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PERDA A FAVOR DO ESTADO
PAGAMENTO DE CUSTAS
INCUMPRIMENTO
DIREITO DE RETENÇÃO
Sumário
- A quantia apreendida nos autos e declarada perdida a favor do Estado por acórdão transitado em julgado não se inscreve, a nosso ver, em qualquer das alíneas do artigo 34.º, n.º1 cujo pressuposto essencial é a circunstância de o tribunal ter à sua ordem depositadas as referidas quantias e os mencionados bens com as características a que se reportam as diversas alíneas desse n.º1. - Embora sejam configuráveis situações de apreensão de quantias em dinheiro do arguido, no âmbito do processo penal, susceptíveis de ser objecto de retenção a título de garantia do pagamento de valores de que seja devedor, não se vislumbra que o tribunal pudesse socorrer-se do direito de retenção e de afectação de quantias já então declaradas perdidas a favor do Estado – em relação às quais não há, por conseguinte, que invocar qualquer “direito de retenção” de quantias que devessem ser entregues à responsável pelas custas - e cujo destino o legislador expressamente determinou.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. No processo n.º 517/19.3JELSB, o Ministério Público deduziu acusação em processo comum com intervenção do tribunal colectivo contra F. , melhor identificada nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B, anexa ao mesmo diploma.
Realizado o julgamento, foi proferido acórdão, em 22 de Abril de 2020, transitado em julgado em 27 de Maio de 2020, que decidiu, além do mais, declarar perdidos perdidos a favor do Estado o telemóvel e quantias monetárias apreendidos à arguida.
Em 17 de Novembro de 2020, foi proferido despacho nos seguintes termos:
« Determino a afectação das quantias pecuniárias apreendidas nos autos e declaradas perdidas a favor do Estado ao pagamento das custas devidas pela condenada.
Notifique.»
2. Desse despacho recorre o Ministério Público, finalizando o seu recurso com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
a) Por Acórdão proferido em 22/04/2020, transitado em julgado em 27/05/2020, foi a arguida F. condenada, para além do mais, no pagamento de custas criminais, sendo a taxa de justiça no valor de 4 UC (arts.513°, n°l, do C.P.P. e 8o, n°5, do R.C.P., e tabela III a este anexa).
b) Mais se declararam perdidos a favor do Estado, para além do mais, o telemóvel e as quantias monetárias apreendidos à arguida, ao abrigo do disposto no art.35°, n°l, do D.L. n°.15/93, de 22/01.
c) Como se alcança dos autos, a arguida não procedeu ao pagamento das custas em que foi condenada.
d) No despacho ora recorrido, proferido em 17-11-2020, a Mma Juíza “a quo” determinou “a afectação das quantias pecuniárias apreendidas nos autos e declaradas perdidas a favor do Estado ao pagamento das custas devidas pela condenada.”,
e) confundindo-se:
- A declaração de perdimento a favor do Estado e o destino posterior legal do dinheiro apreendido e assim declarado no Acórdão ao abrigo do disposto no art.35°, n°l, do D.L. n°.15/93, de 22/01, destino sujeito ao regime estabelecido no art.39° do mesmo diploma legal, por um lado,
- com o destino das quantias a afetar/reter ao pagamento das custas, que apenas podem ser consideradas em sede de incumprimento e de direito de retenção nos termos do art.34° do R.C.P., relativamente a quantias de que seja titular o responsável pelas custas e devam ser a este entregues (n°l, al. d)), logo não declaradas perdidas a favor do Estado, a repartir nos termos consagrados neste preceito legal, por outro.
f) Quanto ao destino do dinheiro declarado perdido a favor do Estado. a repartir nos termos consagrados no art.39° do D.L. n°15/93, a divisão far- se-á da seguinte forma:
- 80% (30% + 50%) - n°. 1, ais. a) e b) do D.L. n°15/93, para o Instituto da Droga e da Toxicodependência - D.L. n°269-A/2002, de 29.11.
-10% (1/2de 20%) - ala. c) do D.L. n° 15/93, para o Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público, I.P
-10% (1/2 de 20%) - ala. c) do D.L. n° 15/93, para a Direcção-Geral dos Serviços Prisionais - als.f) e g) do art°. 14° do D.L. n°125/2007, de 27.04
g) Quanto ao pagamento de custas, em caso de incumprimento, o art.34° do R.C.P. confere ao Tribunal o exercício do direito de retenção relativamente a quantias de que seja titular o responsável pelas custas e que devam ser a este entregues (n°l, al. d)), a repartir nos termos consagrados neste preceito legal, sem prejuízo de eventual instauração da execução nos termos do art.35° do mesmo diploma legal com vista à cobrança coerciva das custas.
h) Ora, no caso estando claramente perante dinheiro declarado perdido a favor do Estado, logo a não entregar à arguida e, estando em dívida as custas do processo a cargo da mesma, não se trata, por conseguinte, do cumprimento do art.34°, n°l, al. d), do Regulamento de Custas Processuais/R.C.P., antes devendo operar, como acima se deixou expresso, as regras estabelecidas no art.39° do D.L. n°15/93 e demais disposições citadas, de acordo com a ordem de prioridade e nos termos aí fixados.
i) Tudo ponderado, carece de suporte legal a decidida afetação das quantias pecuniárias apreendidas nos autos e declaradas perdidas a favor do Estado ao pagamento das custas devidas pela condenada, suporte legal que a Mma Juíza “a quo”, aliás, não invoca no despacho recorrido.
j) Face a todo o exposto, ao decidir como decidiu, a Mma Juiz “a quo” no douto despacho recorrido violou o disposto nos arts.39° do D.L. n°15/93, de 22/01, e 34° e 35° do R.C.P.
Termos em que, decidindo em conformidade com as conclusões que antecedem, deve ser revogado o douto despacho recorrido e substituído por outro que cumpra o disposto nos arts.39° do D.L. n°15/93, de 22/01, e 34° e 35° do R.C.P., não deixando assim V.Exas de, em alto critério, fazer a habitual JUSTIÇA!
3. Não foi apresentada resposta ao recurso.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), acompanhou a posição do Ministério Público junto da 1.ª instância.
5. Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, a questão que importa apreciar é a de saber se relativamente a quantia em dinheiro declarada perdida a favor do Estado ao abrigo do disposto no artigo 35.º, n.º l, do D.L. n.º 15/93, de 22/01, pode o tribunal determinar, ao abrigo do disposto no artigo 34.º do Regulamento das Custas Processuais, que as custas da responsabilidade da condenada sejam pagas pela afectação a esse pagamento da quantia apreendida.
2. Apreciando
Diz-se no acórdão condenatório:
« Do destino dos obíectos apreendidos nos autos:
Encontram-se apreendidos, à ordem dos autos, designadamente, um telemóvel, bem como as quantias de € 570 e 256 reais brasileiros.
Nos termos do disposto no art. 35°, n° 1, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista nesse diploma ou que por esta tiverem sido produzidos.
No caso dos autos, o telemóvel e quantias monetárias apreendidas à arguida serviram para a prática dos factos pelos quais a arguida vai condenada.
Deste modo, declaram-se tal telemóvel e dinheiro perdidos a favor do Estado.»
O artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 15/93 estabelece, sob a epígrafe “Destino dos bens declarados perdidos a favor do Estado”:
«1 - As recompensas, objectos, direitos ou vantagens declarados perdidos a favor do Estado, nos termos dos artigos 35.º a 38.º, revertem:
a) Em 30% para a entidade coordenadora do Programa Nacional de Combate à Droga, destinando-se ao apoio de acções, medidas e programas de prevenção do consumo de droga;
b) Em 50% para o Ministério da Saúde, visando a implementação de estruturas de consulta, tratamento e reinserção de toxicodependentes;
c) Em 20% para os organismos do Ministério da Justiça, nos termos das disposições legais aplicáveis ao destino do produto da venda de objectos apreendidos em processo penal, visando o tratamento e reinserção social de toxicodependentes em cumprimento de medidas penais ou tutelares.
2 - A alienação de veículos automóveis fica sujeita a anuência prévia da Direcção-Geral do Património do Estado, sem prejuízo do disposto no artigo 156.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de Setembro.
3 - Não são alienados os bens, objectos ou instrumentos declarados perdidos a favor do Estado que, pela sua natureza ou características, possam vir a ser utilizados na prática de outras infracções, devendo ser destruídos no caso de não oferecerem interesse criminalístico, científico ou didáctico.
4 - Na falta de convenção internacional, os bens ou produtos apreendidos a solicitação de autoridades de Estado estrangeiro ou os fundos provenientes da sua venda são repartidos entre o Estado requerente e o Estado requerido, na proporção de metade.»
Como se disse supra, perante a falta de pagamento das custas de responsabilidade da condenada, foi proferido despacho, em 17 de Novembro de 2020, com o seguinte teor:
« Determino a afectação das quantias pecuniárias apreendidas nos autos e declaradas perdidas a favor do Estado ao pagamento das custas devidas pela condenada.
Notifique.»
Ainda que não tenha sido indicada a base legal para a determinação da afectação das quantias apreendidas ao pagamento das custas devidas pela condenada, presssupõe-se que o tribunal tenha entendido ser aplicável o disposto no artigo 34.º do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, que estabelece o seguinte:
«Artigo 34.º
Incumprimento e direito de retenção
1 - Passado o prazo para o pagamento voluntário sem que estejam pagas as custas, multas e outras quantias contadas e não tendo sido apresentada reclamação ou até que esta seja alvo de decisão transitada em julgado, o tribunal tem o direito a reter qualquer bem na sua posse ou quantia depositada à sua ordem que:
a) Provenha de caução depositada pelo responsável pelas custas;
b) Provenha de arresto, consignação em depósito ou mecanismo similar, relativos a bens ou quantias de que seja titular o responsável pelas custas;
c) Provenha da consignação, venda ou remição relativa a bens penhorados que fossem propriedade do responsável pelas custas;
d) Deva ser entregue ao responsável pelas custas.
2 - Verificado o incumprimento ou transitada em julgado a decisão a que se refere o número anterior, e quando se trate de quantias depositadas à ordem do tribunal, tem este faculdade de se fazer pagar directamente pelas mesmas, de acordo com a seguinte ordem de prioridade, salvo disposição em contrário:
a) Taxa de justiça;
b) Outros créditos do Instituto de Gestão Financeira e das Infra-Estruturas da Justiça, I. P.;
c) Créditos do Estado;
d) Reembolsos a outras entidades por força de colaboração ou intervenção no processo, incluindo os honorários e despesas suportadas pelo agente de execução, que não seja oficial de justiça.
3 - Sobre a totalidade das quantias contadas, com excepção das multas e penalidades, incidem juros de mora à taxa legal mínima.
4 - Sempre que as quantias disponíveis para o pagamento das custas se afigurem insuficientes, e realizados os pagamentos referidos nas alíneas a) a c) do n.º 2, o remanescente é rateado pelos restantes credores aí referidos e, sendo caso disso, pelos outros credores que sejam reconhecidos em sentença.»
Temos, assim, de um lado, a perda de objectos e a perda de coisas ou direitos relacionados com os factos, a que se referem os artigos 35.º e 36.º da Lei n.º 15/93 (com o alargamento determinado nos artidos 37.º e 38.º do mesmo diploma), com o destino fixado no artigo 39.º supra transcrito, e, por outro, a questão do incumprimento e direito de retenção a que se refere o citado artigo 34.º do Regulamento das Custas Processuais.
Este artigo reporta-se ao incumprimento da obrigação de pagamento de custas, multas e outras quantias contadas, contemplando o direito de o tribunal reter bens e quantias derivadas de determinados actos processuais e de, tratando-se de quantias depositadas à ordem do tribunal, se fazer pagar directamente pelas mesmas, de acordo com certa ordem de prioridade.
O pressuposto essencial do n.º1 do referido artigo 34.º é a circunstância de o tribunal ter à sua ordem depositadas as referidas quantias e os mencionados bens com as características a que se reportam as diversas alíneas desse n.º1.
Ora, a quantia apreendida nos autos e declarada perdida a favor do Estado por acórdão transitado em julgado não se inscreve, a nosso ver, em qualquer das alíneas do artigo 34.º, n.º1: não se trata de quantia depositada a título de caução, não é proveniente de arresto, consignação em depósito ou mecanismo similar, tal como não provém da consignação, venda ou remição relativa a bens penhorados da propriedade da condenada / responsável pelas custas em dívida, além de que, seguramente, não se trata de quantia que a esta devessse ser entregue.
Assim, embora sejam configuráveis situações de apreensão de quantias em dinheiro do arguido no âmbito do processo penal, susceptíveis de ser objecto de retenção a título de garantia do pagamento de valores de que seja devedor, não se vislumbra que o tribunal, in casu, pudesse socorrer-se do direito de retenção e de afectação de quantias já então declaradas perdidas a favor do Estado – em relação às quais não há, por conseguinte, que invocar qualquer “direito de retenção” de quantias que devessem ser entregues à responsável pelas custas - e cujo destino o legislador expressamente determinou.
Conclui-se, sem necessidade de outras considerações, que o despacho recorrido carece de base legal, pelo que o recurso merece provimento.
***
III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e determinando que seja substituído por outro que determine que à quantia declarada perdida a favor do Estado seja dado o destino legalmente estabelecido.
Sem custas.
Lisboa, 13 de Abril de 2021
(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)
Jorge Gonçalves
Maria José Machado