PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
SUBSÍDIO
PENHORA
EMBARGOS DE EXECUTADO
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I- A lei – art. 823º, nº1, do Código de Processo Civil – ao isentar de penhora os bens de pessoas colectivas de utilidade pública, especialmente afectados à realização desses fins, consagra uma impenhorabilidade relativa.
II– A prova dessa afectação especial cabe à pessoa colectiva, caso deduza embargos de executado à penhora de bens que considera impenhoráveis.
III– Se um clube desportivo, beneficiando do estatuto referido em I) celebra um protocolo com uma Câmara Municipal de apoio à prática desportiva regular, no contexto do qual lhe atribui subsídios pecuniários – considerados receita – eles podem ser penhorados.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B……., LDA, intentou, em 18-3-04, no Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, acção executiva, para pagamento de quantia certa, contra o C…… .
Apresenta como título executivo uma sentença condenatória.
No seguimento da mesma foi penhorado um direito de crédito que o executado detém sobre a Câmara Municipal de ….. .
O executado opôs àquela penhora, nos termos do disposto no art.863º-A, nº 1, al. a), do C PC.
Alega a impenhorabilidade daquela direito de crédito, já que se trata de um subsídio que lhe é atribuído atentos os fins de utilidade pública que prossegue.
A exequente pronunciou-se no sentido de ser mantida a penhora.
Após a junção de documentos pela Câmara Municipal de ….., foi proferida decisão na qual se concluiu pela impenhorabilidade daquele direito de crédito, ordenando-se o levantamento da penhora.
Inconformada, a exequente interpôs recurso.
Conclui assim:

- nos termos do protocolo celebrado para o ano de 2005 entre a Câmara Municipal de ….. e a executada, verifica-se que o fundamento da atribuição do subsídio é devido ao relevante papel do associativismo desportivo no fomento e na generalização do acesso à prática desportiva regular, sendo que o subsídio atribuído teve subjacente os critérios de apoio à consolidação e manutenção de actividades desportivas;
- na definição dos critérios de apoio concedido pela Câmara Municipal de ….. ao executado foi repartido o subsídio conforme resulta de fls 50 e ss. dos autos: 1.050,00 euros para sede; 2.700,00 euros para transportes próprios;
60.000,00 para oferta desportiva no âmbito da competição; 10.000,00 euros para enquadramento técnico; e 2.275,00 euros para o departamento técnico;
- o crédito reclamado pela recorrente é referente a fornecimento de artigos de desporto, nomeadamente camisolas de futebol, camisolas de guarda-redes, calções, meias, sacos camiseiros, sapatos de treino, botas de futebol, cotoveleiras, pólos, sendo que a aquisição de tais bens foi essencial e indispensável para que o recorrido desse e possa desenvolver a actividade desportiva a que se obrigou no âmbito do protocolo celebrado com a Câmara Municipal de ……;
- tais fornecimentos tiveram como objectivo a manutenção das actividades desportivas do recorrido, dado que sem equipamentos não era possível àquele promover tais actividades, nomeadamente no âmbito da competição e nesse sentido encontra-se incluído no critério definido pela Câmara Municipal na atribuição de subsídio «oferta desportiva no âmbito da competição»; uma vez que é público e notório que os atletas não podem ser integrados nas competições desportivas se não estiverem equipados ou possuírem bolas ou colocarem cotoveleiras;
- assim, o subsídio atribuído é penhorável uma vez que se destina também a satisfazer o crédito reclamado; pois, como resulta do protocolo celebrado entre o recorrido e a Câmara Municipal de ….., aquele assumiu como obrigação desenvolver a actividade desportiva de acordo com o seu plano de actividades; e na execução desse seu plano teve o recorrido de adquirir materiais à recorrente;
- a relatividade dos bens impenhoráveis terá de ser aferida pelo uso dado ao próprio bem, se ou não de utilidade pública, sendo tal ónus de alegação e prova da competência do recorrido, que não o fez;
- no âmbito do protocolo celebrado entre a Câmara Municipal de ….. e o recorrido o subsídio concedido por aquela destinou-se 60.000,00 euros a oferta desportiva no âmbito da competição, sendo que neste sentido deve ser entendido como integrando a aquisição de equipamentos e demais material desportivo inerente à competição;
- assim, ao considerar impenhorável o crédito concedido e ao ordenar o levantamento da penhora foi feita uma interpretação errónea do disposto no art.823° do CPC e foi violado o disposto no art.342° do C.Civil.

Não houve contra-alegações.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Nos termos do disposto no art.713º, nº6, do C PC, remete-se para a decisão de facto constante da decisão recorrida.
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Questão a decidir:
- (im)penhorabilidade do subsídio atribuído pela Câmara Municipal de ….. ao recorrido.
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Não se suscitam dúvidas de que o executado consiste numa pessoa colectiva, de direito privado e utilidade pública, tendo por escopo a promoção da cultura física e de modalidades desportivas pelos seus associados - ver Mota Pinto in Teoria Geral do Direito Civil, 282 e ss., e DL nº460/77 de 7 de Novembro.

E dispõe o art.823º, nº1, do CPC que estão isentos de penhora os bens "de pessoas colectivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública".

Trata-se, por isso, de uma impenhorabilidade relativa.

Ou seja, em princípio, os bens do executado são penhoráveis. Apenas não o são caso "se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública", Pelo que, como facto impeditivo do direito da exequente,
cabe ao executado aquela prova.

E quando se pode afirmar que um bem está afectado à realização de fins de utilidade pública da pessoa colectiva?
Naturalmente quando, sem ele, aquela não pode prosseguir a sua actividade. Deixa de funcionar, pára. Aquele bem é essencial ao seu funcionamento.
Pelo que, só caso a caso se pode analisar e concluir se um bem está afectado à realização de fins de utilidade pública da pessoa colectiva.
Assim, numa associação desportiva, um campo de jogos, um pavilhão, uma piscina serão, em princípio, essenciais para que aquela prossiga os seus fins. Sem eles, não é possível praticar desporto. Mas já um computador, uma secretária, uma máquina de café, sendo embora importantes para a actividade daquela, não são essenciais. Sem eles continua a ser possível praticar desporto. Não é possível escrever no computador, por exemplo, escreve-se à mão.
E dentro dos bens afectados à realização de fins de utilidade pública, nem todos estão isentos de penhora. Apenas os especialmente afectados àqueles fins- art.823º, nº1, do C PC.
Voltemo-nos, então, para o caso em apreço.
A Câmara Municipal de ….. reconhecendo, "de uma forma clara e inequívoca, o relevante papel do associativismo desportivo no fomento e na generalização do acesso dos munícipes a uma prática desportiva regular", decidiu estabelecer um protocolo de colaboração com o executado, "no que concerne ao apoio à actividade regular a desenvolver por este" - protocolos juntos.
Ou seja, o executado, no desempenho da sua actividade, e como qualquer outra pessoa, singular ou colectiva, efectua despesas. Para fazer face a elas, necessita de receitas, também como qualquer outra pessoa, singular ou colectiva. Receitas que consegue de diversas formas: vendendo produtos, cobrando pelos serviços que presta, pelos espectáculos desportivos que apresenta, etc. . E conseguindo subsídios de entidades públicas que, reconhecendo o seu "papel fundamental, não só no processo de desenvolvimento desportivo, como também nos processos de integração e identidade social" - citados protocolos juntos - aceitam apoia-lo.
Tudo isto para concluir que a prestação da Câmara Municipal de ……, que se encontra penhorada, sendo embora um subsídio, consiste tão-só numa receita do executado, como qualquer outra que ele consegue obter para fazer face às despesas que efectua no desenvolvimento da sua actividade. E como receita que é, naturalmente que pode ser penhorada. Como as outras. A não se entender assim, também uma receita de bilheteira, por exemplo, não podia ser penhorada.
Na verdade, entende-se que uma piscina, por exemplo, quando afectada a fins de utilidade pública, não possa ser penhorada. Assim, com o valor da mesma não pode ser pago o credor A, B, C, nem ninguém.
Mas caso se entendesse o mesmo relativamente ao subsídio recebido pelo executado, e destinando-se ele precisamente ao pagamento de despesas - o mesmo destina-se ao pagamento de despesas com água, luz, transportes, equipamentos, etc. - então teria de se concluir que aquele serviria para pagar algumas despesas, mas não outras. Serviria para pagar a alguns credores, mas já não a outros. E isto ficaria ao critério do executado. Que, com o mesmo subsídio, poderia não pagar à exequente, porque impenhorável, mas poderia pagar, também equipamento desportivo, por exemplo, numa loja ao lado. Isto seria inconcebível. Não está, nem podia estar no espírito do legislador.
O subsídio concedido pela Câmara Municipal de ….. ao executado destinou-se ao pagamento de despesas, como o reclamado pela exequente. Foi precisamente para isso que foi concedido. Logo, há-de servir para pagar a todos os credores por igual. Não há credores privilegiados e, ainda por cima, de acordo com o critério do devedor.
Escreve Amâncio Ferreira in Curso de Processo de Execução, 177, que "com a indisponibilidade pretende-se apenas evitar que os bens sejam desviados da afectação ao fim de utilidade pública a que se encontram destinados, sem necessidade de lhes conferir a condição jurídica da inalienabilidade". O que se compreende perfeitamente relativamente a um campo de jogos ou um pavilhão desportivo, por exemplo. Mas já não se compreende relativamente a um subsídio, que consiste em dinheiro. O que caracteriza o dinheiro é precisamente a sua fungibilidade por bens ou serviços. E para isso que é concedido.
Nem doutro modo podia ser. O executado, sendo uma pessoa colectiva de utilidade pública, que prossegue fins sociais relevantes, não deixa, por isso, e no seu dia a dia, de ser um ente como os outros. Que, como os outros, assume obrigações e que, como os outros, as deve cumprir.
Aliás, interessa-lhe que assim seja. Doutro modo, e a seguir-se a tese da decisão recorrida, o executado teria dificuldades em prosseguir com a sua actividade. Quem negociaria, a partir de agora, com ele? Que garantias tinha a outra parte de que poderia, em caso de incumprimento, executar o património do executado? Já basta a limitação decorrente do disposto no art.823º do C PC.
Não é preciso mais.
Só que aquela deve-se conter nos seus precisos limites: só estão isentos de penhora os bens da pessoa colectiva de utilidade pública "que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública".
Ou seja, sem os quais, aqueles fins não podem ser prosseguidos.
Ora, não é o caso desta comparticipação financeira. Aliás, basta pensar que a mesma pode, a qualquer momento, deixar de existir. A Câmara Municipal não é obrigada a comparticipar. Pode decidir deixar de comparticipar, por qualquer motivo. Ou o próprio executado pode deixar de se candidatar àquele apoio. Colectividades houve que não o fizeram, como resulta da informação prestada pela Câmara Municipal de ….. .
Se assim acontecer, a actividade do executado, em princípio, prosseguirá. Com menos receitas, mas prosseguirá. E porquê? Porque não se trata de bens especialmente afectados aos fins de utilidade do executado, na interpretação que fazemos do disposto no art.823º, nº1, do C PC.
Para clarificar melhor o nosso raciocínio vejamos a seguinte hipótese.
No caso em apreço, trata-se de uma dívida resultante da compra de equipamento desportivo. E já vimos que o subsídio também se destinava à aquisição de equipamento desportivo. Suponha-se, todavia, que se tratava de uma dívida do executado, mas que nada tinha a ver com a sua actividade.
Ainda aqui entendemos, e por tudo quanto deixámos dito, que o subsídio é penhorável. Trata-se apenas de um problema de gestão do subsídio, a avaliar pela entidade concedente. Que em caso de má gestão do mesmo, pode retirar daí consequências.
Entende-se, em face do exposto, e embora parecendo-nos que a jurisprudência dominante segue entendimento diverso, que o subsídio em causa é penhorável.
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Acorda-se, em face do exposto, e dando provimento ao agravo, em revogar a decisão recorrida, mantendo-se a penhora efectuada e à qual o executado se opôs.
Custas do incidente e do recurso pelo executado.

Porto, 22 de Maio de 2006
Abílio Sá Gonçalves Costa
António Augusto Pinto dos Santos Carvalho
Baltazar Marques Peixoto