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MENORES
TESTEMUNHA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Sumário
I – Nos termos previstos no art.º 17.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, diploma que aprovou o “Estatuto da Vítima”, a vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões. II – No caso dos autos, em que se investiga um crime de violência doméstica, está em causa a inquirição de testemunha menor, filha do arguido e da ofendida, relativamente a factos por ela presenciados. III – De harmonia com o disposto no art.º 26.º, n.º 2, da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, diploma que regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal, a menor é uma testemunha especialmente vulnerável, quer em função da sua menoridade, quer pelo facto de ser chamada a depor contra o seu próprio pai, arguido nestes autos. IV – As crianças que presenciam actos de violência doméstica, isto é, que estão expostas à violência entre os pais, testemunhando a violência interparental, com todas as consequências danosas daí decorrentes para a sua saúde psicológica, são também elas vítimas do crime de violência doméstica. V – Não tendo o legislador imposto a obrigatoriedade de se proceder à inquirição de testemunhas para memória futura, ainda que vulneráveis, impõe-se sempre uma ponderação dos interesses em jogo, cabendo ao juiz de instrução verificar da utilidade/necessidade de tal audição, sempre norteado pelo princípio da descoberta da verdade material e procurando prevenir as situações de vitimização secundária. VI – Muito embora em processo penal vigore o princípio da imediação, do qual decorre que não valem em julgamento quaisquer provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência (art° 355°, n° 1, C.P.P.), prevê também o Legislador a possibilidade de audição antecipada de testemunhas, o que configura uma exceção ao princípio da imediação e concentração da produção da prova no julgamento, visando acautelar quer a eventual dissipação de prova testemunhal, decorrente da degradação da memória, quer a proteção de vítimas e de testemunhas em situação de particular vulnerabilidade. VII – A circunstância de a menor ser ouvida em declarações para memória futura não belisca o princípio do contraditório, sendo certo que na tomada de tais declarações é sempre assegurada a realização do contraditório que salvaguarde o direito de defesa do arguido (art.º 271.º, n.ºs 3 e 5, do C.P.P., art.º 1º, n.º 5, da Lei n.º 93/99, de 14 Julho, art.º 33.º, n.ºs 2 e 4, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, e art.º 24.º, n.ºs 2 e 5, da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro). (elaborado pela relatora)
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I – RELATÓRIO
1. 1. – Decisão Recorrida
No processo de inquérito com o n.º 123/20.0 PDAMD do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa – Juiz 4 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi em 16.11.2020, proferido despacho que indeferiu o pedido do Ministério Público de audição da testemunha menor, BM_____ em declarações para memória futura.
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1. 2. – Recurso
1.2.1. - Inconformado com essa decisão, dela recorreu o Ministério Público, defendendo a revogação daquele despacho e a sua substituição por outro que designe dia para audição da testemunha menor em declarações para memória futura.
Finaliza a sua motivação com as seguintes conclusões:
«1. No presente inquérito averigua-se factualidade suscetível de integrar um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.° 152°, n.° 1, als. b) e c) do Código Penal, figurando como vítima MO_____ e como arguido seu ex-companheiro, BM_____ 2. Resulta da investigação que BM____ nascida em 25 de Setembro de 2006, filha comum de arguido e vítima, tem conhecimento de actos de execução do crime em apreço, pelo que foi promovida a sua audição para memória futura, considerando que, à luz da sua tenra idade e vinculação filial com o arguido, a mesma é testemunha especialmente vulnerável (art.° 26°, n.° 2 da Lei 93/99 de 14 de Julho), o que foi, contudo, indeferido; 3. O instituto da tomada de declarações para memória futura constitui um dos mecanismos para evitar a repetição de audição da testemunha especialmente vulnerável e protegê-la do perigo de vitimização; 4. O critério de ponderação da tomada de declarações para memória futura ínsito na Lei 93/99 de 14 de Julho é mais amplo que o regime processual penal geral pertinente a este instituto, sobrelevando o imperativo de proteção da vítima especialmente vulnerável, o que não foi tido em conta na decisão recorrida; 5. Os fundamentos invocados pela decisão recorrida para rejeitar a diligência promovida não têm qualquer cabimento no caso dos autos, atento que o depoimento da menor BM___ avulta como muito relevante para a descoberta da verdade, o princípio da imediação não é absoluto, e o arguido tem todas as condições para, na diligência de tomada de declarações para memória futura, exercer na plenitude os seus direitos de defesa, mormente no que tange ao contraditório; 6. Bem pelo contrário, a audição da menor BM____ em sede de memória futura revela-se curial para o andamento dos autos, não só para obviar à sua vitimização, conatural à sua sujeição a prestar depoimento em juízo, como para acautelar a genuinidade do seu depoimento, em tempo útil; 7. É ao Ministério Público, como titular da ação penal e a quem cabe a direção do inquérito, que compete definir a estratégia investigatória e determinar a sequência temporal da realização das diligências; 8. Assim, ao não deferir a tomada de declarações para memória futura à menor BM___ a decisão recorrida violou o disposto nos art.°s 1°, n.°s 1, 3 e 4, 2, al. a), 26°, n.°s 1 e 2, e 28°, n.°s 1 e 2 da Lei 93/99 de 14 de Julho, e os art.°s 262° e 263° do Código de Processo Penal. Termos em Que deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão proferida, substituindo-se por outra que, acolhendo a pretensão do Ministério Público, agende data para a tomada de declarações para memória futura à menor BM_____».
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1.2.2. - O arguido não respondeu.
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1.2.3. – A Mma Juiz a quo manteve o despacho recorrido.
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1.2.4. - Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o art.º 416.° do C.P.P., aderindo às alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público, pronunciou-se pela procedência do recurso.
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1.2.5. - Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do C.P.P., sem resposta, procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, foram os autos a conferência, de harmonia com o preceituado no art.º 419.°, n.° 3, do C.P.P..
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2. 1. – Objecto do Recurso
Dispõe o art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
E no n.º 2 do mesmo dispositivo legal determina-se também que versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Constitui entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva inCurso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, inwww.stj.pt).
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência com a decisão impugnada, a questão a examinar e decidir prende-se com saber se se mostram reunidas as circunstâncias de que a lei faz depender a audição da indicada testemunha em declarações para memória futura.
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2. 2. - Da Decisão Recorrida
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«Investigam-se nos presentes autos, factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica .— Vem o MºP° pedir a inquirição para memória futura da testemunha BM____ filho do arguido e da ofendida nos autos. Invoca-se a fragilidade emocional da vítima a sua especial vulnerabilidade, face à sua idade e à relação familiar entre a vítima e o arguido. Mais se refere a necessidade de evitar a sua vitimização secundária caso venha a ser inquirida num ambiente solene. Decidindo: O M° P° sustenta o seu pedido no preceituado na Lei 93/99 de 14 de Julho, mais especificamente nos artigos 26° e 28° daquele diploma. Ora, a tomada de declarações para memória futura constitui uma excepção ao princípio da imediação e da produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento. Esta recolha antecipada de prova tem como fundamento a possibilidade de perda de prova, evitar a grave vitimização do ofendido (nos casos do art. 271° n° 2 C.P.P.) ou em caso de impossibilidade ou dificuldade séria de a prova ser recolhida em momento posterior. Entende-se que não é o caso dos autos. Na verdade, além de a testemunha ter já sido inquirida nos autos, existem outros elementos de prova que retiram ao depoimento pretendido o seu carácter essencial para a prova dos factos. O legislador não impôs a obrigatoriedade de se proceder à inquirição de testemunhas para memória futura, ainda que vulneráveis, devendo antes serem ponderadas as circunstâncias do caso concreto na limitação ao princípio da imediação - veja-se que, diferentemente, o legislador não contemplou a mesma ponderação relativamente aos crimes a que alude o art. 271° n° 2 C.P.P. Desta forma, e no caso presente, entende-se ser de indeferir o requerido, pois que o depoimento poderá ser livremente recolhido em sede de audiência de discussão e julgamento, apenas caso haja disso necessidade face à produção de outros elementos de prova no mesmo sentido, sendo aquele o momento adequado para a plena produção de prova, com o contraditório do arguido.»
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2. 3. - Apreciando e decidindo
Alega o Ministério Público que, enquanto titular da acção penal, considera ser necessário ouvir a testemunha menor, filha do arguido e da vítima, revelando-se a audição da menor BM_____ em sede de memória futura curial para o andamento dos autos, não só para obviar à sua vitimização, como para acautelar a genuinidade do seu depoimento, em tempo útil, que o instituto da tomada de declarações para memória futura constitui um dos mecanismos para evitar a repetição de audição da testemunha especialmente vulnerável e protegê-la do perigo de vitimização, que o critério de ponderação da tomada de declarações para memória futura previsto na Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, é mais amplo que o regime geral previsto no Código de Processo Penal, sobrelevando o imperativo de protecção da vítima especialmente vulnerável, o que considera não ter sido tomado em conta na decisão recorrida, alegando ainda que os fundamentos invocados pela decisão recorrida para rejeitar a diligência promovida não têm cabimento no caso dos autos, uma vez que o depoimento da menor BM_____menormenor avulta como muito relevante para a descoberta da verdade, não aparecendo o princípio da imediação como absoluto e tendo o arguido todas as condições para, na diligência de tomada de declarações para memória futura, exercer na plenitude os seus direitos de defesa, mormente no que tange ao contraditório.
Conclui que o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que designe data para inquirição da testemunha indicada em declarações para memória futura.
Vejamos.
Quanto às declarações para memória futura, determina-se no art.º 271.º do C.P.P.:
«1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. 2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior. 3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor. 4 - Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito. 5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais. 6 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º 7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações. 8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.»
(sublinhados nossos)
Assim, para além das situações de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, circunstâncias estas que podem determinar a audição da testemunha em declarações para memória futura, também no caso de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, pode o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
E, no caso de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, terá sempre lugar a audição em declarações para memória futura, durante o inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
No que respeita ao crime de violência doméstica – situação em investigação nestes autos -, importa atentar na Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que estabelece o Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Protecção e Assistência às suas Vítimas, e no que sobre a matéria a mesma estipula.
De facto, sob a epígrafe Declarações para memória futura, determina-se no art.º 33.º da mesma Lei:
«1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. 2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor. 3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do acto processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal. 4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais. 5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal. 6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações. 7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.»
(sublinhados nossos)
Também aqui, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode o juiz proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
Assim, quer nas situações de crimes de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual (art.º 271.º do C.P.P.), quer nas de crime de violência doméstica (art.º 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro), pode o juiz de instrução proceder à inquirição das vítimas de tais crimes, no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
Nos processos relativos aos crimes referidos no n.º 1 do art.º 271.º do C.P.P. tal pedido poderá ser formulado pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis, sendo que, no caso de crime de violência doméstica, a audição da vítima em declarações para memória futura poderá ocorrer a requerimento do Ministério Público ou da própria vítima.
Estabeleceu assim a lei um regime mais favorável nas situações de violência doméstica, concedendo legitimidade à vítima para requerer a sua própria audição antecipada, reforçando assim a sua protecção e evitando as situações de revitimação, estabelecendo-se mesmo no n.º 2 do art.º 16.º da mencionada Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que as autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal.
Porém, num e noutro caso, compete ao juiz de instrução decidir se procede ao ou não à requerida audição em declarações para memória futura, apreciando o caso concreto, não impondo a lei a observância de quaisquer específicos pressupostos ou requisitos para o deferimento do pedido.
Caberá assim ao juiz de instrução, analisando o caso concreto, verificar da utilidade/necessidade de tal audição, sempre norteado pelo princípio da descoberta da verdade material, procurando prevenir ainda as situações de vitimização secundária.
E, quanto às noções de vítima e de vítima especialmente vulnerável, mostram-se as mesmas definidas no citado regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e à assistência das suas vítimas, concretamente nas alíneas a) e b) do art.º 2.º da referida Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, nas quais se lê:
«a) «Vítima» a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, directamente causada por acção ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal; b) «Vítima especialmente vulnerável» a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;»
Também nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 67.ºA do C.P.P. se definem vítima e vítima especialmente vulnerável nos seguintes termos:
«1 - Considera-se: a) 'Vítima': i) A pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, directamente causado por acção ou omissão, no âmbito da prática de um crime; ii) Os familiares de uma pessoa cuja morte tenha sido directamente causada por um crime e que tenham sofrido um dano em consequência dessa morte; b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;»
Ora, neste enquadramento, resulta evidente que as crianças que presenciam actos de violência doméstica, isto é, que estão expostas à violência entre os pais, testemunhando a violência interparental, com todas as consequências danosas daí decorrentes para a sua saúde psicológica, são também elas vítimas do crime de violência doméstica.
Como se diz no art.º 17.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, diploma que aprovou o “Estatuto da Vítima”, a vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões.
E, no art.º 24.º desta mesma lei, sob a epígrafe «Declarações para memória futura», determina-se:
«1 - O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal. 2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor. 3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas. 4 - A tomada de declarações é efetuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, ou a documentação através de auto, quando aqueles meios não estiverem disponíveis, o que deverá ficar a constar do auto. 5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado pelo tribunal. 6 - Nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.»
(sublinhados nossos)
Relativamente à audição antecipada de testemunhas há que atentar ainda na Lei n.º 93/99, de 14 Julho, diploma que regula a aplicação de medidas para protecção de testemunhas em processo penal, em cujo art.º 1º, sob a epígrafe «Objecto», podemos ler:
«1 - A presente lei regula a aplicação de medidas para protecção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objecto do processo. 2 - As medidas a que se refere o número anterior podem abranger os familiares das testemunhas e outras pessoas que lhes sejam próximas. 3 - São também previstas medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n.º 1. 4 - As medidas previstas na presente lei têm natureza excepcional e só podem ser aplicadas se, em concreto, se mostrarem necessárias e adequadas à protecção das pessoas e à realização das finalidades do processo. 5 - É assegurada a realização do contraditório que garanta o justo equilíbrio entre as necessidades de combate ao crime e o direito de defesa.» (sublinhados nossos)
E no capítulo V da mesma Lei, com a epígrafe «testemunhas especialmente vulneráveis, determina-se no seu art.º 26º:
«1 - Quando num determinado acto processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas. 2 - A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.
Por sua vez, sob a epígrafe «Intervenção no inquérito», determina-se no art.º 28.º da mesma Lei:
«1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime. 2 - Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.»
No caso dos autos, em que se investiga um crime de violência doméstica, está em causa a inquirição de testemunha menor, BM_____ , filha do arguido e da ofendida, relativamente a factos por ela presenciados.
Ora, de harmonia com o disposto no art.º 26.º, n.º 2, da mencionada Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, impõe-se considerar que a mesma é uma testemunha especialmente vulnerável, quer em função da sua menoridade, quer pelo facto de ser chamada a depor contra o seu próprio pai, arguido nestes autos.
E, tendo presenciado factos, que têm que ver com o crime de violência doméstica em investigação nestes autos, não se compreende como pode a Mma JIC considerar que tal depoimento não se revela essencial, justificando tal entendimento na circunstância de a testemunha ter já sido inquirida nos autos e de que existem outros elementos de prova que retiram ao depoimento pretendido o seu carácter essencial para a prova dos factos.
Num tipo de crime em que habitualmente a prova dos factos se revela de difícil obtenção por se tratar de ilícito criminal essencialmente praticado no interior da habitação e em que, em grande número de vezes, tal prova fica circunscrita aos depoimentos dos elementos que constituem o agregado familiar, não se compreende como pode entender-se que o conhecimento directo pela testemunha de factos com interesse para a investigação do crime em causa nos autos não se se mostra essencial para a descoberta da verdade material.
A circunstância de existir qualquer outra prova, que a Mma. Juiz não identifica, não retira essencialidade ao conhecimento que a testemunha, menor, tem dos factos com interesse para a decisão.
Aliás, o que resulta dos autos, concretamente do auto de inquirição da testemunha, é que os factos em causa tiveram até origem em comportamentos da mesma testemunha, filha do arguido e da ofendida, pelo que, também por isso, o seu depoimento se reveste de interesse para aquilatar das circunstâncias que rodearam a prática dos factos.
E, quanto ao facto de a aludida testemunha já ter sido ouvida no inquérito, aspecto também referido pelo Tribunal a quo, não se vislumbra o que daí pretende retirar-se, sendo certo que tal circunstância não leva a que seja desnecessário ouvi-la em julgamento, directamente ou mediante a prestação de declarações para memória futura.
Entendemos assim que, no caso, se impõe considerar que a audição da testemunha BM_____, menor de idade e filha do arguido e da ofendida, com conhecimento directo de factos em causa nos autos, em que se investiga um crime de violência doméstica, se revela essencial para a descoberta da verdade.
Discorda-se assim do despacho recorrido quando nele se considerou que tal depoimento não seria essencial.
Por outro lado, como dissemos, impõe-se igualmente considerar que a testemunha BM_____ é especialmente vulnerável quer em razão da sua idade, quer da relação de parentesco que mantém com o arguido e a ofendida, já que lhe será exigido que preste depoimento contra um dos seus progenitores.
E não pode igualmente esquecer-se que, tendo presenciado actos de violência doméstica, perpetrados por um dos seus progenitores contra o outro, é ela própria ainda vítima do crime em investigação nos autos.
Ora, como também já vimos, determina-se no n.º 1 do art.º 26.º da Lei n.º 93/99, que quando num determinado acto processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.
Diz a Mma. Juiz a quo:
«Ora, a tomada de declarações para memória futura constitui uma excepção ao princípio da imediação e da produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento. Esta recolha antecipada de prova tem como fundamento a possibilidade de perda de prova, evitar a grave vitimização do ofendido (nos casos do art. 271° n° 2 C.P.P.) ou em caso de impossibilidade ou dificuldade séria de a prova ser recolhida em momento posterior. Entende-se que não é o caso dos autos. Na verdade, além de a testemunha ter já sido inquirida nos autos, existem outros elementos de prova que retiram ao depoimento pretendido o seu carácter essencial para a prova dos factos. O legislador não impôs a obrigatoriedade de se proceder à inquirição de testemunhas para memória futura, ainda que vulneráveis, devendo antes serem ponderadas as circunstâncias do caso concreto na limitação ao principio da imediação - veja-se que, diferentemente, o legislador não contemplou a mesma ponderação relativamente aos crimes a que alude o art. 271° n° 2 C.P.P. Desta forma, e no caso presente, entende-se ser de indeferir o requerido, pois que o depoimento poderá ser livremente recolhido em sede de audiência de discussão e julgamento, apenas caso haja disso necessidade face à produção de outros elementos de prova no mesmo sentido, sendo aquele o momento adequado para a plena produção de prova, com o contraditório do arguido.»
Sendo certo que o legislador não impôs a obrigatoriedade de se proceder à inquirição de testemunhas para memória futura, ainda que vulneráveis, impondo-se sempre uma ponderação dos interesses em jogo, cabendo ao juiz de instrução verificar da utilidade/necessidade de tal audição, sempre norteado pelo princípio da descoberta da verdade material e procurando prevenir as situações de vitimização secundária, não podemos contudo concordar com a Mma Juiz a quo quando, na análise da questão, atribui especial relevância ao princípio da imediação, em detrimento das necessidades de protecção da testemunha especialmente vulnerável.
É que, se a testemunha especialmente vulnerável não for ouvida em condições que assegurem a sua total liberdade e segurança, poder-se-á pôr em causa a descoberta da verdade material, já que, como sabemos, a prestação de um depoimento em condições que não sejam as melhores poderá dificultar, ou impedir até, a espontaneidade e a sinceridade das respostas e, consequentemente, a descoberta da verdade material.
Tal risco mostra-se ainda acrescido quanto estão em causa testemunhas menores de idade.
Sabemos bem que em processo penal vigora o princípio da imediação, do qual decorre que não valem em julgamento quaisquer provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência (art.° 355°, n.° 1, C.P.P.).
Porém, o Legislador previu também a possibilidade de audição antecipada de testemunhas, o que configura uma excepção ao princípio da imediação e concentração da produção da prova no julgamento, visando acautelar quer a eventual dissipação de prova testemunhal, quer a protecção de vítimas e de testemunhas em situação de particular vulnerabilidade.
Para o efeito, introduziu o Legislador um mecanismo de antecipação da produção de prova, através do qual se protegem os interesses do Estado na descoberta da verdade material, bem como os interesses das pessoas especialmente vulneráveis obviando à sua revitimização.
E, como vimos, tal mecanismo não se encontra apenas previsto no art.º 271.º do C.P.P., mostrando-se vertido noutros diplomas legais, designadamente nos atrás referidos, dos quais se destaca a mencionada Lei de Protecção de Testemunhas, em cujo art.º 2.º, alínea a), se considera testemunha qualquer pessoa que, independentemente do seu estatuto face à lei processual, disponha de informação ou de conhecimento necessários à revelação, percepção ou apreciação de factos que constituam objecto do processo, de cuja utilização resulte um perigo para si ou para outrem, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo anterior.
No caso, o Ministério Público pretende ouvir, em declarações para memória futura, a menor BM_____ , relativamente a factos de que a mesma tem conhecimento directo com interesse para a descoberta da verdade material.
E, na análise de tal questão não há que ponderar apenas o disposto no art.º 271.º do C.P.P., mas antes as normas vertidas na referida Lei n.º 93/99, sendo certo que tal lei reconhece a situação de especial vulnerabilidade vivida pela testemunha BM_____ , menor de idade.
Acresce que, como bem refere o Ministério Público, «o alargamento do âmbito de aplicação da diligência de memória futura, não fazendo depender a sua efectivação de critérios excessivamente restritivos e formalistas, segue no mesmo caminho de instrumentos convencionais de que o Estado Português é parte contratante. Assim, o art.° 56°, n.° 2 da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011 (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.° 4/2013, de 21 de Janeiro), veio consagrar que uma criança vítima e uma criança testemunha de violência contra as mulheres e de violência doméstica deverão, se for caso disso, beneficiar de medidas de proteção especiais, tendo em conta o superior interesse da criança. Ora, não se pode deixar de pugnar que uma medida de proteção especial de uma criança testemunha de um crime de violência doméstica será precisamente beneficiar da possibilidade de prestar declarações em sede de memória futura, em ambiente informal e reservado, assim obviando a que a mesma venha a ser compelida a prestar depoimento em audiência de julgamento, que, como decorre da experiência forense, é sempre um contexto marcado por solenidade e pouco user friendly para personalidades ainda em formação. Desta forma, afigura-se que, em caso de processos em que figurem como testemunhas crianças, a tomada das suas declarações para memória futura deverá ser meio processual empregue por defeito, ganhando preeminência a sua proteção sobre quaisquer outras considerações.»
No caso concreto, sendo a testemunha menor de idade e impondo-se o seu depoimento contra um dos seus progenitores relativamente a factos de violência inter-parental que presenciou, resulta evidente que a mesma merece especial protecção, procurando que deponha nas condições que melhor permitam a descoberta da verdade, possibilitando um depoimento genuíno e espontâneo, e que evitem a situação de revitimização da própria testemunha, sendo certo que a circunstância de ter presenciado actos de violência entre os seus próprios pais a tornam também numa das vítimas do crime de violência doméstica em investigação nos autos, com consequências gravosas a nível da sua saúde psicológica.
Por fim, impõe-se referir ainda que a circunstância de a menor BM_____ ser ouvida em declarações para memória futura não belisca o princípio do contraditório, sendo certo que na tomada de tais declarações é sempre assegurada a realização do contraditório que salvaguarde o direito de defesa do arguido (art.º 271.º, n.ºs 3 e 5, do C.P.P., art.º 1º, n.º 5, da Lei n.º 93/99, de 14 Julho, art.º 33.º, n.ºs 2 e 4, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, e art.º 24.º, n.ºs 2 e 5, da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro).
E, assim sendo, tudo aconselha a que sejam tomadas declarações para memória futura à menor BM_____ , testemunha especialmente vulnerável, por forma a melhor permitir a obtenção de um depoimento genuíno, espontâneo e livre, tendo em vista a descoberta da verdade material, ponderando ainda que, com o decorrer do tempo, haverá uma degradação da memória, o que é particularmente observável em crianças, e prevenindo também a sua revitimização.
Nestes termos, considerando que se mostram reunidas as condições necessárias ao deferimento do pedido de audição da testemunha menor BM______ em declarações para memória futura, impõe-se revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que designe dia para audição daquela nos termos referidos.
Procede, pois, o recurso interposto pelo Ministério Público.
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III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se, consequentemente, o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que designe dia para audição da testemunha BM_____ em declarações para memória futura.
Sem custas.
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Elaborado em computador e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º, n.º 2, do C.P.P.)
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Lisboa, 14.04.2021
Maria Leonor Silveira Botelho
Ana Paula Grandvaux Barbosa