I – A regra, segundo a qual a administração cabe por igual, a todos os comproprietários, não é um princípio de ordem pública e cede perante convenção dos consortes, em sentido contrário, tomada por maioria nos termos da lei.
II – Da conjugação do regime específico do n.º 1 do artigo 1407.º com o artigo 985.º, ambos do Código Civil, resulta que as deliberações da assembleia de comproprietários devem ser tomadas por maioria, desde que votem no mesmo sentido mais de metade dos consortes e desde que estes representem, pelo menos, metade do valor das quotas.
III – Assim, nos termos dos factos provados n.ºs 12 e 13, estes requisitos estão verificados. A Assembleia, em que foi votada favoravelmente a nomeação dos RR DD e CC como Administradores, contou com a presença de 66,66% da compropriedade (facto provado n.º 12). Os comproprietários que manifestaram adesão ao deliberado representam 83,30% da compropriedade (facto provado n.º 13).
IV – A tese do acórdão recorrido, exigindo, a nosso ver, sem fundamento legal, que as deliberações da assembleia de comproprietários relativas à administração da coisa comum (em que se inclui o poder de designar os administradores) sejam aprovadas, por unanimidade dos consortes, permite a um dos comproprietários boicotar o exercício de poderes de administração nos termos decididos pela maioria, correndo-se o risco de paralisação da exploração dos bens, resultado que o legislador não deseja.
V – Nos termos da jurisprudência e da doutrina, a aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, e exige-se a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, sob pena de se tratar de uma remissão genérica e subjetiva para a materialidade da situação.
I - Relatório
1. AA propôs ação declarativa de condenação sob forma comum contra BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH, estando todos regularmente identificados nos autos.
Alegou em síntese serem todos comproprietários do prédio sito na Rua …, n°…, em …, tendo-se realizado reunião convocada pelos RR DD e EE no dia 8 de novembro de 2017, pelas 18h00, convocatória realizada ao abrigo do disposto nos artigos 1407°, n°1 e 985°, ambos do CC.
A Autora, reagindo à convocatória, por carta datada de 6 de novembro de 2017, afirmou aos convocantes ser a mesma extemporânea, uma vez que era necessário proceder à regularização da compropriedade por força da partilha judicial, quer no registo predial, quer na matriz predial. Todavia, a reunião teve lugar nela tendo estado presentes os RR BB, CC, DD e EE, tendo sido lavrada ata da mesma.
A Autora sustenta que a deliberação tomada deve ser declarada nula:
- por ter sido convocada para a administração de um imóvel alegadamente em regime de compropriedade, sem que houvesse convergência entre os titulares inscritos no registo predial e os destinatários da convocatória;
- por a ordem de trabalhos ter sido alterada de forma unilateral pelos quatro primeiro RR, sem que estivessem presentes os demais herdeiros, entre os quais a Autora, que dessa alteração apenas tiveram conhecimento com a notificação do teor da ata:
- por ter procedido à nomeação de uma administração de todos os bens que integram a herança de II; e ainda por violação de normas imperativas quanto à compropriedade.
Conclui pedindo declaração de nulidade da reunião de comproprietários do acervo hereditário.
Os RR contestaram, impugnando a versão dos factos trazida a juízo pela Autora e apresentando reconvenção. Negaram a existência de qualquer vício na decisão tomada na reunião identificada nos autos, concluindo pela improcedência do pedido formulado a tal propósito. Mais ainda, em sede de reconvenção pediram o reconhecimento da validade da deliberação tomada, o reconhecimento da validade e legitimidade da administração dos comproprietários DD e CC sobre todos os bens integrados na herança de II, sendo a reconvinda condenada a abster-se de qualquer ato de administração ordinária sobre os mesmos bens, diretamente ou por interposta pessoa, bem como a entregar aos RR reconvintes DD e CC enquanto administradores da compropriedade toda a documentação à mesma respeitante, incluindo contratos de arrendamento e/ou subarrendamento, identificação de todos os inquilinos, contabilidade, indicação de contas bancárias e respetivos saldos, demais papéis relativos aos prédios administrados (plantas, decisões camarárias, levantamento topográfico e/outros), bem como a sua condenação em custas e demais encargos legais.
A Autora respondeu à reconvenção, mantendo o antes alegado e pugnando pela improcedência dos pedidos formulados em tal sede.
Realizou-se audiência prévia, tendo-se gorado a tentativa de conciliação. As partes foram convidadas a pronunciarem-se sobre o conhecimento imediato do mérito da causa. Nada foi oposto a tal solução, tendo apresentado verbalmente a sua posição quanto aos factos e Direito.
Nos termos do disposto no artigo 266°, n°1, n°2, al. c), bem como no n°3 do citado preceito, este último a contrario sensu, todos do CPC, foi admitido o pedido reconvencional formulado nos autos.
Face aos elementos documentais juntos aos autos considerou o tribunal a quo que os mesmos dispunham de todos os elementos necessários para proferir decisão quanto ao mérito da causa.
2. Foi proferido saneador sentença, do qual consta o seguinte segmento dispositivo:
«Face ao que precede e com os fundamentos expostos julgo decide-se:
A) Julgar a acção proposta pela Autora AA contra os RR BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH, improcedente por não provada não declarando a nulidade da deliberação tomada pelos quatro primeiros RR na reunião de comproprietários que teve lugar no dia 8 de Novembro de 2017 e que consta da acta n°1.
B) Julgar procedente o pedido reconvencional formulados pelos RR/reconvintes BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH contra a Autora/reconvinda e em consequência, condenar AA, reconhecendo-se a validade da deliberação tomada, a validade e legitimidade da administração dos comproprietários DD e CC sobre todos os bens integrados na herança de II, bem como o dever da reconvinda de se abster-se de qualquer acto de administração ordinária sobre os mesmos bens, directamente ou por interposta pessoa e a entregar aos RR reconvintes DD e CC enquanto administradores da compropriedade toda a documentação à mesma respeitante, incluindo contratos de arrendamento e/ou subarrendamento, identificação de todos os inquilinos, contabilidade, indicação de contas bancárias e respectivos saldos, demais papéis relativos aos prédios administrados (plantas, decisões camarárias, levantamento topográfico e/outros),
C) Custas pela Autora/Reconvinda»
3. Inconformada com a sentença, a Autora interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação decidido julgar procedente o recurso, revogando a sentença recorrida, e consequentemente, julgado:
- procedente a ação, declarando-se a nulidade das deliberações aprovadas na assembleia de comproprietários de 08/11/2017;
- improcedente o pedido reconvencional absolvendo a A./Apelante do pedido.
4. Inconformados, os réus interpõem recurso de revista, em que pedem a revogação do acórdão recorrido, formulando, na sua alegação de recurso, as seguintes conclusões:
«A – O assunto dos autos é essencialmente uma questão de interpretação do Direito, no sentido de saber se, por deliberação tomada pelos Recorrentes pode, ou não, ter atribuído a vários consortes, o direito de administração do imóvel em compropriedade total, nos termos do disposto conjuntamente nos arts. 1407.º e 985.º. n.º 1 do C.C;
B - O Tribunal a quo proferiu acórdão no sentido de que, “…na falta de qualquer convenção sobre a administração do bem em compropriedade, todos os comproprietários têm igual poder para administrar e qualquer deliberação/regulamento a que os consortes eventualmente subordinem a administração da coisa comum carece de acordo de todos os comproprietários.”
C - A tese defendida pelo Tribunal a quo, de acordo com a qual a deliberação de atribuição da administração careceria sempre do acordo de todos os comproprietários, não pode ter colhimento por razões de natureza legal, doutrinária e jurisprudencial;
D - Por razões de natureza legal; se na compropriedade horizontal é permitido atribuir os poderes de administração a um ou vários consortes, sem unanimidade, contra o voto de qualquer dos demais consortes, por uma minoria de 1/4 dos proprietários, então, por maioria de razão, também a atribuição dos poderes de administração na compropriedade total, deve ser admitida, desde que respeitadas as maiorias expressas para o efeito estabelecidas no n.º 2 e seguintes do art.º 985.º do C.C.
E. Por razões de natureza Doutrinal; os Senhores Professores Pires de Lima e Antunes Varela, debruçando-se sobre o tema dos autos, concluíram que: “em face dos textos dos artigos 1407.º e 1408.º, só ser necessário o consentimento de todos os consortes para os actos de alienação ou operação da coisa comum ou de parte especificada dela; para todos os demais basta, mesmo havendo oposição, a vontade da maioria legal (…) o normativo não prescinde do elemento maioritário pessoal, para evitar que a minoria dos comproprietários se imponha à vontade da maioria. Mas exige ao mesmo tempo que que a maioria dos consortes represente, pelo menos, metade do valor total das quotas, para impedir que os condóminos cujas quotas representem um menor interesse possam impor a sua vontade àqueles que detêm um interesse maior.”
F. Por razões de natureza Jurisprudencial: a decisão sobre a qual incide grande parte das argumentações da Recorrida e seguidas pelo Tribunal a quo, emitida pelo Presidente do IRN, com o n.º R. P. 307/2007 DSJ-CT. foi revogada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto com o n.º 1004/08.0TJPRT.P1, de 12.01.2010, que concluiu: “….não ocorre nulidade (ou invalidade de oficioso conhecimento) pelo facto do regulamento em questão não ter sido aprovado pela unanimidade dos comproprietários e respeitar a matéria que excede a gestão ordinária da coisa comum. (…) Os preceitos legais relativos ao uso e administração da coisa comum não têm natureza imperativa ou cogente, não estando neles em causa qualquer interesse público predominante. (…) A aprovação de um regulamento relativo à administração da coisa comum sem unanimidade lesa tão só interesses particulares – os interesses do(s) comproprietário(s) que não deu(ram) o seu acordo a um tal regulamento. (…) A matéria em causa não está arredada da disponibilidade das partes (não respeita a interesses de ordem pública) – daí que esteja afastada a possibilidade de considerar que a sua inobservância seja geradora de nulidade. (…) Corroborando este entendimento, importa atentar no lugar paralelo estabelecido no art. 1407º, nº 3 do C.C., em que a lei comina com a anulabilidade o acto (de administração) realizado pelo comproprietário contra a oposição da maioria legal dos consortes. Nestes casos, em que o acto jurídico afecta os interesses da maioria dos comproprietários e é levado a cabo contra a sua vontade, a lei comina a infracção com a anulabilidade, e não já com a nulidade. (…) Tem assim de concluir-se que o regulamento de administração de coisa comum não aprovado pela unanimidade dos comproprietários não padece de vício gerador de nulidade (ou invalidade de oficioso conhecimento).”
G. A falta de unanimidade dos consortes na convenção para a administração do imóvel em compropriedade total, nos termos do conjugado nos arts. 1407.º e 985.º do C.C., não gera nulidade, mas sim anulabilidade;
H. A Recorrida peticionou nos autos que o Tribunal: “…julgue nula a deliberação…”, pelo que, salvo o devido respeito, parece-nos claro que o seu pedido nunca poderia proceder;
I – Deste modo, não se vislumbrando a violação pelos Recorrentes do disposto nos arts. 985 e 1047 do C.C. e não existindo qualquer nulidade dos actos praticados por eles praticados, deve ser proferida decisão que revogue o acórdão recorrido, sendo consequente e definitivamente, proferida decisão que julgue a absolvição dos Recorrentes do pedido inicial e a condenação da Recorrida no pedido reconvencional, com o que se fará plena e habitual Justiça!»
5. A Autora apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
«1ª Decorre dos artigos 1407º, nº 1 e 985º nº 1 do Código Civil, que todos os comproprietários têm igual poder para administrar, sempre que não haja convenção em contrário.
2ª Só assim não é quando os comproprietários tenham celebrado convenção noutro sentido, o que carece sempre do acordo de todos os comproprietários.
3ª A ora Recorrida não deu o seu acordo a que a administração da coisa comum passasse a ser efetuada apenas pelos consortes designados em deliberação tomada pelos Recorrentes na assembleia de comproprietários de 08/11/2017.
4ª Também não foi aprovado qualquer regulamento da compropriedade de onde possa ser extraído um qualquer acordo conferindo a administração a apenas dois comproprietários, estabelecendo regra diversa da que decorre da lei relativamente à administração da coisa comum.
5ª Não resultando provado e não existindo qualquer acordo entre os comproprietários quanto à administração da coisa comum, terá de prevalecer a regra estabelecida nos artigos 1407º, nº 1 e 985º, nº 1 do Código Civil, que atribui igual poder de administração aos comproprietários.
6ª Em consequência, a deliberação da assembleia de comproprietários de 08/11/2017, ao determinar que a administração dos bens que integraram a herança de II fosse entregue aos consortes CC e DD, retirando à ora Recorrente, sem o seu acordo, os poderes de administração que lhe cabem, encontra-se ferida de nulidade por violação do disposto nos artigos 1407º, nº 1 e 985º, nº 1, ambos do CC.
7ª Tal deliberação é ainda nula porque viola o direito de compropriedade da Recorrente, limitando-o em termos que a lei não consente sem o seu acordo, já que a impede de exercer um poder inerente a esse mesmo direito de compropriedade.
8ª Não estão em causa concretos atos de administração, em relação aos quais releva a vontade da maioria, o que pressupõe, porém, que todos os comproprietários se encontrem investidos nesse poder de administrar, que a deliberação da assembleia de comproprietários pretendeu retirar à ora Recorrida.
9ª O poder de administrar a coisa comum é inerente ao direito de compropriedade e a lei apenas prevê a restrição a esse direito de compropriedade em caso de acordo dos consortes, o que não ocorreu na situação sub judice.
10ª Está em causa o conteúdo essencial do direito de compropriedade já que, sem o poder de administração, tal direito fica limitado de forma totalmente inaceitável e ao arrepio da lei fundamental.
11ª O entendimento de que a reunião dos sufrágios de mais de metade dos consortes é suficiente para a restrição do direito que cabe a cada um deles, retirando-lhe o poder de administração da coisa comum, viola o direito de propriedade previsto constitucionalmente, conforme artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.
12ª A deliberação da assembleia de comproprietários, violando o conteúdo essencial do direito de compropriedade, viola o citado preceito constitucional e, consequentemente, encontra-se ferida de nulidade.
13ª A norma do artigo 985º do CC, aplicável à compropriedade ex vi do artigo 1407º, nº 1 do CC, interpretada no sentido de que é permitida a restrição de um direito por maioria de votos, é inconstitucional por violação do artigo 62º da CRP.
14ª Caso assim não venha a ser entendido, no que não se concede e apenas por mera cautela de patrocínio se menciona, nos termos do disposto no artigo 636º, nº 1, do CPC, a ora Recorrida, prevenindo a necessidade da sua apreciação caso venham a ser acolhidos os fundamentos do presente recurso, desde já requer que o Tribunal ad quem conheça dos demais fundamentos constantes das suas conclusões no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de …, cuja apreciação se entendeu desnecessária por ter ficado prejudicada e que se indicam nas conclusões subsequentes.
15ª Assim, a assembleia de comproprietários realizada, conforme consta da respetiva convocatória, respeitava ao prédio sito na Rua …, nº …, em … .
16ª A ora Recorrida apenas foi convocada para a assembleia de comproprietários do indicado prédio, nunca o tendo sido para qualquer assembleia de comproprietários dos demais bens que integraram a herança de II.
17ª Os Recorrentes deliberaram sobre a administração de todos os bens que integraram a herança de II sem que, previamente, tenham convocado a ora Recorrida, enquanto comproprietária, para a referida assembleia.
18ª Tal deliberação sobre a administração dos demais bens que integraram a herança de II foi tomada à revelia de um dos comproprietários, que não foi convocado para tal.
19ª Os Recorrentes estavam obrigadas a cumprir as formalidades referentes à convocatória da reunião, nomeadamente as estabelecidas no artigo 174º do Código Civil, aplicável à convocatória da assembleia de comproprietários ex vi do artigo 157º do CC e por analogia.
20ª O cumprimento ou não de tais formalidades não poderá ficar na disponibilidade dos Recorrentes, dando lugar ao livre arbítrio e a incertezas que poderão pôr em causa a efetiva administração e preservação dos bens em compropriedade.
21ª Pelo que, a deliberação de 08/11/2017 é nula pois foi tomada sem que a ora Recorrida, enquanto comproprietária, tivesse sido convocada para a assembleia em que a mesma foi aprovada.
22ª Acresce que, ao terem convocado a assembleia de comproprietários do prédio sito na Rua …, nº …, em …, com a finalidade de serem designados os “comproprietários para exercer a administração da compropriedade”, os Recorrentes agiram de forma a fazer crer à ora Recorrida que a referida assembleia respeitaria exclusivamente à compropriedade daquele prédio e não à de todos os bens já partilhados que integraram a herança de II.
23ª Aquela situação de confiança criada pelos Recorrentes provocou na Recorrida a necessidade de tomar algumas decisões, entre as quais a de não comparecer na assembleia de comproprietários para que foi convocada, que a Recorrida confiava respeitar ao prédio sito na Rua …, nº …, em …, impedindo-a de tomar posição quanto à administração dos demais bens que integraram a herança de II, sobre cuja administração os Recorrentes deliberaram à revelia da Recorrida, prejudicando-a no exercício dos poderes que lhe assistem enquanto comproprietária.
24ª Os Recorrentes valeram-se da ausência da Recorrida para deliberarem sobre a administração dos restantes bens em compropriedade, bem sabendo que esta não tinha sido convocada para esse fim, o que revela uma evidente má-fé por parte daqueles.
25º A Recorrida encontrava-se de boa-fé ao confiar que a assembleia realizada versaria apenas sobre o prédio sito na Rua …, nº …, em …, desconhecendo qualquer divergência entre o que lhe foi comunicado, que respeitava à administração prédio sito na Rua …, nº …, em …, e aquilo sobre o que os Recorrentes entenderam deliberar, que versou sobre todos os bens que integraram a herança de II.
26ª Consequentemente, além da situação objetiva de confiança, a atuação dos Recorrentes também originou um investimento na confiança por parte da ora Recorrida, que se encontrava de boa-fé.
27ª A atuação dos Recorrentes, ao comunicarem à ora Recorrida que convocavam a assembleia de comproprietários do prédio sito na Rua …, nº …, em …, a fim de deliberar sobre a sua administração, tendo deliberado posteriormente, na ausência da Recorrida, sobre a administração de todos os bens que integraram a herança de II, traduz-se num “venire contra factum proprium”.
28ª Pelo que, a deliberação aprovada na assembleia de comproprietários de 08/11/2017 é também nula por violação do disposto no artigo 334º do Código Civil.
Nestes termos e nos melhores de Direito aplicável que V. Exas. não deixarão de doutamente suprir, deve ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se o acórdão recorrido, com o que será feita a habitual JUSTIÇA».
Delimitação do objeto do recurso
Sabido que o objeto do recurso, conforme o disposto nos artigos 635.°, n.° 2 e 639.°, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 608.°, n.° 2, do CPC, a única questão a decidir é a da nulidade da deliberação da assembleia de comproprietários tomada a 8 de novembro de 2017, em face dos artigos 1407.º e 985.º, n.º 1, do Código Civil.
A recorrida, nas suas contra-alegações, pretende ampliar o objeto do recurso, nos termso do artigo 636.º, n.º1, do CPC, à questão de saber se a deliberação de 08/11/2017 é nula pelo facto de ter sido alterada a ordem de trabalhos da assembleia de comproprietários tal como constava na convocatória, por violação dos artigos 174° do Código Civil, aplicável por analogia, ex vi do artigo 157° do mesmo Código, ou em alternativa, por abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium.
Cumpre apreciar e decidir.
II — Fundamentação de facto
1. A Autora e os RR foram herdeiros de II, tendo a primeira sido cabeça-de-casal.
2. A herança aberta por falecimento de II foi já partilhada, tendo a sentença homologatória da partilha transitado em julgado em 18 de abril de 2017 proferida no processo que correu termos sob o n° 896/05.0… junto do Juízo Local … de … - Juiz … .
3. Por carta datada de 23 de Outubro de 2017 os RR DD e EE convocaram uma assembleia para comproprietários do prédio sito na Rua …, n°…, …, a ter lugar no dia 8 de novembro de 2017 pelas 18h00 na Avenida …, n°…, … …, em … .
4. A ordem de trabalhos da reunião continha como único ponto "Designação dos comproprietários para exercer a administração da compropriedade".
5. Na data da convocatória, e ainda hoje, figurava no registo predial do indicado prédio urbano registado na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° … da Freguesia de … a seguinte inscrição de propriedade II pela AP 1 de 1916/02/01.
6. Tal prédio urbano é composto de casas nobres, fábrica, horta e pomar.
7. Está inscrito na matriz com uma área rústica à qual foi atribuído o artigo 1 da matriz rústica da Freguesia de … .
8. A Autora enviou carta data de 6 de novembro de 2017 aos RR que convocaram a assembleia, indicando, em suma, ser aquela convocatória extemporânea, não tendo sido observado prazo razoável para que a mesma pudesse ser preparada, com prévia regularização da compropriedade decorrente da partilha judicial.
9. Na reunião estiveram presentes os RR BB, CC, DD e EE.
10. A ordem de trabalhos da assembleia foi alterada passando a reunião a ter por objecto a nomeação de pessoa com a função de exercer a administração sobre todos os bens que integraram a herança de II e não apenas o prédio sito na Rua …, número …, em ….
11. Os RR FF, GG e HH manifestaram adesão às deliberações tomadas na assembleia de comproprietários acima indicada.
12. A Assembleia contou com a presença de 66,66% da compropriedade, tendo sido votada favoravelmente a nomeação dos RR DD e CC como Administradores.
13. Os comproprietários e aqui RR/reconvintes FF, GG e HH, manifestaram adesão ao deliberado, sendo a percentagem doa aceitantes da administração de 83,30% da compropriedade.
III - Fundamentação de direito
1. A decisão da questão de saber se a deliberação tomada pela maioria dos comproprietários padece de nulidade ou se, pelo contrário, é válida, prende-se com o regime jurídico da compropriedade.
Nos termos do artigo 1403.º, n.º 1, do Código Civil, há compropriedade quando duas ou mais pessoas detêm simultaneamente direito de propriedade sobre uma mesma coisa. A compropriedade define-se como uma situação de titularidade conjunta e simultânea de direitos, reais ou não, iguais sobre uma coisa.
De acordo com a conceção dominante na doutrina portuguesa (cfr., por todos, Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid iuris, Lisboa, p. 352), a compropriedade é um conjunto de direitos, coexistindo sobre toda a coisa e não sobre qualquer realidade imaterial ou ideal (quota) nem sobre uma parte da coisa.
Sendo esses direitos qualitativamente iguais, tal implica que se auto-limitam, na medida em que o exercício de cada um, terá de se fazer sem prejuízo de um exercício equivalente dos demais (Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, p. 352).
Enquanto o direito subjetivo tem uma natureza singular porque ligado à realização de interesses de pessoa determinada, a compropriedade consiste num conjunto de direitos de propriedade sobre uma mesma coisa e auto-limitados, com a particularidade de que cada um dos direitos incide sobre a coisa comum e não se refere a uma parte específica.
Neste sentido se tem também orientado a jurisprudência (cfr., por todos, Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 15-02-2007, proc. n.º 06B4630):
«I - Os comproprietários, sendo iguais as respectivas quotas, usufruem a coisa objecto da compropriedade de modo igual, o que significa que o gozo de cada um tem de ser limitado por forma a obter essa igualdade - arts. 1405.º, n.º 1, e 1406.º, n.º 1, do CC.
II - No entanto, é lícito a cada um deles servir-se da totalidade dessa coisa, desde que não prive os restantes consortes do uso a que têm direito».
O comproprietário exerce, conjuntamente com os outros, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular. Quanto ao modo do seu exercício, a lei identifica três modalidades diferentes: poderes de exercício isolado, poderes de exercício maioritário e poderes de exercício unânime (cfr. Mota Pinto, Direitos Reais (Segundo as prelecções do Prof. Doutor C. A. da Mota Pinto ao 4.º ano jurídico de 1970-71), Almedina, Coimbra, pp. 260 e ss).
Cada um dos comproprietários, seja qual for a sua quota, de acordo com o princípio da solidariedade, detém o poder de utilização da coisa na sua totalidade. Contudo, o comproprietário não pode afetar a coisa a fim diferente daquele a que ela se destina e não pode impedir os demais de fazer da coisa o uso a que também tenham direito. A doutrina designa estes poderes como poderes de exercício isolado. Esta possibilidade de uso integral da coisa tem, contudo, natureza supletiva, e pode ser derrogada por acordo dos interessados. Os limites ao exercício deste direito resultam, portanto, de acordo entre os interessados no título constitutivo ou de acordo posterior, em que se disciplina o poder de uso da coisa, por exemplo, através de uma divisão material do gozo da coisa ou através de uma divisão temporal ou por turnos. Já os poderes de alienação ou oneração da coisa comum ou de parte específica dela são poderes de necessário exercício unânime, ou seja, só com o consentimento dos restantes pode qualquer comproprietário praticar esses atos (artigo 1408.º, n.º 2, do Código Civil).
Ao lado destes poderes, de exercício isolado ou de exercício unânime, há poderes de exercício maioritário, que estão subordinados à vontade da maioria dos consortes. É o caso dos poderes de administração da coisa comum, regulados no artigo 1407.º do Código Civil, e que abrangem os atos de fruição da coisa comum, da sua conservação ou beneficiação, e ainda, os atos de alienação de frutos, bem como o poder de os comproprietários nomearem um ou vários deles como administradores da coisa comum ou de criarem para o efeito, órgão próprio – v. Carvalho Fernandes, ob. cit., p. 362)
O artigo 1407º do Código Civil, que regula a administração da coisa, remete para o artigo 985º do mesmo diploma legal, preceito que tem a sua localização sistemática no capítulo III (Sociedade) do Livro do Direito das Obrigações, secção II (Relações entre os sócios), e que se refere à administração das sociedades civis.
Dispõe o artigo 1407º do Código Civil:
“1. É aplicável aos comproprietários, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 985.º; para que haja, porém, a maioria dos consortes exigida por lei, é necessário que eles representem, pelo menos, metade do valor total das quotas.
2. Quando não seja possível formar a maioria legal, a qualquer dos consortes é lícito recorrer ao tribunal, que decidirá segundo juízos de equidade.
3. Os atos realizados pelo comproprietário contra a oposição da maioria legal dos consortes são anuláveis e tornam o autor responsável pelo prejuízo a que der causa.
Por sua vez, o artigo 985.º, com a epígrafe, “Administração”, dispõe o seguinte:
1. Na falta de convenção em contrário, todos os sócios têm igual poder para administrar.
2. Pertencendo a administração a todos os sócios ou apenas a alguns deles, qualquer dos administradores tem o direito de se opor ao ato que outro pretenda realizar, cabendo à maioria decidir sobre o mérito da oposição.
3. Se o contrato confiar a administração a todos ou a vários sócios em conjunto, entende-se, em caso de dúvida, que as deliberações podem ser tomadas por maioria.
4. Salvo estipulação noutro sentido, considera-se tomada por maioria a deliberação que reúna os sufrágios de mais de metade dos administradores.
5. Ainda que para a administração em geral, ou para determinada categoria de atos, seja exigido o assentimento de todos os administradores, ou da maioria deles, a qualquer dos administradores é lícito praticar os atos urgentes de administração destinados a evitar à sociedade um dano iminente.
2. O tribunal de 1.ª instância entendeu que a deliberação em litígio não padecia de nulidade, por violação de normas imperativas quanto à compropriedade (artigos 1406º, 1407.º e 985º, todos do Código Civil) e quanto à administração de bens de uma herança (artigo 2079º do Código Civil), sendo que esta última norma nem era aplicável ao caso dos autos porque a herança já tinha sido partilhada por sentença transitada em julgado. Concluiu-se, portanto, não assistir razão à Autora, pois que a sua posição, isoladamente em relação aos demais comproprietários, é minoritária.
Diferentemente, o acórdão recorrido, revogando a sentença, considerou que o pedido de nulidade era procedente, com base numa interpretação conjugada dos artigos 1407.º e 985.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código Civil, concluindo que “(…) todos os comproprietários têm igual poder de administração da coisa comum e o afastamento desta regra apenas pode ter lugar com o acordo de todos os comproprietários”. (…) Assim sendo, não existindo qualquer acordo entre os comproprietários quanto à administração da coisa comum, terá de prevalecer a regra estabelecida nos artigos 1407°, n° 1 e 985°, n° 1 do CC, que atribui igual poder de administração aos comproprietários.
Para corroborar esta afirmação, o acórdão recorrido citou a deliberação sobre o conteúdo de regulamento da compropriedade e seu registo no processo R.P. 307/2007 DSJ-CT, do Conselho Técnico do IRN, de 27/03/2008, (que veio a ser revogada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 1004/08.0TJPRT.P1, de 12.01.2010, como assinalam os recorrentes), onde se afirmou que: «(…) Por conseguinte, à falta de disposição legal em contrário, a composição do conteúdo do direito, no que concerne à administração da coisa comum — artigo 985° do Código Civil, ex vi do artigo 1407° do mesmo Código —, deve consubstanciar um acto de exercício conjunto, ou seja, um acto a praticar por todos os comproprietários, como se de um proprietário singular se tratasse». Em consequência, o acórdão recorrido concluiu que «(…), a deliberação da assembleia de comproprietários de 08/11/2017, ao determinar que a administração dos bens que integraram a herança de II fosse entregue aos consortes CC e DD, retirando à ora Recorrente, sem o seu acordo, os poderes de administração que lhe cabem, é inválida por violar o disposto nos artigos 1407°, n° 1 e 985°, n° 1, ambos do Ccivil.
Assiste, pois, razão, à Recorrente quando afirma, que tal deliberação viola o direito de compropriedade da Recorrente, limitando-o em termos que a lei não consente sem o seu acordo, já que a impede de exercer um poder inerente a esse mesmo direito de compropriedade».
3. O acórdão do Tribunal da Relação concebeu os poderes de administração da coisa comum como uma forma de administração disjunta, de acordo com a qual “os poderes da administração concentram-se integralmente em cada um dos administradores, podendo estes individualmente praticar os atos de administração, sem necessidade do consentimento nem sujeição às diretivas dos outros”, daí extraindo a exigência de unanimidade dos consortes como condição de validade da deliberação em litígio nestes autos, que confere os poderes de administração a dois dos comproprietários. Com efeito, afirma o acórdão recorrido que “Assim sendo, afigura-se correcto afirmar que todos os comproprietários têm igual poder de administração da coisa comum e o afastamento desta regra apenas pode ter lugar com o acordo de todos os comproprietários”.
Todavia, a regra, segundo a qual, a administração cabe por igual, a todos os consortes, consagrada no n.º 1 do artigo 985.º do Código Civil, para além de ser temperada pelo direito de oposição conferido a todos os outros consortes e pela atribuição à maioria do poder de decidir o conflito (artigo 985.º, n.º 2, do Código Civil), não é um princípio de ordem pública e cede perante convenção dos consortes, em sentido contrário, tomada por maioria, nos termos da lei. Desde logo, esta norma pode ser derrogada, nos termos do n.º 3 do artigo 985.º, que permite que os consortes estabeleçam a administração conjunta dos bens por todos ou vários sócios, prevendo que as deliberações sejam tomadas por maioria, regra que deve aplicar-se também à designação dos consortes a quem são atribuídos os poderes de administração.
O artigo 985.º do Código Civil deve assim ser lido como determinando que, havendo convenção em contrário, os comproprietários podem atribuir o poder para administrar a coisa comum apenas a um, ou a vários consortes, desde que representem a maioria quantitativa e qualitativa.
A interpretação, segundo a qual o princípio da administração disjunta veda a atribuição, por maioria, de poderes de administração a vários comproprietários, com exclusão dos demais, contraria o elemento gramatical de interpretação, bem como a ratio legis das normas constantes dos artigos 1407.º e 985.º, destinadas a agilizar a administração dos bens e a prevenir conflitos. Até porque o princípio da administração disjunta, que atribui por igual poderes de administração a todos os comproprietários, não é um princípio de natureza imperativa ou inderrogável, não lhe correspondendo qualquer interesse público.
Como afirmam Pires de Lima/Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra editora, 1987, p. 361), “A natureza supletiva atribuída, pelo artigo 985.º, ao princípio do igual poder de administração dos consortes mostra, não só que os interessados podem regular em termos diversos a administração da coisa comum, mas também que é renunciável o poder atribuído a cada um dos comproprietários”.
No caso da compropriedade, a maioria exigida determina-se segundo um critério diferente do que vigora para o contrato de sociedade (artigo 1407.º, n.º 1, do Código Civil). Não basta o critério pessoal da maioria per capita, exigindo a lei também o elemento real, constituído pelo valor das quotas, ou seja, a maioria dos consortes deve representar, pelo menos, metade do valor das quotas (não é necessária a maioria do valor). Da conjugação do regime específico do n.º 1 do artigo 1407.º com o artigo 985.º, ambos do Código Civil, resulta que as deliberações da assembleia de comproprietários devem ser tomadas por maioria, desde que votem no mesmo sentido mais de metade dos consortes e desde que estes representem, pelo menos, metade do valor das quotas. Assim, nos termos dos factos provados n.ºs 12 e 13, estes requisitos estão verificados. A Assembleia, em que foi votada favoravelmente a nomeação dos RR DD e CC como Administradores, contou com a presença de 66,66% da compropriedade (facto provado n.º 12). Os comproprietários que manifestaram adesão ao deliberado representam 83,30% da compropriedade (facto provado n.º 13).
Por último, deve afirmar-se não ter a deliberação controvertida nestes autos a natureza de regulamento da administração da coisa comum com natureza real, que, por isso, carece do acordo de todos os comproprietários e de inscrição no registo para ser eficaz em relação a terceiros (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil – Direitos Reais, 5.ª edição, Coimbra Editora, 1993, p. 268 e Pires de Lima/Antunes Varela, ob. cit., 361).
A tese do acórdão recorrido, exigindo, a nosso ver, sem fundamento legal, que as deliberações da assembleia de comproprietários relativas à administração da coisa comum (em que se inclui o poder de designar os administradores) sejam aprovadas, por unanimidade dos consortes, tem efeitos práticos que julgamos preversos, na medida em que permite a um dos comproprietários boicotar o exercício de poderes de administração nos termos decididos pela maioria, correndo-se o risco de paralisação da exploração dos bens, resultado que o legislador não deseja.
O princípio da administração disjunta, tal como o entendeu o acórdão recorrido, acaba por facilitar a atuação unilateral de um dos consortes e a fruição exclusiva dos proventos dos bens pelo comproprietário que apresenta aos outros o facto consumado, sujeitando-os à morosidade e despesas de um processo judicial para pôr termo à situação.
Além de não ter respaldo na lei, a tese da unanimidade fomenta a perpetuação do conflito entre os comproprietários e aumenta, desnecessariamente, o recurso ao tribunal, tornando praticamente inviável a administração de qualquer acervo comum de bens, na medida em que dá um direito de veto a um só comproprietário que não concorde com a deliberação da maioria.
A interpretação das normas jurídicas aplicáveis, os artigos 1407.º e 985.º do Código Civil, indica que a solução adotada na sentença de 1.ª instância é a única que é consentânea com o regime jurídico da compropriedade e com a justiça na administração dos bens.
4. A recorrida, para o caso de este Supremo Tribunal considerar que a deliberação em litígio não viola os artigos 1407.º e 985.º, n.º 1, ambos do Código Civil, suscita a ampliação do objeto do recurso a uma outra causa de invalidade da deliberação traduzida na modificação da ordem de trabalhos da assembleia de comproprietários em relação à que constava na convocatória.
Vejamos:
No facto provado n.º 3 afirma-se que “Por carta datada de 23 de Outubro de 2017 os RR DD e EE convocaram uma assembleia para comproprietários do prédio sito na Rua …, nº…, …, a ter lugar no dia 8 de Novembro de 2017 pelas 18h00 na Avenida …, nº…, …, em … .” A ordem de trabalhos da reunião continha como único ponto “Designação dos comproprietários para exercer a administração da compropriedade” (facto provado n.º 4). Segundo o ponto 10. da materia de facto provada, a ordem de trabalhos da assembleia foi alterada passando a reunião a ter por objeto a nomeação de pessoa com a função de exercer a administração sobre todos os bens que integraram a herança de II e não apenas o prédio sito na Rua …, número …, em … .
Entende a recorrida que a deliberação é nula, por incumprimento de formalidades referentes à convocatória da reunião, nomeadamente, as estabelecidas n no artigo 174.º do Código Civil aplicável ex vi do artigo 157.º do Código Civil. Invoca ainda que a circunstância de a convocatória para a assembleia se referir apenas ao prédio da Rua da Junqueira criou uma situação objetiva de confiança de que não iria ser tomada qualquer decisão que alterasse a administração dos outros bens que integravam a herança de Maria Etelvina e um investimento nessa confiança, constituindo, por isso, um abuso do direito nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
Mas não tem razão.
É que, na verdade, não existe qualquer norma jurídica que proíba a alteração da ordem de trabalhos da assembleia, com aditamento, supressão, ampliação ou redução do seu objeto, desde que a maioria dos comproprietários concorde com as alterações.
Ora, no caso dos autos, todos os comproprietários, com exceção da Autora, que detém apenas 16,66 % dos direitos sobre as propriedades, concordaram com a alteração da ordem de trabalhos acima indicada (factos provados n.ºs 9 a 13). Deste modo, considerando que a posição da Autora isoladamente em relação aos demais comproprietários é minoritária, tem de concluir-se não lhe assistir razão também neste ponto.
Importa ainda decidir acerca da figura do abuso do direito invocada pela autora.
Nos termos da jurisprudência e da doutrina (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-12-2013, proc. n.º 306/10.0TCGMR.G1.S1; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, Livraria Almedina, 1999, pp. 197-198), a aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária e exige-se a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, sob pena de se tratar de uma remissão genérica e subjetiva para a materialidade da situação. Ora, da matéria de facto provada não decorre qualquer má fé por parte dos réus, agora recorrentes, na alteração efetuada à ordem de trabalhos, nem se percebe qual o investimento da confiança feito pela autora em relação ao teor da convocatória, pelo que não existe qualquer abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil. Pelo contrário, o facto de a autora ter impugnado a convocatória com base em argumentos formais dois dias antes da reunião (facto provado n.º 8) e de não ter estado presente na mesma, por opção sua, é que revela falta de colaboração com os restantes comproprietários, suscetível de tornar abusiva a invocação da nulidade da deliberação de 08-11-2017.
5. Assim, revoga-se o acórdão recorrido e repristina-se a sentença de 1.ª instância, considerando-se válida a deliberação subscrita pela maioria dos consortes em 8 de novembro de 2017, que atribuiu poderes de administração aos comproprietários DD e CC sobre todos os bens integrados na herança de II, e condena-se a autora a abster-se de qualquer ato de administração ordinária sobre os mesmos bens e a entregar aos administradores da compropriedade toda a documentação à mesma respeitante, nos termos descritos na sentença de 1.ª instância.
Sumário elaborado nos termos do artigo 663.º, nº 7 do CPC:
I – A regra, segundo a qual a administração cabe por igual, a todos os comproprietários, não é um princípio de ordem pública e cede perante convenção dos consortes, em sentido contrário, tomada por maioria nos termos da lei.
II – Da conjugação do regime específico do n.º 1 do artigo 1407.º com o artigo 985.º, ambos do Código Civil, resulta que as deliberações da assembleia de comproprietários devem ser tomadas por maioria, desde que votem no mesmo sentido mais de metade dos consortes e desde que estes representem, pelo menos, metade do valor das quotas.
III – Assim, nos termos dos factos provados n.ºs 12 e 13, estes requisitos estão verificados. A Assembleia, em que foi votada favoravelmente a nomeação dos RR DD e CC como Administradores, contou com a presença de 66,66% da compropriedade (facto provado n.º 12). Os comproprietários que manifestaram adesão ao deliberado representam 83,30% da compropriedade (facto provado n.º 13).
IV – A tese do acórdão recorrido, exigindo, a nosso ver, sem fundamento legal, que as deliberações da assembleia de comproprietários relativas à administração da coisa comum (em que se inclui o poder de designar os administradores) sejam aprovadas, por unanimidade dos consortes, permite a um dos comproprietários boicotar o exercício de poderes de administração nos termos decididos pela maioria, correndo-se o risco de paralisação da exploração dos bens, resultado que o legislador não deseja.
V – Nos termos da jurisprudência e da doutrina, a aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, e exige-se a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, sob pena de se tratar de uma remissão genérica e subjetiva para a materialidade da situação.
IV - Decisão
Pelo exposto, concede-se a revista e repristina-se a sentença do tribunal de 1.ª instância.
Custas pela recorrida.
Supremo Tribunal de Justiça, 9 de março de 2021
Maria Clara Sottomayor (Relatora)
Alexandre Reis (1.º Adjunto)
Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto)
Nos termos do artigo 15.º-A do DL 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade do Juiz Conselheiro Alexandre Reis (1.º Adjunto) e do Juiz Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto).
(Maria Clara Sottomayor – Relatora)