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ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA
LEGITIMIDADE PASSIVA
Sumário
Instaurada ação de divisão de coisa comum, por um comproprietário contra a herança, antes da partilha, na qual a herança figura como comproprietária, a par de terceiros e demandados todos os herdeiros, que atuam como representantes da herança e não em nome próprio (art. 2091º/1 CC), estão reunidos os pressupostos para a promoção da divisão, sem se mostrar necessário instaurar ou obter decisão em processo de inventário, por estarem na ação todos os consortes (art. 925º CPC).
Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório
Na presente ação de divisão de coisa comum em que figuram como:
- REQUERENTE: B…, LDA, com número único de matrícula e pessoa coletiva NIF: ………, com sede na …, nº …, ….-…, Porto; e
- REQUERIDOS: - HERANÇA DE C…, NIF: ………, com a cabeça de casal D…; bem como os seus HERDEIROS; - D…, solteira maior, NIF: ………, residente na Rua …, nº.., 2ºandar - sala ., ….-…, Porto;
- E…, solteiro, maior, NIF: ………, residente na Rua …, nº…, 1º, ….-…, Porto;
na falta de acordo entre os interessados pretende a requerente obter a divisão do prédio, por adjudicação ou venda, com repartição do respetivo valor.
Alegou para o efeito que a requerente e a herança aqui R. são comproprietários, de um prédio urbano, composto por casa de cave, R/C, três andares, águas-furtadas, dependência e pátio, sito na Rua …, nºs .. a .., Porto, descrito na Conservatória de Registo Predial do Porto, sob o nº 1644 e inscrito na matriz predial sob o artigo 1558º, na união de freguesias …, concelho do Porto, conforme caderneta predial urbana e descrição predial.
A requerente é comproprietária de três quartos (75%) do prédio supra referido e a herança aqui requerida é comproprietária de um quatro (25%) do mesmo prédio.
Os RR. D… e E…, são os únicos herdeiros da herança aqui R. de C…, sendo a R. D… herdeira legitimária e o R. E… herdeiro testamentário, conforme consta do Procedimento Simplificado da habilitação de herdeiros.
Não há, entre A. e RR, comproprietários do referido prédio, convenção para que o mesmo se conserve indiviso, pelo que a A. não é obrigada a permanecer na indivisão, motivo pelo qual a vem requerer, ao abrigo do disposto no art. 1412º do CC.
Tencionando assim obter a referida divisão do prédio, por adjudicação ou venda, com repartição do respetivo valor, já que a divisão em substância não é legalmente viável, por este não estar constituído em propriedade horizontal e, dada a existência e configuração da sua estrutura, não o pode ser. O prédio em crise, por ser datado dos anos vinte, e por nunca ter sido alvo de qualquer intervenção significativa, carece de restauro profundo, quer das suas fundações e interior, bem como, do seu telhado e das suas fachadas, sob pena de grave deterioração.
O estado de conservação e segurança do edifício encontra-se gravemente comprometido, o que suscitou uma tomada de posição da Câmara Municipal …, traduzida na imposição de obras coercivas, sendo urgente a divisão do imóvel em questão, a fim de evitar o seu padecimento, ou até eventuais danos em terceiros, face ao perigo eminente de derrocada.
Alega, por fim, que existe uma total impossibilidade de contacto da R. D…, que obsta à divisão amigável do imóvel em crise.
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Citados os requeridos veio a requerida D…-contestar, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Por exceção, suscita a ilegitimidade passiva, por não terem sido demandados todos os comproprietários, pois resulta da certidão da conservatória do registo predial junta com a petição, que existem mais dois comproprietários: F…, que será comproprietária na proporção de ¼; G…, casado no regime da comunhão geral de bens com H…, que deterão 1/20.
Por impugnação, considera não ser exato o que se afirma quanto ao quinhão da requerente no prédio e impugna os demais factos por desconhecimento e por não corresponderem à verdade.
Termina por pedir que se julgue procedente a arguida exceção de ilegitimidade, com absolvição da requerida da instância ou caso assim não se entenda julgar-se como for de direito.
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Na resposta à matéria da exceção veio a autora impugnar a matéria de facto, alegando, ainda que é proprietária de ¾ do prédio objeto dos presentes autos, resultando da certidão predial permanente junta com a PI, o registo das três aquisições por si efetuadas.
Mais concretamente, em 2016 adquiriu 1/5, aquisição que registou pela AP 1531 de 24.08.2016, em 2017, adquiriu 1/4, que registou pela AP 1883 de 17.01.2017 e em 2018 adquiriu 3/10, tendo registado tal aquisição pela AP 2948 de 15.06.2018.
Termina por pedir que se julgue improcedente a exceção.
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A requerida veio opor-se à admissão do articulado resposta.
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Proferiu-se despacho que determinou a notificação da ré para informar se a herança aberta por óbito de C… já foi objeto de partilha ou se, pelo contrário, ainda se encontra indivisa.
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A requerida veio informar que a herança aberta por óbito de C… encontra-se ainda indivisa estando pendentes uns autos de inventário no cartório notarial da Ex.ma Senhora Dra. D. I…, no Porto, sob o nº 4095/17.
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Proferiu-se sentença com a decisão e fundamentos que se transcrevem:
“B…, Lda veio instaurar a presente ação especial de divisão de coisa comum contra Herança aberta por óbito de C… e seus herdeiros D… e E….
Fundamentou a sua pretensão alegando ser juntamente com a ré Herança comproprietária de um imóvel que descreve, na proporção de 75% e 25%, respetivamente, não pretendendo manter-se na indivisão.
Citados todo os réus, veio a ré D… contestar arguindo ser parte ilegítima por existirem outros dois comproprietários que não se encontram na lide.
A autora pronunciou-se sobre a exceção invocada pugnando pelo seu indeferimento.
Resposta esta que o tribunal reputa de admissível, ao abrigo do disposto no art.º 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil. II. Do preenchimento dos requisitos para a instauração e prosseguimento da presente ação.
Com vista à prolação de decisão sobre a questão levantada são de considerar os seguintes factos que se encontram assentes pelos documentos juntos aos autos: - Mostra-se descrito na conservatória do registo predial do Porto, sob o n.º 1644/20050805 um prédio urbano situado na Rua …, n.ºs .. a .., correspondente a uma casa de cave, rés-do-chão, 3 andares e águas furtadas e pátio. - Tal imóvel encontra-se inscrito a favor da autora e de C…, entre outros.
- A C… faleceu em 16/10/2016, deixando como seus herdeiros os réus.
- A herança aberta por óbito de C… não se encontra partilhada. III.
A ação de divisão de coisa comum tem como pressuposto a compropriedade sobre um bem ou porventura a comunhão de quaisquer outros direitos na medida em que lhe sejam aplicáveis as regras da compropriedade por força do art.º 1404.º do Código Civil e como finalidade a efetivação do direito à divisão que o art.º 1412.º do Código Civil confere aos comproprietários nos casos de divisibilidade ou indivisibilidade material da coisa.
A ação de divisão de coisa comum é uma ação de natureza real porquanto visa a modificação subjetiva e objetiva do direito real complexo em que se traduz a compropriedade.
Tanto a jurisprudência, como a doutrina têm decidido no sentido de se poder dividir os bens da herança de que se seja proprietário, ou seja, que tenham sido atribuídos aos herdeiros em partilha previamente realizada.
Na herança os herdeiros não são titulares de um direito de propriedade comum sobre uma coisa, mas antes contitulares do direito à herança que recai sobre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará. “Até à partilha, os herdeiros são apenas titulares de um direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados. Enquanto não se fizer a partilha, os herdeiros têm sobre os bens que constituem a herança indivisa um direito indivisível, recaindo tal direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados desta. A contitularidade do direito à herança implica um direito a uma parte ideal desta considerada em si mesma e não sobre cada um dos bens que a compõem. Nessa medida, não se tratando de coisa comum de que sejam comproprietários, não podem os herdeiros instaurar acção de divisão de coisa comum para dividir prédio que integre a herança. Só após a atribuição dos bens em partilha é que os herdeiros podem recorrer à acção de divisão de coisa comum. Dito de outro modo, os herdeiros do comproprietário não podem instaurar acção de divisão de coisa comum sem que, previamente, tenham procedido à partilha. Só após a individualização de um direito de propriedade sobre uma quota do prédio é que se torna viável a divisão de coisa comum.” – acórdão do STJ de 25/10/2011, citando Luís Filipe Pires de Sousa, Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, consultável em www.dgsi.pt.
Ou então como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 6/4/2000, consultável em www.pgdl.pt “I - Os herdeiros só podem dividir os bens da herança cuja propriedade lhes tenha sido previamente atribuída em partilha extra-judicial ou judicial.II – A qualidade de comproprietário de bens concretos da herança não se adquire pela simples habilitação de herdeiros, ainda que se trate de um único herdeiro, mas sim pela adjudicação em inventário ou partilha extra-judicial.III - Deve improceder, pois, uma acção de divisão de coisa comum de um prédio, proposta pelo herdeiro habilitado contra o comproprietário sobrevivo, sem que antes tenha havido adjudicação em inventário ou partilha amigável.”
No caso dos autos, o prédio identificado pertence à autora e à herança aberta por óbito de C…, na qual são herdeiros os 2.º e 3.º requeridos
Ou seja, os requeridos não são titulares de uma fração concreta do referido prédio mas apenas de um direito sobre a herança aberta por óbito de C…
Só quando se encontrar definida a (com)propriedade sobre o imóvel é que a autora poderá, eventualmente, recorrer à ação de divisão de coisa comum, pois na partilha poderá não caber a ambos os réus a quota parte do imóvel cujo divisão agora pretende.
Assim, deverá a autora aguardar a partilha da herança aberta por óbito de C… e após propor nova ação.
Em face do exposto, concluímos pela falta de preenchimento de um dos primeiros requisitos para a ação de divisão comum: a titularidade dos réus de uma fração concreta sobre o prédio objeto da ação.
A falta deste requisito configura uma exceção dilatória inominada, insuscetível de ser suprida e que conduz, necessariamente, à absolvição da instância dos réus – art.ºs 576.º, 578.º e 278.º, n.º 1, al.ª e) do Código de Processo Civil. IV.
Nestes termos, absolvo os réus da instância por falta de preenchimento, por parte da autora, dos requisitos necessários à instauração da ação de divisão de coisa comum.
Custas a cargo da autora - art.º 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil”.
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A requerente veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
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A requerida veio apresentar resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
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Termina por pedir que seja negado provimento ao recurso sob juízo, mantendo-se ipsis verbis a douta sentença recorrida.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Dispensaram-se os vistos legais.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação 1. Delimitação do objeto do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A questão a decidir consiste em apurar se num prédio urbano, adquirido em compropriedade, pertencendo uma das quotas do bem a dividir, a uma herança, se só após realização de inventário pode ser requerida a divisão, pelo outro comproprietário, apesar de instaurada a ação contra a herança e os herdeiros titulares dessa herança.
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2.Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância: - Mostra-se descrito na conservatória do registo predial do Porto, sob o n.º1644/20050805 um prédio urbano situado na Rua …, n.ºs .. a .., correspondente a uma casa de cave, rés-do-chão, 3 andares e águas furtadas e pátio. - Tal imóvel encontra-se inscrito a favor da autora e de C…, entre outros.
- A C… faleceu em 16/10/2016, deixando como seus herdeiros os réus.
- A herança aberta por óbito de C… não se encontra partilhada.
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3. O direito - Da verificação dos pressupostos para instaurar a ação de divisão de coisa comum -
Na sentença em recurso concluiu-se pela falta de preenchimento de um dos primeiros requisitos para a ação de divisão comum: a titularidade dos réus de uma fração concreta sobre o prédio objeto da ação, o que determinou a absolvição da instância dos réus.
A apelante insurge-se contra a interpretação defendida na sentença por considerar, em síntese, que a herança aberta por óbito de C… é proprietária na proporção de ¼ do prédio que se pretende dividir e os segundo e terceiro requeridos, como titulares de uma herança indivisa, em nada ficarão prejudicados com a divisão pretendida pela A., a qual em nada interfere com a partilha.
A questão que cumpre apreciar consiste, assim, em determinar se estão reunidos os pressupostos para promover a ação de divisão de coisa comum, face à matéria de facto alegada pela autora na petição, sobre a titularidade de ¼ do bem, cuja divisão se requer.
Nos termos do art. 1403º/1 do Código Civil existe propriedade em comum ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.
A medida da participação dos comproprietários no direito comum corresponde às quotas, como se prevê no art. 1403º/2 CC.
A compropriedade consiste na contitularidade num único direito de propriedade sobre a coisa comum[2].
Contudo, considerando os inconvenientes da propriedade em comum e que o aproveitamento da coisa é mais profícuo, com um só titular, existe um interesse público na cessação da compropriedade, moldando o regime da compropriedade em termos desta assumir um caráter transitório[3].
Prevê-se, assim, no art. 1412º/1 CC que “nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa”.
Nos termos do art. 1413º/1 CC “a divisão é feita amigavelmente ou nos termos da lei de processo”.
O processo judicial segue a tramitação prevista nos art. 925º seg..CPC.
Conforme determina o art. 925º CPC “todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requer, no confronto dos demais consortes, que fixadas as respetivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respetivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas”.
A ação tem de ser proposta por quem figure como comproprietário contra todos os comproprietários, sendo por isso, um caso típico de litisconsórcio necessário, sob o aspeto passivo, imposto pela própria natureza da relação jurídica, pois a decisão a obter não produz o seu efeito útil normal sem estarem em juízo todos os interessados[4].
Distinta da compropriedade é a comunhão hereditária, pois até à partilha os herdeiros são apenas titulares de um direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens determinados.
Têm, assim, toda a pertinência as considerações tecidas por LUIS de SOUSA (transcritas na sentença), quando refere e passamos a citar:
“Até à partilha, os herdeiros são apenas titulares de um direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados.
Enquanto não se fizer a partilha, os herdeiros têm sobre os bens que constituem a herança indivisa um direito indivisível, recaindo tal direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados desta. A contitularidade do direito à herança implica um direito a uma parte ideal desta considerada em si mesma e não sobre cada um dos bens que a compõem.
Nessa medida, não se tratando de coisa comum de que sejam comproprietários, não podem os herdeiros instaurar acção de divisão de coisa comum para dividir prédio que integre a herança.
Só após a atribuição dos bens em partilha é que os herdeiros podem recorrer à acção de divisão de coisa comum.
Dito de outro modo, os herdeiros do comproprietário não podem instaurar acção de divisão de coisa comum sem que, previamente, tenham procedido à partilha. Só após a individualização de um direito de propriedade sobre uma quota do prédio é que se torna viável a divisão de coisa comum”[5].
Mas prosseguindo a análise da questão, a respeito da distinção entre inventário e ação de divisão de coisa comum, refere, ainda:”[e]nquanto a causa de pedir no inventário é a existência de comunhão hereditária integrada por bens a partilhar deixados pelo de cujus, traduzindo-se o pedido na partilha de tais bens pelos interessados, na ação de divisão de coisa comum a causa de pedir consiste na compropriedade de certo bem que se quer dissolver, sendo o pedido ou de adjudicação ou venda desse bem”[6].
Mas também refere:”[p]pode ocorrer que a herança indivisa seja, ela própria, comproprietária (a par de terceiros) de um imóvel. Sendo interposta uma ação de divisão de coisa comum de tal imóvel por terceiro, antes da partilha, deverão ser demandados todos os herdeiros, os quais agirão como representantes da herança e não em nome próprio (cfr. art. 2091º/1 do Código Civil)”[7].
O AUTOR tem o cuidado de distinguir as diferentes situações que se podem prefigurar, numa ação de divisão de coisa comum, sob o lado ativo e no lado passivo, começando por analisar a hipótese, no lado ativo, de se apresentar o herdeiro, invocando a qualidade de proprietário, mas também se aprecia a situação, no lado passivo, quando é demandada a herança ilíquida e indivisa, por ser a comproprietária do bem cuja divisão se requer.
Para a concreta situação a analisar na apelação, releva de modo particular as considerações que são tecidas a respeito da demanda da herança ilíquida e indivisa e a necessidade de demandar os herdeiros, para garantir a personalidade judiciária.
A personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de ser parte (art. 11º/1 CPC) e em regra tem personalidade judiciária quem tiver personalidade jurídica.
Excecionalmente a lei atribui personalidade judiciária a entidades que não gozam de personalidade jurídica, como ocorre com a herança jacente, atento o disposto no art. 12º/a) CPC (anterior art.º 6º, al. a), do C. P. Civil, na redação do DL 329-A/95 de 12 de dezembro).
Inicialmente, o art. 6º a) do CPC reportava-se a “herança cujo titular ainda não esteja determinado”, a qual foi substituída pela expressão “herança jacente”.
Com a alteração introduzida rejeitou-se a tese defendida nos trabalhos preparatórios pela Comissão Varela “que abarcava igualmente a herança já aceite mas ainda não partilhada (art. 2050º CC)”[8], por se considerar que não se justificava atribuir personalidade judiciária, quando já eram conhecidos os sucessores.
Com efeito, ANTUNES VARELA defendia face à redação original do preceito que ”estando o processo de inventário em curso, mas não estando ainda efetuada a partilha, é em nome da herança (ou contra a herança) embora carecida de personalidade jurídica, que hão de ser instauradas as ações destinadas a defender (ou a sacrificar) interesses do acervo hereditário”[9].
Contudo, como observa LEBRE DE FREITAS: “[…] mesmo depois da herança partilhada, os bens herdados continuam a constituir um património autónomo ( art. 2068º CC e art. 2071º CC ), sem que alguma vez se tenha equacionado a questão de lhe ser atribuída personalidade judiciária”[10].
O legislador acabou por atribuir personalidade judiciária apenas à herança jacente.
Considera-se herança jacente aquela que já se encontra aberta, mas ainda não foi aceite nem declarada vaga para o Estado – art.º 2031º e 2046º do C. Civil. A herança jacente constitui o património da pessoa falecida entre o chamamento dos sucessíveis e a sua aceitação – art.º 2046º do C. Civil. Nesta situação são indeterminados os herdeiros.
Assim, enquanto os sucessores não aceitarem tácita ou expressamente a herança, ou esta não houver sido declarada vaga para o Estado, estamos perante uma herança jacente, à qual a lei confere personalidade judiciária.
No caso de estarmos perante uma herança indivisa – ainda não partilhada – mas cujos herdeiros já estão determinados, não detém a mesma personalidade judiciária, não podendo subsumir-se ao conceito legal de património autónomo semelhante cujo titular não esteja determinado, porque como se referiu o legislador refutou tal enquadramento legal.
Podemos afirmar que este tem sido de forma unânime o sentido interpretativo acolhido pela jurisprudência dos tribunais superiores, podendo citar-se entre outros, os Ac. Rel. Porto 19 de maio de 2010, Proc. 16/1999.P1; Ac. Rel. Porto 30 outubro de 2007, Proc. 0721996; Ac. Rel. Porto 09 de junho de 2009, Proc. 52/03.1TBMDR-A.P1; Ac. Rel. Porto, 13 de dezembro de 2011, Proc. 54/10.1TBBGC-H.P1, Ac. STJ 15 de janeiro de 2004, Proc. 03B4310, Ac. STJ 12 de setembro de 2013, Proc. 1300/05.9TBTMR.C1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt
Neste caso, a legitimidade para deduzir oposição em defesa de interesses da herança não pertence a esta mas sim, conjuntamente, a todos os seus herdeiros, sendo estes as partes na ação, ou ao cabeça de casal – art.º 2091º, do C. Civil.
Quer intervenham os herdeiros, quer qualquer das outras entidades referidas, nas situações excecionais a tanto admissíveis, essa intervenção apenas se verifica porque a massa de bens em causa, dado já se mostrar ultrapassado o período de jacência, se acha despojada de personalidade judiciária.
Daí a indispensável intervenção dessas pessoas – herdeiros ou outras entidades –, como se, de certo modo, de “representantes” da herança se tratassem, mas assim não sucedendo por que atuando em seu próprio nome, e não – como na representação se faz mister –, em nome do património representado, porquanto este, não dispondo da possibilidade de ser parte em processo judicial não pode, obviamente, propor ou ver contra si proposta qualquer demanda judicial.
Trata-se, pois, de legitimidade imposta por lei, decorrente da falta de personalidade judiciária por parte da herança ilíquida e indivisa[11].
Transpondo tais considerações para a concreta situação é de concluir que estão reunidos os pressupostos para prosseguir a ação.
Relembrando os fundamentos da petição, alegou a autora:
- a requerente e a herança aqui R. são comproprietários, de um prédio urbano, composto por casa de cave, R/C, três andares, águas-furtadas, dependência e pátio, sito na Rua …, nºs .. a .., Porto, descrito na Conservatória de Registo Predial do Porto, sob o nº 1644 e inscrito na matriz predial sob o artigo 1558º, na união de freguesias …, concelho do Porto, conforme caderneta predial urbana e descrição predial.
- a requerente é comproprietária de três quartos (75%) do prédio supra referido e a herança aqui requerida é comproprietária de um quatro (25%) do mesmo prédio.
- os RR. D… e E…, são os únicos herdeiros da herança aqui R. de C…, sendo a R. C… herdeira legitimária e o R. E… herdeiro testamentário, conforme consta do Procedimento Simplificado da habilitação de herdeiros.
- não há, entre A. e RR, comproprietários do referido prédio, convenção para que o mesmo se conserve indiviso, pelo que a A. não é obrigada a permanecer na indivisão, motivo pelo qual a vem requerer, ao abrigo do disposto no art. 1412º do CC.
Tal como se mostra estrutura a petição é a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C… a comproprietária a par da autora, do imóvel cuja divisão se requer.
São conhecidos os herdeiros da falecida C…, que demandados nessa qualidade não a refutaram e por isso, considera-se que aceitaram a herança.
A herança e os herdeiros estão devidamente identificados.
Desta forma, ao património hereditário de C… sucederam D… e E…, filha e neto (herdeiro testamentário) e como tal, na qualidade de herdeiros, são a parte demandada como sujeito passivo na ação e com personalidade judiciária, porque não estamos na presença de uma herança jacente e a herança ilíquida e indivisa não tem personalidade judiciária.
D… e E… são demandados na qualidade de sucessores de C… e é nessa qualidade que são chamados a pronunciar-se sobre a divisão do prédio, pois não se atribui aos réus a qualidade de proprietários do prédio. Apenas a herança, da qual são herdeiros, é comproprietária do prédio na proporção de ¼.
Apesar da autora não referir no texto da petição que se trata de herança ilíquida e indivisa, tal situação é dada como adquirida nos autos, pois é o próprio juiz do tribunal “a quo” que assim considera a situação da herança quando notifica a requerida C… para informar se foi instaurado processo de inventário, obtendo a informação de estar pendente processo de inventário para partilha por óbito de C….
Conclui-se, assim, que estão na ação, tal como a autora perspetiva a sua pretensão, os comproprietários do imóvel, todos os consortes e a sua promoção não depende da instauração de processo de inventário para partilha dos bens por óbito de C…, onde se inclui este concreto bem. O inventário apenas faz cessar a comunhão hereditária, mas tal circunstância não impede a divisão do bem quando estão devidamente identificados os comproprietários, sendo um deles os herdeiros de uma herança ilíquida e indivisa.
A realidade de facto a que se reporta o acórdão citado na sentença – Ac. Rel. Lisboa (e não do STJ) de 25 de outubro de 2011, Proc. 5326/10.2TBFUN.L1-7[12] (acessível em www.dgsi.pt) é distinta da que se aprecia na presente ação, porquanto no douto acórdão os herdeiros assumiam-se como comproprietários e com tal fundamento instauraram a ação de divisão de coisa comum.
Em sede de fundamentação chega a subentender-se que estaria sanado o vício caso fossem demandados como herdeiros de herança ilíquida e indivisa, ao abrigo do disposto no art. 2091º/1 C, quando se afirma:”[a] requerente pretendeu tomar um atalho ao interpor a presente acção e nem cuidou de identificar as partes enquanto representantes das heranças indivisas deixadas pelos primitivos contitulares do imóvel (art. 2091 do C.C.), passando a considerar como comproprietário quem claramente não o é em face de toda a factualidade carreada para os autos. Fez, dessa forma, incorrecta apreciação jurídica dos factos por si relatados no requerimento inicial, não definindo, tão pouco, da forma adequada o seu próprio direito sobre o imóvel”.
O Ac. do STJ 30 de janeiro de 2013, Proc. 1100/11.7TBABT.E1.S1 (acessível em www.dgsi.pt) citado pela apelada, o qual revogou o acórdão da Rel. Évora 12 de julho de 2012, Proc. 1100/11.7TBABT.E1.S1 (acessível em www.dgsi.pt) (citado pela apelante) também aborda a questão relacionada com o facto dos herdeiros se arrogarem proprietários e nesse pressuposto proporem a ação de divisão de coisa comum.
Em sumário escreveu-se:
“[…] só se pode dividir os bens da herança de que se seja proprietário, ou seja, que tenham sido atribuídos aos herdeiros em partilha previamente realizada.
II - A ratio de tal solução é muito simples: é que, até à partilha, os co-herdeiros de um património comum, adquirido por sucessão mortis-causa, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois apenas são titulares de um direito sobre a herança (acervo de direitos e obrigações) que incide sobre uma quota ou fração da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheça quais os bens concretos que preenchem tal quota.
III - É pela partilha (extrajudicial ou judicial e, neste caso, através do processo de inventário-divisório) que serão adjudicados os bens dessa universalidade que é herança e que preencherão aquelas quotas.
Por isso, assim se ponderou no aresto deste Supremo Tribunal, de 04-02-1997 supra citado: «A compropriedade pressupõe um direito de propriedade comum sobre uma coisa ou bem concreto e individualizado, ao invés do que sucede na contitularidade do direito à herança que recai obre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará”.
Porém, também aqui estava em causa uma realidade de facto distinta daquela que se aprecia, porque todos os intervenientes (autores e réus) apresentavam-se e foram demandados na qualidade de proprietários, apesar de serem herdeiros e concorrerem como tal em diferentes heranças, mas não devidamente indicadas, existindo ainda uma indefinição quanto à natureza do direito, comum ou por sucessão.
Resta referir que no sentido aqui consignado pronunciaram-se os acórdãos do TRP 26 de setembro de 2019, Proc. 487/17.2T8STS-A.P1 e TRP 23 de abril de 2020, Proc. 2323/19.6T8PRD.P1 (ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
No acórdão de 26 de setembro de 2019, Proc. 487/17.2T8STS-A.P1 observa-se: “uma vez que a ré demandada é a herança do único consorte não demandante e que os herdeiros deste são, para além dos demandantes, somente a viúva demandada em representação da herança, não apenas não existe ilegitimidade passiva nem a herança necessita de ser representada por herdeiros que já se encontram na lide do lado ativo e por isso não podem em simultâneo vir a ocupar o lado passivo”.
No acórdão 23 de abril de 2020, Proc.2323/19.6T8PRD.P1 concluiu-se: “[o] comproprietário e também co-herdeiro de outro comproprietário de um imóvel entretanto falecido pode pedir a divisão desse bem comum sem primeiro ter de se proceder á partilha da quota-parte hereditária”.
Em conclusão demandados os requeridos D… e E… na qualidade de herdeiros e titulares de uma herança ilíquida e indivisa, na qual se inclui uma quota do prédio cuja divisão é peticionada, mostram-se reunidos os requisitos ou pressupostos para promover a ação de divisão de coisa comum, por se encontrarem na ação todos os consortes e referenciadas as respetivas quotas.
Procedem, as conclusões de recurso.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela parte vencida a final, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à requerida D….
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a sentença, prosseguindo os autos os ulteriores termos para divisão de coisa comum.
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Custas pela parte vencida a final, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à requerida D….
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Porto, 22 de março de 2021
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
_____________ [1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990. [2] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, vol. III, 2ª edição revista e atualizada-reimpressão, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora-grupo Voltes Kleber, Coimbra, fevereiro 2011, pág. 344 [3] Cf. PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, vol. III, ob. cit., pág. 386; LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Reimpressão, Almedina, 2017 pág. 12 [4] Cf. Professor ALBERTO DOS REIS, PROCESSOS ESPECIAIS, volveu, reimpressão, Coimbra Editora, Lima., Coimbra, 1982, pág. 41 e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, ob. cit., pag.72-73 [5] LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, pág. 18-19 [6] LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, pág. 19 [7] LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, pág. 19 [8] JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE Código de Processo Civil, Vol. I, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pág. 40 [9] ANTUNES VARELA et al Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 111, nota(1) [10] JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE Código de Processo Civil, ob. cit., pag. 40 [11] Ac. Rel. Porto 30 outubro de 2007, Proc. 0721996, acessível em www.dgsi.pt [12] Em sumário: “Só através da definição da (com)propriedade sobre o imóvel pode deitar-se mão da acção de divisão de coisa comum, constituindo este processo especial meio inidóneo para por fim à comunhão hereditária”.