DIREITO DE PREFERÊNCIA
NOTIFICAÇÃO PARA PREFERÊNCIA
PROPOSTA DE CONTRATO
ACEITAÇÃO DA PROPOSTA
EFICÁCIA REAL
MORTE
SUCESSÃO
Sumário


I. A notificação extrajudicial a que alude a norma do artigo 416º do CC e que contenha os elementos necessários à decisão do titular do direito de preferência consubstancia uma proposta contratual e a declaração de vontade que o mesmo emita, na sequência dessa notificação, de exercer o direito (potestativo), uma vez recebida pelo vinculado à prelação, perfeciona o contrato, mesmo que sujeito a forma, desde que esta seja observada pela comunicação do obrigado e pela resposta do preferente.
II. No caso em apreço, como as comunicação e resposta foram contidas em documentos que, embora assinados, não preencheram os especiais requisitos formais previstos no artigo 875º do CC, de que a celebração do contrato dependeria (por se tratar de um imóvel), deve entender-se que se concluiu um contrato-promessa (cf. artigo 410º, nº 2, do CC) com as respetivas consequências.
III. O direito legal de preferência tem eficácia real e, no caso de incumprimento, fica o devedor vinculado à realização do negócio e o preferente investido no direito potestativo de exigir que, por decisão judicial, seja constituído o seu direito de propriedade sobre a coisa, não podendo o obrigado desistir do negócio projetado.
IV. O direito de crédito gerado para a falecida, após a sua aceitação e exercício do direito de preferência, ocorrida antes da sua morte, transmitiu-se aos seus herdeiros sucessores, como titulares dos direitos e obrigações da herança e em sua representação.
V. Tendo o todo o comportamento processual da Ré DD demonstrado que o negócio foi celebrado entre a EE e as Rés, então titulares da herança aberta por óbito de FF, não se pode aceitar a invocação de ilegitimidade do disponente por falta de poderes para o ato.
VI. Não resulta do regime do direito legal de preferência, mais precisamente de preempção, violação dos princípios do direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida, garantido no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


           

I. Relatório

1. AA e BB instauraram contra CC e DD a presente ação declarativa constitutiva, com processo comum, pedindo que seja proferida sentença que transmita para os autores, em comum e sem determinação de parte ou direito, a fração autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao segundo andar frente, com quatro arrecadações na cave do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua .................., nº .., na ...................., em ......., freguesia de União das Freguesias....... e .............., ................ e ........, concelho......., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial ....... sob o n.º .......13, da freguesia ...... e .............. e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de União das Freguesias ....... e .............., ................ e ........ sob o artigo ......84, pelo preço de €120 000,00 (cento e vinte mil euros).

Alegam, em síntese, que:

- Os Autores são os únicos herdeiros de EE, falecida em 10 de agosto de 2018, permanecendo indivisa a referida herança;

- As Rés são as atuais proprietárias, em comum e sem determinação de parte ou direito, da fração autónoma identificada, que pelo anterior proprietário foi dada de arrendamento para habitação, há mais de quarenta anos, à falecida EE, contrato que se mantinha em vigor à data do óbito da arrendatária;

- Foi dirigida uma carta registada à entretanto falecida EE onde se comunicava a intenção das rés de vender a fração autónoma em causa pelo preço de € 120 000,00, conferindo-lhe a faculdade de exercer o direito de preferência, tendo aquela comunicado à Ré CC, cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de FF, que o pretendia exercer;

- No dia agendado para a venda, a falecida EE compareceu na Conservatória do Registo Predial ....... mas foi informada que não se encontrava agendado nenhum procedimento em seu nome, vindo depois a receber uma carta dando conta que as Rés decidiram não proceder à venda da fração, porque afinal o preço combinado seria superior;

- A aceitação da proposta pela falecida EE formalizou um contrato-promessa de compra e venda e a posterior declaração de revogação da proposta contratual não tem qualquer efeito.

2. Citadas, as Rés vieram contestar, defendendo-se por exceção (arguindo a exceção de incompetência territorial e a exceção de caducidade do direito reclamado).

Alegam que:

- A venda nunca chegou a ser efetivada, pelo que não havia nenhum direito de preferência e, a existir, teria caducado a 25 de janeiro de 2018, caducidade que se verificava à data do óbito de EE, ocorrido a 10 de agosto de 2018, e, além disso, o depósito do preço não foi efetuado;

- A notificação dirigida às pessoas para exercerem o direito de preferência não equivale a qualquer proposta de contrato, nem a declaração de que pretende preferir corresponde à celebração de um contrato-promessa de compra e venda, não havendo direito à execução específica.

Concluem pela procedência das exceções invocadas e, quando assim se não entenda, pela improcedência da ação e sua absolvição do pedido.

3. Foi proferido decisão a julgar procedente a exceção de incompetência territorial e o processo foi remetido ao Tribunal territorialmente competente.

4. Foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido saneador sentença que julgou a exceção de caducidade improcedente e a ação improcedente, absolvendo as Rés do pedido.

5. Inconformados com esta decisão, os Autores interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de ......

6. O Tribunal da Relação ....... veio “julgar procedente a apelação e, em conformidade, revogando a decisão recorrida, determinar que:

A presente decisão produz os efeitos da declaração das rés CC e DD de venda aos autores, AA e BB, enquanto herdeiros de EE, da fracção autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao segundo andar frente, com quatro arrecadações na cave com entrada pela porta n.º.., a primeira à direita com entrada pela porta n.º.., a primeira à direita com entrada pela porta n.º.. e a ...ª à direita com entrada pela porta n.º.., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua .................., n.º.., na ...................., em ......., freguesia de União das Freguesias ....... e .............., ................ e ........, concelho ......., descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial ....... sob o n.º.…13, da freguesia ....... e .............., onde a aquisição da referida fracção se mostra registada a favor das rés pela AP. .. de 2003/08/27, e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de União das Freguesias ....... e .............., ................ e ........ sob o artigo ......84, eficácia que fica dependente da consignação em depósito pelos autores, no prazo de vinte dias a contar do trânsito em julgado deste acórdão, da quantia atinente ao preço devido pela aquisição, no montante de €120 000,00 (cento e vinte mil euros)”.

7. Inconformadas com tal decisão, vieram as Rés interpor o presente recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª O douto Acórdão recorrido viola o disposto nos artigos 9º, 10º, 230º a contrario, 268º, 286º, 410º, 416º, 830º, 1051º, 1091º e 2091º do Código Civil, bem como o disposto no artigo 57º do NRAU e no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.

2.ª Salvo o devido respeito, não tem razão o douto Tribunal a quo, ao entenderque a comunicação para preferênciae a respectiva resposta devem ser consideradas como a celebração de um contrato promessa celebrado entre as partes, resultando daí a possibilidade de recorrer à execução específica.

3.ª Ora, como o próprio Tribunal a quo reconhece, a questão em causa nos autos não é pacífica na doutrina, nem na jurisprudência.

4.ª Ao contrário do que entendeu o douto Tribunal a quo, não se poderá considerar, no caso presente, que ocorreu a formação de qualquer contrato-promessa, não podendo, portanto os Autores recorrer à execução específica, comojábementendeuadoutasentençaproferidaemsededeprimeirainstância.

5.ª Aliás, tal solução seria não apenas injusta, como ferida de diversas ilegalidades.

6.ª A diferença principal entre o pacto de preferência e o contrato-promessa é que, no pacto de preferência, não existe uma obrigação de contratar, a obrigação é apenas de dar preferência, caso se pretenda contratar.

7.ª Tal é ainda mais evidente na situação de direitos legais de preferência, em que é imposta esta obrigação por lei.

8.ª Efectivamente, a obrigação que daqui resulta é uma obrigação de comunicar ao titular do direito de preferência que se pretende celebrar um contrato abrangido pela preferência, tratando-se apenas de uma informação dada ao titular da preferência, que lhe permite exercer o direito, não correspondendo a qualquer proposta de contrato.

9.ª Tem sido amplamente defendido por diversa doutrina e jurisprudência que a comunicação de preferência não corresponde a qualquer proposta de contrato, não sendo aplicáveis as regras do contrato-promessa, e, por inerência, a execução específica.

10.ª O direito de preferência nasce com a alienação do objecto da preferência a terceiro, pelo que o exercício do direito de preferência não pode impedir que o vendedor desista da venda que foi comunicada por completo.

11.ª No caso concreto, não se pode considerar que existiu qualquer proposta de contrato, mas apenas uma mera comunicação relativamente a um projecto de venda com um terceiro.

12.ª Uma vez que estamos apenas perante uma comunicação, não podemos considerar que com a aceitação da preferência pela arrendatária se tenha concluído um contrato-promessa, não sendo aplicáveis as regras da execução específica.

13.ª O objectivo do direito legal de preferência é a defesa do arrendatário, sendo certo que, entendendo-se a comunicação para preferir como uma mera comunicação e não como uma proposta de contrato, o arrendatário em nada fica prejudicado, uma vez que, caso o senhorio desista da venda, a situação se mantém igual, e caso este decida vender novamente, terá sempre de efectuar nova comunicação e dar novamente ao arrendatário a hipótese de preferir.

14.ª Terá, pois, de se entender que a comunicação de preferência é uma mera informação ao preferente, não constituindo uma verdadeira proposta contratual, uma vez que não houve declaração negocial nesse sentido, não sendo aplicável o disposto no artigo 230º do Código Civil.

15.ª Não pode também, pelo mesmo motivo, entender-se que a comunicação de preferência e a consequente resposta constituem um contrato promessa.

16.ª Não existe qualquer norma que consagre que deva aplicar-se ao regime do direito de preferência as regras do contrato-promessa.

17.ª Sendo certo que, face à divergência existente na doutrina e na jurisprudência, que já dura há várias décadas, se o legislador assim o pretendesse, poderia tê-lo consagrado expressamente através de uma alteração legislativa.

18.ª Se assim não o fez, terá de se entender que tal ocorre porque o legislador não pretende que a comunicação para preferência e a respectiva aceitação possam ser interpretadas como um contrato-promessa, sendo, por inerência, aplicadas as regras da execução específica, uma vez que, conforme o artigo 9º, nº 3, do Código Civil, se presume que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento correctamente.

19.ª O artigo830ºdoCódigoCivilconsidera-seumanormaexcepcional, face à possibilidade de afastamento da mesma, mediante estipulação de sinal.

20.ª Não se pode aplicar o artigo 830º do Código Civil ao regime do direito de preferência, por violação do artigo 11º do Código Civil.

21.ª É, portanto, manifestoquea comunicaçãodepreferência nãopode considerar-se uma proposta contratual, nem poderão ser aplicáveis as regras do contrato-promessa, nomeadamente no que se reporta à execução específica, pelo que deverão as Rés ser absolvidas do pedido.

22.ª O direito de preferência do arrendatário na aquisição do imóvel resulta do disposto no artigo 1091º, nº 1, alínea a), do Código Civil.

23.ª Como refere o artigo 9º, nº 1, do Código Civil, a interpretação da norma não deve cingir-se à letra da lei, mas deverá ter-se em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que esta é aplicada.

24.ª Ora, o fim da norma que consagra o direito de preferência do arrendatário é a protecção da habitação do mesmo, no caso dos contratos habitacionais, ou do seu negócio, no caso dos contratos comerciais, face a uma mudança de senhorio que poderá traduzir-se em algum tipo de conflito, permitindo-lhe assim preferir, querendo, na aquisição do imóvel, em igualdade de condições com o terceiro a que o senhorio pretende vender, e tornando-se assim proprietário.

25.ª No caso concreto, o contrato de arrendamento caducou com o falecimento da arrendatária, a 10 de Agosto de 2018, nos termos doartigo 1051º, alínea d) do Código Civil, uma vez que não está demonstrado nos autos que algum dos Autores cumprisse os requisitos do artigo 57º do NRAU para a transmissão.

26.ª Ora, a possibilidade de a falecida arrendatária adquirir o imóvel resultado direito de preferência legal de que esta é titular, enquanto arrendatária.

27.ª Não obstante estarmos perante uma acção de execução específica, e não uma acção de preferência, o certo é que as partes não celebraram um contrato-promessa, o que ocorreu foi uma comunicação de preferência e a respectiva resposta.

28.ª Pelo que, ainda que se considerasse que resultaria dessa comunicação e da respectiva resposta, uma obrigação de celebrar o contrato com a falecida arrendatária, o que não se concede, sempre se dirá que a interpretação segundo a qual estas comunicações, em conjunto, constituem um contrato-promessa, permitindo assim que o direito se transmita aos herdeiros da Ré, e que se mantenha na ordem jurídica após o término do contrato de arrendamento, viola o fim essencial da norma constante no artigo 1091º, nº 1, alínea a), do Código Civil.

29.ª Sempre terá de se entender que o direito do arrendatário resulta do próprio contrato, pelo que não poderia perdurar se o contrato termina, nem se poderia transmitir a pessoas externas ao arrendamento.

30.ª Diversa jurisprudência, como o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Novembro de 2001, Proc. Nº 01B3230, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Outubro de 2003, Proc. Nº 98B057, ou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 1998, Proc. Nº 98B057, tem entendido que em situações de trespasse ou resolução do contrato de arrendamento, ainda que posteriores à venda do imóvel, implicam a perda do direito de preferência.

31.ª Admitindo-se que o arrendatário perde o direito de preferência, em caso de trespasse ou resolução do contrato de arrendamento, igual entendimento se deverá ter em caso de caducidade por morte.

32.ª Como tal, terá de se entender que, não obstante não se tratar de acção de preferência, mas de execução específica, o direito da falecida arrendatária baseia-se no instituto da preferência legal e, como tal, não se pode considerar que este é transmissível aos herdeiros, sob pena de se violar o fim essencial do direito de preferência do arrendatário (artigo 1091º, nº 1, alínea a), do Código Civil) que, como bem referiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Outubro de 2003, Proc. Nº 98B057, citado supra, é atribuído para permitir que o arrendatário aceda mais facilmente à propriedade onde reside e não para proporcionar ao mesmo, ou no caso em concreto, aos seus herdeiros, lucrativas operações imobiliárias.

33.ª Sendo que é o que ocorreria, caso se permita que os herdeiros adquiram o imóvel pelo valor declarado nos autos, que, face ao aumento de preços nos últimos anos, deverá corresponder a metade ou um terço do valor actual de mercado do mesmo imóvel.

34.ª O direito de preferência da arrendatária, conforme referido supra, resulta da sua condição de arrendatária (sendo requisito essencial a existência de contrato de arrendamento por mais de dois anos nos termos do artigo 1091, nº 1, alínea a), do Código Civil), pelo que não se pode admitir que este é transmissível aos seus herdeiros, sem que se encontrem cumpridos os requisitos da transmissão do arrendamento, sob pena de se violar o fim essencial do mesmo direito.

35.ª Terá, pois, de se considerar que o direito de preferência da arrendatária EE deixou de existir após a sua morte, inexistindo qualquer transmissão aos herdeiros, pelo que as Rés deverão ser absolvidas do pedido.

36.ª A comunicação para preferência foi enviada pela Advogada Dra. GG, por solicitação da herança de indivisa de FF, representada pela cabeça-de-casal CC, aqui Ré (vide Documento nº 3 junto com a Petição Inicial e facto provado d)).

37.ª Não está junta aos autos uma procuração que permitisse à referida mandatária vender ou prometer vender, não resulta da comunicação enviada que sequer tenha sido enviada em anexo alguma procuração, nem resulta, igualmente, da prova produzida nos autos, que a mandatária tivesse poderes para apresentar uma proposta de contrato.

38.ª Face à terminologia utilizada na comunicação, à inexistência de qualquer referência pela mandatária a representação ou a procuração e à inexistência de prova nos autos relativamente aos poderes da mandatária para apresentar propostas de contrato, vender ou prometer vender, terá de se concluir que a mandatária não tinha poderes para representar qualquer uma das Rés numa proposta de contrato ou num contrato-promessa.

39.ª Conforme refere o artigo 268º, nº 1, do Código Civil, “O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.”

40.ª Não pondo em causa que foi efectivamente comunicado o direito de preferência da arrendatária no negócio em causa, sempre seterá de distinguir entre uma comunicação, e uma proposta de contrato, pelo que, a considerar-se que existiu uma proposta de contrato, que foi aceite, o que não se concede, não resultando dos autos que a mandatária tenha poderes para a celebração de contratos-promessa ou contratos de compra-e-venda, sempre a proposta seria ineficaz, uma vez que não foi ratificada por qualquer uma das Rés, conforme dispõe o artigo 268º, nº 1 do Código Civil.

41.ª Ainda que, por mera hipótese, se admitisse que a comunicação para preferência e a respectiva resposta da arrendatária pudessem constituir um contrato-promessa, o que não se concede, pelos motivos referidos supra, tal hipotético contrato-promessa teria sido celebrado por quem não tinha poderes para representar as Rés nesse acto.

42.ª Não tendo qualquer uma das Rés ratificado tal acto, e arguindo-se a ineficácia do contrato-promessa, sempre o mesmo terá de ser declarado como inexistente.

43.ª Inexistindo qualquer contrato-promessa, não há lugar a execução específica, pelo que as Rés deverão ser absolvidas do pedido.

44.ª Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, sempre se dirá que, conforme resulta do Documento nº 3 junto com a Petição Inicial e facto provado d), a comunicação foi efectuada por solicitação da herança indivisa, representada pela cabeça-de-casal CC, aqui Ré.

45.ª E a resposta enviada pela falecida arrendatária EE foi dirigida à cabeça-de-casal CC, aqui Ré (vide Documento nº 4 junto com a Petição Inicial e facto provado e)).

46.ª Pelo que, caso se considerasse que existe uma proposta contratual, sempre resulta da comunicação enviada a 17 de Julho de 2017, que esta foi efectuada pela mandatária, a pedido da cabeça-de-casal e resulta da resposta, que esta foi remetida apenas para a cabeça-de-casal.

47.ª Pelo que, caso a mandatária tivesse poderes de representação para o efeito, e caso se considerasse que estamos perante uma proposta de contrato, sempre a mesma apenas vincularia a cabeça-de-casal.

48.ª A existir uma proposta de contrato, esta é nula, por ilegitimidade da cabeça-de-casal para avenda de imóvel que pertence à herança indivisa, uma vez que, conforme refere o artigo 2091º do Código Civil, a venda de bens imóveis, não sendo uma das excepções expressamente previstas no Código Civil para actos que são da competência do cabeça-de-casal, teria de ser feita, em conjunto, por todos os herdeiros.

49.ª Nulidade essa que é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, conforme refere o artigo 286º do Código Civil.

50.ª Ou seja, ainda que se considerasse que as comunicações entre as partes resultam na celebração de um contrato-promessa, sendo este nulo, face à ilegitimidade da cabeça-de-casal, não podem os Autores recorrer à execução específica, pelo que as Rés sempre terão de ser absolvidas do pedido, nos termos do artigo 576º, nº 3, do Código de Processo Civil.

51.ª Ora, caso se entenda que a comunicação de preferência e consequente resposta constituem um contrato-promessa, sendo aplicável a execução específica, sempre tal interpretação conjugada dos artigos 410º, 416º e 830º do Código Civil, é inconstitucional, por violação do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.

52.ª Tal interpretação, conforme bem entende a douta sentença do Tribunal da primeira instância, põe em causa o direito de propriedade, restringindo o mesmo de um modo não expressamente previsto na lei.

53.ª Sendo a inconstitucionalidade de tal interpretação ainda mais flagrante, uma vez que estamos perante um direito de preferência legal, ou seja, numa situação em que as Rés não se obrigaram a dar preferência, mas que tal preferência lhes foi imposta.

54.ª Existindo um pacto de preferência ou um direito legal de preferência, neste caso, do arrendatário, o proprietário do imóvel está obrigado a comunicar “o projecto de venda”, caso pretenda vender o imóvel (vide artigo 416º do Código Civil).

55.ª Entendendo-se que tal comunicação constitui, desde logo, uma proposta de contrato ou um contrato-promessa,oquenãose concede, fica o proprietário, desde logo, impedido de renegociar as condições do negócio ou de desistir do mesmo, quando não se pretendeu vincular à venda, nem pretendeu prometer vender.

56.ª Diferentemente do que ocorre com o pacto de preferência ou com os direitos legais de preferência, os direitos resultantes de contratos de compra e venda ou contratos-promessa de compra e venda poderão transmitir-se a herdeiros.

57.ª Caso se entenda que se deverá considerar que a comunicação para preferência e a respectiva resposta constituem um contrato-promessa e que não apenas o titular de preferência, mas também os seus herdeiros poderão recorrer à execução específica, conforme entendeu, a nosso ver, erradamente, o douto Acórdão do Tribunal a quo, tal interpretação implica uma restrição abusiva do direito de propriedade, uma vez que obriga o proprietário não apenas a vender ao titular da preferência, ainda que queira desistir da venda, e pode até obrigar o proprietário a vender aos herdeiros, que este não conhece, com quem nunca negociou, e que não são sequer titulares de direitos de preferência.

58.ª Sendo certo que tal restrição nem sequer resulta expressamente da lei, existindo apenas uma interpretação conjugada dos artigos 410º, 416º e 830º do Código Civil por parte da doutrina e da jurisprudência.

59.ª Terá, portanto, de se considerar que tal interpretação é inconstitucional, por violação do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que implica uma restrição absurda do direito de propriedade, não se podendo admitir que o proprietário seja obrigado a vender a alguém que nunca viu, com quem nunca negociou, e que nem sequer tem direito de preferência algum, como é o caso dos Autores.

E concluem pelo provimento do recurso, “revogando-se o Acórdão recorrido, e substituindo-se por outro que julgue improcedente a acção, absolvendo as Rés do pedido; ou, caso se conclua que a comunicação para preferência e a respectiva resposta constituem um contrato-promessa, o que não se concede, declare inexistente o contrato-promessa, absolvendo as Rés do pedido; ou, caso se conclua que a comunicação para preferência e a respectiva resposta constituem um contrato-promessa, o que não se concede, declare nulo o contrato-promessa, absolvendo as Rés do pedido”.

8. Os Autores contra-alegaram, pugnando pelo infundado da revista.

9. Cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelas Rés/ora Recorrentes decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

- Da inexistência da formação de uma proposta de contrato e da não aplicação do regime de execução específica;

- Do término do contrato de arrendamento por falecimento da arrendatária;

- Da ineficácia da proposta contratual por falta de poderes da mandatária;

- Da nulidade da proposta contratual por ilegitimidade da cabeça de casal para a disposição de bens;

- Da inconstitucionalidade por violação do artigo 62.º da CRP.

III . Fundamentação

1. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1.1. Os Autores são os únicos herdeiros de EE, falecida em 10 de Agosto de 2018, permanecendo indivisa a referida herança.

1.2. As Rés são as actuais proprietárias, em comum e sem determinação de parte ou direito, da fracção autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao segundo andar frente, com quatro arrecadações na cave com entrada pela porta nº .., a primeira à direita com entrada pela porta nº .., a primeira à direita com entrada pela porta nº .. e a ..ª à direita com entrada pela porta nº .., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua .................., nº .., na ...................., em ......., freguesia de União das Freguesias ....... e .............., ................ e ........, concelho de ......., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ....... sob o nº …....13, da freguesia ....... e .............., onde a aquisição da referida fracção se mostra registada a favor das Rés pela AP. .. de 2003/08/27, e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de União das Freguesias ....... e .............., ................ e ........ sob o artigo ....84, tendo adquirido a referida fracção por dissolução de comunhão conjugal e sucessão por morte de FF.

1.3. O antigo proprietário da fracção supra identificada, FF, respectivamente marido e pai das AA., deu a referida fracção autónoma de arrendamento a sua sogra, CC, que, por sua vez, a subarrendou a HH, marido da falecida EE, e pai e avô dos AA., entretanto também falecido, tendo-se transmitido a EE, na qualidade de cônjuge, o arrendamento da referida fracção autónoma, contrato esse que se mantinha em vigor à data do óbito da arrendatária, que faleceu tendo como última residência habitual a referida casa.

1.4. Por carta datada de 17 de Junho de 2017, embora na verdade tenha sido expedida em 17 de Julho de 2017, a Sra. Dra. GG, na qualidade de advogada da herança indivisa aberta por óbito de FF, de que as Rés são as únicas titulares, remeteu uma carta registada à entretanto falecida EE, na qual comunicou a intenção das Rés de vender a fracção autónoma em causa, pelo preço de €120.000,00 (cento e vinte mil euros), sendo a venda realizada por meio de procedimento especial de transmissão e registo imediato de prédios em atendimento presencial único (Casa Pronta) na 2ª Conservatória do Registo Predial ......., no dia 27 de Julho de 2017, às 10,30 horas, conferindo à arrendatária a faculdade de exercer o direito de preferência no contrato acima referido, devendo, no prazo de 8 (oito) dias exercer esse direito que a lei lhe confere, pelo preço acima indicado.

1.5. A falecida EE, por carta datada de 25 de Julho de 2017, comunicou à Ré CC, cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de FF, exercer o direito de preferência na compra da fracção autónoma em causa, nos precisos termos do projecto de venda que lhe havia sido comunicado, para o que compareceria na data, hora e local indicados para a celebração do contrato de compra e venda, procedendo ao pagamento do preço.

1.6. A carta que a falecida EE remeteu a exercer o direito de preferência na compra da fracção autónoma em causa foi recebida pela Ré CC em 26 de Julho de 2017.

1.7. No dia 27 de Julho de 2017, às 10,30 horas, a falecida EE compareceu na 2ª Conservatória do Registo Predial ....... para o procedimento de transmissão imediata Casa Pronta, mas foi informada de que não se encontrava agendado nenhum procedimento em seu nome.

1.8. A falecida EE estava preparada para, na data e hora indicadas e através do procedimento Casa Pronta, outorgar a compra a fracção autónoma em causa a seu favor, nos precisos termos e condições que as Rés indicaram, tendo procedido à liquidação do IMT e imposto de selo que seria devido pela compra e sendo portadora de um cheque que emitira a favor da Ré CC, no valor de €120.000,00 (cento e vinte mil euros), que visara junto da Caixa Geral de Depósitos e que se destinava ao pagamento do preço de compra.

1.9. Já depois de ter comparecido, na data e hora marcada pelos Rés, na 2ª Conservatória do Registo Predial ....... para o procedimento Casa Pronta, a falecida EE recebeu uma carta da Ré CC, datada de 25 de Julho de 2017, comunicando terem as Rés decidido não proceder à venda da fracção.

1.10. A projectada compra e venda acordada com II e JJ nunca chegou a ser efectivada.

2. E foram julgados como não provado os seguintes factos:

2.1. O Autor AA, agindo em nome de sua mãe, falou com a Ré CC, alguns dias depois da data marcada para a compra e venda da fracção autónoma em causa, insistindo pela realização do negócio, mas a Ré CC recusou-se peremptoriamente a vender a referida fracção à falecida EE, a pretexto de que o preço real que havia sido convencionado entre as Rés e a interessada na compra identificada na carta cuja cópia faz o doc. nº 3 junto com a PI, era, afinal, superior ao preço indicado para exercício do direito de preferência.

2.2. A comunicação referida em i) (atrás citada1.9.) teve como causa a existência de divergências então surgidas entre as RR..


3. Da inexistência da formação de uma proposta de contrato e da não aplicação do regime de execução específica

Os Autores intentaram a presente ação pretendendo que lhes seja reconhecido o direito a obterem a execução específica relativamente à compra e venda de uma fração autónoma, com fundamento no direito de preferência que a titular do contrato de arrendamento detinha e a quem foi comunicado um projeto de venda, tendo declarado pretender exercer esse direito, tendo as Rés desistido da celebração do contrato.

O Tribunal de 1.ª instância julgou a ação improcedente por entender que a comunicação para preferir não configura uma verdadeira proposta contratual, mas consubstancia um convite a contratar.

O Tribunal da Relação  ...... veio a revogar esta decisão, defendendo a solução oposta.

As Recorrentes insurgem-se contra a decisão do Tribunal da Relação ...... e pugnam pela repristinação da decisão do Tribunal de 1.ª instância.

As instâncias deram nota da divergência doutrinal e jurisprudencial sobre esta questão, sendo certo que maioritariamente a doutrina defende a tese aceite pelo Tribunal da Relação de ...... e que o STJ, nos últimos dez anos, assim também o tem entendido, como são exemplo o Acórdão do STJ, de 27 de novembro de 2018 (em que os Adjuntos no processo são adjuntos nestes autos) e o Acórdão do STJ, de 9 de Abril de 2019 (em que os Adjuntos no processo são o Relator e a 1ª Adjunta nestes autos), pelo que, mantendo a posição então assumida, entendemos que bem andou o Tribunal da Relação ...... ao revogar a decisão do Tribunal de 1.ª instância.

O artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil atribui ao arrendatário direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos, sendo aplicável com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º do Código Civil (cf. n.º 4 do artigo 1091.º).

O direito legal de preferência, como vem sendo assumido pelo STJ, é um direito potestativo, com eficácia real, porque fundado em razões de interesse e ordem pública.

Os direitos legais de preferência implicam uma limitação à liberdade contratual e ao próprio exercício do direito de propriedade e que impõe um dever de comunicação. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 416.º do Código Civil o dever de transmitir o projeto de venda e as cláusulas do respetivo contrato.

Como refere Antunes Varela, “por um lado o preferente é titular de um verdadeiro direito de crédito, quer a preferência tenha, quer não tenha, eficácia real.

Por outro lado, gozando de eficácia real, como sucede com os direitos legais de preempção, a preferência atribui ainda a esse sujeito a titularidade de um direito real de aquisição.”

- RLJ, Ano 105.º, pp. 12/13 –

O primeiro momento do direito legal de preferência, ocorre quando o obrigado à preferência decide realizar o negócio, pois o dever de comunicação para preferência resulta da vontade séria do obrigado à preferência a contratar (cf. artigos 416.º e 417.º, do Código Civil).

A comunicação supõe a sua resolução de vontade expressa num projeto concreto (não assentando numa possibilidade em formação e ainda em forma de hipótese), constituído de todos os elementos estruturais e que deverá ser transmitido ao preferente para que possa emitir num prazo curto a sua decisão de preferir ou não.

A comunicação não inaugura um diálogo negocial com possibilidade de troca de propostas e contrapropostas, mas contém os termos concretos e inegociáveis de um negócio relativamente ao qual o preferente apenas pode aceitar ou recusar, não sendo, assim, um convite a contratar; “o notificado não é, no bom rigor das coisas, chamado a preferir: é sim chamado a contratar, se quiser” (Antunes Varela, RLJ, n.º3777, p.363).

Do n.º1 do artigo 416.º do Código Civil resulta que não se está a dar conhecimento de uma simples vontade hipotética de se vir a contratar, mas sim de um verdadeiro contrato, construído e completo em todos os seus elementos e que será realizado com outrem, já definido, caso o preferente não esteja interessado; o contrato em si mesmo já existe, faltando apenas saber quem figurará nele (em resultado da resposta do preferente).

A comunicação referida no artigo 416.º do Código Civil é diferente daquela situação em que seja realizada pelo obrigado à preferência uma comunicação dirigida ao preferente antes de ter qualquer projeto ajustado de venda com terceiro.

Deste modo, desde que os requisitos enunciados no n.º1 do artigo 416.º do Código Civil estejam preenchidos, isto é, desde que a comunicação para preferência contenha os elementos necessários à decisão do preferente, aquela, como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “deve ser qualificada como uma proposta de contrato. Se este não estiver sujeito a forma (ou depender de formalidades a que a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente obedeçam), deve entender-se que a declaração de querer preferir feita pelo preferente aperfeiçoa o contrato (…). Caso a celebração do contrato dependa de requisitos formais que a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente não preencham, importa distinguir (…). Se a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente forem feitas em documento assinado (A., por exemplo, tendo-se comprometido a dar preferência a B. na venda de determinado imóvel, comunica-lhe por carta que projecta vendê-lo a C. e indica as cláusulas da projectada venda; B., também por carta, responde que quer preferir) deve entender-se que se concluiu um contrato-promessa (cfr. o artigo 410.º, n.º 2) com as respectivas consequências (…)”

- Código Civil Anotado, volume I, 3.ª edição, p. 366 –

- cf., neste sentido, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª edição, p. 168; Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, p.450; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Tomo II, 2010, pp. 496 e 500 –

Ou, como refere Henrique Mesquita, “(…) ao preferente assistem sucessivamente, antes que aquele negócio se efetive, os seguintes direitos: o direito (creditório) a que lhe sejam notificados os termos essenciais do projeto de alienação; o direito (potestativo) de, na sequência desta notificação, declarar que pretende preferir – declaração esta que, conjugada com a do notificante, dará origem a uma relação creditória equiparável, pelo seu conteúdo e efeitos, a um contrato-promessa bilateral, ou tornará mesmo perfeito o contrato definitivo, se em ambas as declarações (a do obrigado à preferência, que equivale a uma proposta de contrato, e a do preferente, que se traduz na aceitação dessa proposta) houver sido observada a forma exigida para a celebração deste contrato; finalmente, o direito (creditório) de exigir, após  ter declarado a vontade de exercer a vontade de exercer a preferência, que o obrigado a esta realize com ele o negócio projectado, sempre que aquela declaração não basta para o consumar”

- Obrigações Reais e Ónus Reais, 1990, pp.225/228 –

Importa, ainda, referir que concebida enquanto proposta contratual, a comunicação para preferência é, salvo declaração em contrário, irrevogável depois de ser recebida pelo destinatário ou de ser dele conhecida (n.º 1 do artigo 230.º do Código Civil)

Deste modo, a notificação do obrigado à preferência, como uma verdadeira proposta contratual que é, contendo todos os elementos necessários à decisão do preferente, uma vez aceite torna-se vinculativa.

Por outro lado, e relativamente à aplicação do disposto no artigo 830.º do Código Civil, Menezes Leitão refere que, “a nosso ver, com a comunicação e exercício da preferência, ambas as partes formulam uma proposta de contrato e respectiva aceitação, que em princípio deveria implicar sem mais a celebração do contrato definitivo, desde que estejam preenchidos os seus requisitos de forma. Quando tal não suceda essas declarações poderão ainda valer como promessas de contratar, caso tenha sido observada a respectiva forma, o que permitirá o recurso à execução específica prevista no artigo 830.º em caso de não cumprimento.”

- Direito das Obrigações, volume I, Introdução da Constituição das Obrigações, 2000, pp.225/226 –

No mesmo sentido, Calvão da Silva, “Será de admitir a execução específica nos termos do art. 830.º? A questão é pertinente quando a celebração do contrato dependa de forma escrita não contida na comunicação do obrigado à preferência (art. 416.º n.º 1) e na declaração do preferente – se a comunicação do obrigado e a resposta do preferente obedecem aos requisitos do art. 410.º n.º 2, concluir-se-á um contrato-promessa; logo, a execução específica nos termos do art.º 830.º é possível”

- Cumprimento e Sanção Compulsória, in Separata do volume XXX do Suplemento do Boletim da FDUC, p.501 –

Assim, e em conclusão, como vem afirmado no Acórdão do STJ, de 9 de abril de 2019, “pode afirmar-se que a orientação deste Supremo tem sido a de reconhecer eficácia real ao direito legal de preferência e de aceitar que, no caso de incumprimento, fica o devedor vinculado à realização do negócio e o preferente investido no direito potestativo de exigir que, por decisão judicial, seja constituído o seu direito de propriedade sobre a coisa, não podendo o obrigado desistir do negócio projectado. Tem sido salientado que «a notificação para preferir ficaria despojada de qualquer sentido útil se o obrigado pudesse desistir livremente do negócio, perante resposta positiva do preferente; na verdade, todo o mecanismo legal relativo ao direito de preferência visa, por um lado, possibilitar o exercício desse direito e, por outro, evitar situações de conflito a dirimir por via judicial (as frequentes acções de preferência), por omissão da notificação».

 Como se sabe, o actual Código Civil estabelece várias restrições à autonomia da vontade, desde logo, com os direitos legais de preferência, mas também com o estabelecimento, em princípio, da irrevogabilidade da proposta de contrato, depois de ela ter sido recebida pelo destinatário ou de ser dele conhecida (cf. arts. 224º, nº 1, e 230º). No plano adjectivo, é também isso mesmo que se reconhece com o art. 1028º do CPC, norma que estatui que a resposta positiva do notificado para a preferência judicial vincula à celebração do contrato.

Perfilhando esta segunda via, também nós entendemos que a notificação extrajudicial a que alude a norma do art. 416º do CC e que contenha os elementos necessários à decisão do titular do direito de preferência consubstancia uma proposta contratual e a declaração de vontade que o mesmo emita, na sequência dessa notificação, de exercer o direito (potestativo), uma vez recebida pelo vinculado à prelação, perfecciona o contrato, mesmo que sujeito a forma, desde que esta seja observada pela comunicação do obrigado e pela resposta do preferente.

Porém, no caso em apreço, como as aludidas comunicação e resposta foram contidas em documentos que, embora assinados, não preencheram os especiais requisitos formais previstos no art. 875º do CC, de que a celebração do contrato dependeria (por se tratar de um imóvel), deve entender-se que se concluiu um contrato-promessa (cf. artigo 410º, nº 2, do CC) com as respectivas consequências, entre as quais a possibilidade de a A obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial da R faltosa”.

No caso presente, encontra-se provado que:

1.4. Por carta datada de 17 de Junho de 2017, embora na verdade tenha sido expedida em 17 de Julho de 2017, a Sra. Dra. GG, na qualidade de advogada da herança indivisa aberta por óbito de FF, de que as Rés são as únicas titulares, remeteu uma carta registada à entretanto falecida EE, na qual comunicou a intenção das Rés de vender a fracção autónoma em causa, pelo preço de €120.000,00 (cento e vinte mil euros), sendo a venda realizada por meio de procedimento especial de transmissão e registo imediato de prédios em atendimento presencial único (Casa Pronta) na 2ª Conservatória do Registo Predial ......, no dia 27 de Julho de 2017, às 10,30 horas, conferindo à arrendatária a faculdade de exercer o direito de preferência no contrato acima referido, devendo, no prazo de 8 (oito) dias exercer esse direito que a lei lhe confere, pelo preço acima indicado.

1.5. A falecida EE, por carta datada de 25 de Julho de 2017, comunicou à Ré CC, cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de FF, exercer o direito de preferência na compra da fracção autónoma em causa, nos precisos termos do projecto de venda que lhe havia sido comunicado, para o que compareceria na data, hora e local indicados para a celebração do contrato de compra e venda, procedendo ao pagamento do preço.

1.6. A carta que a falecida EE remeteu a exercer o direito de preferência na compra da fracção autónoma em causa foi recebida pela Ré CC em 26 de Julho de 2017.

1.7. No dia 27 de Julho de 2017, às 10,30 horas, a falecida EE compareceu na 2ª Conservatória do Registo Predial ....... para o procedimento de transmissão imediata Casa Pronta, mas foi informada de que não se encontrava agendado nenhum procedimento em seu nome.

1.8. A falecida EE estava preparada para, na data e hora indicadas e através do procedimento Casa Pronta, outorgar a compra a fracção autónoma em causa a seu favor, nos precisos termos e condições que as Rés indicaram, tendo procedido à liquidação do IMT e imposto de selo que seria devido pela compra e sendo portadora de um cheque que emitira a favor da Ré CC, no valor de €120.000,00 (cento e vinte mil euros), que visara junto da Caixa Geral de Depósitos e que se destinava ao pagamento do preço de compra.

1.9. Já depois de ter comparecido, na data e hora marcada pelos Rés, na 2ª Conservatória do Registo Predial ....... para o procedimento Casa Pronta, a falecida EE recebeu uma carta da Ré CC, datada de 25 de Julho de 2017, comunicando terem as Rés decidido não proceder à venda da fracção.

Tendo presente o que atrás se referiu e os factos provados, o Acórdão recorrido bem decidiu quando refere que a comunicação efetuada preenche os requisitos legais e necessários para uma tomada de decisão cabal pela preferente, identificando claramente o objeto da compra e venda, o terceiro interessado, o preço da aquisição e indicando, aliás, o dia e hora para a celebração da escritura pública ou título de venda.

Por outro lado, a resposta de EE, dada por carta de 25 de julho de 2017, recebida pela ré CC em 26 de julho de 2017, mostra-se clara no sentido de demonstrar a sua pretensão a exercer o direito de preferência nos precisos termos e condições do projeto de venda que lhe havia sido propostos pelas proprietárias, tendo ainda comunicado que compareceria na data, hora e local indicados para a celebração do contrato (o que fez, como se encontra provado), procedendo ao pagamento do preço por meio de cheque.

Esta aceitação por parte da falecida EE vincula as Rés à celebração do contrato, nos termos do projeto comunicado.

A comunicação de 17 de julho de 2017, enquanto proposta contratual, que é, dirigida a EE, deve ser tida como irrevogável, nos termos dos artigos 224º, n.º 1 e 230º, n.º 1 do Código Civil, não facultando a lei o exercício do direito ao arrependimento, até porque ainda que as Rés tenham dirigido à falecida EE uma carta, com data de 25 de julho de 2017, dando conta que já não pretendiam vender a fração, tal comunicação foi recebida apenas depois da preferente ter comparecido no dia agendado (27 de julho) para a celebração do negócio, ou seja, a retratação não ocorreu ao mesmo tempo que a proposta (cf. artigo 230º, n.º 2 do Código Civil).

A comunicação para preferir e a resposta preferente, ainda que vertidas em documentos escritos e assinados pelas partes, não preencheram os requisitos formais previstos no artigo 875º do Código Civil de que a celebração do contrato de compra e venda do imóvel depende, pelo que, como atrás se referiu, deve entender-se que as partes concluíram um contrato-promessa – cf. artigo 410º, n.º 2 do Código Civil.

Tendo sido celebrado entre as partes um contrato-promessa, deve retirar-se as necessárias consequências, entre elas, a possibilidade de os Autores obterem sentença que produza os efeitos da declaração negocial das Rés faltosas.

Deste modo, e quanto a esta questão, o Acórdão recorrido não merece qualquer censura.


4. Do término do contrato de arrendamento por falecimento da arrendatária

As Recorrentes referem, quanto a esta questão, que a possibilidade de a falecida arrendatária adquirir o imóvel resulta do direito legal de preferência de que esta é titular, enquanto arrendatária, tendo o contrato de arrendamento caducado por morte da arrendatária e, não obstante estarmos perante uma ação de execução específica, e não uma ação de preferência, o certo é que as partes não celebraram um contrato-promessa, o que ocorreu foi uma comunicação de preferência e a respetiva resposta.

O direito de preferência do arrendatário na aquisição do imóvel resulta do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil.

O contrato de arrendamento caduca por morte do arrendatário (alínea d) do artigo 1051.º do código Civil).

No caso presente, é um facto que o direito de preferência legal de EE resulta da ser titular de um contrato de arrendamento; a EE faleceu no dia 10 de agosto de 2018, pelo que o contrato de arrendamento caducaria por sua morte.

Contudo, como referem as próprias Recorrentes não estamos em presença de uma ação de preferência, mas de uma ação de execução específica, sendo que, ao contrário do que referem, e pelo atrás exposto, estamos em presença de um contrato-promessa e, assim, os direitos decorrentes da celebração do contrato-promessa integram a herança da EE.

Como se afirma na decisão recorrida, estando em causa um direito de natureza obrigacional (o direito a exigir que as obrigadas realizem o negócio projetado), ocorrendo o decesso de um dos promitentes, a titularidade do direito de ação radica-se em quem lhe suceder no crédito ou no débito, enquanto credor ou devedor em mora.

Assim, o direito de crédito gerado para a falecida após a sua aceitação e exercício do direito de preferência, transmitiu-se aos seus herdeiros sucessores, os ora Autores/Apelantes, como titulares dos direitos e obrigações da herança e em sua representação.

- Aliás, as Recorrentes só se insurgem contra esta solução encontrada pelo Acórdão recorrido, por no seu entendimento, que já se referiu não ser de acompanhar, não foi celebrado um contrato-promessa mas ocorreu uma mera comunicação de preferência –

Deste modo, também, nesta questão as Recorrentes não têm razão.


5. Da ineficácia da proposta contratual por falta de poderes da mandatária

As Recorrentes referem que a comunicação para preferência foi enviada pela Advogada Dra. GG e que não está junta aos autos uma procuração que permitisse à referida mandatária vender ou prometer vender, nem resulta da comunicação enviada que sequer tenha sido enviada em anexo alguma procuração.

Assim, verificar-se-ia a ineficácia da proposta contratual por falta de poderes da mandatária.

Nas suas contra-alegações, os Autores referem que esta é uma questão nova, que não pode ser conhecida neste recurso.

Como se sabe, os recursos, por natureza, visam a reapreciação das decisões judiciais, visam uma alteração do decidido, pelo que não podem ser um meio de introduzir questões novas e assim obter decisões diferentes com base numa fundamentação que não podia ter sido considerada na instância recorrida.

- cf. Acórdão do STJ, de 21 de abril de 2016, in Sumários, abril/2016, p.42 –

As questões novas que podem ser apreciadas, em sede de recurso de revista, são as questões de conhecimento oficioso.

Efetivamente, a questão que as Recorrentes agora colocam não foi suscitada nos articulados nem no recurso de apelação, sendo certo que até ao momento do recurso de revista, as Rés eram representadas nestes autos pela Sra. Dra. Isabel Felício Maques.

Assim, sendo uma questão nova, esta questão não pode ser apreciada no recurso de revista.


6. Da nulidade da proposta contratual por ilegitimidade da cabeça de casal para a disposição de bens

As Recorrentes referem que a existir uma proposta de contrato, esta é nula, por ilegitimidade da cabeça-de-casal para a venda do imóvel que pertença à herança indivisa e essa nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, conforme refere o artigo 286.º do Código Civil.

Os Autores/Recorridos referem, nas suas contra-alegações que estamos em presença de uma questão nova que não pode ser conhecida e que, por outro lado, a Ré DD contestou a presente ação e não suscitou a questão do seu desconhecimento do negócio antes pelo contrário.

Como atrás se referiu, os recursos não servem para apreciar questões novas, a não ser aquelas que sejam de conhecimento oficioso.

Prescreve o artigo 2091.º do Código Civil que “fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”.

No caso presente, a ação foi intentada contra as Rés/Recorrentes, únicas herdeiras de FF, pelo que a ação foi intentada contra quem o deveria ser.

Por outro lado, verifica-se que as Rés, até ao recurso de revista, constituíram mandatária a Sra. Dra. GG, mandatária que enviou à arrendatária a missiva, em nome da cabeça de casal, para preferência, a EE.

Em toda a intervenção processual nestes autos, a Recorrente DD não impugnou a realização do contrato-promessa e o seu desconhecimento, antes pelo contrário, em todos os momentos aceitou ter participado no negócio, reconheceu a celebração do negócio, qualificando-o, é certo, de forma diversa da qualificação efetuada pelo Tribunal da Relação de ......

Aliás, como resulta dos elementos constantes dos autos, que a Recorrente DD aceitou, as herdeiras tinham um projeto de venda e que era aquele a que comunicaram à EE.

Assim, no documento de fls. 19 dos autos em papel, EE refere expressamente que lhe tinha sido comunicada a “intenção dos titulares da referida herança de proceder à venda da fracção”, bem como foi comunicada à referida EE que “Acontece, contudo, que as herdeiras decidiram hoje não proceder à venda da dita fracção, motivo pelo qual não existe preferência alguma a exercer” (documento de fls.24 dos autos em papel).

Na sua própria contestação, a Ré DD refere “Por carta datada remetida em 17 de Julho de 2017, embora por lapso de escrita datada de 17 de Junho de 2017, foi conferido a EE, na sua qualidade de, à data, arrendatária da identificada fracção autónoma, a faculdade de exercer o direito de preferência na projectada compra e venda acordada com II e JJ” – artigo 8.º

“Ainda por essa mesma carta foi a dita arrendatária informada das condições do negócio: identidade dos compradores, preço, data, hora e local da celebração de escritura pública de compra e venda”. –  artigo 9.º

E no artigo 10.º da contestação, escreve que “Contudo, por divergências então surgidas entre as então herdeiras, as R.R., por carta datada de 25 de Julho de 2017 (e nessa mesma data colocada no correio), foi comunicado à então arrendatária, a dita EE, a decisão de não procederem à venda da fracção”.

Desta forma, todo o comportamento processual da Ré DD, demonstra que o negócio foi celebrado entre a EE e as Rés, então titulares da herança aberta por óbito de FF.

Assim, também nesta parte, as Recorrentes não têm razão.


7. Da inconstitucionalidade por violação do artigo 62.º da CRP

As Recorrentes invocam a violação do disposto no artigo 62.º da CRP, referindo que a interpretação conjugada dos artigos 410.º, 416.º e 830.º do Código Civil, nos termos em que o faz o Tribunal da Relação ......, é violadora daquele preceito legal.

A esta questão já o Acórdão recorrido havia respondido e bem:

“E esta conclusão não fere, como já resulta do anteriormente expendido, qualquer violação dos direitos/princípios convocados pelas rés/recorridas (princípio da autonomia privada e princípio constitucional da propriedade privada previsto no art. 62º da Constituição da República Portuguesa), desde logo porque o direito de preferência do arrendatário integra o regime geral do contrato de arrendamento, contrato cuja celebração decorre da livre iniciativa das partes.

Tal direito é fixado em termos de conciliação entre os vários valores e interesses em presença, designadamente sociais e económicos (não tendo sido, no caso concreto, suscitado o princípio de acesso a habitação própria – cf. art. 65º, n.º 2, c) da Constituição da República Portuguesa), que sobrelevam no âmbito do regime do arrendamento e dele não decorre uma restrição tão ampla do direito de propriedade que afecte o exercício do direito de alienação do imóvel, não se revelando desproporcionada ou desrazoável a respectiva consagração legal”.

Por outro lado, aderindo ao afirmado pelo Acórdão do STJ, de 27 de novembro de 2018, “não resulta do regime do direito legal de preferência, mais precisamente de preempção, nos termos acima considerados, violação dos princípios invocados nas conclusões 14ª e 15ª, maxime do direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida, garantido no art. 62º da Constituição (direito garantido no quadro dos direitos económicos).

O direito de preferência do arrendatário, previsto na alínea a) do nº 1 do art. 1091º do CC (encurtado o prazo de arrendamento para a constituição do direito, na redação da Lei 64/2018) é um elemento do regime do contrato de arrendamento, cuja celebração inteiramente depende da livre iniciativa das partes.

A conformação do direito em causa visa a concordância prática dos vários valores e interesses coenvolvidos, não se revelando desproporcionada, em termos do contido grau de limitação introduzido no direito da alienação do imóvel [não é, no caso, especificamente convocado o «acesso à habitação própria» - art. 65º, nº 2, alínea c) da Constituição].

Tem-se por atual o juízo produzido por Antunes Varela, no final da anotação ao acórdão deste tribunal, de 22.2.84 (RLJ, 3777, cit., 363): «(…) os fins de interesse social subjacentes aos diversos direitos legais de preferência só têm a lucrar com a possibilidade que a solução mais rigorosa para o alienante confere ao preferente de ajustar, até à última hora, a sua reacção à comunicação recebida»”.


Deste modo, o recurso tem de improceder, e a bem fundamentada decisão do Tribunal da Relação de ...... deve ser confirmada.

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em negar a revista, e, consequentemente, em confirmar o Acórdão recorrido.

Custas pelas Recorrentes.


Lisboa, 9 de março de 2021


Pedro de Lima Gonçalves (relator)    

Fátima Gomes           

Acácio das Neves


Nos termos do disposto no artigo 15.º-A do decreto – Lei n.º20/2020, de 1 de maio, declara-se que têm voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros Fátima Gomes e Acácio das Neves