou defraudar a lei comunitária e portuguesa, provocando artificialmente a competência internacional do tribunal inglês, violando a ordem pública internacional portuguesa. Invoca o privilégio da nacionalidade que tem de aplicar-se ao Requerido, de nacionalidade portuguesa, sempre lhe garantindo a lei portuguesa um resultado mais favorável, considerando excessivo o pagamento de uma pensão de alimentos de cerca de € 40.000,00 mensais, que nunca seria determinada num tribunal português, concluindo que a sentença em questão viola o princípio da proporcionalidade, previsto na Constituição Portuguesa. Refere ainda que não foi assegurado o seu direito de defesa e participação num processo equitativo e que verifica uma situação de litispendência, atenta a ação de divórcio que corre termos em Portugal.
A Requerente veio responder à oposição apresentada concluindo como no requerimento inicial, pelo reconhecimento da sentença em questão.
Foi solicitado à Requerente que viesse juntar aos autos o documento comprovativo do divórcio aludido no art.º 11.º da resposta apresentada e ao Requerido que viesse juntar aos autos a certidão do processo de divórcio que corre termos em Portugal.
A Requerente vem a 6 de novembro de 2018 juntar aos autos dois documentos supervenientes, relativos a uma Order proferida pelo Tribunal Inglês, com vista a clarificar dúvidas que possam existir quanto ao divórcio das partes, sobre os quais o Requerido veio pronunciar-se.
Foi determinado o cumprimento do disposto no art.º 982.º n.º 1 do CPC.
A Digna Magistrada do Ministério Público emitiu parecer no sentido do Requerido juntar aos autos o documento que decretou o divórcio das partes ao abrigo da lei Islâmica.
O Requerido veio apresentar as suas alegações concluindo no sentido de dever ser proferida decisão de não confirmação de qualquer decisão de partilha de bens, invocando em síntese os argumentos que avançou na oposição deduzida.
A Requerente veio também alegar, concluindo pela procedência do pedido formulado, invocando a verificação de todos os pressupostos legais que o admitem, juntando ainda um Parecer de um Advogado Inglês.
Foi determinada a junção do documento com a decisão do divórcio entre as partes, conforme sugerido pelo Ministério Público, o que veio a ocorrer a 22 de maio de 2019 a fls. 945, com tradução que já consta da certidão do processo de divórcio a correr termos no Tribunal Português.
O Ministério Público veio apresentar o seu parecer, no sentido de estarem reunidos os requisitos legais que admitem que seja concedida a revisão da sentença requerida.
O processo foi enviado aos vistos.
A 29 de outubro de 2019 foi determinada a notificação das partes para virem indicar o regime de bens do casamento e lei do Kuwait vigente à data do mesmo, tendo cada uma vindo pronunciar-se e tendo sido junta aos autos a legislação do Kuwait traduzida.
Determinada nova vista dos autos em razão dos documentos juntos, o Ministério Público veio manter a posição anteriormente tomada.
A 13 de outubro de 2020 foi determinada a abertura de nova vista do processo aos Exm.ºs Juízes Desembargadores adjuntos, por alteração dos mesmos.
A 29 de outubro de 2020 o processo foi concluso à anterior Exm.ª Juiz Desembargadora relatora que veio a cessar funções por Jubilação, tendo os autos sido redistribuídos à atual relatora a 23 de março de 2021.
2. Saneamento
O Tribunal é absolutamente competente.
O processo não enferma de nulidades principais.
As partes dispõem de personalidade e capacidade judiciárias.
São legítimas.
Estão devidamente representadas em juízo.
Não há outras nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
3. Questões a decidir
Importa averiguar e decidir se estão verificados os requisitos legais para a revisão e confirmação da sentença proferida a 12 de outubro de 2016 na Divisão de Família do High Court of Justice do Reino Unido, no processo identificado que correu termos entre as partes.
4. Matéria de Facto
Os factos assentes com relevância para a decisão resultam do acordo das partes e dos documentos juntos aos autos a que se fará menção específica a respeito de cada um, por referência às folhas do processo físico em que se encontram ou à data em que foram apresentados, para a sua melhor identificação no processo eletrónico, esclarecendo-se que nas transcrições que são feitas de excertos das decisões proferidas pelo Tribunal do Reino Unido se atendeu às traduções certificadas das mesmas que foram apresentadas:
a) A Requerente Sareh …nasceu a 17/06/1945 em Ching Tao, República Popular da China e adquiriu nacionalidade portuguesa, conforme registo lavrado a 5 de julho de 1993 – Assento de nascimento junto a fls. 639.
b) A Requerente e o Requerido Abdul …contraíram casamento religioso islâmico em 5 de junho de 1969 em Kobe, Japão, – Assento de casamento junto a fls. 641.
c) Em 06/01/2015 a Requerente instaurou contra o Requerido, no Reino Unido, uma ação judicial que correu termos junto da Divisão de Família do High Court of Justice, sob o número de processo ZC15D00024, no âmbito da qual, inicialmente, pediu que fosse decretado o divórcio entre as partes- doc. n.º 1 e 2 juntos com o requerimento inicial.
d) Em 27/02/2015 o Requerido contestou a jurisdição do Tribunal Inglês para a ação de divórcio – doc. n.º 1 junto com o requerimento inicial.
e) Em 13 de março de 2015 a Requerente apresentou um pedido de alimentos na pendência da ação que intentou no Tribunal Inglês- ponto 5 do doc. 1 junto com o requerimento inicial
f) Em 04/03/2015 o Requerido intentou junto do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Família e Menores de Cascais, ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, contra a Requerente, que corre termos junto do J2, sob o n.º ..63/15.9T8CSC – certidão do processo junta a fls. 484 ss.
g) Neste processo de divórcio intentado em Portugal, a Requerente veio opor-se à jurisdição do Tribunal Português, invocando o anterior pedido de divórcio feito no Tribunal Inglês.
h) A 27/07/2016 foi proferido despacho neste processo de divórcio que corre termos em Portugal, que decidiu: “Uma vez que se encontra pendente processo de divórcio no Reino Unido, intentado em primeiro lugar (sendo que aliás o mesmo já foi decretado nos Emirados Árabes Unidos!!!!), que se sobrepõe à questão da litispendência, pois que a questão da competência foi também suscitada naquele outro processo, ao abrigo do disposto nos art. 92.º, 276.º n.º 1 alínea c), 272.º.º n.º 1, 275.º, 276.º n.º 1 alínea c), todos do C.P.Civil, declara-se suspenso o presente processo, até que seja proferida decisão final no processo que corre termos no Reino Unido.”. Esta suspensão da instância tem vindo a ser prorrogadadoc. fls. 781 ss.
i) Em 08/07/2015, a Requerente foi notificada, na pessoa do seu advogado, de que o divórcio Sharia entre as partes havia sido concedido por um Juiz do Tribunal de Sharjah Sharia, Emirados Árabes Unidos - doc. de fls. 698 junto aos autos pela Requerente em 08/03/2018.
j) Com tal notificação, foi enviada à Requerente cópia da decisão que confirmou o divórcio entre as partes, na qual consta que em 20/03/2015 o aqui Requerido divorciou-se dela ao pronunciar: estás “Taliq” divorciada, tendo o tribunal a 23/03/2015 decidido confirmar o divórcio - doc. de fls. 703 dos autos junto pela Requerente em 08/03/2018.
k) Na audiência intercalar realizada a 30/07/2015 no âmbito do processo referido em c), o juiz afirmou que as partes já estavam divorciadas, não tendo a mulher contestado o Talaq, e convidou a Requerente a pedir autorização ao abrigo da Parte III do Matrimonial and Family Proceedings Act 1984 – ponto 7 do doc. 1 junto com o requerimento inicial.
l) Na sentença que veio a ser proferida a final consta do seu ponto 6 (traduzido): “(…) não obstante o facto de o marido ter iniciado uma acção de divórcio em Portugal, o casamento foi agora eficazmente dissolvido pelo processo Talaq, nos EUA a seu pedido.” Doc. 1 junto com o requerimento inicial.
m) Na audiência de 30/07/2015 o juiz determinou que fossem pagos alimentos provisórios à Requerente mulher, o que o Requerido não cumpriu– ponto 8 do doc. 1 junto com o requerimento inicial.
n) Nessa sequência do convite do tribunal aludido em k), em 31/07/2015 a Requerente apresentou um pedido de assistência/reparação financeira que prosseguiu ao abrigo da Parte III do Matrimonial and Family Proceedings Act de 1984, formulando pedido de assistência financeira após um divórcio estrangeiro, sem prejuízo do pedido de divórcio apresentado em Inglaterra – ponto 7 doc. 1 junto com o requerimento inicial.
o) A Requerente veio alterar o seu pedido em janeiro de 2016 apresentando um pedido de assistência financeira após um divórcio estrangeiro, alterando o pedido que havia feito, ao abrigo da Parte III com base nos 12 meses de residência habitual no Reino Unido – ponto 7 do doc. junto com o requerimento inicial.
p) Em 26/07/2016 foi decidido em tal processo, que a não ser que o Requerido marido até 09/08/2016 preste informação detalhada sobre o seu património, como já anteriormente determinado e pague os 12 meses em atraso a título de alimentos provisórios ou requeira a alteração dessa prestação, em face do incumprimento do estipulado (tradução): “(1) o requerido ficará impedido de intervir na audiência sobre a assistência acessória marcada para 3 de Outubro de 2016, embora tal não o impeça de estar presente na mesma como testemunha.” Doc. 1 junto com o requerimento inicial.
q) No âmbito deste processo que correu termos no Tribunal do Reino Unido, foi em 12/10/2016 proferida sentença final composta por Judgment e pela Final Order, nos temos dos docs. 1 e 2 juntos com o requerimento inicial a que se tem vindo a aludir, que se dão como inteiramente reproduzidos.
r) Em tal processo foi considerado que a Requerente demonstrou ser residente habitual em Inglaterra há mais de um ano, pelo menos, desde 1 de janeiro de 2015, razão pela qual lhe foi reconhecido o direito de agir judicialmente a coberto da Parte III do Matrimonial and Family Proceedings Act de 1984 – doc. 1 junto com o requerimento inicial.
s) Consta do ponto 44 da sentença (tradução): “Especificamente, em relação à submissão do marido a esta jurisdição, esta não é uma acção de Divórcio; esta é a acção patrimonial na sequência de um divórcio estrangeiro e o marido interveio nesta jurisdição e submeteu-se a ela relativamente a este requerimento. Nos termos do parágrafo 7 do despacho do Mmo. Juiz Mostyn J de 31 de Julho de 2015, o requerimento foi alterado no sentido de o submeter à jurisdição da residência habitual da mulher em Inglaterra desde 1 de Janeiro de 2015 a 1 de Janeiro de 2016. Esta base jurisdicional nunca foi contestada pelo marido, e não vejo com que fundamento poderia ter sido”. Doc. 1 junto com o requerimento inicial
t) Consta do ponto 45 da sentença (tradução): (…) “No dia 31 de Julho de 2015, o Mmo. Juiz Mostyn autorizou a mulher a apresentar um requerimento ao abrigo da Parte III. O marido foi notificado dessa audiência, mas não compareceu, nem instruiu outros para comparecerem em sua representação (havia dispensado os seus advogados apenas quatro dias antes). Decisivamente:
a. O Marido não requereu o cancelamento desta autorização;
b. O Marido não requereu que lhe fossem aplicadas sanções por falta de comparência.
c. O Marido não contestou a competência do Tribunal para decidir sobre os requerimentos apresentados ao abrigo da Parte III.
d. O Marido não recorreu desta decisão”. Doc. 1 junto com o requerimento inicial
u) No ponto 47 da sentença consta (tradução): “Por fim, relativamente à oportunidade dada ao marido para ser ouvido neste processo, este Tribunal tem sido muito indulgente na tentativa de lhe conferir essa oportunidade. Tolerou que escrevesse directamente ao Tribunal. Emitiu despachos e deu indicações repetidamente no sentido da sua participação plena. Em resposta, recebeu declarações nas quais o marido, sempre que tal lhe era conveniente, desmentia factos enunciados pela mulher, sobre matérias que eram especificamente do seu conhecimento e controlo, e ao invés de fazer divulgações integrais e detalhadas que, compreensivelmente, o tribunal precisava ou de comparecer para testemunhar (em pessoa ou por videoconferência) como seria o certo, limitou-se a fazer afirmações selectivas em benefício próprio destinadas a impedir o tribunal de chegar à verdade dos factos.”. Doc. 1 junto com o requerimento inicial.
v) No ponto 48 da sentença consta (tradução): “Nas circunstâncias aqui descritas, considero que os bens sob o controlo do marido têm vindo a gerar rendimento suficiente para que este possa cumprir integralmente a atribuição provisória decidida pelo Mmo. Juiz Mostyn J, bem como a decisão LSPO. A totalidade do montante em atraso ao abrigo das duas decisões deve ser paga pelo marido dos seus próprios recursos, e adicionada ao montante global fixo a pagar à mulher na conclusão deste processo. Considero adequado que o marido contribua para as despesas da mulher com a sua quota parte dos bens pela LSPO em atraso, tendo em conta a sua conduta neste processo, conforme explicado acima.”. Doc. 1 junto com o requerimento inicial.
w) Da decisão ou “Order” proferida a 12/10/2016 em audiência privada – Formulário Geral de Decisão – Assistência Acessória, consta no início (tradução): (…) dado que o requerido não compareceu, mas:
a. foi notificado desta audiência final;
b. foi informado em despachos anteriores de que, não obstante a sua não comparência (em pessoa ou por representante), a sentença final seria proferida;
c. fez declarações a respeito do conteúdo e da forma dos documentos nos autos; e
d. correspondeu-se com o tribunal e com os advogados da requerente sobre a suspensão deste processo.” Doc. 2 junto com o requerimento inicial.
x) Na alínea b) das conclusões que integram a decisão consta (tradução): “apesar do requerido ter contestado de forma repetida a competência do Tribunal para apreciar um pedido de divórcio, em momento nenhum contestou a competência do Tribunal para apreciar o requerimento apresentado ao abrigo da Parte III da Lei 1984, sendo que a requerente tem tido residência habitual em Inglaterra, pelo menos entre 1 de janeiro de 2015 a 1 de janeiro de 2016. Além do mais, o requerido apresentou provas da sua situação financeira e da situação financeira da requerente no processo.” Doc. 2 junto com o requerimento inicial.
y) Na determinação final consta:
- Transmissão da titularidade da propriedade e todos os direitos inerentes à casa de morada de família, sita em Londres, para o nome da Requerente;
- Transmissão para a Requerente da titularidade da propriedade e todos os direitos inerentes a dois imóveis sitos em Portugal:
a. Rua do …, …7B, Monte Estoril, 2765-427 Estoril;  
b. Apartamento…, Avenida…, …Parque, Lado Poente, 2765-187 Estoril.
- a condenação no pagamento pelo Requerido à Requerente do valor global de £ 61.559.339,00 (sessenta e um milhões, quinhentos e cinquenta e nove mil trezentas e trinta e nove libras), até 1 de dezembro de 2016;
- Enquanto não for efetuado o pagamento do montante global determinado, o Requerido continuará a pagar uma pensão de alimentos, com o valor anual de £ 430.900,00 (quatrocentos e trinta mil e novecentas libras), pago em prestações mensais que cessa: por morte de alguma das partes; por novo casamento da Requerente; por nova decisão; ou pelo pagamento do montante global fixo determinado. Doc. 2 junto com o requerimento inicial.
z) O Requerido apresentou recurso da decisão proferida, que não foi admitido pelo Court of Appeal, Civil Division, por extemporâneo e manifesta falta de fundamento, em decisão deste tribunal de 20/03/2017. Docs. 3 e 4 juntos com o requerimento inicial.
aa) Em 19/10/2018, com referência à anterior decisão a que se alude na alínea k), foi proferida no Tribunal Superior de Justiça do Reino Unido, secção de Família, uma clarificação da mesma, em cujos considerandos consta (tradução):
Para efeitos de execução da decisão, o tribunal declara que:
a) Relativamente ao parágrafo 10 da decisão do Juiz Mostyn de 30.07.15, na qual se determina que o requerido faça pagamentos periódicos à requerente (…).
b) Relativamente ao divórcio Talaq pronunciado pelo requerido em 20.03.15 e confirmado pelo Tribunal da Sharia em Sharjah em 23.03.15:
i. segundo as conclusões do Juiz Mostyn na sua decisão de 30.07.15, o divórcio Talaq deve ser considerado pelos Tribunais de Inglaterra e do País de Gales como um processo de divórcio estrangeiro válido; e
ii. nessa mesma base, o Juiz Nicholas Cusworth concluiu na audiência final em 12.10.16 que, embora o marido tenha dado entrada de uma ação de divórcio em Portugal, o casamento foi, efetivamente, dissolvido pelo processo Talaq nos Emirados Árabes Unidos a pedido do requerido.” – Doc. de fls. 849, junto aos autos pela Requerida de 6/11/2018.
bb) A Requerente e o Requerido vieram viver para Portugal em 1994. (acordo das partes).
5. Razões de Direito
Dispõe o art.º 978.º n.º 1 do CPC: “Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro ou por árbitros no estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.
De acordo com o disposto no art.º 980.º do CPC, são os seguintes os requisitos necessários para à confirmação:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção da litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.”
O processo especial de revisão de sentença estrangeira destina-se a verificar se a decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro ou entidade equiparada para este efeito, está em condições de produzir os seus efeitos em Portugal.
Tal passa pela avaliação dos pressupostos que o legislador elenca nas várias alíneas do art.º 980.º do CPC, só podendo ser impugnado o pedido com fundamento na falta de qualquer dos requisitos previstos neste artigo, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas al. a), c) e g) do art.º 696.º, conforme dispõe o art.º 983.º do CPC.
Estamos neste caso, por opção do legislador, perante um sistema de revisão formal ou delibação, que abstrai dos fundamentos da decisão e se centra nas condições de regularidade em que a mesma foi proferida – neste sentido, e apenas a título de exemplo, vd Acórdão do STJ de 12 de julho de 2011 no proc. 987/10.5YRLSB.S1 in www.dgsi.pt
A sentença de 12 de outubro de 2016 cuja revisão a Requerente requer tem diversas particularidades, do que se destaca a circunstância de ter sido proferida no âmbito de uma ação judicial que correu termos na Divisão de Família do High Court of Justice, no Reino Unido, que começou por ter como objeto um pedido de divórcio ali apresentado pela Requerente, a que depois acresceu um pedido de alimentos provisórios, para depois ter sido alterado tal pedido, a sugestão e com a autorização do Tribunal, passando a correr procedimento ao abrigo da Parte III do Matrimonial and Family Proceedings Act de 1984  e a estar em causa um pedido de assistência financeira, configurando uma ação patrimonial na sequência de divórcio estrangeiro.
Tal processo, que começou por ser uma ação de divórcio a pedido da Requerente, na qual o Requerido contestou a jurisdição do Tribunal do Reino Unido, tendo entretanto também dado entrada de um processo de divórcio em Portugal, como resulta dos factos provados, veio a sofrer uma reviravolta, com a circunstância de, entretanto, aquele Tribunal do Reino Unido ter tomado conhecimento de que o divórcio Sharia entre as partes havia sido concedido e confirmado por um Juiz do Tribunal de Sharjah Sharia, Emirados Árabes Unidos, em 23/03/2015 a pedido do Requerido, que em 20/03/2015 se divorciou da Requerente ao pronunciar: estás “Taliq” divorciada.
O juiz do Tribunal do Reino Unido veio a considerar que, em face daqueles factos levados ao processo, as partes já estavam divorciadas, não tendo a mulher contestado o Talaq, referindo-se na sentença proferida que “(…) não obstante o facto de o marido ter iniciado uma acção de divórcio em Portugal, o casamento foi agora eficazmente dissolvido pelo processo Talaq, nos EUA a seu pedido.”.
Nessa mesma sentença diz-se que o processo prosseguiu ao abrigo da Parte III do Matrimonial and Family Proceedings Act de 1984, tendo a Requerente formulado um pedido de assistência financeira após um divórcio estrangeiro, sem prejuízo do pedido de divórcio apresentado em Inglaterra – ponto 7 do doc. 1 junto com o requerimento inicial.
A verdade é que não existe neste momento qualquer pedido de divórcio pendente de apreciação no Tribunal do Reino Unido, nem qualquer sentença proferida por aquele tribunal a decretar o divórcio entre as partes, por ter sido considerado o divórcio Talaq confirmado nos Emirados Árabes Unidos, questão que constituiu um pressuposto da alteração do pedido apresentado pela Requerente no âmbito do processo de divórcio que inicialmente instaurou, da sua apreciação e da decisão que sobre ele veio a recair e que veio a culminar na prolação da sentença cuja revisão e confirmação aqui é peticionada.
Por outro lado, constata-se que continua pendente, ainda que suspensa, a ação de divórcio intentada pelo Requerido em Portugal e que, quer de acordo com o assento de nascimento da Requerente junto aos autos, quer de acordo com o assento de casamento das partes também junto, as mesmas continuam a ter o estado civil de casadas, não tendo sido averbado ou transcrito qualquer divórcio no registo civil.
Como é pacífico, quer o casamento, quer o divórcio, enquanto atos que modificam o estado civil de uma pessoa, estão sujeitos a registo.
Basta atentar-se no art.º 7.º do C. Registo Civil que sob a epígrafe “decisões dos tribunais estrangeiros”, estabelece:
“1 - As decisões dos tribunais estrangeiros relativas ao estado ou à capacidade civil dos Portugueses, depois de revistas e confirmadas, são diretamente registadas por meio de averbamento aos assentos a que respeitam.
2 - As decisões dos tribunais estrangeiros, referentes ao estado ou à capacidade civil dos estrangeiros, estão nos mesmos termos sujeitas a registo, lavrado por averbamento ou por assento, consoante constem ou não do registo civil português os assentos a que devam ser averbadas.
3 - As decisões dos tribunais eclesiásticos, respeitantes à nulidade do casamento católico ou à dispensa do casamento rato e não consumado, depois de revistas e confirmadas, são averbadas aos respetivos assentos.”
A questão que não pode deixar de pôr-se previamente é então a de saber se ainda assim podemos considerar como válido e eficaz o divórcio Talaq confirmado pelo Tribunal Sharia dos Emirados Árabes Unidos, enquanto questão prévia ou incidental relativamente à decisão que veio a ser tomada pelo Tribunal do Reino Unido, que incidiu sobre o pedido de assistência financeira na sequência de divórcio estrangeiro, estabelecendo os efeitos patrimoniais do divórcio entre as partes, cujo revisão e reconhecimento é aqui pedido.
Para considerar os efeitos patrimoniais de um divórcio que possam estender-se e produzir efeitos em Portugal, em face da à nossa Ordem Jurídica, por via do reconhecimento de uma sentença do Tribunal do Reino Unido que os definiu, não podemos deixar de ter previamente como assente a existência de um divórcio que pode ser invocado em Portugal, que aqui é válido e que aqui pode produzir os seus efeitos.
Tal como estipula o art.º 978.º n.º 1 do CPC, sem prejuízo do que é regulado nos tratados, convenções, regulamentos comunitários ou leis especiais, uma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro não tem eficácia em Portugal, sem estar previamente revista e confirmada.
No caso em presença, uma vez que aqui é peticionado o reconhecimento de uma sentença proferida por um Tribunal do Reino Unido sobre direitos patrimoniais do ex-cônjuge, decorrentes de divórcio estrangeiro, tem de concluir-se pela existência de um divórcio entre as partes válido na nossa ordem jurídica, que é seu pressuposto e que para poder produzir efeitos em Portugal tem de estar registado nos termos do estabelecido nos art.º 1.º, 2.º e 7.º do C. Registo Civil.
Uma vez que não está registado em Portugal nenhum divórcio entre as partes, estando pelo contrário registado o seu casamento, nem resulta que qualquer sentença a decretar o divórcio tenha sido reconhecida no nosso país, através do processo especial previsto no art.º 978.º ss. do CPC, há que avaliar se podemos ter como assente que as partes estão divorciadas, como pressuposto da validade e eficácia de uma decisão relativa aos efeitos patrimoniais do divórcio.
Desde já se adianta que, a nosso ver, a resposta é negativa, no entendimento de que sem estar revista e confirmada em Portugal uma sentença de divórcio que dissolveu o casamento entre as partes e sem qualquer averbamento do divórcio no registo civil, não pode proceder-se à revisão da sentença que estabeleceu os efeitos patrimoniais decorrentes do mesmo.
A respeito da transcrição do divórcio no registo civil, como condição da produção dos seus efeitos em Portugal, diz-nos o Acórdão do TRE de 08/11/2012 no proc. 75/11.7YREVR in www.dgsi.pt ainda que com referência a uma situação um pouco diferente da que aqui se discute: “(…) transcrição sem a qual não se pode proceder à respectiva revisão pois constitui condição sine qua non da produção dos seus efeitos em Portugal (cfr. artºs 1º nº 1 al. d), 2º, 6º e 7º do C.R.C.) (…) Ora, para que no registo nacional constasse o divórcio do requerido da sua primeira mulher, necessário seria que a respectiva sentença tivesse sido previamente revista e confirmada em Portugal, a fim de ser averbado ao seu assento de casamento e só posteriormente averbado no seu assento de nascimento, conforme resulta dos artºs 69º nº 1 al. a) e 70º al. b) e nº 2 do C.R.C. Só após o averbamento do divórcio ao assento de casamento do requerido com a R… poderá a requerente transcrever o seu casamento com o requerido (só aí a ordem interna reconhece o estado de divorciado deste, estado civil em que contraiu casamento com a requerente e não de viúvo) e, posteriormente, (uma vez transcrito) rever a sentença de divórcio que dissolveu o seu casamento com o requerido.”
Por um lado, não temos o registo do divórcio das partes no nosso país e, por outro lado, não podemos ter como válido e eficaz no nosso ordenamento jurídico o divórcio Talaq confirmado nos Emirados Árabes Unidos, tal como fez o Tribunal do Reino Unido, por não ser possível fazê-lo neste processo, que visa a revisão de outra decisão subsequente ao divórcio.
Facilmente se constata a existência de um impedimento legal à sua verificação nestes autos. Na verdade, embora seja invocado pela Requerente que as partes se encontram divorciadas por ter sido confirmado o seu divórcio pelo Tribunal Sharia dos Emirados Árabes Unidos em 23 de março de 2015, não há notícia que qualquer uma delas tenha requerido a confirmação ou revisão de tal decisão em Portugal, de modo a que a mesma pudesse aqui produzir efeitos, de acordo com o disposto no mencionado art.º 978.º n.º 1 do CPC.
Esta norma é expressa e perentória, ao estabelecer que, fora dos casos aí previstos, desconhecendo-se qualquer convenção internacional vinculativa para Portugal e para os Emirados Árabes Unidos que possa regular esta questão, nenhuma decisão sobre direitos privados pode ter eficácia em Portugal sem estar revista e confirmada através do processo especial de revisão de sentença estrangeira regulado nos art.º 978.º ss. procedimento que é o próprio para o efeito.
Não é sequer pacífico na nossa jurisprudência, que a confirmação do divórcio feita pelo Tribunal Sharia dos EAU viesse a ser reconhecida em Portugal, conforme se verifica pela consulta do Acórdão do TRL de 19/11/2019 no proc. 1378/18.YRLSB-7 cujo sumário se transcreve:
“I. Em regra, nos processos especiais de revisão de sentença estrangeira não importa proferir decisões de mérito mas de mera conformidade dos requisitos formais, face ao artigo 980º do CPC.
II. Importará limitar os limites à aplicação do direito estrangeiro.
III. A ordem pública internacional do Estado Português traduz-se exactamente numa exceção à aceitação de aplicação das regras materiais do direito estrangeiro, a qual terá de ser entendida restritivamente.
IV. Ao abrigo da Lei Islâmica no Bangladesh, o divórcio com carácter irrevogável, baseado na declaração unilateral por parte do marido, da palavra talaq , por três vezes, perante o notário, não se contém no âmbito da alínea e) do artigo 980º do CPC.
V. Com efeito, por não ter sido dada a oportunidade à mulher de intervir e de manifestar oposição à dissolução do casamento, não se podem considerar garantidos os princípios da igualdade de armas e do contraditório, exigidos por aquela disposição legal.
VI. Nessa conformidade, a ordem pública internacional do Estado português obsta ao reconhecimento de tal divórcio.”
Resta então saber se pode conferir-se eficácia direta à posição tomada pelo juiz no processo que correu termos no Tribunal do Reino Unido que considerou as partes divorciadas, conferindo validade ao divórcio confirmado nos Emirados Árabes Unidos ou, por outras palavras, se por via do estabelecido nos Regulamentos Europeus, o Tribunal Português está obrigado a respeitar e acatar a posição do Tribunal do Reino Unido sobre o divórcio das partes.
Alega a Requerente que não pode deixar de se levar em conta que o Tribunal do Reino Unido, no processo que correu termos e onde foi proferida a sentença cujo reconhecimento aqui requer, considerou as partes divorciadas, o que deve ser reconhecido no ordenamento jurídico português sem recurso a qualquer formalidade e sem necessidade de reconhecimento, nos termos do art.º 21.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27 de novembro de 2003.
Quando foi proferida a sentença cuja revisão aqui é requerida o Reino Unido era um Estado Membro de pleno direito da União Europeia, tal como Portugal, vigorando entre os Estados Membros o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000.
No considerando (8) do Regulamento (CE) 2201/2003 refere-se:
“Quanto às decisões de divórcio, de separação ou de anulação do casamento, o presente regulamento apenas deve ser aplicável à dissolução do vínculo matrimonial e não deve abranger questões como as causas do divórcio, os efeitos patrimoniais do casamento ou outras eventuais medidas acessórias.”
É o art.º 21.º que regula sobre o reconhecimento das decisões, estabelecendo:
1. As decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros, sem quaisquer formalidades.
2. Em particular, e sem prejuízo do disposto no n.o 3, não é exigível nenhuma formalidade para a actualização dos registos do estado civil de um Estado-Membro com base numa decisão de divórcio, separação ou anulação do casamento, proferida noutro Estado-Membro e da qual já não caiba recurso, segundo a legislação desse Estado-Membro.
3. Sem prejuízo do disposto na secção 4 do presente capítulo, qualquer parte interessada pode requerer, nos termos dos procedimentos previstos na secção 2 do presente capítulo, o reconhecimento ou o não- -reconhecimento da decisão.
A competência territorial dos tribunais indicados na lista comunicada por cada Estado-Membro à Comissão nos termos do artigo 68.o é determinada pela lei do Estado-Membro em que é apresentado o pedido de reconhecimento ou de não-reconhecimento.
4. Se o reconhecimento de uma decisão for invocado a título incidental num tribunal de um Estado-Membro, este é competente para o apreciar.”
Este art.º 21.º do Regulamento (CE) vem estabelecer o reconhecimento automático de uma sentença de divórcio proferida pelo tribunal de um estado membro, por outro estado membro, sem necessidade de outros formalismos ou procedimentos.
Como realça o Acórdão do TRC de 15/04/2008 no proc. 225-C/1998.C1, in www.dgsi.ptO reconhecimento automático das decisões positivas de divórcio previsto nos Regulamentos (CE) nºs 1347/2000 e 2201/2003, refere-se em exclusivo à dissolução do vínculo matrimonial. “
Acontece que, no caso, nem a sentença cuja revisão é aqui requerida é uma sentença de divórcio, nem tão pouco o Tribunal do Reino Unido decretou qualquer divórcio entre as partes, antes teve como prejudicado o pedido de divórcio que ali foi apresentado pela Requerente, no entendimento de que as partes já estavam divorciadas por via da decisão do Tribunal dos Emirados Árabes Unidos. Na própria sentença proferida é salientado que não se trata de uma ação de divórcio.
O entendimento e afirmação feita pelo Tribunal do Reino Unido no âmbito da sentença cujo reconhecimento é agora peticionado, no sentido de que as partes estão divorciadas, não é suscetível de se impor ao estado português, por via da previsão normativa do aludido art.º 21.º do Regulamento (CE), na medida em que tal só seria possível se tivesse sido aquele tribunal, por ser um tribunal de um Estado Membro, a decretar o divórcio entre as partes, o que não aconteceu, para além de que a própria jurisdição do Tribunal do Reino Unido para conhecer do pedido de divórcio ali inicialmente apresentado pela Requerente foi contestada pelo Requerido e não veio a ser resolvido, precisamente por força de ali se ter entendido que as partes já estavam divorciadas.
Em face do exposto, considera-se que à luz da nossa ordem jurídica, não podemos concluir pela existência de um qualquer divórcio entre as partes válido e eficaz em Portugal, pressuposto da decisão cuja revisão é aqui pedida, que fixa efeitos patrimoniais decorrentes do divórcio.
Pretende ainda a Recorrente que pode haver partilha de bens do casal sem que tenha havido divórcio prévio, o que também é previsto e possível na nossa ordem jurídica portuguesa através dos institutos da separação judicial de pessoas e bens ou separação judicial de bens. Se esta afirmação é verdadeira, o que é certo também é que não pode ver-se a sentença cuja revisão é pedida como uma mera sentença de partilha dos bens comuns do casal.
Pelo contrário, avaliando o teor da sentença proferida constatamos que a decisão cuja revisão é pedida não configura uma mera sentença de partilha dos bens comuns do casal, nos termos em que a mesma é delineada pelo nosso legislador, nem a ela é simplesmente equiparável, partilha que na nossa ordem jurídica é feita, na falta de acordo, no âmbito do processo de inventário.
A decisão em causa reporta-se a um pedido de assistência/compensação financeira que prosseguiu ao abrigo da Parte III do Matrimonial and Family Proceedings Act de 1984, na sequência do pedido de assistência financeira após um divórcio estrangeiro formulado pela Requerente, onde até inicialmente foi fixada uma prestação de alimentos provisórios.
Da interpretação que fazemos da sentença cuja revisão é pedida, está em causa uma atribuição patrimonial a um dos cônjuges a suportar pelo outro, com o objetivo de compensar a disparidade da situação económica e de vida de cada um, criada com o fim do casamento, encontrando fundamento numa ideia de equilíbrio e de equidade que não deixa de avaliar o período do casamento e a forma como o mesmo foi vivido por cada um dos cônjuges do ponto de vista pessoal, familiar e patrimonial, estabelecendo uma compensação para o cônjuge necessitado que a reclama.
Sem uma total correspondência com os procedimentos previstos na nossa ordem jurídica, o processo em causa mais se aproxima de uma ação de alimentos conjugada com um pedido de ressarcimento ou compensação, ainda que com contornos um pouco diferentes dos procedimentos previstos pelo legislador português, designadamente na previsão dos art.º 2009.º n.º 1 al. a) e 1792.º do C.Civil,  tendo o Tribunal do Reino Unido, com vista à decisão, procurado fazer a avaliação do património adquirido na constância do casamento, sem qualificar os mesmos como bens comuns ou próprios de alguma das partes, para a partir daí determinar o valor de 50% do mesmo que entendeu ser devido à Requerente pelo Requerido, recorrendo ao regime jurídico substantivo que entendeu aplicável ao divórcio, às respetivas causas e consequências.
Como resultou provado, na sentença proferida consta “Nas circunstâncias aqui descritas, considero que os bens sob o controlo do marido têm vindo a gerar rendimento suficiente para que este possa cumprir integralmente a atribuição provisória decidida pelo Mmo. Juiz Mostyn J, bem como a decisão LSPO. A totalidade do montante em atraso ao abrigo das duas decisões deve ser paga pelo marido dos seus próprios recursos, e adicionada ao montante global fixo a pagar à mulher na conclusão deste processo. Considero adequado que o marido contribua para as despesas da mulher com a sua quota parte dos bens pela LSPO em atraso, tendo em conta a sua conduta neste processo, conforme explicado acima.”. Na determinação final da sentença consta a decisão de:
- Transmissão da titularidade da propriedade e todos os direitos inerentes à casa de morada de família, sita em Londres, para o nome da Requerente;
- Transmissão para a Requerente da titularidade da propriedade e todos os direitos inerentes a dois imóveis sitos em Portugal:
a. Rua do…, … Nº...B, Monte Estoril, 2765-427 Estoril; 
b. Apartamento …3, Avenida…, Parque, Lado Poente, 2765-187 Estoril.
- a condenação no pagamento pelo Requerido à Requerente do valor global de £ 61.559.339,00 (sessenta e um milhões, quinhentos e cinquenta e nove mil trezentas e trinta e nove libras), até 1 de dezembro de 2016;
- Enquanto não for efetuado o pagamento do montante global determinado, o Requerido continuará a pagar uma pensão de alimentos, com o valor anual de £ 430.900,00 (quatrocentos e trinta mil e novecentas libras), pago em prestações mensais que cessa: por morte de alguma das partes; por novo casamento da Requerente; por nova decisão; ou pelo pagamento do montante global fixo determinado.”
Isto para podermos concluir que não pode dizer-se que está em causa uma partilha de bens que pode prescindir da existência de um divórcio, como defende a Requerente nas suas alegações.
Finalmente importa referir, ainda que de forma breve pela simplicidade da questão que também não foi muito desenvolvida pela Requerente, que não se vê como considerar que há um abuso de direito por parte do Requerido, na modalidade de venire contra factum proprium ao invocar a inexistência de divórcio confirmado no Reino Unido ou em Portugal, quando foi ele que promoveu o divórcio entre as partes ao abrigo da Lei Islâmica.
O instituto do abuso de direito tem a sua previsão no art.º 334.º do C.Civil que estabelece que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito. Está em causa o exercício anormal de um direito em termos reprovados pela lei, ou seja, é respeitada a estrutura formal do direito, mas violada a sua afetação substancial, funcional ou teleológica.
Não é qualquer conduta que é suscetível de integrar o conceito de abuso de direito, já que a norma em questão impõe que o titular do direito exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Dizem-nos a este propósito, com grande propriedade, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, pág. 217, em anotação a esta norma: «Exige-se, no entanto, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem pois fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (Teoria Geral das Obrigações, pág. 63). O Prof. Vaz Serra refere-se, igualmente, à “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” (Abuso do direito, no Bol. N.º 85, pág. 253).»
O Acórdão do STJ de 15/12/2002, in www.dgsi.pt refere a este respeito: “a teoria do abuso de direito serve, como se sabe, de válvula de segurança para casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica contra a rígida estruturação, geral e abstracta, de normas legais, obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado.
Pressuposto do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, é a criação de uma situação objetiva de confiança- uma conduta de alguém que lhe irá ser vinculativa no futuro, apresentando-se o exercício do direito como contraditório em face de conduta anterior.
Refere Baptista Machado, in Obra Dispersa, vol. I, pág. 415 que o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico. É sempre necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis.”
Feito este breve enquadramento e passando ao caso concreto, no sentido de avaliar, em face dos factos que resultaram provados, se podemos falar de abuso de direito por parte do Requerido ao vir suscitar a inexistência de divórcio entre as partes confirmado no Reino Unido ou em Portugal, já se vê que a resposta tem de ser negativa.
Não obstante o Requerido ter promovido a confirmação do divórcio das partes ao abrigo da Lei Islâmica, constata-se que o mesmo já antes disso havia dado entrada nos Tribunais Portugueses de uma ação de divórcio contra a Requerida. Aliás, tal processo só não veio a prosseguir os seus devidos termos, por ter sido suspenso, a pedido da própria Requerida, com fundamento no pedido de divórcio que por si havia também sido anteriormente apresentado no Reino Unido.
Não se vê como dizer que o Requerido criou na Requerente uma expetativa de que não iria suscitar a questão, desde logo em face da ação de divórcio instaurada em Portugal, de que nunca desistiu.
Além do mais, se avaliarmos a conduta da Requerente, verificamos também que a mesma podia ter agido, de mais de uma forma, de modo a que pudesse ter um divórcio eficaz em Portugal, antes tendo optado não só por não diligenciar por essa situação, mas até por criar obstáculo à mesma.
A Requerida, em primeiro lugar, veio invocar um motivo de impedimento do prosseguimento normal do processo de divórcio em Portugal, cuja decisão, naturalmente estaria apta a aqui produzir os seus efeitos; em segundo lugar, não veio requerer o prosseguimento de tal ação, mesmo quando o Tribunal do Reino Unido entendeu que face ao divórcio confirmado pelos EAU, dava como assente o divórcio entre as partes e não iria por isso pronunciar-se sobre o pedido de divórcio ali apresentado pela Requerente que em face disso o alterou; em terceiro lugar, nunca promoveu em Portugal a revisão e confirmação do divórcio decretado ao abrigo da Lei Islâmica, para que dessa forma o mesmo pudesse produzir os seus efeitos em Portugal.
Não há por isso qualquer abuso de direito por parte do Requerido, sendo certo, além do mais, que mesmo que não tivesse sido por ele suscitada esta questão sempre a mesma teria de ser conhecida pelo tribunal.
Resta concluir pela improcedência do pedido, por não existir qualquer divórcio das partes confirmado em Portugal ou que aqui possa produzir os seus efeitos, estando inclusivamente aqui registado o seu casamento, não podendo deixar de entender-se que tal constitui um pressuposto necessário ao reconhecimento e à produção de efeitos no nosso país da decisão do Tribunal do Reino Unido que estabeleceu entre as partes os efeitos patrimoniais na sequência de divórcio.
Tendo em conta o disposto no art.º 608.º n.º 2 do CPC, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo Requerido, com respeito ao cumprimento pela sentença cuja revisão é peticionada, dos restantes requisitos previstos nas várias alíneas do art.º 982.º do CPC.
6. Decisão:
Em face do exposto, julga-se improcedente a presente ação intentada pela Requerente, não se reconhecendo nem se confirmando a sentença proferida pelo Tribunal do Reino Unido que decidiu sobre os efeitos patrimoniais de divórcio estrangeiro.
Custas pela Requerente.
Valor da causa: € 30.000,01.
Notifique.
*


Lisboa, 29 de abril de 2021


Inês Moura (relatora)
Laurinda Gemas (1ª adjunta)
Gabriela Cunha Rodrigues (2ª adjunta)

(assinado eletronicamente)