I. Se a oposição entre os fundamentos e a decisão resulta de simples lapso de escrita, não se verifica, em bom rigor, a causa da nulidade do acórdão prevista no art. 615º, nº 1, al. c) do CPC, que pressupõe um vício de raciocínio;
II. Tendo a Relação rectificado o acórdão original no sentido de passar a constar “ilegitimidade ativa” onde antes constava “ilegitimidade passiva”, não tem sentido o recorrente, com base em alegado “erro na formulação da decisão”, requerer que o Supremo proceda à revogação do acórdão recorrido e profira novo acórdão onde seja decidida a verificação da existência de ilegitimidade activa;
III. À face do CPC de 2013, e mercê da eliminação do incidente de aclaração das decisões (outrora previsto no CPC de 2008) não tem a Relação de se pronunciar sobre qualquer pedido de esclarecimento do acórdão formulado nas alegações de recurso de revista, no sentido de saber se a intervenção das interessadas do inventário, que não são herdeiras, se revela ou não necessária para assegurar a legitimidade activa dos autores de uma acção de prestação de contas;
IV. Também não cabe ao Supremo “esclarecer” o recorrente sobre essa matéria, se ela não foi suscitada antes como questão decidenda.
*
O réu foi citado para os termos da presente acção.
Posteriormente o Tribunal da 1ª instância determinou a realização de perícia por um dos Técnicos Oficiais de Contas indicados pela respetiva câmara, de forma a apreciar as contas apresentadas pelo autor a fls. 43 a 64 dos autos.
Nomeado perito, o mesmo apresentou nos autos os relatórios periciais que constam de fls. 1033 a 1099 e de fls. 2100 a 2130 do processo, os quais foram objeto de contraditório por parte das partes.
Seguidamente foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, e julgando que as contas do autor não foram validamente prestadas, recusa-se a aprovação das mesmas, antes se considerando que os valores de despesa e receita efectiva para os anos de 1997, 1998, 1999 e 2000 e respectivos saldos, na herança de CC e de DD, são os que constam do relatório pericial para o qual se remete, designadamente do quadro de fls. 2127 - sob a epígrafe Resumo da Prestação de Contas, Após as Correções introduzidas-, no qual se apura um saldo acumulado em favor das heranças de 87.104,38€.”
Inconformado com tal sentença, veio o réu interpor recurso de apelação.
Antes de admitir o recurso, o Mmº Juiz a quo determinou a retificação da sentença recorrida nos seguintes termos: “Porque de um lapso material se trata, determino que na sentença proferida, no 1º parágrafo e ponto a da factualidade a considerar: Onde consta: CC, falecida em 2/11/2016 deverá passar a constar: CC, falecida em 12/11/1996.”
Notificadas de tal despacho, as partes nada disseram.
Recebido o recurso no Tribunal da Relação, foi proferido despacho pelo relator, advertindo as partes da possibilidade de este Tribunal vir a apreciar oficiosamente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa por preterição de litisconsórcio necessário natural, admitindo, contudo, a possibilidade de o vício vir a ter-se por sanado mediante acordo expresso das partes primitivas do presente processo e do irmão de ambos e co-herdeiro EE.
Notificadas as partes de tal despacho, apenas o autor se pronunciou, declarando aceitar que o processo prossiga nos termos referidos no despacho do relator.
A Relação ponderou o seguinte:
“(…) O presente recurso foi interposto da sentença final proferida no âmbito de ação de prestação de contas que corre termos por apenso a processo de inventário por morte de CC e de DD.
Sucede, contudo, que da análise da relação de bens “definitiva” elaborada no processo de inventário por apenso ao qual corre termos a este processo, cuja cópia se acha a fls. 2302 a 2313, resulta que os autores das heranças em apreço deixaram três filhos, a saber o ora autor, AA, o ora réu, BB, e EE, que não é parte na presente ação.
Essa circunstância é confirmada pela análise da cópia da decisão proferida nos autos de inventário, com data de 22-07-2017, que se acha a fls. 2314 a 2355, bem como pelo teor da motivação e conclusões de recurso apresentadas pelo recorrente, o qual se reporta por diversas vezes ao “irmão EE”.
No registo eletrónico dos autos de inventário constam como interessados no processo de inventário, para além do autor e do réu dos presentes autos os srs. EE, FF, e GG.
Nos autos de inventário teve lugar uma conferência de interessados, realizada no dia 08-02-2019 (refª ….), onde constam, como interessados no processo de inventário, as cinco pessoas mencionadas e a referência à circunstância de as interessadas FF e GG serem casadas, respetivamente, com os interessados BB e EE.
Daqui resulta, que nos autos de inventário têm a qualidade de interessados, por serem sucessores dos autores das heranças a partilhar, os senhores BB e AA, que são partes na presente causa, bem como o senhor EE.
No mesmo processo intervêm igualmente os cônjuges das três pessoas acima identificadas.
Ora, a doutrina e a jurisprudência têm assinalado, de modo uniforme e pacífico que na ação de prestação de contas em que a obrigação de prestar contas decorre do exercício das funções de cabeça-de-casal (art. 2079º a 2093º do Código Civil), são partes legítimas todos os interessados na partilha da herança.
Com efeito, como diz LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “No que tange à legitimidade ativa, em processo de inventário é necessária a intervenção de todos os interessados para que a decisão produza o seu efeito útil normal (…) Deste modo, não pode um herdeiro – desacompanhado dos demais - requerer a prestação de contas do cabeça-de-casal, devendo provocar a intervenção dos demais pelo incidente de intervenção provocada.
(...)
A regra em sede de ação de prestação de contas é a do litisconsórcio necessário natural, ativo e passivo.
(…)
Se apenas um herdeiro requeresse a prestação e contas pelo cabeça-de-casal, ficaria a porta aberta à possibilidade de outros herdeiros instaurarem nova demanda, em que poderia obter decisão diferente.
(...) a prestação de contas supõe e exige litisconsórcio necessário, já que o entreleçamento das posições dos vários interessados vai a tal ponto que, pela própria natureza da relação jurídica nada de definitivo se pode senão para todos e entre todos”.
No caso vertente, a necessidade de o interessado EE intervir na presente causa é manifesta: basta pensar que o autor pede a condenação do réu a pagar-lhe uma determinada quantia, decorrente da administração das heranças a que se referem os autos de inventário.
O interessado EE tem, obviamente, todo o interesse em tomar posição sobre a pretensão do autor.
Como bem refere LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, a posição descrita no trecho citado foi assumida na doutrina por ALBERTO DOS REIS e RODRIGUES BASTOS, e tem sido pacificamente acolhida na jurisprudência.
Neste último âmbito, vejam-se, entre outros, os seguintes arestos:
- RC 24-06-2014 (sílvia Pires), p. 373-A/2001.C1
- RL 28-01-2016 (Ezagüy Martins), p. 9840/09.4TBOER-A.L1-2
- RG 28-06-2018 (Conceição Bucho), p. 155/09TBTMC-A.G1
Trata-se de uma situação de litisconsórcio necessário natural ativo (art. 28º, nº 1 do CPC1961, e 33º do CPC2013), devendo por isso figurar na causa, como réu o/a cabeça-de-casal, e como autores, todos os (demais) interessados na partilha.
Ora, como é sabido, a preterição de litisconsórcio necessário gera ilegitimidade, a qual constitui um vício de conhecimento oficioso que conduz à absolvição do réu da instância (arts. 494º, al. e), 495º, e 288º, al. d) do CPC1961, e 576º, nº 2, 577º, al. e), 578º, e 278º, nº 1, al. d) do CPC2013).
Com efeito, embora em estádios menos avançados da causa tal vício possa ser sanado, mediante a dedução de incidente intervenção principal, o certo é que este incidente já não pode ser deduzido na fase de recurso.
Admitiu, contudo, o relator do presente acórdão a possibilidade de, num exercício de adequação formal, e tendo em conta que a presente causa se acha pendente há dezanove anos, evitar que a causa terminasse sem decisão de mérito, o que se crê apenas seria possível mediante a expressa anuência de todas as pessoas envolvidas, a saber, as partes primitivas desta causa, e o irmão de ambos, senhor EE, e desde que aceitassem o processo tal como o mesmo se encontra.
Porém, apenas o interessado AA manifestou tal anuência.
Nesta conformidade, inevitável se torna que o presente Tribunal absolva o requerido da instância, com fundamento na referida ilegitimidade ativa decorrente da preterição de litisconsórcio necessário.
Em consequência, fica prejudicada a apreciação do mérito do recurso. (…)”
Para depois concluir do seguinte modo:
“Pelo exposto, acordam os juízes nesta ...ª Secção do Tribunal da Relação ... em:
a) julgar verificada a exceção de ilegitimidade passiva, e em consequência, absolver o réu da instância
b) Em consequência, considerar prejudicada a apreciação do mérito do presente recurso.
Custas pelo apelado.”
Não se conformando, veio o apelado interpor recurso do acórdão da Relação, formulando as seguintes conclusões:
“A - Vem o presente Recurso interposto do Douto Acórdão, proferido a 22 de Outubro de 2019, constante de fls. … dos presentes autos, que decidiu o presente Apenso de Prestação de Contas dos anos 1997, 1998, 1999 e 2000, Acórdão esse com o qual o ora Recorrente não se conforma.
B - Sem prescindir quanto ao alegado supra, o Recorrente dá essas mesmas alegações aqui como integralmente reproduzidas
C - Primeiramente, em face do valor fixado ao presente Apenso A, importa alegar que:
D - Efectivamente, o presente Apenso foi autuado no dia 1/06/2000, com o valor de PTE: 3.000.001$00, ou seja, €: 14.963,94, o que conforme à previsão legal em vigor à data, efectivamente, permite que o Douto Acórdão ora recorrido possa ser objecto de Recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que esse valor excedia a Alçada do Tribunal da Relação à data da sua fixação.
E - Deverá o presente Recurso de Revista ser admitido por Vossas Ex.as e, consequentemente, subir e ser julgado procedente pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, conforme seguidamente se alegará.
F - Seguidamente, em face do teor constante do Douto Despacho proferido no dia 12/07/2019 pela …..ª Secção do Venerando Tribunal da Relação …., do qual o ora Recorrente foi notificado, bem como face à Resposta que por si foi dada ao mesmo, no Requerimento submetido a 10/09/2019, dúvidas existem quanto a saber se quanto às Senhoras FF e GG também houve ou não preterição do Litisconsórcio Necessário Activo.
G - Concluindo, requer-se a V.as Ex.as, por ser manifesta a sua pertinência, que esclareçam se as Senhoras FF e GG efectivamente são Interessadas no presente Apenso A, até porque constam nos registos informáticos dos autos de Inventário como tal, sendo certo que do Douto Acórdão de que se recorre apenas é declarada a preterição do Litisconsórcio Necessário quanto ao Interessado EE, nada aí sendo referido quanto à preterição ou não preterição do Litisconsórcio no referente às Senhoras FF e GG, existindo sim a total ausência de pronúncia quanto a esta questão, apesar de a mesma ter sido apresentada e suscitada pelo próprio Tribunal “a quo” no referido Douto Despacho proferido no dia 12/07/2019.
H - Mais se requer que no presente Recurso seja analisada a seguinte questão:
I - Toda a Fundamentação vertida no Douto Acórdão recorrido, proferido nos autos do Apenso A de Prestação de Contas, vai no sentido de ter sido verificada a preterição do Litisconsórcio Necessário Natural Activo, por ter sido entendido que o Autor não estava acompanhado dos demais Interessados, no entanto, a Decisão proferida nesse mesmo Acórdão vai no sentido de a referida preterição ser geradora de Ilegitimidade Passiva.
J - Na modesta opinião do ora Recorrente, é manifesto que a Fundamentação vertida no Douto Acórdão recorrido está em oposição com a Decisão que nele foi proferida, concretamente, por ter sido fundamentada a preterição do Litisconsórcio Necessário Natural Activo e ter sido Decidido pela verificação da existência de Ilegitimidade Passiva, vício este que, em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1, do artigo 615º do CPC, é gerador de Nulidade desse mesmo Acórdão, a qual, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, só pode ser arguida em sede de Recurso, devendo o Acórdão ser revogado por força desse vício e, consequentemente, caso tal se mostre viável, deverão proferir novo Acórdão conforme ao Direito.
K - Se este não for o Vosso Entendimento, concretamente, não decidindo pelo reconhecimento do vício da Nulidade do Acórdão recorrido, sempre se dirá, na modesta opinião do Recorrente, que pelo menos o Douto Acórdão padece de Erro na formulação da Decisão, devendo ter sido decidido pela verificação da existência de Ilegitimidade Activa em face da verificada preterição do Litisconsórcio Necessário Natural Activo, requerendo-se a V.as Ex.as que procedam à Revogação do Douto Acórdão recorrido e profiram novo Acórdão onde seja decidido pela verificação da existência de Ilegitimidade Activa, assim fazendo-se Justiça.”
Como foi arguida nulidade, a Relação, em conferência, apreciou assim a matéria:
“(…) Da invocada nulidade do acórdão e da pretendida reforma do mesmo:
Dispõe o art. 615º, nº 1, al. c) do CPC que a sentença é nula “quando os fundamentos estejam em contradição com a decisão, ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
(…)
No caso vertente sustenta o recorrente que existe contradição entre os fundamentos de facto e a decisão proferida, porquanto na fundamentação do acórdão recorrido se concluiu pela verificação de uma situação de litisconsórcio necessário ativo, ao passo que no dispositivo do mesmo acórdão se julgou verificada a exceção de ilegitimidade passiva.
Cremos que o que os autos evidenciam é que o acórdão recorrido padece de um lapso de escrita, no seu dispositivo.
Com efeito, basta atentar na fundamentação do mesmo acórdão e na doutrina e jurisprudência ali citados para verificar que toda a argumentação se orientou no sentido de concluir pela verificação de uma situação de litisconsórcio necessário natural ativo (e não passivo). Aliás, já no despacho do relator que antecedeu a prolação do acórdão recorrido, e nos termos do qual foram as partes a pronunciar-se sobre a matéria, nos termos do disposto no art. 3º, nº 3 do CPC, se aludiu sempre a uma situação de litisconsórcio necessário natural ativo.
Aliás, relendo o acórdão, verificamos que o mesmo padece de outros dois lapsos de escrita, visto que no subtítulo correspondente ao ponto 2.2. também se alude a legitimidade passiva, e que na 1ª página do mesmo aresto se identificou o recorrido como “AA…..”, quando o mesmo se chama “AA”
Nos termos do disposto 614º, nº 1 do CPC “se a sentença (contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz”.
Esta disposição é aplicável aos acórdãos ex vi do art. 666º, nº 1 do mesmo código.
Da conjugação do disposto nos arts. 614º, nº 2 e 666º, nº 2 do CPC, resulta que a Relação pode retificar lapsos de escrita de acórdão sobre o qual tenha incidido recurso de revista, desde que o faça antes de o recurso subir ao STJ, e tal seja decidido em conferência.
Assim sendo, conclui-se que o acórdão recorrido padece dos lapsos de escrita acima referidos, e que por isso devem ser retificados, a fim de que o nome próprio do recorrido que consta da 1ª página seja corrigido para “AA” e no ponto 2.2. e no ponto 3., al. a) onde consta “passiva” passe a constar “Ativa”.
A retificação de tais lapsos de escrita supre a nulidade invocada pelo apelado. (…).
Para concluir de seguida:
“Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desta …ª secção do Tribunal da Relação ….. em determinar a retificação do acórdão recorrido, a fim de que:
a) Na p. 1, onde consta “Recorrido: AA…..”, passe a constar “Recorrido: AA”;
b) Na p. 12, onde consta “2.2. Da legitimidade passiva”, passe a constar “2.2. Da legitimidade ativa”;
c) Na p. 14, no ponto 3., al. a) (dispositivo), onde consta “ilegitimidade passiva”, passe a constar “ilegitimidade ativa”
. Face ao supra determinado, deve o recorrente, no prazo de 10 dias, esclarecer se mantém o interesse no recurso de revista – art. 617º, nº 3 do CPC.
Sem custas. Notifique,
Na sequência, o apelado e recorrente AA veio dizer o seguinte: “O Recorrido destaca que, no Recurso de Revista que interpôs para o STJ, além da invocada Nulidade, requereu fosse proferida Decisão de Esclarecimento/Aclaração quanto à questão de saber quais as pessoas que terão interesse numa acção de Prestação de Contas, como a actual, sendo que esse pedido não foi por V.as Ex.as apreciado na Conferência realizada, o que se pensava poder ter sido também atendido. Pelo que, se entende que se mantém a pertinência em saber se apenas os Herdeiros dos de cujus serão os Interessados que devem ser parte nesta acção de Prestação de Contas ou se, conjuntamente aos mesmos, também as respectivas esposas são consideradas Interessadas para a acção e, especificamente, se uma actual ex-cônjuge, mas que à data a que respeitam as Contas em análise era casada com um Herdeiro, também é considerada Interessada na acção de Prestação dessas Contas.
Cumpre decidir, tendo em conta as vicissitudes processuais que constam do relatório que antecede.
Nulidade do acórdão:
O recorrente invoca a nulidade do acórdão recorrido por oposição entre a fundamentação e a decisão (alínea c) do n.º 1 do artigo 615º do CPC), uma vez que na fundamentação se indica a preterição do litisconsórcio necessário natural activo e no dispositivo do acórdão consta a verificação da ilegitimidade passiva.
Mas não existe qualquer nulidade.
O que se verifica é que o acórdão recorrido, em razão da argumentação expendida, concluiu, logicamente: “Nesta conformidade, inevitável se torna que o presente Tribunal absolva o requerido da instância, com fundamento na referida ilegitimidade ativa decorrente da preterição de litisconsórcio necessário.” Só depois, na parte dispositiva, julgou verificada a exceção de ilegitimidade “passiva”, e em consequência, absolveu o réu da instância.
Ou seja: como bem referiu a Relação, em conferência, “basta atentar na fundamentação do mesmo acórdão e na doutrina e jurisprudência ali citados para verificar que toda a argumentação se orientou no sentido de concluir pela verificação de uma situação de litisconsórcio necessário natural ativo (e não passivo). Aliás, já no despacho do relator que antecedeu a prolação do acórdão recorrido, e nos termos do qual foram as partes a pronunciar-se sobre a matéria, nos termos do disposto no art. 3º, nº 3 do CPC, se aludiu sempre a uma situação de litisconsórcio necessário natural ativo.” E daí que a Relação tenha ordenado a rectificação do acórdão recorrido no sentido de se ler “legitimidade ativa” onde se lia “legitimidade passiva”.
Portanto, não existe, em rigor, qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, geradora da nulidade, mas apenas lapso de escrita. A causa de nulidade apontada pressupõe uma contradição lógica interna no raciocínio do julgador, que invoca fundamentos que conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto (Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. V, pág. 141); pressupõe um vício lógico de raciocínio, com distorção da conclusão a que conduziriam as premissas de facto e de direito (cfr. Ac. STJ de 18.5.2006, proc. 06A1222, em www.dgsi,pt). Não é o caso: o que existe é apenas um erro material de escrita, revelado no contexto do acórdão (que foi depois rectificado), erro esse que não se pode confundir com qualquer nulidade (cfr. art. 613º do CPC).
Aliás, ainda que se entendesse que se verificava a nulidade, sempre a mesma se deveria considerar suprida.
Erro na formulação da decisão:
Entende o recorrente que, não se decidindo pelo reconhecimento do vício da nulidade do acórdão recorrido, deve entender-se que este padece de erro na formulação da decisão, devendo decidir-se, consequentemente, pela verificação da existência de ilegitimidade activa em face da verificada preterição do litisconsórcio necessário natural activo, revogar-se o recorrido e proferir-se novo acórdão onde seja decidia a verificação da existência de ilegitimidade activa.
Porém, o recorrente ignora o acórdão posterior ao acórdão original, que determinou a rectificação ”a fim de passar a constar “ilegitimidade ativa” onde antes constava “ilegitimidade passiva”.
Não tem, pois, qualquer sentido a revogação do acórdão (rectificado) que, tal como pretende o recorrente, decidiu pela verificação da ilegitimidade activa.
Pedido de esclarecimento:
Com o fundamento de que no acórdão recorrido não se vislumbra qualquer fundamentação nem qualquer decisão que integre ou afaste as referidas Senhoras FF e GG da posição de interessadas no inventário, o recorrente fundamenta o seu recurso também num pedido de esclarecimento quanto a saber se “as Senhoras FF e GG efectivamente são Interessadas no presente Apenso A, (…) sendo certo que do Douto Acórdão de que se recorre apenas é declarada a preterição do Litisconsórcio Necessário quanto ao Interessado EE, nada aí sendo referido quanto à preterição ou não preterição do Litisconsórcio no referente às Senhoras FF e GG”.
Como se verifica, na sequência da rectificação do acórdão recorrido, a Relação determinou a notificação do recorrente para informar se mantinha interesse no recurso de revista, uma vez que considerou prejudicada a apreciação da nulidade acima referida. Na sequência dessa notificação, o recorrente veio informar que mantinha interesse no recurso de revista, “atenta a falta de pronúncia sobre o referido pedido de esclarecimento”.
Porém, não houve qualquer falta de pronúncia sobre o pedido de esclarecimento formulado nas alegações de recurso: o CPC de 2013, aqui aplicável, já não prevê qualquer incidente de aclaração das decisões (cfr. Ac. STJ de 29.9.2020, proc. 935/07.0TJPRT.P1.S1, em www.dgsipt). Não tinha, assim, a Relação de responder ao pedido de esclarecimento.
É verdade que a Relação referiu que no registo electrónico constavam como interessados no processo de inventário, para além do autor e do réu, os srs. EE, FF, e GG; que deu nota de que nos autos de inventário teve lugar uma conferência de interessados onde constavam, como interessados no processo de inventário, as cinco pessoas mencionadas; que as interessadas FF e GG eram casadas, respetivamente, com os interessados BB e EE. No entanto, a Relação frisou também que “nos autos de inventário têm a qualidade de interessados, por serem sucessores dos autores das heranças a partilhar, os senhores BB e AA, que são partes na presente causa, bem como o senhor EE”; que no caso vertente, a necessidade de o interessado EE intervir na presente causa era manifesta; e que, inclusivamemte, o relator do acórdão admitiu a possibilidade de, num exercício de adequação formal, obter a expressa anuência de todas as pessoas envolvidas, a saber, as partes primitivas da causa, e o irmão de ambos, EE, desde que aceitassem o processo tal como o mesmo se encontra, sendo que apenas o interessado AA manifestou tal anuência. Citou, ainda, jurisprudência, em abono da decisão.
Ou seja: para obter resposta às suas dúvidas, se ainda as tem, terá o recorrente de interpretar o acórdão em conjugação com o despacho do relator, com o sumário por este lavrado e com a jurisprudência citada, e ver se a intervenção das ditas interessadas do inventário, que não são herdeiras, se revela ou não necessária para assegurar a legitimidade activa dos autores de uma acção de prestação de contas. Não pode é convocar o Supremo para fazer essa interpretação, antes de a questão ter sido suscitada. Aliás, o recorrente não suscitou qualquer nulidade por omissão de pronúncia do acórdão relativamente a essa matéria, que não se revelava essencial para a decisão da Relação (que a baseou na circunstância de nos autos não figurar um dos herdeiros).
Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):
“1. Se a oposição entre os fundamentos e a decisão resulta de simples lapso de escrita, não se verifica, em bom rigor, a causa da nulidade do acórdão prevista no art. 615º, nº 1, al. c) do CPC, que pressupõe um vício de raciocínio;
2. Tendo a Relação rectificado o acórdão original no sentido de passar a constar “ilegitimidade ativa” onde antes constava “ilegitimidade passiva”, não tem sentido o recorrente, com base em alegado “erro na formulação da decisão”, requerer que o Supremo proceda à revogação do acórdão recorrido e profira novo acórdão onde seja decidida a verificação da existência de ilegitimidade activa;
3. À face do CPC de 2013, e mercê da eliminação do incidente de aclaração das decisões (outrora previsto no CPC de 2008) não tem a Relação de se pronunciar sobre qualquer pedido de esclarecimento do acórdão formulado nas alegações de recurso de revista, no sentido de saber se a intervenção das interessadas do inventário, que não são herdeiras, se revela ou não necessária para assegurar a legitimidade activa dos autores de uma acção de prestação de contas;
4. Também não cabe ao Supremo “esclarecer” o recorrente sobre essa matéria, se ela não foi suscitada antes como questão decidenda.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
O relator António Magalhães (que, nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020 de 13.3., atesta o voto de conformidade dos Srs Juízes Conselheiros Adjuntos Dr. Jorge Dias e Dr.ª Maria Clara Sottomayor que não puderam assinar)