COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
ATOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
CULPA EXCLUSIVA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
REGIME APLICÁVEL
Sumário


I. A matéria de facto só pode ser alterada pelo STJ quando se verifica algum dos fundamentos previstos na parte final do n.º 3 do art.º 674.º do CPC.
II. É definitivo o juízo formulado pelo Tribunal da Relação, no âmbito do disposto no art.º 662.º. n.º 1, do CPC, sobre a prova sujeita à livre apreciação.
III. A responsabilidade do devedor abrange os actos dos seus auxiliares, respondendo como se os actos destes fossem praticados por ele próprio, nos termos do art.º 800.º, n.º 1, do Código Civil.
IV. No contrato de prestação de serviços, o obrigado não está sujeito à autoridade e direcção do outro contraente.
V. Provada a culpa exclusiva do devedor na ocorrência do evento lesivo que determinou o incumprimento, não tem aplicação o regime do art.º 570.º, n.º 1, do Código Civil.
VI. O art.º 494.º do Código Civil não é aplicável no domínio da responsabilidade contratual.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:



I. Relatório


Sogestão – Administração e Gerência, SA., intentou, em 22/12/2009, a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra AeroVip – Companhia de Transportes e Serviços Aéreos, SA., actualmente denominada Sevenair, S. A., (1.ª ré) e AA (2.º réu), melhor identificados nos autos, pedindo:

1. Que a 1.ª ré seja condenada a:

a) Ressarcir a autora do montante despendido com a hangaragem forçada da sua aeronave nas instalações desta, na quantia de 4.500,00 €;

b) Restituir os 3.000,00 € entregues pela A. por conta de adiantamento de despesas;

2. Que os RR sejam condenados solidariamente a:

c) Reembolsar a autora do valor despendido com a formação do 2.º réu nas instalações do fabricante da aeronove em ....., França, no valor de 20.000,00 €;

d) Indemnizar a autora do montante incorrido com a reparação da turbina danificada por acção do 2.º réu, no valor de 152.341,00 €;

e) Pagar à autora a indemnização pela privação do uso da sua aeronave, no montante de 14.277,11 €;

f) Os juros de mora vincendos sobre as referidas quantias a partir da citação até integral pagamento.

Para tanto, alegou, em resumo, que celebrou com a 1.ª ré um contrato de prestação de serviços, nos termos do qual esta se obrigou a prestar-lhe serviços de piloto profissional de avião, através da cedência do 2.º réu, e que este causou uma avaria na aeronave monomotor de que é proprietária, causando-lhe os prejuízos que agora peticiona.

Os réus contestaram separadamente, por excepção, invocando a incompetência territorial, e por impugnação, concluindo pela improcedência da acção.

A 1.ª ré deduziu reconvenção, pedindo a condenação da autora reconvinda no pagamento de 28.800,00 €, acrescida de juros moratórios a partir da notificação desta, correspondente ao custo que teve de pagar ao 2.º réu nos termos do mesmo contrato e que a reconvinda se obrigou pagar.

Os réus requereram a intervenção principal provocada de BB e da Companhia de Seguros La Reunion Aérienne, como associados de ambos, o que foi deferido.


Ambos os chamados contestaram.

O chamado BB pugnou pela procedência da acção e pela sua absolvição “de todos os pedidos contra o mesmo formulados”.

           

Foram apresentadas réplicas e tréplicas.

Na audiência prévia realizada, foram julgadas improcedente a excepção da incompetência territorial e procedente a excepção da ilegitimidade passiva da chamada Seguradora, a qual foi absolvida da instância. Foi proferido despacho saneador, bem como foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas de prova, sem reclamações.           

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença, em 15/7/2019, onde se decidiu:

1. Condenar a ré Aerovip – Companhia de Transportes e Serviços Aéreos, S.A. a pagar à autora a quantia de € 103.591,88, acrescida de juros, contados da citação até efectivo e integral pagamento, a título de reparação da aeronave.

2. Condenar a ré a pagar à autora 68% da quantia que se venha a apurar em sede de liquidação de sentença, respeitante ao dano de privação do uso.

3. Condenar a ré Aerovip a pagar à autora a quantia de € 12.087,68, respeitante ao despendido com a formação do piloto, funcionário da ré, acrescida de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento.

4. Absolver a ré Aerovip do restante contra si peticionado.

5. Condenar a autora a pagar á ré Aerovip a quantia de € 6.866,65, subtraída da quantia já entregue de € 3.000,00, a título de prestação contratual acordada, sendo a quantia de € 3.866,65, acrescida de juros desde a notificação da reconvenção, tal qual consta do pedido.

6. Absolver os réus AA e BB do pedido.

7. Condenar a autora e a ré Aerovip nas custas do processo, na proporção do respectivo decaimento.


Inconformadas com o assim decidido, interpuseram recurso de apelação a autora/reconvinda e a ré/reconvinte.

A primeira pugnou pela alteração da matéria de facto e pela consequente condenação  integral no pedido e pela sua absolvição do pedido reconvencional.

A segunda também impugnou a matéria de facto e, feita a alteração, sustenta que deve ser absolvida do pedido ou, subsidiariamente, pela sua condenação em percentagem não superior a 10%.

O Tribunal da Relação de ....., por acórdão de 22/10/2020, por maioria (com um voto de vencido do 2.º Adjunto) deliberou julgar a apelação parcialmente procedente e revogar a sentença impugnada, “condenando, apenas e em consequência, a Ré/reconvinte Aero Vip- Companhia de Transportes e Serviços Aéreos, S.A. (actualmente, designada Sevenair, S.A.) a pagar à Autora/reconvinda Sogestão – Administração e Gerência, S.A., as quantias de €152.341,00 e €4.500,00, a que acresce a importância eventualmente liquidada em execução de sentença, pela privação do uso da aeronave, acrescidas de juros legais, a contar da citação e até integral pagamento, mantendo-se a parte restante da sentença impugnada”.

Ainda irresignada, a 1.ª ré Sevenair interpôs recurso de revista e apresentou as correspondentes alegações com as seguintes conclusões (omitindo-se aqui a referência à dupla conforme e à revista excepcional, também interposta a título subsidiário):

            “…

D) Apesar da falta de poderes do Supremo Tribunal de Justiça para sindicar novamente a fixação dos factos materiais da causa, não lhe é vedado fazer diferente interpretação dos mesmos, aplicando o direito aos factos em consonância com essa interpretação distinta;

E) A decisão da Relação denota completo alheamento relativamente à dinâmica com que se sucederam os actos causadores dos danos reclamados, e bem assim, total dificuldade de compreensão sobre o modo como, na vida real, os processos psicológicos internos determinam e condicionam a actuação humana;

F) Essas arduidades traduzem-se na inalteração da resposta dada à alínea aa) dos factos provados, à qual devia ter sido acrescentado que o 2º Réu tinha a convicção de que BB era qualificado no tipo TBM, pois foi demonstrado um conjunto de factos e indícios que levariam um homem médio colocado no lugar do 2º Réu, a ficar convicto dessa circunstância, mesmo sem ter visto qualquer prova documental;

G) As dificuldades assinaladas são ainda mais notórias na fundamentação de manutenção da resposta dada quanto ao facto provado cc), sendo produzidas afirmações totalmente desprovidas de lógicas e de fundamento técnico ou científico;

H) É absolutamente infundada a afirmação de que a introdução de dados no GPS é comum a todos os pilotos, porque a Relação parte do pressuposto de que todas aeronaves são iguais ou semelhantes entre si, o que não é o caso, sendo necessário ter formação específica – qualificação no tipo – para saber operar com cada aeronave em concreto;

I) Questão diferente, mas igualmente confundida pelo Tribunal “a quo”, é o momento em que a introdução dos dados no GPS é realizada, o qual não é aleatório (ou no dizer do Acordão “…no taxear ou antes deste…”), e se dúvidas houvesse, estão a demonstrá-lo os presentes autos, estando provado que foi a distracção causada pela exigência de BB de que queria introduzir esses dados durante a fase de arranque do motor que provocou a distração do 2º Réu, e não durante o taxear, como é habitual e recomendado;

J) Estes e outros raciocínios erradamente expendidos é que podem explicar o obscuro e indevido afastamento da imputação de responsabilidades à Recorrida, decisão que deve ser revogada e proceder-se a uma correcta imputação de responsabilidades;

K) Tendo em conta o acervo probatório dos autos, exigia-se que a Relação de ..... tivesse tido um melhor entendimento relativamente à matéria do facto provado gg), não sendo de concluir que houve uma mera «solicitação» do 3º Réu ao 2º Réu para o «ajudar» a introduzir os dados no GPS;

L) Correctamente ponderados o depoimento do 2º Réu e de CC sobre o perfil de BB, impunha-se concluir que este, na sua qualidade de «patrão», terá dado ordens inequívocas para introduzir imediatamente os dados no GPS;

M) Por outro lado, não tem aderência à realidade asserção de que a «…Ré Aero Vip e o seu auxiliar, o réu AA, não estavam, em termos jurídicos, sujeito à autoridade e direcção da Sogestão…», pois naquele concreto momento, naquele concreto avião, mostra-nos a experiência da vida real que o 2º Réu não terá «parado para pensar» que, no plano jurídico, provavelmente, não tinha de obedecer a ordens ou «solicitações» (mais assertivas) de BB, nem lhe era exigível tal conduta;

N) O 2º Réu não tem formação jurídica, não é advogado, e menos ainda juiz e por conseguinte, nesse momento «pensou» como o piloto que é, habituado toda uma vida a obedecer a ordens e instruções, e a levar até ao fim com espírito de «missão» os voos;

O) O quadro mental do piloto sentado naquele cockpit – o 2º Réu –não lhe permitiu ter o discernimento que a Relação de ..... artificialmente exige em «termos jurídicos»;

P) É errada a asserção de que o 2º Réu sabia que BB não estava habilitado a dar ordens, por não estar qualificado no tipo TBM, pois todos os indícios, já supra indicados, apontavam nesse sentido, de entre eles, o certificado de seguro da aeronave dos autos emitido pela companhia de seguros La Reunion Aerienne, e do qual consta que aquele tem mais de 1.000 horas de voo e é «qualificado no tipo», nenhuma prova tendo sido produzida de que o 2º Réu sabia do contrário, nem Relação indica algum elemento probatório capaz de sustentar tão inusitada conclusão

Q) É igualmente errada a asserção que considera que o facto de o 2º Réu ser o comandante da aeronave “…legitimava a rejeição, liminar, de toda e qualquer “interferência” nos comandos da aeronave”;

R) Mesmo que o 2º Réu tivesse tido a possibilidade de «rejeitar liminarmente» a interferência de BB – e não teve - pela exacta razão de esta ter tido lugar durante a fase de “arranque e estabilização da turbina”, sempre o resultado danoso se teria produzido, porque estando em causa operações que exigem concentração total e que duram apenas alguns segundos, uma distração de alguns segundos é o suficiente para “queimar” ou “saltar” alguma etapa, com o inevitável sobreaquecimento da turbina;

S) O 2º Réu não tinha o controlo das operações durante a fase de arranque do motor, pois a definição de «controlo» tem subjacente a ideia de domínio dos actos, e como pressuposto a possibilidade de executar determinada actividade do modo mais conveniente e minucioso, e não é compatível com a existência de interferências, interrupções, intromissões ou ingerências na realização de determinada actividade;

T) Se tais interferências não são desejadas pelo executante da actividade, mas este não tem o poder de as evitar, isso significa inexoravelmente que não tem o controlo dessa actividade, não tem o domínio total dos actos que pratica;

U) O 3º Réu causou uma interferência acentuada durante a fase de arranque do motor da aeronave, que não permitiu ao 2º Réu controlar, dominar, as operações da aeronave do modo mais adequado e como sempre faz;

V) A realidade dos factos demonstrada em julgamento não permite ter quaisquer dúvidas que o 2º Réu, materialmente, não teve possibilidade de controlar a operação de arranque do motor, pelo que se impõe concluir que o Tribunal “a quo” confunde a responsabilidade funcional do Comandante com a responsabilidade material do 2º Réu;

W) Aliás, tendo passado a dar-se por assente na alínea rr. dos factos provados que é necessário a verificação posterior pelo checklist do procedimento de arranque realizado, o facto de existir apenas um checklist que se encontrava na posse do 3º Réu retira qualquer responsabilidade ao 2º Réu pela não confirmação dos referidos procedimentos;

X) A perturbação de BB constitui causa directa, única e própria à produção do resultado danoso, sendo a única que integra o respectivo nexo de causalidade adequado, pelo que as consequências daí resultantes só a ele podem ser imputadas;

Y) Assim, não se vislumbra fundamento atendível para a repartição de responsabilidades pelo resultado danoso, e menos ainda que esta deva pender, com maior agravamento, para o lado da Recorrente;

Z) Mas ainda que assim não se entenda, sem conceder, essa divisão deve atribuir a maior parte dessa responsabilidade à Recorrida, e uma solução justa e equitativa nunca poderia imputar à Recorrente mais de 10% da responsabilidade ou, quando menos, inverter a grandeza da proporção de responsabilidades propugnada no próprio voto de vencido, no limite e sempre sem conceder quanto ao alegado supra, com aplicação apropriada do critério da equidade previsto no artigo 570º, n.º 1, do Código Civil;

AA) É que, tal como se salienta na sentença e no voto de vencido do aresto em crise, o réu BB tinha um dever acrescido de não interferir nas operações de arranque do motor da aeronave, fase que ele próprio caracterizou de «altamente sensível»;

BB) Esse dever superior resulta de várias circunstâncias que o Tribunal “a quo” apreendeu, mas não logrou valorar adequadamente em sede da atribuição da responsabilidade pelo dano.

CC) Ao dever acrescido de BB corresponde uma responsabilidade acrescida da Recorrida;

DD) Doutro passo, a Recorrente nunca auferiu qualquer remuneração na vigência do contrato celebrado com a Recorrida, despendeu com pagamentos ao 2º Réu a quantia de 36.000,00 €, pelo que a decisão que agrava, agora, a sua responsabilidade e a condena a pagar a quantia de cerca de 157.000€, ainda acrescida dos danos correspondentes à privação do uso da aeronave mostra-se acentuadamente desequilibrada e injusta e advoga uma grave distorção no comércio jurídico, com grave prejuízo para a mesma;

EE) O aresto em crise não julgou de acordo com critérios de bom senso, razoabilidade, justiça natural, justa medida das coisas, igualdade, oportunidade e conveniência, revelando elevada insensibilidade e desconsideração pelas circunstâncias do caso concreto;

FF) Ao decidir como fez, o Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 570º, n.º 1, do CC que deveria ter sido aplicado no sentido de excluir a responsabilidade da Recorrente ou, no limite e sem conceder, atribuindo uma mais substancial quota-parte de responsabilidade à Recorrida, não condenando a Recorrente a mais de 10% dos danos, ou por força das já referidas circunstâncias do caso sub iudice, invertendo, maxime, a proporção de 75%/25% defendida no voto de vencido;

GG) O Acordão recorrido violou, ainda, o disposto no artigo 494º do Código Civil, que deveria ter sido aplicado e interpretado no sentido de fixar a indemnização a pagar à Recorrida em montante inferior ao dos danos, ponderado o grau de culpabilidade do 2º Réu, a situação económica da Recorrente com referência ao benefício económico retirado do contrato com aquela celebrado, e as demais circunstâncias do caso concreto;


Termos em que, com os mais de direito que doutamente serão supridos por V/ Exas.:

i) Deve o Acordão da Relação de ..... ser revogado e substituído por outro que absolva a ora Recorrente dos pedidos formulados pela Recorrida, e condene a Recorrida a pagar à ora Recorrente a quantia de 6.866,65 €, deduzida da quantia de 3.000,00 € por aquela entregue a título de adiantamento.

Quando assim não se entenda, sem conceder,

ii) Deve o referido aresto ser revogado e substituído por outro que, por aplicação do regime da culpa do lesado previsto no artigo 570º do CC, e por razões de equidade e de justiça material do caso concreto, condene a ora Recorrente a pagar à Recorrida não mais do que a proporção de 10% dos pedidos formulados pela Autora, ou no limite e sem conceder, que inverta a proporção de 75%/25% defendida no voto de vencido, sempre sem prejuízo da condenação da Recorrida a pagar à ora Recorrente a quantia de 6.866,65 €, deduzida da quantia de 3.000,00 € por aquela entregue a título de adiantamento.

Decidindo como se requer, farão V. Exas. a costumada Justiça!.”


A autora contra-alegou pugnando, para além da inadmissibilidade da revista normal e excepcional, esta interposta subsidiariamente, pela confirmação do acórdão recorrido.

O recurso foi admitido como de revista normal, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo actual Relator que decidiu a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, suscitada pela recorrida.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.

Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões que importa dirimir consistem em saber:

1. Se pode/deve ser modificada a matéria de facto dada como provada por erro na apreciação da prova;

2. Se deve ser excluída a responsabilidade da recorrente ou, sendo responsável, qual a sua quota de culpa na produção do evento lesivo.


II. Fundamentação

1. De facto

No acórdão recorrido, após reapreciação da matéria de facto impugnada, foram dados como provados os seguintes factos (indicando-se aqui a negrito os que foram alterados pela Relação):

a. A Autora Sogestão – Administração e Gerência, S.A., é proprietária de uma aeronave monomotor turbo prof. TBM 700C2, com a matrícula G-MCMC;

b. A ré AeroVip – Companhia de Transportes e Serviços Aéreos, S.A., é uma sociedade comercial anónima que desenvolve a sua actividade de escola de pilotagem, serviços e transportes aéreos e tem ao seu serviço pilotos comerciais de aviões;

c. O réu AA é funcionário da ré AeroVip, desempenhando funções de piloto comercial, sendo detentor da licença do INAC CPL(A) P-3252;

d. A autora Sogestão e a ré AeroVip celebraram um contrato de prestação de serviços, com data de 20 de Janeiro de 2009, através do qual esta se obrigou a prestar àquela serviços de piloto profissional de avião, a serem prestados pelo funcionário da ré AeroVip, AA, uma vez que este se encontrava habilitado para comandar a aeronave em questão;

e. Antes da assinatura deste contrato, a ré AeroVip propôs a prestação de serviços por dois pilotos profissionais, solução que não foi aceite pela autora Sogestão;

f. O contrato acima referido foi assinado em Abril de 2009;

g. Para desempenho dos serviços contratados, a ré AeroVip obrigou-se a exercer a sua actividade com cuidado e a tratar com zelo o avião e todos os materiais e equipamentos que lhe fossem entregues pela autora Sogestão, utilizando todos os recursos da sua experiência e saber; as partes acordaram que os serviços de pilotagem seriam prestados pelo réu AA;

h. Para desempenho dos serviços prestados, a ré AeroVip obrigou-se, ainda, a prestar os seguintes serviços: a) pilotagem da aeronave monomotor turbo prof. TBM 700C, em voos nacionais e no estrangeiro; b) coordenar as operações de voo, proceder à análise das viagens solicitadas, assegurando todo o planeamento operacional; c) preparar voos de instrumentos e assegurar as condições de aeronavegabilidade; d) assegurar e coordenar transportes do aeroporto para o destino; e) assegurar o bom cumprimento do programa de manutenção ou outras rotinas necessárias à aeronavegabilidade da aeronave nas datas apropriadas ou em função das datas de caducidade constantes do manual de manutenção da aeronave e sua demais documentação; f) manter actualizados, no avião, todos os manuais necessários da JEPPSEN e das diversas cartas digitais que integram os instrumentos de navegação do avião; g) representar a autora Sogestão junto dos organismos oficiais, nomeadamente o Instituto Nacional de Aviação Civil, no que ao avião diz respeito; h) manter actualizados e organizados todos os documentos e assuntos do avião e respectivas viagens a fazer ou efectuadas;

i. A título de remuneração pelos serviços prestados pela ré AeroVip, numa base de aproximadamente 80 horas de voo por ano, as partes acordaram que a autora Sogestão  pagaria € 2.000,00 mensais, acrescidos de IVA em vigor, nos primeiros 8 dias do mês seguinte ao da prestação dos serviços;

j. Aquando da celebração do contrato de prestação de serviços, a autora Sogestão entregou à ré AeroVip a quantia de € 3.000,00, a título de adiantamento por conta de despesas;

k. As partes acordaram que os serviços de pilotagem seriam prestados pelo piloto da ré AeroVip, o réu AA, com o qual contratou, por escrito, em Março de 2009, por causa do acordo que havia celebrado com a autora Sogestão;

l. As partes acordaram que o réu AA estaria à disposição a partir de Janeiro de 2009, de modo a fazer a qualificação, na Socapa, em ....., França, naquele mês, de acordo com a vontade da autora Sogestão;

m. Tal como veio a suceder;

n. A autora Sogestão e a ré AreroVip acordaram que os “serviços de piloto (…) serão efectuados nas datas a indicar pela 1ª Contraente (…)”;

o. A autora Sogestão, de acordo com o estipulado na cláusula 5ª, n.º 2 do contrato, suportou os custos decorrentes da formação do réu AA, nas instalações do fabricante da aeronave, Daher-Socata, em ....., França, num total de € 20.000,00;

p. A autora Sogestão e a ré AeroVip acordaram, na clausula 8ª que: “1. Os contraentes podem ainda rescindir o presente contrato, a todo o tempo e sem invocação de causa, com uma antecedência mínima de trinta dias relativamente à data que pretendem a cessão dos seus efeitos, sendo que neste caso não será devida qualquer indemnização, sem prejuízo do estabelecido na cláusula seguinte. 2. Se o presente contrato for declarado extinto pela 2ª Contraente, seja por denúncia ou rescisão, antes de terem decorrido trinta e seis meses da vigência do mesmo, fica esta obrigada a reembolsar a 1ª Contraente o respectivo custo “pro rata”, calculado mediante o produto de 1/36 sobre 20.000,00 €, pelo número de meses ou fracções que à data da produção dos efeitos de tal extinção faltem para que se completassem 36 meses de duração efectiva do contrato”;

q. O réu AA concluiu a formação em 13 de Fevereiro de 2009;

r. A ré AeroVip não teve intervenção na formação e qualificação do réu AA, tendo sido a autora Sogestão que escolheu a entidade formadora, o tipo de formação a frequentar e período em que decorreria;

s. À data de 13 de Fevereiro de 2009, a aeronave encontrava-se em França, nas instalações do fabricante, para a realização de trabalhos de manutenção, designadamente, revisão da hélice, revisão das 100 horas de voo, reparação da iluminação do piloto automático, revisão do trem de aterragem e mudança de local da sonda de ar condicionado;

t. No final de Março, foram concluídos os trabalhos de manutenção, tendo a aeronave regressado a Portugal;

u. A autora Sogestão solicitou à ré AeroVip a disponibilização do réu AA para a realização do voo entre ..... e ......;

v. O réu BB decidiu que, no regresso de ........, o nível de voo seria FL160 e não FL070, como foi sugerido pelo réu AA;

w. Foi indicada, no plano de voo, uma duração de 35 minutos;

x. No dia 03 de Maio de 2009, em ........, o réu BB ordenou ao réu AA que reabastecesse o avião com 60 USGAL e não 30/40 USGAL, como era intenção deste, porque pretendia ter mais autonomia na aeronave;

y. No dia 03 de Maio de 2009, no Aeródromo de ........, na fase de arranque da aeronave da pista, ocorreu uma avaria na turbina;

z. A bordo da aeronave encontravam-se o réu AA, sentado à esquerda, o Presidente do Conselho de Administração da autora Sogestão, o réu BB, sentado à direita, e a sua família;

aa. O réu AA sabia que o réu BB era piloto;

bb. Da apólice de seguro consta o nome do réu BB, com a qualidade de tripulante;

cc. À data, o réu BB detinha licença de piloto privado e não tinha qualificações para comandar TBM;

dd. O réu BB tinha, à data, cerca de 1000 horas de experiência em aeronaves que não a TBM 700;

ee. O réu AA possui licença de voo desde 1971, tendo formação de piloto comercial e na vertente militar da aviação;

ff. O réu AA declarou, no plano de voo, que o voo era particular;

gg. O réu AA, a solicitação do réu BB, ajudou-o a introduzir os pontos de GPS;

hh. O réu AA observou que a introdução desses dados era feita, habitualmente, durante taxear e o réu BB replicou que “queria fazer agora”;

ii. Desviando, por isso, a sua atenção do procedimento de arranque e estabilização da turbina, só, mais tarde, se voltando a concentrar nos aparelhos indicadores do controle de arranque da turbina;

jj. O réu AA tinha 20 horas voadas em TBM;

kk. À data, o réu AA tinha, pelo menos, 5.500 horas de voo, em diversas aeronaves;

ll. A avaria da turbina foi provocada pelo seu sobreaquecimento;

mm. O sobreaquecimento resultou do facto de a manete do combustível ter permanecido na posição “Low Idle”, com o motor de arranque ligado, por mais de 460 segundos, altura em que o motor foi desligado;

nn. De acordo com o manual de manutenção, o tempo máximo permitido para a manete de combustível permanecer naquela posição é de 60 segundos;

oo. A operação de arranque da turbina comporta as seguintes operações materiais: a) ligar o motor de arranque; b) colocar a manete do combustível em “Low Idle”; c) desligar o motor de arranque; d) colocar a manete do combustível em “High Idle”;

pp. Declarado não escrito por ser conclusivo.[3]

qq. Tais operações, feitas exclusivamente pelo comandante, são procedimentos automatizados e que obrigam a que estejam as duas mãos do piloto sempre ocupadas com as manetes;

rr. A operação de arranque da aeronave do Tipo TBM 700 é feita de memória, mas está sujeita a verificação posterior do procedimento por check-list;

ss. É função do comandante o controlo da temperatura interna da turbina/ITT, de modo a obstar ao sobreaquecimento da mesma;

tt. O réu AA não passou a manete do combustível da posição de “low idle” para a posição “hight idle” e não desligou o motor de arranque;

uu. O réu AA, ao ligar o bleed com a manete do combustível em “low idle” e com o motor de arranque ligado originou o sobreaquecimento da turbina e a sua danificação;

vv. O motor de arranque não pode estar ligado mais de 60 segundos;

ww. O motor de arranque foi desligado ao fim de 460 segundos aquando da paragem do motor;

xx. No dia 3 de Maio de 2009, o réu BB telefonou ao fabricante da aeronave – Daher-Socapa – a comunicar a avaria verificada;

yy. Em Maio de 2009, a autora comunicou à ré AeroVip a verificação da avaria na turbina da aeronave, requerendo que procedesse às participações para as companhias de seguros de ambas as partes;

zz. Em 13 de Maio de 2009, a ré AeroVip declinou a responsabilidade pelos danos causados à aeronave da autora Sogestão, alegando que a avaria verificada “ficou a dever-se apenas a uma deficiente intervenção do proprietário na normal operação da mesma”;

aaa. Em 28 de Maio de 2019, a autora Sogestão procedeu à devolução de duas facturas referentes ao pagamento das mensalidades de Abril e Maio e declarou suspenso o contrato de prestação de serviços de pilotagem, atenta a imobilização da aeronave em consequência da avaria;

bbb. E solicitou o envio do recibo referente ao pagamento de € 3.000,00 por adiantamento das despesas;

ccc. E requereu a nomeação e a formação de novo piloto pela ré AeroVip para a pilotagem da sua aeronave, dado que, no seu relatório de 5 de Maio, o réu AA se recusou a realizar novos voos, caso o Presidente do Conselho de Administração, o réu BB, estivesse a bordo da aeronave;

ddd. Em 2 de Junho de 2009, a ré AeroVip declinou novamente a responsabilidade, alegando que o incidente tinha ocorrido “no chão”;

eee. O período de serviço de voo corresponde ao intervalo de tempo compreendido entre o momento em que o tripulante se apresenta para efectuar o voo e o momento em que a aeronave se imobiliza ou estaciona no local do destino e os motores param;

fff. A autora Sogestão, no dia 19 de Junho de 2009, declarou resolvido o contrato de prestação de serviços celebrado com a ré AeroVip, invocando incumprimento e violação do mesmo;

ggg. A 8 de Maio de 2009, a autora Sogestão interpelou a ré AeroVip para proceder ao pagamento, no prazo máximo de 10 dias, a contar da recepção da comunicação, da quantia de € 123.916,16, que alegava ser “devida pela reparação da turbina danificada pelo seu piloto”, o que, até á data, não fez;

hhh. A autora Sogestão agendou a desmontagem da turbina para reparação para finais de Junho de 2009 e informou a ré AeroVip de tal pretensão, comunicando-lhe a faculdade de nomear um perito para acompanhar a reparação da mesma, que teria lugar nas instalações do fabricante Daher-Socata, em ....., França;

iii. A ré AeroVip respondeu, dizendo que “(…) para além da necessidade de agendamento de um período de férias pessoais para concretização desta agradável deslocação, solicito a V. Exa. um adiantamento, por transferência bancária, que cubra obviamente, todas as despesas de deslocação (…)”;

jjj. A autora Sogestão respondeu, em 25 de Junho de 2009, explicitando que a faculdade era concedida para segurança da posição da ré AeroVip em todo o processo e que, salvo comunicação em contrário, a referida resposta seria entendida como renúncia a tal faculdade;

kkk. A ré AeroVip não respondeu;

lll. A desmontagem agendada foi efectuada pelos técnicos da EADS SECA, ao serviço da Daher-Socata, os quais transportaram a turbina avariada para as instalações desta em França, para reparação;

mmm. Aquando da análise dos componentes da turbina avariados, o fabricante verificou que os danos eram mais extensos do que os inicialmente previstos, tendo apresentado à autora novos valores para a reparação da turbina e para a realização obrigatória do voo de controlo;

nnn. No dia 31 de Agosto de 2009, a autora Sogestão apresentou à réAeroVip, mediante carta registada com A/R, os orçamentos finais referentes à reparação da turbina avariada e para a realização do voo de controlo;

ooo. A autora Sogestão, na mesma comunicação, referia que a ré AeroVip não poderia impedir ou obstaculizar qualquer intervenção, reparação ou deslocação da aeronave e que esta não deveria ser removida, por esta, do hangar onde se encontrava à data, nem deveriam ser alteradas as condições de estacionamento da mesma até reparação;

ppp. Após a reparação da turbina, os técnicos do fabricante deslocar-se-iam ao hangar da ré AeroVip, para montagem da turbina na aeronave;

qqq. E realizariam voo de controle;

rrr. Antes da avaria, a aeronave encontrava-se estacionada no Aeródromo Municipal de ......, em ....., como acordado entre a autora Sogestão e a ré AeroVip;

sss. Desde Maio de 2009, em consequência da avaria, a aeronave ficou estacionada no hangar da ré AeroVip, no Aeródromo de ........;

ttt. A ré AeroVip reagiu à comunicação da autora Sogestão solicitando pagamento de hangaragem da aeronave nas suas instalações e invocando a existência de créditos;

uuu. A autora Sogestão pagou à ré AeroVip a quantia de € 4.500,00, a título de renda pela hangaragem da aeronave nas instalações desta, desde 3 de Maio de 2009 até Setembro de 2009;

vvv. A turbina foi reparada e montada novamente na aeronave, foi realizado o voo de teste e a aeronave voltou a ficar operacional;

www. A reparação da turbina danificada pela acção e nas circunstâncias acima referidas custou e €152.341,00;

xxx. No período compreendido entre 3 de Maio de 2009 e Setembro de 2009, a autora Sogestão não pôde usar a aeronave;

yyy. A autora Sogestão não pagou à ré AeroVip as quantias mensais acordadas, no período compreendido entre Janeiro e Maio de 2009, no montante de € 10.400,04.

zzz. A ré AeroVip pagou ao réu AA a quantia mensal de € 3.000,00 durante 12 meses.

2. De direito

2.1. Do erro na apreciação das provas

A pretexto de pretensa errada aplicação do direito aos factos, a recorrente pretende uma verdadeira modificação da decisão de facto, designadamente dos factos provados sob as alíneas aa), cc) e gg), à semelhança do que já havia feito na apelação, pretendendo que, na primeira, fosse acrescentado que o réu AA “tinha a convicção” de que o réu BB “era qualificado no tipo TBM 700” e que a última permitisse  concluir que foi uma ordem expressa do réu BB e que o réu AA actuou na qualidade de “inferior hierárquico”, o que passa por um aditamento desta matéria. Invoca errada apreciação desses factos, fundada em convicções e argumentos pessoais, desprovidos de lógica e de fundamentação técnica ou científica.

O Tribunal da Relação manteve a matéria dada como provada naquelas alíneas pela 1.ª instância, após reapreciação, nos seguintes termos:

“… Relativamente ao ponto aa dos factos provados, pretende a dita recorrente que se adite à resposta em causa a frase “e tinha a convicção que este era qualificado no tipo TBM 700.

Esta matéria não foi alegada pela referenciada e, sim, pelo Réu AA, na tréplica, que, também, foi admitida na totalidade.

Ora, esta omissão por parte da recorrente Sevenair, S.A, só pode ser entendida como lapso ou consideração de que o facto em causa – a convicção – não correspondia à realidade.

Acresce que a defesa desta recorrente assenta na seguinte ideia: “(…) a verdadeira intenção do Sr. BB, ao contratar com a 1.ª R, a cedênca de um piloto, não era a prestação por esta de um verdadeiro serviço de pilotagem, mas apenas a função de piloto de segurança, que se limita a acompanhar o piloto proprietário e só intervém em caso de absoluta necessidade, ou então, somente nos voos IFR”.

Ou seja: no seu critério, o Réu AA foi contratado para, essencialmente, “acompanhar”, no cockpit da aeronave em causa, o Réu BB.

Ora, esta tese é afastada pelo teor do contrato de prestação de serviços celebrado com a Aero Vip, onde, no considerando A, se alude que a Sogestão “necessita de frequentes serviços de um piloto comercial de avião, para operar aeronave ou aeronaves executivas que estejam ou venha a estar o seu dispor, designadamente um “mono turbprop”, TBM 7002”.

Operar uma aeronave não é, nem nunca foi, “acompanhar” o piloto que a opera.

Além disso, a mesma tese acarretaria uma consequência relevante: sempre que necessário fosse transportar um colaborador da Sogestão ou até mesmo alguém estranho à mesma, seria o seu administrador, o Réu BB, a fazê-lo, sendo acompanhado nessa tarefa, pelo Réu AA, contratado para o efeito.

Sucede, ainda, que as viagens efetuadas ou a efetuar, ao abrigo do dito contrato – ....../........, a 2 de maio de 2009, e ......../......, no dia seguinte – afastam, sem margem para dúvidas, a tese de piloto de segurança.

A posição da recorrente Sevenair, S.A., no entender desta Relação, não é, no mínimo, razoável.


Improcede, por isso, a impugnação deste segmento da matéria de facto.

Insurge-se, também, a recorrente Sevenair, S.A., contra o teor da matéria vertida no ponto cc dos factos provados, relativamente à parte final – “e não tinha qualificações para comandar TBM”, que o Tribunal recorrido fundamentou na confissão do Réu/chamado, BB, por tal facto ser favorável ao confitente e só admitir prova por documento.

Não parece que assim seja.

Na verdade, e no entender da demandante Sogestão, “o objeto dos presentes autos assenta na celebração de um contrato de prestação de serviços entre a recorrente Aero Vip e a recorrida Sogestão e respetivo incumprimento, que motivou a produção de danos na aeronave propriedade da Recorrente”, qualificação que é aceite pela Sevenair, S.A..

Por outro lado, o chamamento á lide do Réu BB – piloto provado, à data, com cerca de 1000 horas de voo em aeronaves que não a TBM 700 – ficou a dever-se à circunstância de, no entendimento dos demandados, ser “(…) o único causador e único responsável pelos danos ocorridos na aeronave da A.”, aquando do arranque da turbina.

É, pois, fácil de entender que a circunstância de o referenciado ter ou não uma “class rate”, no tipo de avião em causa, é irrelevante para a decisão da causa, uma vez que a introdução dos dados de GPS, no taxear ou antes deste, é, certamente, uma questão que é comum à da atividade dos pilotos, mesmo aqueles que não têm qualificação no “mono turbpro” TBM 7002. Ou seja: o estágio em ....., França, na fábrica da aeronave em causa não se destina a saber se (a) aludida tarefa se faz antes de o avião arrancar do seu local de estacionamento ou no taxear.

O Réu BB era piloto, como o era o Réu AA, antes de obter a qualificação para pilotar um TBM 700.

Eventualmente relevante, no caso concreto dos autos, foi o facto de o Réu BB ser o “dono” da aeronave.

Assim sendo, e admitindo-se que a dita “class rate” só pode ser provada por documento e, no caso concreto, a ineficácia da “confissão”, nada obsta que a titularidade ou não da mesma possa ser provada, por outro meio, desde que não integre a causa de pedir ou constitua fundamento da defesa, o que acontece, nos autos.

Acresce que a prova positiva deste facto era de fácil obtenção e se não foi produzida tal circunstância apenas pode ficar a dever-se à sua inexistência.

Como tal, e considerando o depoimento da testemunha CC – que referiu que o Réu BB reprovou a “classe rate”, que, com ele, frequentou, em 2006, em ....., França -, tem esta Relação a “certeza subjetiva” de que este, em maio de 2009, não estava qualificado para comandar um TBM 700.

Pelo exposto, improcede este segmento da impugnação da matéria de facto.

No que concerne ao ponto gg dos factos provados, é pertinente relembrar que as partes aceitam a matéria de facto vertida nos pontos hh (“O Réu AA observou que a introdução desses dados era feita, habitualmente, durante taxear e o Réu BB replicou que “queria fazer agora”) e ii (“Desviando, por isso, a sua atenção do procedimento de arranque e estabilização da turbina, só, mais tarde, se voltando a concentrar nos aparelhos indicadores do controlo de arranque da turbina”).

É, pois, razoável concluir que a questão da introdução dos dados de GPS foi abordada, na ocasião, pelos Réus BB e AA.

Porém, os termos em que a abordagem foi feita – ordem ou não – é uma questão não esclarecida, face aos depoimentos em sentido contrário dos referenciados.

Ratifica, por isso, esta Relação a resposta restritiva e explicativa do Tribunal recorrido.

Improcede, assim, esta parte da impugnação….”


Os fundamentos agora invocados não permitem a alteração pretendida pela recorrente.

Não se trata de fazer diferente interpretação dos factos provados para efeitos da sua subsunção jurídica, mas de proceder a uma modificação da matéria de facto da exclusiva competência da Relação.

Na verdade, a recorrente pretende uma verdadeira alteração da matéria de facto nos termos em que se deixaram ditos.

Porém, essa modificação não cabe no âmbito dos poderes do STJ na parte relativa à alteração da matéria de facto que consta, como é sabido, dos art.ºs 682.º, n.º 2 e 674.º, n.º 3, ambos do CPC.

Nos termos do primeiro normativo “a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º”.

E, de acordo com este preceito, “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Deste modo, o fundamento de revista previsto nesta norma visa a intervenção (excepcional) do Supremo, no plano dos factos, quando tenha havido “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a exigência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Não é caso de nenhuma intervenção excepcional acabada de referenciar.

Nem a recorrente fundamenta nessas excepções a pretendida alteração.

A apreciação dos depoimentos das testemunhas que serviram para manter como provados tais factos está sujeita à livre apreciação pelo tribunal, no caso, pela Relação, como resulta claramente da lei (cfr. art.º 396.º do Código Civil), estando vedada a sua reapreciação a este Supremo Tribunal.

A Relação formou a sua convicção após reapreciação da matéria de facto impugnada, tendo presente a prova produzida, no exercício dos seus poderes/deveres que lhe são conferidos pelo art.º 662.º do CPC.

Trata-se de poderes que foram reforçados com a reforma do processo civil, operada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o novo Código de Processo Civil.

Como se lê na Exposição de Motivos subjacente à referida reforma, “(...) cuidou-se de reforçar os poderes da 2.ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios (...), são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material.

É o que resulta do art.º 662.º do actual CPC, o qual representa uma “clara evolução no sentido que já antes se anunciava. Através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis”[4].

Em face do novo regime processual, não se suscitam quaisquer dúvidas de que o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art.º 607.º, n.º 5 do CPC, vigora para a 1.ª instância e, de igual modo, para a Relação, quando é chamada a reapreciar a decisão proferida sobre a matéria de facto, à qual se aplica o regime previsto naquele preceito, por remissão do art.º 663.º, n.º 2, do mesmo Código [5].

Daí que compita ao Tribunal da Relação reapreciar todos os elementos de prova que tenham sido produzidos nos autos e decidir, de acordo com a sua própria convicção, a matéria de facto impugnada em sede de recurso de apelação, assim assegurando o segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise.

Ao Tribunal da Relação compete, pois, julgar de acordo com a sua íntima e livre convicção, fazendo o seu próprio juízo de valoração das provas e devendo “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (n.º 1 do citado art.º 662.º).

Os únicos limites à livre apreciação da prova constam do mesmo art.º 607.º, n.º 5, onde se prevê que ela não abrange “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.

No presente caso, não estamos perante qualquer uma destas situações, acabadas de referir: os factos em causa não exigem ser provados por formalidade especial, nem estão plenamente provados por documentos, acordo ou confissão das partes.

Por isso, tais factos encontravam-se sujeitos à livre apreciação da prova pelo Tribunal da Relação, a quem competia julgá-los de acordo com a sua própria convicção e mediante a reapreciação da prova produzida, nomeadamente a que se encontra gravada. Nessa medida, o Tribunal a quo podia atribuir à prova produzida o valor probatório que entendesse, de acordo com a sua própria convicção e no âmbito da sua autonomia decisória.

 É irrelevante o apelo às regras da experiência comum, ao teor de outros factos provados e, muito menos, à convicção diversa formada pela própria recorrente, ainda que sob a afirmação, não comprovada, de que a formada pelo Tribunal “está desprovida de lógica e de fundamento técnico ou científico”.

 A prova estava, efectivamente, sujeita à livre apreciação pelo Tribunal da Relação, tal como tinha estado pela 1.ª instância. E estando em causa prova sujeita a livre apreciação, o juízo formulado pela Relação, no âmbito do disposto no art.º 662.º. n.º 1, do CPC é definitivo, não podendo ser modificado pelo Supremo Tribunal de Justiça[6].

Sendo definitivo o juízo formulado pelo Tribunal da Relação, não cabe no âmbito do recurso de revista, nem nos poderes do Supremo Tribunal, analisar a apreciação que as instâncias fizeram relativamente à prova sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, como pretende a recorrente.

Não estando em causa factos para os quais a lei imponha meios de prova pré-determinados (“prova tarifada”) e não detendo os elementos indicados pela recorrente, só por si, forca probatória que exclua ou anule a demais prova produzida, forçoso é concluir que o Tribunal recorrido não violou quaisquer limites ao princípio da livre apreciação da prova.

Deve, por conseguinte, manter-se a matéria de facto tal como foi decidida pelo Tribunal da Relação.

Improcede, pois, esta questão.

 

2.2. Da responsabilidade da recorrente

A recorrente, ou melhor a sua antecessora AeroVip – Companhia de Transportes e Serviços Aéreos, S.A., e a recorrida celebraram, entre si, um contrato de prestação de serviços, segundo o qual aquela se obrigou a prestar a esta serviços de piloto profissional, através do réu AA, com a particularidade de o meio de transporte – uma aeronave monomotor turbo prop. ….., com a matrícula ….MC ser propriedade da segunda – a Sogestão – Administração e Gerência, S.A., ao qual ficaram vinculadas, e só elas, competindo-lhes cumpri-lo nos seus exactos termos (cfr. art.ºs 405.º, n.º 1, e 1154.º, ambos do Código Civil).

Tal contrato acabou por não ser cumprido, tendo-se verificado o incumprimento por causa de uma avaria na turbina da aeronave, provocada pelo seu sobreaquecimento, aquando dos procedimentos iniciais de arranque para a viagem de regresso de ........ a ….., realizados pelo seu comandante, o réu AA, contratado pela transportadora AeroVip, com anuência da Sogestão.

Assim foi entendido pelas instâncias que também consideraram esse incumprimento causal dos prejuízos sofridos pela autora, embora em medidas diferentes, como supra se referiu.

No recurso, vem posta em causa a culpa, importando saber se inexiste relativamente à recorrente e, concluindo-se pela sua existência, em que medida contribuiu para a produção do evento lesivo.

No âmbito da responsabilidade civil contratual, como é o caso, vigora a presunção de culpa do devedor, nos termos do art.º 799.º, n.º 1, do Código Civil.

Atento o preceituado neste artigo, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, sob pena de sobre si recair a respectiva presunção de culpa.

A culpa do devedor deve ser apreciada “in abstracto”, ou seja, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, nos termos dos art.ºs 799.º, n.º 2 e 487.º, n.º 2, ambos do Código Civil.

Atento o disposto no art.º 800.º, n.º 1, do Código Civil, a responsabilidade do devedor abrange os actos dos seus auxiliares, respondendo como se os actos destes “fossem praticados por ele próprio”[7].

Prevê-se aqui uma ficção jurídica segundo a qual o comportamento dos auxiliares é um comportamento do devedor; “este fica colocado em situação idêntica àquela em que estaria se fosse ele próprio, pessoalmente, a cumprir a obrigação (Carneiro da Frada, 1998, 303)…. O único juízo de culpa relevante é o de «culpa» ficcionada que recai sobre o auxiliar ou representante, não sobre o devedor – a sua eventual culpa (v.g. in eligendo ou in instruendo) motiva uma responsabilidade autónoma e subjetiva, nos termos gerais da responsabilidade obrigacional. De qualquer forma, não se pode afirmar que a responsabilidade do n.º 1 seja plenamente objetiva, uma vez que é feito um juízo de culpa, ainda que em termos ficcionados.

O regime da responsabilidade do devedor por atos de auxiliares é excecional face ao regime geral da responsabilidade obrigacional, uma vez que não requer que haja uma conduta culposa do devedor, violadora da obrigação que o vincula, artigo 798.º. Este desvio justifica-se pelo facto de que, servindo-se de auxiliares para cumprir a sua obrigação, o devedor estende a sua capacidade de prestar, pelo que, assim como retira benefícios da sua conduta (ubi commoda, ibi incommoda), sem o que a posição do credor ficaria consideravelmente enfraquecida, ou mesmo integralmente desprotegida se o incumprimento por atuação de auxiliares não representasse concomitantemente um ilício delitual contra o qual o credor pudesse reagir, visto que o auxiliar não está vinculado contratualmente perante ele. É sobre o devedor que recai o risco da introdução de terceiros no quadro da relação obrigacional, para o auxiliarem na realização da sua prestação, daí que seja irrelevante se estes atuam dolosamente ou contra as suas instruções”.[8]

Refira-se, ainda, que não foi convencionada a limitação ou exclusão da sua responsabilidade, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado art.º 800.º, tendo, ao invés, a devedora AeroVip, para o “desempenho dos serviços contratados” assumido a obrigação de “exercer a sua actividade com cuidado” e “tratar com zelo o avião e todos os materiais e equipamentos que lhe fossem entregues pela autora Sogestão, utilizando todos os recursos da sua experiência e saber” [cfr. al. g) dos factos provados].

Para além disso, a devedora (antecessora da recorrente) não provou, como lhe competia, que a falta de cumprimento da obrigação não procedeu de culpa sua.

Na verdade, como bem se referiu no acórdão recorrido, «o sobreaquecimento decorreu da circunstância de o comandante/réu, AA, seu “auxiliar”, ter desviado a sua “atenção do procedimento de arranque e estabilização da turbina” para introdução dos “pontos GPS”, “só, mais tarde, se voltando a concentrar nos aparelhos indicadores do controle de arranque da turbina”.

Mesmo admitindo-se que o dito “desvio” de atenção tenha sido originado pelo facto de o Réu BB, piloto – embora não qualificado para o monomotor turbo prop. ….. – e Presidente do Conselho de Administração da Sogestão, na altura, sentado, também, no cockpit da aeronave, ter introduzido, por ocasião “do procedimento de arranque e estabilização da turbina”, a questão da fixação, de imediato das coordenadas GPS, prática que o Réu AA não seguia, tal circunstância não aponta para “uma atuação isenta de culpa”[9], nem para o facto de a conduta daquele não poder ser despicienda “para se avaliar (e repartir) a culpa existente”, com a consequente concorrência de culpa, como decidiu a 1.ª instância.

Efetivamente, não só a Ré AeroVip e o seu auxiliar, o Réu AA, não estavam, em termos jurídicos, sujeitos à autoridade e direção da Sogestão, e por inerência, do Réu BB – circunstância que não deviam ignorar -, como também o facto de o Réu AA, relativamente ao plano de voo, aceitar e executar as instruções de uma pessoa que sabia não estar habilitado para o efeito, viola deveres de cuidado compreensíveis na esfera comum de qualquer cidadão médio.

O facto deste último ser o comandante da aeronave legitimava a rejeição, liminar, de qualquer “interferência” nos comandos da aeronave, ocorresse ela, na altura de “arranque e estabilização da turbina” ou noutro momento, e fosse qual fosse o seu autor.

O Réu AA, que sempre teve o controlo ou domínio da situação, não procedeu, nas circunstâncias concretas, diligentemente, juízo aplicável à transportadora Aero Vip.

Em consequência, está a Ré/reconvinte AeroVip – Companhia de Transportes e Serviços Aéreos, S.A. (atualmente, designada Sevenair, S.A.) obrigada a, exclusivamente, reparar os prejuízos causados à Autora/reconvinda Sogestão – Administração e Gerência, S.A.»

Concorda-se com esta análise, por ser a correcta, em face da lei e dos factos provados.

Insiste a recorrente na exclusão da sua responsabilidade, mas tal desiderato está-lhe vedado em face dos factos provados e do regime jurídico decorrente do contrato de prestação de serviços que contratou com a autora.

Realce-se que o contrato de prestação de serviços, tal como decorre da sua noção legal, fornecida pelo citado art.º 1154.º, tem sempre por objecto o resultado do trabalho e não o trabalho em si, intelectual ou manual, com ou sem retribuição, sendo que para chegar a esse resultado, não fica o obrigado sujeito à autoridade e direcção do outro contraente.

Assim, qualquer interferência do réu BB, que nem sequer é contraente, sempre seria irrelevante para o afastamento da culpa do réu AA e, por conseguinte, da ré devedora, no procedimento inicial de arranque que causou a avaria na turbina da aeronave, provocada pelo seu sobreaquecimento, e que a AeroVip se obrigou a tratar com zelo.

Esta avaria foi causada exclusivamente pelo réu AA, que sempre teve o domínio do facto e não teve o cuidado devido nos procedimentos de arranque e estabilização da turbina, como podia e devia, por forma a evitar a sua avaria e, com ela, o incumprimento do contrato pela ré/recorrente.

A recorrente pretende, ainda, que seja repartida a responsabilidade entre si e a autora, na proporção de 10% e 90%, respectivamente, ao abrigo do disposto no art.º 570.º, n.º 1, do Código Civil.

O regime previsto neste artigo é aplicável à responsabilidade contratual[10].

O mesmo estatui que:

Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.

Os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, comentando este artigo, escreveram:

“Para que o tribunal goze da faculdade conferida no n.º 1, é necessário que o acto do lesado tenha sido uma das causas do dano, consoante os mesmos princípios de causalidade aplicáveis ao agente (cfr. art. 563º).

Deve, além disso, o lesado ter contribuído com a sua culpa para o dano (cfr. n.º 2 do art. 487º”.[11]

O Professor Brandão Proença escreveu:

“Começando por ser o artigo 570.º o referente legal da hipótese concursual, a aplicação do seu critério integra uma fase posterior à do cálculo do respectivo dano patrimonial… É porventura a partir desta constatação que a nossa doutrina dominante enquadra a “conculpabilidade do lesado” como uma das excepções (rectius, correcções) à lógica da chamada “teoria da diferença” […].

Ao lado de preceitos como os dos artigos 494.º e 497.º, 2, com a consequência de introduzir aqui, como vimos, uma finalidade sancionatória que parece estranha – pelo menos no seu sentido mais rigoroso – ao verdadeiro fundamento do regime, à conceituação da “culpa”, ao âmbito de aplicação da ideia contida no artigo 570.º, l e mesmo ao leque de efeitos decorrentes da ponderação.”[12].

O Professor Menezes Leitão escreveu:

“O regime da culpa do lesado demonstra a vertente sancionatória da responsabilidade civil subjectiva, uma vez que, não sendo o juízo de censura exclusivamente estabelecido em relação à conduta do lesante, não seria justificado obrigá-lo a indemnizar todos os danos sofridos pelo lesado, havendo antes que efectuar uma ponderação de ambas as culpas e das consequências que delas resultaram, sendo em função dessa ponderação que se estabelecerá a indemnização.

Para este regime se aplicar é necessário que a actuação do lesado seja subjectivamente censurável em termos de culpa, não bastando assim a mera causalidade da sua conduta em relação aos danos”[13].

Comentando o mesmo artigo, José Brandão Proença também afirmou:

“Para o exame ponderativo previsto no n.º 1 a norma exige não só a presença de duas condutas culposas mas que tenham sido causalmente concorrentes para o evento lesivo ou para o agravamento dos danos….”

E acrescentou:

“Assente a eficiência etiológica das condutas culposas, e longe da consagração do antigo regime do «tudo ou nada», o tribunal, na imputação das consequências indemnizatórias e para poder concluir pela concessão, redução ou exclusão da indemnização, deverá ponderar a gravidade das culpas (v.g., em função das regras legais violadas) e ter em conta os efeitos que delas decorreram, pois nem sempre a culpa mais intensa provoca os danos mais extensos.”[14]

É, então, que surge a questão da concorrência de culpas, mais frequente no domínio da responsabilidade extracontratual, mas com aplicação também à responsabilidade contratual, actuação do lesado à luz do paradigma do bonus pater familias e da actuação que seria de exigir no caso concreto”, como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 10/12/2009, processo n.º 494/06.0TBAVR.L1.S1[15].

Escreveu-se neste aresto, ainda, o seguinte:

«Ante o incumprimento do devedor, o credor não pode farisaicamente alhear-se dos resultados dessa conduta para daí colher vantagem que seria imoral ou injusta e sempre eticamente censurável, pois poderia com a sua inacção contribuir, impunemente, para o agravamento dos danos e assim onerar a sanção para o incumprimento.

Mesmo aqui deve o lesado agir de boa fé, na perspectiva de actuação honesta e que contemple o interesse da contraparte.

Daí que para haver culpa do lesado e ser afastada a teoria da diferença com ressarcimento dos danos em valor inferior aos que o credor efectivamente sofreu, imporia a verificação de que uma conduta culposa do lesado violadora das regras da boa-fé e que essa conduta – as mais das vezes omissiva ou negligente seja causa adequada do dano ou do seu agravamento.

Os factos reveladores de conculpabilidade devem ser graves no sentido de justificarem um juízo de censura, não bastando qualquer omissão ou negligência que se deva ter por aceitável de acordo com um padrão negocial justo, no sentido de que não deve ser exigido ao credor/lesado uma conduta super diligente para evitar o agravamento dos danos, mas antes lhe deve ser imposto pela boa-fé que, no quadro circunstancial emergente do incumprimento, actue por forma a atenuar os danos resultantes da situação de incumprimento, sobretudo, se for previsível que apesar dos esforços do devedor para obviar à propagação ou perduração dos danos a sua actuação, pela natureza da prestação que lhe cumpra, possa não surtir efeito pronto.

Como assinala Vaz Serra, in RLJ 105º-169:

“As cautelas exigíveis ao lesado para afastar ou diminuir o dano dependem das circunstâncias de cada caso.

E, fundando-se na boa fé ou na correcção (correteza), tem, naturalmente, os limites derivados desta sua fonte; portanto, o lesado só é obrigado a adoptar as medidas idóneas a impedir o agravamento do dano quando tal lhe seja imposto pela boa fé, isto é, quando esta, dadas as circunstâncias do caso concreto, o obrigue a tomar essas medidas”.»

Porém, no presente caso, como já referimos, a culpa na ocorrência do evento lesivo que determinou o incumprimento é exclusiva da ré AeroVip, visto que a avaria da turbina da aeronave foi provocada pelo seu sobreaquecimento, causado, exclusivamente, pelo réu AA, auxiliar desta demandada.

Não tendo a autora Sogestão, lesada, tido qualquer intervenção nessa ocorrência, é óbvio que não existe concorrência de condutas culposas.

E, inexistindo culpa da lesada, não tem lugar a aplicação do regime do art.º 570.º, n.º 1, o qual pressupõe, desde logo, que haja “culpa do lesado”, como nele claramente consta.


Finalmente, a recorrente invoca a violação do art.º 494.º do Código Civil por entender que devia ter sido aplicado ao caso dos autos.

Mais uma vez sem razão.

Embora tenha sido discutida a aplicabilidade do citado art.º 494.º à responsabilidade obrigacional, tanto na doutrina[16] como na jurisprudência, entendemos que o mesmo não tem aplicação neste tipo de responsabilidade, segundo o entendimento largamente maioritário na jurisprudência deste Tribunal, com o qual concordamos.

A título de exemplo, citam-se os acórdãos de 14/6/2011, processo n.º 437/05.9TBANG.C1.S1; 5/6/2012, processo n.º 3303/05.4TBVIS.C2.S1; 115/5/2013, processo n.º 9268/07.0TBMAI.P1.S1; e de 12/10/2017, processo n.º 4858/12.2TBMAI.P1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Soçobram, por conseguinte, todas as pretensões recursivas da ré/recorrente.

Sumário:

1. A matéria de facto só pode ser alterada pelo STJ quando se verifica algum dos fundamentos previstos na parte final do n.º 3 do art.º 674.º do CPC.

2. É definitivo o juízo formulado pelo Tribunal da Relação, no âmbito do disposto no art.º 662.º. n.º 1, do CPC, sobre a prova sujeita à livre apreciação.

3. A responsabilidade do devedor abrange os actos dos seus auxiliares, respondendo como se os actos destes fossem praticados por ele próprio, nos termos do art.º 800.º, n.º 1, do Código Civil.

4. No contrato de prestação de serviços, o obrigado não está sujeito à autoridade e direcção do outro contraente.

5. Provada a culpa exclusiva do devedor na ocorrência do evento lesivo que determinou o incumprimento, não tem aplicação o regime do art.º 570.º, n.º 1, do Código Civil.

6. O art.º 494.º do Código Civil não é aplicável no domínio da responsabilidade contratual.

III. Decisão

Pelos fundamentos expostos, acorda-se em negar a revista e manter o acórdão recorrido.


*


Custas pela recorrente (art.º 527.º, n.º 1 e 2 do CPC).

*


STJ, 9 de Março de 2021


Nos termos do art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos que não podem assinar.


Fernando Augusto Samões (Relator)

Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

António José Moura de Magalhães (2.º Adjunto)        

______

[1] Do Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Central Cível de ... - Juiz 3.
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé;
2.º Adjunto: Conselheiro Dr. António Magalhães.
[3] Sendo que tinha o seguinte teor: “A fase de arranque e estabilização do motor é uma competência exclusiva do Comandante e foi controlada pelo segundo réu”.
[4] Cfr. Conselheiro Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, 2015, Almedina, pág. 287.
[5] Cfr., neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18/5/2017, proferido no proc. n.º 4305/15.8T8SNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt e os nossos acórdãos de 26/11/2019, processo n.º 18079/16.1 T8LSB.L1.S1 e de 13/10/2020, proferido no processo n.º 12521/14.3T8LSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt,  que aqui vimos seguindo, nesta parte.
[6] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/9/2018, proferido no processo n.º 33/12.4TVLSB-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª edição, Almedina, pág. 103.
[8] Cfr. Maria da Graça Trigo/Rodrigo Moreira, em anotação ao art.º 800.º, Comentário ao Código Civil, Das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, págs. 1114-1115.
[9] Posição sufragada pelo Tribunal da 1.ª instância e seguida pela recorrente.
[10] Cfr, RLJ 110º-186.
[11] In “Código Civil Anotado”, vol. I, 3.ª edição, pág. 556.
[12] In “A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual”, págs. 393/394.
[13] In “Direito das Obrigações”, vol. I, 8.ª edição, pág. 332.
[14] In Comentário citado, pág. 579.
[15] Disponível em www.dgsi.pt.
[16] Em sentido claramente negativo, pronunciaram-se, entre outros, Antunes Varela, 2000:913 e 2004: 99 e 106; Ribeiro de Faria, 2001b: 421-422 e Almeida Costa, 2009:544, “com o argumento de que a aplicação do preceito à responsabilidade obrigacional poderia frustrar as legítimas expectativas do credor”, segundo a anotação de Gabriela Páris Fernandes ao mencionado artigo, no Comentário citado, págs. 337-338, onde são elencados entendimentos diversos, sustentados por outros autores.