I. A prescrição do procedimento disciplinar suspende-se durante o tempo em que, por força de decisão jurisdicional ou de apreciação jurisdicional de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar.
II. A prescrição volta a correr a partir do dia em que cesse a causa da suspensão.
III. Considerando: i) o prazo decorrido ininterruptamente até à notificação da deliberação jurisdicionalmente anulada (04-02-2019), ii) o período de suspensão do prazo prescricional por força da impugnação judicial da referida deliberação, iii) a data em que cessou a causa de suspensão e iv) a data da notificação da deliberação ora recorrida – 17-06-2020 - (a qual constitui decisão do processo disciplinar em questão), apenas decorreu 1 ano, 1 mês e 10 dias, donde, não se mostra excedido o prazo de 18 meses de prescrição do procedimento disciplinar.
IV. Do teor do relatório final, em si mesmo, não tem de ser dado conhecimento ao arguido. Em nenhum ponto normativo se vislumbra tal exigência, seja no art. 122.° do EMJ na redacção vigente à data dos factos, seja no art. 120.° e 121.° do mesmo EMJ na redacção actual, seja no art. 219.° da LGTFP.
V. O que os artigos 123.° (redacção anterior) ou 121.° (redacção atual) do EMJ e 220.° da LGTFP exigem, diversamente, é que a decisão final seja objeto de notificação, juntamente com o teor do relatório final em que se estribou essa decisão, mas não este em si mesmo.
VI. O procedimento disciplinar, após dedução da acusação, deixa de ter natureza secreta, podendo ser consultado por quem demonstre ter interesse atendível no mesmo. E, de facto, dispõe o artigo 216.°, n.° 1, da LGTFP que, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, durante o prazo para apresentação da defesa, pode o trabalhador ou o seu representante ou curador referidos no artigo anterior, bem como o advogado por qualquer deles constituído, examinar o processo a qualquer hora de expediente. Idêntica solução resultava expressamente do art. 120.° do EMJ na redacção vigente à data dos factos e do art. 111.° na redacção actualmente vigente.
VII. Nada impedia, pois, o recorrente de ter acesso ao processo, consultar o mesmo e inclusivamente pedir a confiança do mesmo. Só se de facto lhe tivesse sido recusado, ilegitimamente, o acesso ao processo, a sua consulta ou a confiança do mesmo é que poderíamos estar perante uma nulidade insuprível
VIII. Ao nível das competências do Conselho Permanente, o regime previsto no artigo 152.° do EMJ admite que tais competências se encontram tacitamente delegadas pelo Conselho Plenário e, como tal, podem ser por este órgão delegante revogadas (avocadas).
IX. Tal revogação, por estar em causa uma competência própria do Conselho Plenário delegada no Conselho Permanente, não carece de requisitos especiais, podendo inclusivamente ser tácita ou implícita.
X. Nestas circunstâncias, não se encontra base legal, nem se alcança sustentação para a exigência de um pretenso duplo grau deliberatório no seio do CSM na situação vertente e nenhum prejuízo se vislumbra para o autor decorrente da intervenção imediata do Conselho Plenário.
XI. Nem se refira que desta avocação, a se, tenha resultado qualquer preterição de garantia à posição jurídica subjectiva do autor.
XII. A avocação, em termos práticos, vem até possibilitar que a apreciação da matéria sub judicio, privilegiando maior celeridade, prossiga uma maior formalidade e solenidade, sem que de modo algum resulte prejudicada a tutela dos interessados.
XIII. O princípio non bis in idem tem acolhimento no artigo 29.° da CRP, preceito integrado no capítulo dos “Direitos, liberdades e garantias pessoais”, dispondo o n° 5 que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
XIV. Nos limites da punição disciplinar, o princípio é o da não acumulação de sanções, seja pela prática de uma infracção, seja pela prática de mais de uma infracção.
XV. O registo/antecedente disciplinar ou a sua ausência, nos termos da alínea c) do artigo 84.º do EMJ na versão posterior à Lei 67/2019, de 27 de agosto (que corresponde ao artigo 96.º da anterior versão) apenas são ponderados como circunstâncias que depõem a favor ou contra o arguido. Esta ponderação em nada se confunde com a violação do princípio ne bis in idem.
XVI. Tendo os factos sido integralmente considerados e adequadamente ponderados na fundamentação da decisão acerca do preenchimento do específico tipo de infração disciplinar e na concreta determinação da medida de pena, conduz à inexistência de qualquer errada valoração de circunstâncias relevantes para a decisão, e muito menos suscetíveis de violar os princípios do processo equitativo, da presunção de inocência e do in dubio pro reo, antes se verificando um desacordo do autor, em relação ao juízo efetuado na deliberação impugnada acerca dessas mesmas circunstâncias.
XVII. O princípio da independência dos tribunais está consagrado constitucionalmente no artigo 203.º da CRP e o da independência dos juízes tem a sua expressão no artigo 4.º do EMJ.
XVIII. O exercício da ação disciplinar pelo Conselho Superior da Magistratura, quando reportada à actuação processual dos juízes, pode ser julgada legítima sempre que haja inobservância dos deveres funcionais ou profissionais dos juízes, sem que se possa considerar tal exercício como estando o CSM a imiscuir-se na esfera de apreciação das decisões judiciais.
XIX. O CSM pode avaliar a correção da conduta do autor (estrita e exclusivamente funcional, profissional e disciplinar), cotejando-a com outras actuações de gestão processual do mesmo magistrado, apuradas objetivamente em sedes diversas. Indagação essa por parte do CSM que se tem por legítima, no exercício das competências disciplinares que lhe estão constitucional, legal e estatutariamente reconhecidas.
XX. Embora o artigo 29.º da CRP se refira somente à lei criminal, deve considerar- se que o princípio da aplicação retroativa da lei mais favorável ao arguido (n.º 4) se aplica também aos outros dois ramos do chamado direito público sancionatório: o direito de mera ordenação social e o direito disciplinar.
XXI. Princípio básico da aplicação da lei no tempo nestas matérias é aquele que se extrai do disposto no n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal: aplicação do regime mais favorável em bloco, ou seja, aplicando o conjunto de todas as regras do regime vigente na data da prática dos factos ou, alternativamente, todo o regime ulterior.
XXII. À situação do autor seria mais favorável a aplicação do regime actual do EMJ.
XXIII. Ao entender diversamente, aplicando um regime mais desfavorável - e, em concreto, aplicando uma pena que se revelou mais severa do que aquela que resultaria da aplicação da sanção “simétrica” no regime atual -, o CSM derrogou o comando constitucional do artigo 29.º, n.º 4, da CRP, padecendo o acto impugnado e a sanção aplicada do vício de violação de lei.
XXIV. No caso sub judice impõe-se o efeito anulatório da deliberação recorrida, sendo certo que não se encontra preenchida nenhuma das três situações previstas no n.º 5 do artigo 163.º do CPA.
Procº nº 15/20.2YFLSB
Acordam na Secção do Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça
I - RELATÓRIO
AA, arguido no processo disciplinar nº .....63, intentou acção administrativa de impugnação da deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura (CSM), de 02 de Junho de 2020, que lhe aplicou a pena disciplinar de 20 dias de multa, terminando com o seguinte pedido:
“Termos em que deve a presente acção ser julgada procedente e, em consequência, o processo disciplinar nº .....63 ser declarado prescrito para os devidos e legais efeitos.
Caso assim não se entenda, deverá a douta deliberação impugnada ser declarada nula ou ser anulada, por falta de audiência prévia, por invalidades por vícios de fundamentação - não consideração ou errada valoração de circunstâncias relevantes para a decisão - e violação dos princípios do processo equitativo, da presunção de inocência e do in dubio pro reo, por violação do princípio da independência dos juízes, por erro manifesto na apreciação dos pressupostos jurídico-factuais, visto que não se verifica o tipo objetivo de ilícito, e violação do princípio da legalidade, nos termos dos artigos 162º e 163º ambos do CPA, com as legais consequências.
Requer-se, ainda, ao abrigo do disposto no artigo 267º do TFUE o reenvio prejudicial para TJUE, atenta a apreciação, em sede disciplinar, do sentido das decisões constantes de dois despachos judiciais proferidos em sede de processos judiciais (e consequente punição), o que viola os artigos 47º da CDFUE e 19º do TUE”.
Em síntese, alegou que, considerando que o procedimento disciplinar em causa foi instaurado em 31.01.2018, é seguro concluir que, aquando da tomada da deliberação impugnada, decorreu mais de 18 meses, pelo que se encontra prescrito, tendo em atenção o que se encontra consagrado no nº 1 do artigo 83º-C do EMJ.
Invoca a nulidade da deliberação por falta de audiência prévia, pois não foi ouvido antes da elaboração do presente Relatório Final que sustenta a presente deliberação impugnada, nem tão pouco foi notificado previamente à prolação de tal deliberação, para se pronunciar sobre as novas provas juntas aos autos, nem para requerer diligências que entendesse pertinentes, assim como não foi notificado de qualquer novo Relatório final. A falta de audiência prévia viola um princípio basilar do Estado de direito expressamente explicitado no artigo 32º nº 10, da CRP e concretizado no artigo 119º do EMJ. A mesma falta constitui ilegalidade procedimental que acarreta a nulidade da deliberação impugnada (cf. art. 123º, nº 1 do EM).
A deliberação acarreta ainda a invalidade por vícios de fundamentação - não consideração ou errada valoração de circunstâncias relevantes para a decisão - e violação dos princípios do processo equitativo, da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
Mais alegou que a matéria de facto dada como provada não retrata correctamente a realidade e/ou é manifestamente insuficiente. O que acarreta a invalidade da deliberação impugnada, devendo a mesma ser anulada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 163º do CPA, sem prejuízo da violação dos princípios referidos ditar a declaração de nulidade da mesma (cf. art. 161º do CPA).
Além disso, a deliberação impugnada é, ainda, inválida, por violação do princípio da independência do juiz e violação de lei e por não se verificar o tipo objectivo de ilícito. Assim, a apreciação de despacho judicial em sede de processo disciplinar, que culminou com a aplicação de uma sanção disciplinar é inconstitucional por violação do princípio da independência do juiz.
Assim, a deliberação impugnada é inconstitucional e ilegal, o que acarreta a sua invalidade, devendo, por isso, ser declarada nula ou, pelo menos, ser anulada – cf. artigos 161º e 163º do CPA.
Em causa está a violação do princípio constitucional da independência do juiz.
Este princípio não só está consagrado no artigo 203º da Constituição da República Portuguesa, como também no Direito da União Europeia, designadamente nos artigos 47º da CDFUE e 19º do TUE. Ora, o entendimento vertido na deliberação impugnada, ao afirmar que o artigo 151º do CPC não é aplicável ao caso concreto, contende frontalmente com este princípio constitucional e de direito europeu.
A apreciação, em sede disciplinar, do sentido das decisões constantes de dois despachos judiciais proferidos em sede de processos judiciais (e consequente punição) viola os artigos 47º da CDFUE e 19º do TUE.
Face ao exposto, ao abrigo do disposto no artigo 267º do TFUE, o autor pede o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
O Conselho Superior da Magistratura contestou, dizendo, em síntese, que no decorrer do processo disciplinar registaram-se factos que conduziram à suspensão do decurso do prazo de prescrição do procedimento, obstando a que se possa considerar que o mesmo decorreu integralmente.
Não se mostra excedido o prazo de 18 meses de prescrição do procedimento disciplinar, devendo improceder a invocada excepção de prescrição.
No que respeita concretamente aos factos 17, 20, 21, 22, 24, 25 e 26 da deliberação ora impugnada, tais factos constavam na acusação notificada ao Exm.º Juiz de Direito. Na sua defesa o autor pronunciou-se abundantemente quanto aos referidos factos apurados na acusação.
Efetuada a ponderação da defesa apresentada e a produção de prova requerida, o Exm.º Inspector eliminou os artigos 17., 20. a 22. e 24. a 26. da acusação.
A deliberação ora impugnada foi proferida na sequência da prolação do acórdão do STJ, que anulou a precedente deliberação de 29.01.2019.
Em função do acórdão anulatório proferido pela Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça, procedeu-se ao aditamento dos factos descritos sob os números 17, 20, 21, 22, 24, 25, 26, 27 a 49, cuja fundamentação se encontra vertida nas notas de rodapé aos mesmos respeitantes.
O autor pronunciou-se, defendeu-se e exerceu abundantemente o seu direito de audiência prévia no momento processual próprio, isto é, depois de notificado da acusação. Em acréscimo, requereu produção de prova, a qual foi integralmente cumprida.
O autor vem invocar, quanto ao registo disciplinar, a violação do princípio ne bis in idem, porquanto se faz constar desse registo um processo que foi arquivado por irrelevância disciplinar.
Essa mesma questão, nos mesmos exatos termos, foi suscitada no Processo n.º 12/19.0YFLSB, tendo sido apreciada por essa Secção do Contencioso no acórdão anulatório da deliberação, de 29.01.2019.
A tal respeito o Acórdão da Secção do Contencioso do STJ, proferido no processo n.º 12/19.0YFLSB, concluiu expressamente que: “Por tudo o que atrás se expôs, inexiste qualquer violação do princípio ne bis in idem”.
Como bem se alude no referido acórdão, a mera referência à aplicação daquela pena de advertência não se confunde com qualquer dupla valoração do mesmo substrato material, nem é feita qualquer apreciação jurídica ou se retira qualquer consequência, não tendo a deliberação ora impugnada efectuado qualquer interpretação daquele facto.
Assim, nos presentes autos inexiste igualmente qualquer violação do princípio ne bis in idem.
Não se vislumbra a existência de qualquer errada valoração de circunstâncias relevantes para a decisão, e muito menos susceptíveis de violar os princípios do processo equitativo, da presunção de inocência e do in dubio pro reo, antes se verificando um desacordo do autor, em relação ao juízo efectuado na deliberação impugnada acerca dessas mesmas circunstâncias.
Por outro lado, o presente processo disciplinar e aplicação de sanção, não traduz uma qualquer ingerência no exercício dessa função de julgar, não constitui qualquer afronta à independência dos tribunais e/ou dos respetivos magistrados.
Na deliberação recorrida procedeu-se a uma rigorosa subsunção dos factos provados e concluiu-se que os mesmos preenchem o tipo legal de infracção disciplinar, consubstanciada na violação do dever de administração da justiça, nos termos dos artigos 3º nº1, 81º, 82º, 85º, nº 1, b), 87º, 92º, 96º, do Estatuto dos Magistrados Judiciais do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na redacção vigente na data da prática dos factos.
Daí que não se mostre violado nenhuma norma nem princípio jurídico, designadamente a deliberação sub judice não padece de qualquer erro na verificação dos elementos da infracção disciplinar em causa, sendo de manter a decisão proferida.
Por fim, o autor vem suscitar o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, por pretensa violação dos artigos 47º da CDFUE e 19º do TUE.
Considerando as questões a dilucidar na presente acção administrativa, não se afigura estar em causa uma questão prejudicial que obrigue a reenvio prejudicial.
Termina, pedindo a improcedência da acção.
Foi dispensada a audiência prévia a que se refere o artigo 87º-A do CPTA e indeferidas as declarações de parte do autor, conforme requeridas pelo próprio no final da petição inicial – Cfr despacho de fls 124.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
A) Fundamentação de facto
Mostram-se apurados os seguintes factos, com relevância para a causa:
1º - Por despacho do Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura de 15-12-2017 foi determinada a instauração de inquérito ao autor (cf. fls. 5 dos Autos de Processo Disciplinar nº .....63.
2º - Na sequência de proposta de instauração de procedimento disciplinar, no âmbito do procedimento de inquérito referido em 1º, elaborada pelo Exmº Inspector Judicial datada de 18-01-2018 (fls 185 dos mesmos autos), o Conselho Permanente do CSM deliberou a 30-01-2018 converter os referidos autos de inquérito «em processo disciplinar, constituindo o inquérito […] a parte instrutória do processo disciplinar» (fls. 188).
3º - No âmbito do procedimento disciplinar referido em 2º, que foi autuado e tramitado no serviços da entidade demandada sob o n.º «.....63» foi a 18-04-2017 deduzida acusação (fls 313 a 325), com o seguinte teor:
“Nestes autos de processo disciplinar, instaurados na sequência de processo de inquérito, cujo relatório final data de 18.01 passado, e de deliberação do Conselho Permanente do Conselho Superior da Magistratura de 30.01.2018,
Cuja instrução foi declarada aberta em 27.02 seguinte e finda em 11.04 último,
Nos termos dos artigos 117.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.° 21/85, de 30 de julho, e 213.°, n.° 3, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.° 35/2014, de 30 de junho, aplicável por força do disposto no artigo 131.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, deduzo
ACUSAÇÃO
Contra o Arguido,
Senhor Juiz de Direito AA,
Residente na Rua………,
Porquanto se indiciam muito fortemente os seguintes factos:
CONSIDERAÇÕES PREVIAS
1. O Arguido nasceu no dia ……1974, tem, pois, 44 anos de idade ;
2. Ingressou no Centro de Estudos Judiciários em …..2003, integrando o ….° Curso Normal .
3. Concluída a formação inicial, por despacho do Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura de 30.06.2006, com efeitos a partir de 15.07 seguinte, foi nomeado Juiz de Direito e colocado como auxiliar no Tribunal Judicial da comarca ……, pelo que é Juiz de Direito há cerca de 11 anos e nove meses .
4. Após o que foi sucessivamente nomeado e colocado nos Tribunais Judiciais das Comarcas de
4.1. ........, por decisão de 18.07.2006,
4.2. ........, por decisão de 16.07.2007, como Juiz de Direito auxiliar,
4.3. ........, por decisão de 15,07.2008, como Juiz de Direito efetivo,
4.4. ........, na Instância Local ......., Secção Genérica, por decisão de 08.07.2014, como Juiz de Direito efetivo,
4.5. ........, na Instância Central de Execuções ......., por decisão de 07.07.2015, como Juiz de Direito auxiliar,
4.6. ........, na Instância Central, l.a Secção de Execução, por decisão de 12.07.2016, como Juiz de Direito auxiliar,
4.7. ........, no Juízo de Comércio e Juízo de Execução ........, lugar de efetivo (art. 107), por decisão de 11.07.2017, tendo a partir de 01 setembro último sido colocado exclusivamente naquele Juízo de Execução.
5. Do certificado de registo individual do Arguido constam as classificações de:
— “Bom”, como Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca ........, no período de 05.09.2006 a 31.08.2007 (deliberação do Conselho Superior da Magistratura de 17.06.2008),
— “Bom Com Distinção”, como Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca ........, no período de 01.09.2007 a 30.09.2012 (deliberação do Conselho Superior da Magistratura de 27.11.2012) e — “Muito Bom”, como Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca ........, de 01.10.2012 a 31.08.2014, da Instância Local ......., Secção Genérica, de 01.09.2014 a 31.08.2015, da Instância Central de Execuções ........, de 01.09.2015 a 31,08.2016, e da Instância Central de Execuções ........, entre 01.09 e 31.12.2016 (deliberação do Conselho Superior da Magistratura de 19.09.2017) .
6. Do registo disciplinar do Arguido consta que:
4.8. Por deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 15.09.2015, foi-lhe aplicada a pena de advertência, «pela prática de uma infração disciplinar, consubstanciada na violação do dever de zelo e de prossecução do interesse público e de correção», em razão da «prática reiterada» de um «agendamento desajustado, porque em total sobreposição de diligências judiciais», porquanto, em resumo, conforme refere aquela deliberação, que aqui no mais se dá por integralmente reproduzida, ficou demonstrado que:
— No «dia 31 de janeiro de 2014», por causa daquela prática, no âmbito de uma «tentativa de conciliação», num processo de divórcio, que se realizava no «gabinete», quando «o Senhor Advogado Dr. BB solicitou (...) a palavra para ditar requerimento, (...)», «o Senhor Juiz arguido, pressupondo a extensão do requerimento, transmitiu ao Causídico que continuasse a ditar na Secretaria, em virtude de continuar as outras diligências, ordenando à Oficial de Justiça (...) que os acompanhasse para o efeito, e convocou outro Oficial de Justiça para secretariar no seu gabinete», o que veio a suceder;
— No dia 27.05.2014, no âmbito de uma conferência de pais realizada em processo tutelar cível, após «o Senhor Juiz arguido (...) ditar o despacho tabelar destinado à notificação das partes para alegações e requerimentos de prova, o Dr. BB pediu (...) a palavra por pretender apresentar requerimento, o que aconteceu, e sobre o qual recaiu decisão de indeferimento, tendo o Senhor Juiz arguido se aprestado a terminar a conferência de pais», sendo que então «o Dr. BB pretendeu formular requerimento adicional» e «o Senhor Juiz arguido assentando na previsível demora da diligência, solicitou ao Dr. BB que elaborasse na Secretaria e oportunamente decidiria, pois que aguardava ser ouvido em processo judicial através de videoconferência», termos em que «o Dr. BB não aceitou ir, mais uma vez, para o balcão público da secretaria e questionou expressamente o Senhor Juiz se estava em causa uma ordem, tendo o Senhor Juiz arguido afirmado categoricamente que se tratava, na realidade, de uma ordem», após o que «o Dr. BB retirou-se e o ato foi assim dado por encerrado»;
— «Na deliberação do CSM datada de 15.07.2013, relativa ao Processo 2013-545-D2 que apreciou queixa apresentada por Advogada, determinado o arquivamento por irrelevância disciplinar, justificou, embora, dirigir "... recomendação ao Exmo. Senhor Juiz no sentido de ter mais cuidado na adjetivação das suas decisões»;
4.9. Por deliberação do Permanente do Conselho Superior da Magistratura de 12.12.2017, na sequência de processo de inquérito, o Arguido encontra-se suspenso preventivamente de funções, desde 12.12.2017 .
DOS FACTOS PROPRIAMENTE DITOS
Quanto ao Processo n.° 2226/14…..
7. No âmbito dos autos de execução que com o n.° 2226/14…. corriam termos na então Instância Central de Execução ........, lugar de Juiz ..., em 16.09.2015 a ali executada, V……. - Comércio de Automóveis, Lda., instaurou Embargos de Executado contra a ali exequente, M…… - S……, Lda., sendo que o respetivo valor do processo cifrava-se em € 1.132,76 .
8. No âmbito daqueles autos de Embargos, em 13.09.2017, o Arguido designou «para realização da audiência de discussão e julgamento (...) o dia 12/10/2017, pelas 10.30 horas, sem prejuízo do disposto no artigo 151.° do CPC» .
9. No âmbito dos mesmos autos de Embargos, em 12.10.2017, pelas 10.30 horas, o Senhor Escrivão Auxiliar CC procedeu à chamada, tendo verificado que não se encontrava ninguém presente, o que constatou igualmente cerca das 10.34 horas, após o que o Arguido abriu a audiência pelas 10.35 horas e proferiu o seguinte despacho: «Tendo em conta que foi dado cumprimento ao disposto no art. 151.° do Código de Processo Civil e que não foi comunicado qualquer impedimento por parte dos Ilustres Mandatários em comparecer na presente audiência e sendo também certo que não se encontra presente qualquer testemunha não se produzirá qualquer prova e determina-se que, oportunamente, sejam os autos conclusos para prolação de sentença» .
10. As salas de audiências do Juízo de Execução ....... situam-se no … piso do Edifício … do chamado ........, sendo que o respetivo acesso implica a prévia identificação de pessoas, por seguranças, no hall de entrada daquele edifício, situado no piso 0 do mesmo edifício .
11. Na sequência do referido em 8., no apontado dia 12.10.2017, após as 10.35 horas e não depois das 10.40 horas, os Senhores Advogados DD e EE, enquanto causídicos das partes, bem como testemunhas indicadas no âmbito do mencionado processo de Embargos de Executado, chegaram ao referido piso … onde se situam as salas de julgamento do Juízo de Execução ........ .
12. Entretanto, apercebendo-se que já havia sido realizado julgamento no âmbito dos referidos autos de Embargos de Executado, os Senhores Advogados DD e EE, enquanto causídicos das partes, procuraram falar com o Arguido, o que não lograram.
13. Igualmente do âmbito do referido processo de Embargos de Executado, em 12.10.2017, pelas 16.36 horas, a Senhora Advogada DD, em nome da Embargada/Exequente e da Embargante/Executada, referindo que o requerimento será também subscrito pelo Senhor Advogado EE, apresentou requerimento na qual referiu, além do mais, que os mandatários das partes e as testemunhas, «em virtude dos procedimentos de identificação implementados à entrada do Tribunal, apenas às 10h37 subiram ao … piso, onde se situa a secretaria e a sala de audiências», tendo constado pouco depois que o julgamento já tinha ocorrido, termos em que concluíram requerendo o agendamento de «nova data para realização de audiência de discussão e julgamento» .
14. Em 13.10.2017, o Senhor Advogado da Embargante/Executada apresentou declaração eletrónica de adesão do requerimento indicado em 13.
15. Na sequência do indicado em 13. e 14., em 17.10.2017, o Arguido proferiu despacho do seguinte teor:
«Fls. 74:
Indeferido por manifesta falta de fundamento legal, recordando-se aos requerentes que “10.30” é a hora para iniciar o julgamento e não a hora para chegar ao Tribunal.
Custas do incidente anómalo a cargo da opoente e exequente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs a cargo de cada uma, nos termos do art. 7.°, n.°s 4 e 8, do RCP.» 16.
Em 16.11.2017, o Arguido proferiu sentença nos referidos autos de Embargos de Executado, os quais julgou improcedentes, sendo que a respetiva notificação às partes foi elaborada naquela mesma data, sem que entretanto as mesmas tenham requerido algo.
Diversamente.
17.No processo n.° 6553/11…., Oposição à Execução Comum, designada tentativa de conciliação para 11.01.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava presente o Ilustre Mandatário do Opoente, o Arguido, que presidia à diligência, ordenou que se aguardasse 15 minutos pela chegada daquele.
18. No processo n.° 20239/07…., Embargos de Executado, designada tentativa de conciliação para 01.02.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava ninguém, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse até às 11 horas pela comparência das partes.
19. No processo n.° 960/14….., Embargos de Executado, designada tentativa de conciliação para 21.03.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava ninguém, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse 15/20 minutos pela comparência dos convocados.
20. No processo n.° 13817/06……, Embargos de Executado, designada audiência final para 24.05.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava o Ilustre Mandatário do Embargado, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse por 10 minutos pela chegada daquele.
21. No processo n.° 4941/14……, Embargos de Executado, designada tentativa de conciliação para 29.06.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava presente o Ilustre Mandatário do Embargado, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse por 15 minutos pela chegada daquele.
22. No processo n.° 1925/14….., Embargos de Executado, designada tentativa de conciliação para 05.07.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava presente o Ilustre Mandatário da Embargante, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse por 10 minutos pela chegada daquele.
23. No processo n.° 271/14……, Embargos de Executado, designada tentativa de conciliação para 17,10.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava ninguém, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse por 20 minutos pela comparência das partes.
24. No processo n.° 5245/14….., Embargos de Terceiro, designada tentativa de conciliação para 24.10.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava presente o Ilustre Mandatário do Embargado, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse 20 minutos pela chegada daquele.
25. No processo n.° 668/14……, Embargos de Executado, designada audiência final para 07.11.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava presente o Ilustre Mandatário da Embargada e testemunhas desta, o Arguido, que presidiu à diligência, aguardou pela chegada daquele Causídico, o que sucedeu pelas 10.42 horas, tendo declarado aberta a audiência pelas 10.50 horas.
26. No processo n.° 4542/12……., Oposição à Execução Comum, designada tentativa de conciliação para 08.11.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava presente o Ilustre Mandatário dos Embargantes, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse 10 minutos pela chegada daquele.
27. Ao proceder da forma descrita, nomeadamente em 9., 15. e 16., o Arguido agiu de modo livre, consciente e voluntário, com o propósito de não despender tempo com a diligência de julgamento e tornar assim o mais simples possível a decisão de mérito da causa, bem sabendo que a circulação na cidade ........ causa por vezes alguns atrasos, tal como sucede com as formalidades de acesso ao Juízo de Execução .......; sabia igualmente que os indicados autos de execução n.° 2226/14……. não tinham alçada para recurso e que a sua descrita conduta naqueles autos reportada a outubro passado violava o seu dever de administrar a Justiça e de correção .
No que respeita ao Processo n.° 20853/08….
28. Em 25.09.2008 a então S…… -Sociedade Portuguesa de Navios Tanque, SA., e S…… Internacional - SGPS (……), Sociedade Unipessoal, Lda, vieram interpor execução para pagamento de quantia certa contra P…….. - ….. SA., e S…… Marítima, SA., dando à execução um acórdão arbitral, com quantia exequenda em parte liquida e em parte ilíquida.
29. Em 19.12.2011, as então executadas P…….. - ….. SA, SA., e S…… Marítima, SA., vieram deduzir oposição àquela liquidação, a qual passou a constituir o Apenso E do referido processo n.° 20853/08……..
30. Em 11.06.2012, a Senhora Juíza de Direito então titular dos autos, designou audiência preliminar para o dia 27.09 seguinte.
31. Em 27.09.2012 realizou-se tal audiência preliminar, tendo o Senhor Juiz de Direito que a ela presidiu determinado que os autos lhe fossem conclusos.
32. Em 31.01.2014, o Senhor Juiz de Direito titular dos autos proferiu despacho de aperfeiçoamento.
33. Em 26.02.2014, a Exequente juntou aos autos articulado aperfeiçoado, bem como diversos documentos, entre os quais dois em língua inglesa.
34. Em 03.03.2014, o Senhor Juiz de Direito titular dos autos proferiu despacho em que, além mais, ordenou a notificação da Exequente para juntar tradução dos referidos documentos.
35. Em 17.03.2014, a Exequente juntou aos autos alegada tradução daqueles documentos, acompanhada de um «certificado de tradução», assinado pela Ilustre Senhora Advogada Estagiária FF, na qual esta, no que aqui releva, certificava que Senhora «Dra. GG» lhe «declarou, sob compromisso de honra, que a tradução para língua portuguesa dos documentos anexos, escritos em língua inglesa, foi por ela feita e reproduz fiel e corretamente o respetivo original, tradução esse pela qual (...) declarou assumir inteira e completa responsabilidade» .
36. Em 24.03.2014, em articulado que juntou então aos autos, as Executadas referiram, além do mais, que «a tradução do contrato de financiamento adulterou a versão original em língua inglesa, do mesmo, pelo que» impugnaram «a sua tradução».
37. Em articulado seguinte, a Exequente veio reconhecer que «a tradução inicialmente oferecida do contrato supra referenciado (...) não é integralmente fiel ao respetivo original» e requereu «a junção aos autos (i) de nova tradução do dito contrato, a qual, crê, não enferma já de quaisquer lapsos, sendo fiel ao respetivo original, máxime no que se refere à tradução, para português, da expressão COA constante dos pontos 7 e 8 da Parte A do Anexo 3 do referido instrumento negociai e, bem assim, (ii) de carta redigida pela tradutora responsável por ambas as traduções explicando os motivos que estiveram na base dos lapsos identificados (...)».
38. Em 22.04.2016, o Senhor Juiz de Direito titular dos autos designou para 31.05 seguinte a realização de uma tentativa de conciliação.
39. Em 31.05.2016 realizou-se tal tentativa de conciliação, tendo o Senhor Juiz de Direito que a ela presidiu determinado que os autos lhe fossem conclusos.
40. Em 09.06.2017, o Senhor Juiz de Direito titular dos autos ordenou que estes fossem conclusos após férias judiciais de verão.
41. Aberta nova conclusão nos autos em 20.11.2017, o Arguido proferiu em 22.11.2017 o seguinte despacho:
«Fls. 354-614:
Na sequência da notificação de fls. 344, veio a exequente juntar aos autos uma tradução do contrato de mútuo celebrado com o Christiama Bank que apresenta desconformidades face ao documento original em inglês, desde logo ao nível nos pontos 7 e 8 da Parte A do Anexo 3 (tis. 4418), onde, de uma forma absolutamente lamentável, se faz corresponder a expressão COA (Contract of Afff eightment - tal como definido na cláusula 1.1. b) do Contrato de Mútuo -, ou seja, o contrato de Afretamento celebrado entre o exequente e a executada P........) a “Plano de Contabilidade”, o que teria a virtualidade de “afastar” uma eventual “dependência” do financiamento face ao contrato de afretamento celebrado com o executado P........ para efeitos da consideração de eventuais benefícios da exequente para dedução ao valor de €8.673.795,00, desde logo quando o exequente, no requerimento executivo alega que não há qualquer valor a deduzir, com o propósito de que a quantia exequenda inclua tal valor in totum.
E, tendo tal situação sido desmascarada pelos opoentes a fls. 646-651, veio o exequente juntar nova tradução, onde tal desconformidade (para mais da autoria de uma tradutora oficial e certificada por uma advogada- estagiária, perguntando-se com que base tal certificação foi emitida) é eliminada.
Ora, tal conduta da exequente não pode deixar de ser considerada como uma violação do dever de cooperação com o Tribunal na descoberta da verdade que sobre si recai e, como tal, condena-se o exequente no pagamento de uma multa que se fixa em 7 UCs, nos termos do art. 27.°, n.° 2, do RCP.
Mais extraia certidão de fls. 354-614, 616-674 e 748-1002 e deste despacho e remeta ao MP para instauração de procedimento criminal quanto a um eventual crime de falsidade da tradução (e da certificação de documento que padece de falsidade intelectual).
Fls. 708:
Na medida em que os arts. 1.° a 95.° do requerimento de fls. 617e ss está intimamente ligado à factualidade alegada subsequentemente ao abrigo do contraditório, não existe qualquer nulidade, pelo que se indefere a sua arguição.
Custas a cargo do exequente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs, nos termos do art. 7.°, n.° 4, do RCP.
Tendo em conta que, ainda que ao arrepio daquilo que alegou no requerimento executivo, a exequente obteve, em 2000 e 2001, as receitas líquidas que refere no quadro de fls. 191-192, que, por si só, ultrapassam o valor de €8.673.795,00 (tornando desnecessária a apreciação da questão de saber se o COA trouxe benefícios ao nível das condições do financiamento), notifique as partes para, em 10 dias, se pronunciarem, querendo quanto à antecipação do mérito da causa, bem como a exequente para, atento o que se referiu supra, se pronunciar quanto a uma eventual condenação por litigância de má fé».
42. Ao atuar nos termos indicados em 41., o Arguido procedeu de modo livre, consciente e voluntário, visando adiar a decisão de mérito da causa, bem sabendo que atuava mais de três anos após a ocorrência da alegada falsificação que invocou e da prolação de três despachos judiciais no processo em causa, optando nesse contexto por uma postura autocrática, de afirmação de poder, utilizando uma linguagem desabrida, sugestiva de mancomunação entre Exequente, representada por Advogado, e Tradutora, ofensiva da honorabilidade de Advogado, bem sabendo ainda que ao assim proceder violava os seus deveres profissionais de administrar a justiça e de correção.
* * *
Com as mencionadas condutas, o Senhor Juiz de Direito AA cometeu duas infrações disciplinares consubstanciadas na violação dos seus deveres profissionais de administrar a justiça e de correção, previstas e punidas pelos artigos 3.° e 82.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, bem como 73.°, n.°s 2, alínea h), e 10 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.° 35/2014, de 30 de junho, aplicável por força do disposto no artigo 131.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
No caso inexiste circunstância especialmente agravante ou atenuante.
O Arguido tem já antecedentes disciplinares, conforme indicado em 6.
Atento o disposto nos artigos 92.°, 93.°, 96.° e 99.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, ponderando o caso em apreço, as descritas condutas dos Arguidos são sancionáveis com a pena disciplinar de multa ou mesmo pena de transferência.
Na verdade, pela singularidade e gravidade em si mesma, as situações em causa são suscetíveis de quebrar o prestígio exigível ao Arguido para que possa manter-se no Tribunal em que exerce funções.
Da prova:
A indicada nas 42 notas de rodapé constantes da presente acusação. Explicitando.
1. Prova Pessoal, registada em auto:
a) Declarações do Arguido (autos de fls. 166 a 171 e 307 a 309).
b) Depoimento das Testemunhas
1. Senhor Advogado EE (auto de fls. 67 a 69),
2. Senhora Advogada DD
(Auto de fls. 70 a 71),
3. Senhor Escrivão-Adjunto CC (auto de fls. 74 a 76)
2. Documental:
A constante de fls. 17 a 62, 83 a 132, 141 a 165, 173, 174, 206 a 222, 233 a 305, 311 e 312, bem como CD junto aos autos.
Testemunhas ouvidas, bem como dos documentos de fls. 17 a 62, 83 a 132,141 a 165,173,174, 206 a 222, 233 a 305, 311 e 312, assim como CD junto aos autos.
Fixa-se em 15 (quinze) dias o prazo para apresentação da defesa (artigo 118.°, n.° 1, do EMJ).
*
Notifique, sendo o Arguido, por carta registada, com aviso de receção (artigo 118.°, n.° 1, do EM)).
Consigna-se que durante o prazo para apresentação da defesa o Arguido poderá examinar os presentes autos, a qualquer hora do expediente, nas instalações do Conselho Superior da Magistratura, na Divisão de Quadros e de Inspeções Judicial (3.° piso), onde os autos ficarão depositados naquele lapso de tempo (artigo 120.° do EMJ).
Cumprido este despacho, remeta os autos ao Conselho.
Lisboa, 18 de abril de 2018
O Inspetor Judicial,
(cf. fls. 313-325 do processo disciplinar nº .....63.
4º - Notificado da acusação referida em 3º, o autor apresentou defesa a 15-05-2018, como seguinte teor (fls 332 a 339):
Processo n° .....63
DEFESA
AA, arguido no processo disciplinar à margem referendado, vem apresentar a sua defesa, o que faz nos termos seguintes:
É o arguido acusado de que «(...) cometeu duas infrações disciplinares consubstanciadas na violação dos seus deveres profissionais de administrar a justiça e de correção (...)».
2º Salvo o devido respeito, o arguido refuta veementemente o teor da douta acusação em causa, que contém factos que não correspondem à verdade, atentatórios da sua honra e consideração pessoais e sobretudo profissionais e factos que correspondem à verdade mas não configuram qualquer infração disciplinar. Como se verá de seguida.
3.º Quanto ao registo disciplinar:
Estranhamente, e em violação das mais elementares garantias constitucionais, mais concretamente o princípio “non bis in idem” faz-se constar desse registo um processo que foi arquivado por irrelevância disciplinar.
Ao invés, o excelente registo inspetivo do arguido é apenas referido “en passant” e sem referir minimamente os rasgados elogios que a sua postura profissional e pessoal e o seu desempenho sempre mereceram, como se existisse uma preocupação para realçar aspetos que permitam desvalorizar a postura do arguido, como uma transcrição quase exaustiva dos factos de um processo disciplinar ocorridos em 2014.
Quanto ao processo n.° 2226/14......:
3. Antes de mais, cumpre referir que é estranho o timing da apresentação de tal queixa/ isto é, cerca de dois meses após a ocorrência dos factos e depois da divulgação pública de ter sido instaurado um processo disciplinar ao arguido e o mesmo suspenso de funções.
4. Depois, cumpre reiterar o que já se teve oportunidade de referir, que o que está em causa, no entender do arguido, é matéria exclusiva e puramente jurisdicional.
5. Ademais, nenhuma norma legal impõe ao Juiz que aguarde a chegada dos Senhores Advogados quando os mesmos não informam que estão atrasados, sendo que, inclusivamente, o art. 151.º do CPC, sob a epígrafe “Marcação e início pontual das diligências” (sublinhado agora), no seu n.º 5, impõe aos mandatários judiciais o dever de comunicar prontamente ao tribunal quaisquer circunstâncias impeditivas da sua presença e, no caso vertente, tendo sido dado cumprimento ao disposto no art. 151.º do CPC, o art, 603.º do mesmo Código determina que o Juiz dê início à audiência mesmo que os mandatários não estejam presentes (nem leniram comunicado a impossibilidade de comparecerem atempadamente).
6. E foi esse exatamente o modo como o arguido procedeu no caso vertente.
7. E também não é porque, como se alcança da proposta de conversão do inquérito em processo disciplinar, o Ex.mo Senhor Inspetor entende que o Juiz tem de aguardar 15-20 minutos pelas partes (ainda que, violando o dever imposto pelo art. 151.º, n.° 5, do CPC, não informem que estão atrasadas), sobretudo quando inexiste qualquer norma que o imponha expressamente - e também aqui carece o Ex.mo Senhor Inspetor de legitimidade para se pronunciar acerca do entendimento jurídico do signatário, legitimidade essa que apenas pertence aos Tribunais superiores em sede de recurso que o arguido está impedido de entender de maneira diferente e, pior do que isso, comete um ilícito disciplinar.
8. De todo o modo, como o arguido já teve oportunidade de referir nos autos, é muito pouco crível que os Senhores Advogados apenas se tenham atrasado 7 minutos (como referem), mas sim cerca de 20 minutos, pois, estando atrasados e não estando nenhum funcionário presente no local das salas de audiência, não se tivessem dirigido de imediato à Secção, mas apenas 10 minutos depois de, alegadamente, terem chegado ao local das salas de audiência.
9. Ao contrário do que parece deduzir-se da douta acusação, o procedimento adotado neste caso é o mesmo que o arguido sempre adotou em todos os casos, independentemente de a causa admitir recurso ou não, como aliás foi reconhecido em sede de inspeção extraordinária, em que são elencados outros processos em que o signatário não aguardou pela chegada de mandatários que não preveniram o tribunal de que estavam atrasados, como se pode ver através da mera leitura de todas as diligências presididas pelo signatário entre 07/09/2016 e 12/12/2017.
10. Na acusação, omitem-se várias circunstâncias extremamente relevantes, resultando dessa omissão claro prejuízo para o arguido.
11. Em primeiro lugar, no ponto 10, referem-se apenas considerações genéricas (referindo-se em abstrato o procedimento de identificação na entrada do edifício do tribunal), sem se referir e muito menos demonstrar que tais circunstâncias ocorreram no caso concreto, omitindo-se a que horas os Senhores Advogados se apresentaram na portaria do tribunal para acederem ao edifício.
12. Em segundo lugar, omite-se que os Senhores Advogados tinham escritório em ........ e em …… e, como tal, são utentes habituais ........, em que o procedimento de entrada é igual em todos os edifícios, pelo que sabiam muito bem qual era o procedimento de entrada no edifício, devendo, por isso, chegar ao Tribunal em tempo para que o julgamento pudesse iniciar-se à hora agendada ou, no mínimo, contactar a Secção a avisar, mesmo estando já na portaria, que estariam atrasados, como outros seus colegas fazem habitualmente.
13. Em terceiro lugar, omite-se se, no caso concreto, foi o procedimento de identificação dos Senhores Advogados na portaria (e que o arguido saiba, os Senhores Advogados nem sequer têm de passar no pórtico de controlo de objetos proibidos) que os impediu de chegarem a horas ao Tribunal ou de, no mínimo, contactar a Secção a avisar que estariam atrasados, como outros seus colegas fazem habitualmente, De todo o modo como Senhores Advogados bem sabem, as horas designadas para a realização de diligências não são as horas para chegar à porta do edifício do Tribunal, mas sim a hora para se iniciar a diligência, embora isso não seja o que mais importa. No caso concreto, o que mais importa e se estranha é a utilização desta argumentação com o objetivo de fazer crer que existiu intenção do arguido eximir-se à realização da audiência e simplificar, com isso, a elaboração da sentença.
14. Em quarto lugar, no ponto 12. é apenas dito que os Senhores Advogados tentaram falar com o arguido e não o lograram, mas omite-se que, como o arguido referiu, não tinha conhecimento de que os Senhores Advogados estavam no Tribunal apenas tendo sabido que haviam estado posteriormente, quando, ou pouco antes da hora de almoço ou mesmo depois do almoço, o Sr. Funcionário CC lhe telefonou a dizer que partilhara a ata e o arguido o questionou a esse respeito.
15. Com uma tal redação e confrontando o ponto 12 com o ponto 27, onde se afirma, sem qualquer correspondência com a prova existente nos autos e muito menos com a verdade, que o arguido apenas visava não perder tempo a realizar o julgamento e ter menos trabalho a elaborar a sentença, faz-se parecer a qualquer leitor médio que os Senhores. Advogados tentaram falar com o arguido (ainda que por intermédio do Sr. Funcionário) e este é que se recusou a ouvir as razões aduzidas para o atraso e para a falta de comunicação de que estavam atrasados, o que é claramente falso, até porque em mais de 10 anos como Juiz, várias situações de atrasos como este aconteceram e, por diversas vezes, advertido por funcionários da chegada de intervenientes quando já estava a proferir um despacho similar ao que proferiu, deu o mesmo sem efeito e iniciou a audiência.
16. Nos pontos 16-26, refere-se uma série de processos em que o arguido determinou que se esperasse por mandatários que não estavam presentes à hora marcada para o início das diligências, com o objetivo de fazer crer que a conduta do arguido neste processo era uma conduta isolada face à que sempre adotou em casos similares para daí se retirar que o arguido sabia que estava a proceder ilegalmente e que o fez porque o processo em causa não admitia recurso.
17. Todavia, omite-se que, como o arguido referiu e, sendo verdade como é, inexistem quaisquer elementos probatórios que o contrariem, o arguido apenas aguardou peia chegada dos mandatários faltosos porque, apesar de tal não constar das atas, estes contactaram o Tribunal informando que estavam atrasados, o que é naturalíssimo e ocorre amiúde, tanto os atrasos como os avisos como a circunstância de terem avisado poder nem sempre constar da ata.
18. Aliás, do facto de serem diferentes os timings que o arguido mandou aguardar, facilmente se infere que tal determinação só poderia resultar do tempo de atraso que os mandatários em causa informaram.
19. Mas, mais estranho ainda, é o facto de terem sido procurados processos com as características dos mencionados nos pontos 1.6 a 26 e não terem sido encontrados processos em que o arguido adotou o critério que sempre adotou, independentemente do valor da causa, nos casos em que algum ou ambos os mandatários não estavam presentes à hora do início da diligência (v.g. nas audiências de julgamento dos processos n.os 960/I4….. e 85/Ü7…….).
20. Na acusação também é omitido o valor da causa dos processos referidos nos pontos 16-26, dos quais, crê o arguido, constam processos que, pelo seu valor, não admitiriam recurso ordinário.
21. Voltando ao referido em 12, não deixa de se estranhar que o Senhor Inspetor, como resulta da sua proposta de conversão do inquérito em processo disciplinar, apenas tenha atendido à "literalidade" do que consta nas atas (para, desse modo, desvalorizar o esclarecimento verdadeiro prestado pelo arguido, embora não podendo ignorar que inexistem elementos probatórios que contradigam o referido pelo arguido e que, como ensinam a boa Doutrina e a boa Jurisprudência, o teor de um documento autêntico, designadamente no que tange aos elementos não essenciais - como seja a razão pela qual o juiz ordenou que se aguardasse pela chegada de algum dos mandatários - pode - c deve - ser complementado, esclarecido, contextualizado, interpretado com base noutros meios de prova).
22. E que, depois, no ponto 27, não tenha qualquer problema em se afastar da "literalidade" dos autos para, sem se basear em nenhum elemento de prova que o pudesse demonstrar minimamente, imputar ao arguido um processo de intenções rotundamente falso e mesmo calunioso, qual seja não perder tempo a realizar o julgamento e ter menos trabalho a elaborar a sentença, aproveitando-se do facto de a sentença não ser passível de recurso.
23. E é da imputação desse processo de intenções que se logra assacar ao arguido a prática de um ilícito disciplinar, que, claramente, não existe.
24. Aliás, o arguido sempre adotou o mesmo entendimento quanto às mesmas situações, independentemente de a decisão ou despacho serem ou não passíveis de recurso.
25. Por último, cumpre referir que, diversamente do que se lenta fazer crer na acusação, as 10,30 horas não são hora de ponta em ........ nem são hora de ponta na entrada do edifício e, para além disso, o facto de se estar atrasado no trânsito ou na entrada no edifício, não impede os mandatários de informarem o Tribunal de que estão atrasados, como lhes é imposto pelo art. 151.º , n.º 5, do CPC.
26. Aliás, os próprios Senhores Advogados queixosos admitem que não contactaram nem tentaram contactar o Tribunal.
Quanto ao processo n.º 20853/08........
27. Antes de mais, cumpre referir que também aqui está em causa matéria pura e exclusivamente jurisdicional.
28. E, desde logo, rotundamente falso que o arguido, ao proferir o despacho em causa, tenha pretendido adiar a decisão dos autos, dado que, ao contrário do que se quer fazer crer na acusação, o arguido iria decidir de imediato o mérito da causa.
29. Contudo, porque, pelas razões aduzidas no despacho, se suscitava uma questão de litigância de má fé e porque, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, a condenação de litigância de má fé, quando não peticionada pela contraparte, depende de prévia audição da parte que poderá vir a ser condenada como tal, houve necessidade de notificar a exequente para se pronunciar.
30. Não foi, ao contrário do que se quer fazer crer na acusação, a ordem de extração de certidão que motivou, a não prolação imediata do saneador- sentença, como aliás é lógico.
31. Ademais, o que sucedeu no caso vertente é que o arguido, fruto da análise que fez dos autos, verificou que era possível conhecer de imediato do mérito da causa, num processo que corria termos há seis anos e em que tivera lugar uma audiência preliminar e, cerca de quatro anos depois, uma tentativa de conciliação.
32. E não é porque durante três anos, não foi proferido qualquer despacho que se pronunciasse sobre a questão (um dos despachos foi no sentido de marcar uma tentativa de conciliação e o outro no sentido de concluir após férias) que o arguido, tendo analisado os autos para prolação de despacho saneador ou mesmo de saneador-sentença, estava impedido de ordenar a extração de certidão para instauração de procedimento criminal, sendo seu dever proceder desse modo numa tal situação sem olhar nem ter de se preocupar com os valores das causas nem com quem são os intervenientes nela envolvidos.
33. E o prazo de prescrição do procedimento criminal quanto aos crimes que poderiam eventualmente estar em causa é de 5 e não de 3 anos.
34. E em lado algum o arguido comete qualquer excesso de linguagem e muito menos insinua qualquer conluio entre a exequente e a tradutora no sentido de ocorrer uma falsificação da tradução, apenas se limitando a fundamentar o porquê de ordenar a extração da certidão, até porque sabe que a conclusão da existência, ou não, de um tal conluio, cabe ao Ministério Público em sede do inquérito que viesse a ser instaurado.
35. E. como é sabido, não é porque um processo já corre termos há muito tempo que o Juiz deverá, em violação dos seus deveres funcionais, não ordenar a extração de uma certidão por se suscitar uma situação altamente duvidosa quanto a uma tradução inequivocamente desconforme com a versão original findo essa desconformidade no sentido da versão dos factos alegada pela parte que apresentou a tradução) nem suscitar uma possível situação de litigância de má fé, que iria inclusivamente tomar a prolação da sentença mais complexa e trabalhosa, sendo que, sabendo o arguido que a partir de janeiro de 2019 continuaria nas Execuções ........, caber- lhe-ia elaborar a sentença.
36. Por tudo isso, a imputação de uma intenção de o arguido protelar a elaboração da sentença não tem nenhum fundamento e é caluniosa, tal como o é a afirmação de que o arguido utilizou uma linguagem desabrida e insinuou que existia uma mancomunação entre a exequente e a tradutora no sentido de falsificar a tradução.
6.° Assim e pelas razões expostas, entende-se que os presentes autos devem ser arquivados, o que se requer.
Prova
A. Documental
Requer-se; nos termos do n.º 2 do art. 116.° do Código do Procedimento Administrativo, a junção aos autos de :
a) Certidão da ata da audiência de julgamento do processo n.º 960/14......., para prova dos factos constantes do n.º 1.9;
b) Certidão da ata da audiência de julgamento do processo n.° 85/07...... (Sessão de 02/02/2017) para prova dos factos constantes do n.º 19;
c) Certidões das atas de todas as demais diligências realizadas pelo signatário entre 07/09/2016 e 12/12/2017 para prova dos factos constantes dos n.os 16 a 18 e 24;
d) Indicação do valor da causa de cada um dos processos em que o signatário realizou diligências entre 07/09/2016 e 12/12/2017 para prova dos facto constantes do n.º 9;
e) Relatório da inspeção extraordinária relativa ao serviço prestado no ano de 2017 para prova dos factos constantes do n.º 2;
f) Certidão integral do processo n.º 20853/08........ para prova dos factos constantes dos n.os 27 a 36;
B. Testemunhal
a) Senhor Escrivão -Auxiliar CC, quanto aos factos constantes do n.º 14.
(cf. fls. 330-339)
5º - Após realização das diligências instrutórias requeridas pelo autor, foi a 30-07-2018 elaborado relatório final no procedimento referido em 2º e 3º, com o seguinte teor:
RELATÓRIO FINAL (fls 377 a 406)
(Art. 122.º do EMJ)
I.
Do relatório.
1. Por despacho de Sua Excelência o Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura de 15.12.2017 foi determinada a instauração de inquérito ao Exmo. Senhor Juiz de Direito AA.
Tal procedimento teve por objeto uma queixa apresentada pelos Exm°s. Senhores Advogados DD e EE, na qual, em resumo, davam conta que em 12.10.2017, no âmbito de uns autos de Embargos de Executado, relativamente a um julgamento aí designado para as 10.30 horas, presidido pelo Senhor Juiz de Direito AA, este deu por realizado tal julgamento pelas 10.35 horas, sem a presença daqueles Ilustres Advogados, que apenas lograram alcançar o piso relativo à sala de julgamento pelas 10.37 horas e, muito embora tenham tentado de imediato contactar o Senhor Juiz de Direito AA, não o conseguiram, após o que, no mesmo dia, apresentaram requerimento àquele Senhor Juiz expondo a situação e pedindo a designação de nova data para julgamento, o qual foi indeferido pelo Senhor Juiz de Direito AA que condenou cada um das partes em 2 UC’s de taxa de justiça, a título de custas pelo incidente anómalo que suscitaram.
A fim de instruir o referido inquérito,
• Consultou-se no Citius o referido processo de Embargos de Executado (2013), processo n.° 2226/14......., e extraiu-se do mesmo cópia do processado a partir do despacho que designou dia para julgamento, que se incorporou nos presentes autos;
• Juntou-se o registo do percurso profissional, classificativo e disciplinar, do Senhor Juiz de Direito visado;
• Juntou-se o acórdão proferido pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura, no âmbito do processo disciplinar n.° ....389, de 15.09.2015, relativo ao Senhor Juiz de Direito visado;
• Integrou-se nos autos cópia do seu relatório inspetivo classificativo, datado de
25.07.2017;
• Ouviram-se os participantes, bem como o Senhor Oficial de Justiça CC, que secretariou a audiência de discussão e julgamento em causa;
• Juntou-se aos autos pronúncia do Senhor Juiz de Direito visado quanto à matéria em causa nos presentes autos na sequência de notificação do mesmo para esse efeito e
• Juntaram-se aos autos elementos relativos a outros processos judiciais em que interveio o Senhor Juiz de Direito AA, nos quais este teve postura diversa à relatada na referida participação que originou os presentes autos;
• Ouviu-se o Senhor Juiz de Direito visado em declarações.
Em sede de inquérito, quanto à matéria dos autos, o Senhor Juiz de Direito AA alegou, em síntese, que a conduta participada está devidamente fundamentada na lei processual civil, assacando aos participantes falta de urbanidade por não terem informado a Secção de processos do seu atraso.
Na sequência dos diversos elementos juntos aos autos em sede de inquérito, no final deste, em 18.01.2018, foi proposta a instauração de processo disciplinar relativamente ao Senhor Juiz de Direito AA.
2. Na sessão do Conselho Permanente do CSM, realizada em 30.01.2018, foi deliberado converter os referidos autos de inquérito «em processo disciplinar, constituindo o inquérito (...) a parte instrutória do processo disciplinar».
Naquela sessão do Conselho Permanente foi ainda deliberado que fosse «alargado o âmbito daquele procedimento disciplinar, «nele se considerando o expediente referente ao procedimento n.° 2018/GAVPM/0356, para os fins tidos por convenientes»,
Sendo que tal expediente era constituída por uma participação subscrita pelos Exm°s. Senhores Advogados HH, II e JJ, quanto a atuação do Senhor Juiz de Direito AA no âmbito do processo n.° 20853/08........, pendente no Juízo de Execução ......., nomeadamente no que respeita à decisão de 22.11.2017 aí proferida, que aqueles Ilustres Causídicos entendiam, em resumo, «configurar grave ofensa aos princípios da imparcialidade, isenção e correção», assim como «uma clara e grosseira violação do dever de (...) urbanidade que impende sobre todos Magistrados Judiciais» .
3. Recebidos os autos em 23.02 do ano em curso, a instrução do processo disciplinar foi declarada aberta em 27.02 seguinte, sendo que nessa sede:
• Juntaram-se diversos elementos referentes ao aludido processo de Oposição à Execução Comum (art 813.° CPC) n.° 20853/08........, nomeadamente a referida decisão subscrita pelo Senhor Juiz AA em 22.11.2017, bem como cópia do requerimento executivo constante dos respetivos autos principais;
• Procedeu-se à audição do Senhor Juiz de Direito AA;
• Juntou-se registo disciplinar atualizado daquele.
3. Em 18.04.2017 foi deduzida acusação contra o Senhor Juiz de Direito.
Nela se concluiu que o mesmo cometeu duas infrações disciplinares consubstanciadas na violação dos seus deveres profissionais de administrar a justiça e de correção, prevista e punida pelos artigos 3.° e 82.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, bem como 73.°, n.°s 2, alínea h), e 10 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.° 35/2014, de 30 de junho, aplicável por força do disposto no artigo 131.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
Na acusação sufragou-se entendimento no sentido de que as descritas condutas do Arguido são suscetíveis de ser encaradas como situações de desinteresse pelo cumprimento dos deveres do cargo e de quebra do prestígio exigível ao magistrado, termos em que são puníveis com as sanções de multa e mesmo transferência.
4. Notificado da acusação, o Senhor Juiz de Direito apresentou Defesa em 15.05.2018.
Em tal peça processual, o Arguido refutou a acusação, referindo, em resumo, que a mesma contém factos que não correspondem à verdade, bem como factos que embora correspondam à verdade não configuram qualquer infração disciplinar.
Na mesma peça processual, o Senhor Juiz de Direito requereu a produção de prova pessoal e documental , o que foi integralmente deferido.
Nesses termos,
• Extraíram-se do Citius e juntaram-se aos autos,
— A ata da audiência de julgamento, ocorrida em 12.12.2017, no processo n.° 960/14.......,
— A ata da audiência de julgamento, realizada em 02.02.2017, no processo n.° 85/07......,
— Cópia integral, em suporte digital, do processo n.° 20853/08........,
— As atas de todas as diligências realizadas pelo Arguido entre 07.09.2016 e 12.12.2017, conforme módulo «Histórico da Gestão Processual», a partir da listagem de «Documentos Partilhados Devolvidos»;
— Os «Dados do Processo»/«Detalhe» de cada um daqueles processos, do qual consta, além do mais, o respetivo valor processual;
• Juntou-se aos autos, em suporte digital, relatório da inspeção extraordinária relativa ao serviço prestado pelo Arguido no ano de 2017;
• Ouviu-se de novo a testemunha arrolada pelo Arguido, Senhor Escrivão-Auxiliar CC.
Decorrido o prazo geral de 10 dias daquela última inquirição e da notificação ao Arguido de prova documental restante por ele requerida sem que nada tenha sido por ele requerido, teve-se por terminada a produção de prova, havendo que proferir o presente relatório final.
II.
Da apreciação especificada da defesa apresentada.
Sem prejuízo do que infra se dirá em sede de apreciação de direito, quanto à matéria de facto tida por pertinente, relativamente à defesa apresentada importa ora tecer as seguintes considerações:
1. No que se refere ao registo classificativo e disciplinar, bem como à alegada violação do «princípio non his in idem».
Em causa estão os artigos 5. e 6.1. da acusação.
1.1. O registo inspetivo classificativo consta do artigo 5 da acusação em termos que se afiguram bastantes para os presentes autos, sendo que o Arguido não aduziu na matéria qualquer facto concreto que possa ou pertinentemente deva ser aditado.
1.2. O que se consigna em 6.1. é o dado como provado no âmbito do procedimento disciplinar n.° …..389, conforme documento de fls. 45 a 62 dos autos, nomeadamente fls. 52 dos autos.
Trata-se, pois, de factualidade dada como provada no âmbito daquele processo disciplinar, justifícante, pois, da sanção disciplinar aí aplicada, e nessa medida não se vislumbra qualquer violação do princípio «non bis in idem».
Ao indicar aqui tal factualidade, não se pretende, como é óbvio, sancionar disciplinarmente a conduta aí em causa, mas tão-só integrar factualmente a sanção disciplinar aplicada no referido procedimento disciplinar n.° .....389.
2. Quanto ao alegado relativamente ao processo n.° 2226/14....... em si mesmo.
Em causa está o apurado facto de o Arguido ter iniciado e concluído o julgamento cerca de cinco minutos depois da hora agendada para o seu início, sem a presença de qualquer interveniente processual e determinando então a conclusão dos autos para sentença, sendo que os respetivos Advogados e testemunhas compareceram em Tribunal não mais que 10 minutos depois da hora agendada e procuraram que o julgamento ocorresse, quer por diligências que então fizeram, quer por requerimento que apresentaram, sem, contudo, o conseguirem, em processo insuscetível de recurso em razão do valor da causa.
2.1. Naquele contexto, configura-se absolutamente inócuo saber, em concreto, «a que horas os Senhores Advogados se apresentaram na portaria do tribunal», a circunstância destes terem ou não «escritório em ........ e ……», serem ou não «utentes habituais…..........», conhecerem ou não «o procedimento de entrada no edifício» do Juízo de Execução ........, as concretas razões do respetivo atraso, nomeadamente o concreto tempo gasto no «procedimento de entrada no edifício» do Tribunal, o facto de ser ou não «hora de ponta», bem como a circunstância de não terem informado o Tribunal do respetivo atraso.
Aliás, em tais matérias o Arguido não aduziu factos concretos e muito menos elementos de prova pertinentes que os fundamentem, refugiando-se antes em afirmações genéricas e conclusivas.
De todo o modo, quanto a tais matérias, da prova produzida não é possível infirmar o constante em sede de acusação, nem explicitar factualidade dela integrante ou aditar nova factualidade em função da prova produzida nos autos.
2.2. No que respeita ao concreto atraso verificado por parte dos Ilustres Advogados e testemunhas.
Na participação apresentada refere-se que os Senhores Advogados e as testemunhas «apenas às 10H37 subiram ao … piso onde se situa a secretaria judicial e sala de audiências», e aí «aguardaram por 10 minutos» pela chamada, após o que «deslocaram-se à secretaria judicial e quando foram atendidos (cerca de 10 minutos depois) obtiveram a informação de que a 1ª chamada havia sido feita às 10H30 e a segunda às 10H33, tendo a diligência sido dada sem efeito, por falta de comparência das partes e seus mandatários, às 10H35» .
Tal é igualmente referido no requerimento que os Ilustres Advogados apresentaram no referido processo.
O Senhor Advogado EE, participante, quando ouvido na qualidade de testemunha, referiu que «subiram ao … piso» «alguns minutos» após as «10.30 horas», sendo que aí «esperaram que fosse feita chamada para o processo em causa» e, na falta desta, «por volta das 10,45/10,50 horas abordaram um funcionário do Juízo de Execução o qual lhes disse que o julgamento já tinha ocorrido .
A Senhora Advogada DD, igualmente participante, na qualidade de testemunha nos autos disse que «por volta das 10.25 horas (...) chegou à porta de entrada do edifício do Juízo de Execução ......., onde aguardou pelos procedimentos de identificação, o que terá demorado alguns minutos», após o que subiu «ao … piso onde» aguardou alguns minutos pela chamada pelo julgamento do processo em causa», sendo que «passados uns minutos e face à ausência de qualquer chamada» abordou «um funcionário na Secção de Execuções» .
O Senhor Escrivão Auxiliar CC, quando ouvido como testemunha em 04.01.2018 disse que «à hora designada, como procede em todos os processos, realizou a chamada e verificou que não se encontrava presente qualquer pessoa para o processo em causa. Após deslocou-se à sala de audiência n.° 3 e daí telefonou ao Senhor Juiz AA, comunicando que ninguém estava presente. O Senhor Juiz perguntou-lhe se alguém havia telefonado a comunicar algum atraso e perante resposta negativa do depoente o Senhor Juiz afirmou-lhe que se deslocaria de imediato à sala de julgamento. Entretanto, o depoente deslocou- se mais uma vez ao átrio onde costumam comparecer os convocados para julgamento e aí constatou de novo que ninguém se encontrava presente, pelo que voltou de novo à sala de julgamento onde momentos depois chegou o Senhor Juiz, o qual proferiu o despacho que consta da ata e assim terminou a audiência final», sendo que «entretanto, já na secção, apercebeu-se que junto à mesma se encontravam os Ilustres Advogados do processo em causa, tendo então informado os mesmos que o julgamento já tinha acontecido» .
Finalmente, da ata relativa à audiência final em causa consta que foi «realizada chamada à hora designada» e «cerca 04 (quatro) minutos depois da hora designada», tendo-se constado a ausência de qualquer dos convocados», após o que a «audiência final» foi «aberta» às «10 horas e 35 minutos» e «pelo Mm.° Juiz de Direito foi proferido o seguinte: Despacho “Tendo em conta que foi dado cumprimento ao disposto no art. 151.° do Código de Processo Civil e que não foi comunicado qualquer impedimento por parte dos Ilustres Mandatários em comparecer na presente audiência e sendo também certo que não se encontra presente qualquer testemunha não se produzirá qualquer prova e determina-se que, oportunamente, sejam os autos conclusos para prolação de sentença. Notifique”. De imediato, pelo Mm.° Juiz de Direito foi encerrada a presente audiência» .
Não tendo visto os Ilustres Advogados aquando dos factos em causa, as declarações do Arguido revelam-se inócuas quanto à factualidade em apreço.
Perante tais elementos probatórios afigura-se justificada a factualidade indicada nos artigos 9. e 11. da acusação: a audiência iniciou-se pelas 10.35 horas e, após despacho tabelar, encerrou de imediato, sendo que instantes depois, quando o Senhor Escrivão Adjunto se encontrava na Secção, o mesmo foi abordado pelos Ilustres Advogados participantes que aí já se encontravam há algum tempo, aguardando a realização de uma chamada para julgamento, estima-se que pelo menos desde as 10.40 horas, atentas os indicados depoimentos prestados e a proximidade da sala de audiências e da Secção de processos, assim como as regras da experiência comum e da lógica.
2.3. Quanto ao modo pelo qual o Arguido soube da presença dos Ilustres Advogados.
Na participação apresentada ao Conselho Superior da Magistratura refere-se que naquelas circunstâncias «os signatários (...) solicitaram o contacto com o Mmo. Juiz, a fim de explicar a situação, contacto esse que não foi permitido» .
Tal é igualmente referido no requerimento que os Ilustres Advogados apresentaram no referido processo.
O Senhor Advogado EE, participante, ouvido na qualidade de testemunha, referiu que os Ilustres Advogados das partes «abordaram um funcionário do Juízo de Execução» e «pediram para falar com o Juiz, o que não foi possível, não sabendo precisar se o dito funcionário terá afirmado tal impossibilidade após ter falado com o Senhor Juiz ou simplesmente por estar a cumprir ordens prévias do Senhor Juiz da causa».
A Senhora Advogada DD, igualmente participante, na qualidade de testemunha nos autos, disse que «pediram (...) ao funcionário para falar com o Juiz ou para o mesmo explicar ao Senhor Juiz a situação: que estavam todos presentes e que o atraso verificado decorria tão simplesmente de procedimentos de identificação», sendo que perante tal solicitação o funcionário disse “que o Juiz não tolera atrasos e que naquele Juízo era assim que funcionava, que o Meritíssimo Juiz não recebia ninguém e que não valia a pena ele, funcionário, ir falar com o ]juiz, que tinha sido dado despacho e que era assim”16.
O Senhor Escrivão Auxiliar CC, quando ouvido como testemunha em 04.01.2018 disse que «os Advogados (...) pediram ao depoente para informar o Senhor Juiz da sua presença, tendo o depoente dito que o julgamento já tinha sucedido e que o Senhor Juiz era muito rigoroso na pontualidade das diligências pelo que a situação já seria irreversível», sendo que «lembra-se que relativamente à situação em causa falou com o Senhor Juiz AA, no gabinete deste, não sabendo precisar se os advogados ainda se encontravam no Tribunal ou se já se tinham ido embora, tendo ficado com a convicção, na sequência da conversa havida com o Senhor Juiz, que situação era irreversível para o mesmo».
Por outro lado, o mesmo Escrivão Auxiliar, CC, quando ouvido de novo como testemunha, por arrolado na defesa, em 20.06.2018 referiu que «tem ideia que, ainda com» os Ilustres Mandatários das partes «presentes no Tribunal se deslocou ao gabinete do Senhor Juiz de Direito Dr. AA e aí expôs-lhe a situação, informando-o da presença dos Srs. Advogados e da indignação manifestada pelos mesmos», sendo que «então o Senhor Juiz referiu que o julgamento estava feito e o despacho proferido, após o que transmitiu tal aos Srs. Advogados», explicitando ainda que «sem ter a certeza do realmente sucedido a ideia que hoje tem é que foi a pedido dos Srs. Advogados que foi falar com o Senhor Juiz e que depois de falar com o mesmo terá transmitido aos Srs. Advogados o declarado pelo Senhor Juiz ainda quando os mesmos se encontravam no Tribunal».
Na matéria, o Arguido disse na sua resposta em sede de inquérito que tomou conhecimento da presença dos Ilustres Advogados aquando da partilha da ata e na sequência de pedido de esclarecimento do próprio, o que reafirmou quando ouvido em declarações no inquérito e no processo disciplinar.
No cotejo de tais elementos probatórios, divergentes, e até contraditórios, quanto ao preciso momento em que o Arguido soube da presença dos Ilustres Advogados e testemunhas em Tribunal, urge entender que nada foi apurado nessa sede, delimitando-se a matéria nos termos constantes do artigo 12. da acusação cuja factualidade assim descrita resulta de forma unânime da apontada prova pessoal produzida.
Não se está, pois, perante uma situação de dúvida razoável, mas de factualidade não provada.
3.Relativamente aos artigos 17. a 26. da acusação.
Os mesmos pretendem refletir o quão diversa foi a conduta do Arguido nos processos aí referidos e nos autos n.° 2226/14......., em causa no processo disciplinar, quanto ao atraso de intervenientes processuais: naqueles processos o Arguido esperou pela chegada de intervenientes processuais pelo menos 10 minutos, ao passo que no processo n.° 2226/14....... o Arguido iniciou e findou o julgamento antes do decurso daquele tempo.
3.1. O processo n.° 2226/14......., em causa nestes autos, e os processos indicados nos artigos 17. a 26. da acusação têm em comum a circunstância de não constar da respetiva ata de tentativa de conciliação ou julgamento a comunicação ao Tribunal por parte de algum dos intervenientes processuais do seu atraso ou da sua ausência.
Na matéria, alega o Arguido que tal decorre de lapso na redação da ata.
Contudo, tal alegação não foi minimamente demonstrada, estranhando-se que a alusão à comunicação do atraso seja umas vezes referida e outras não, sem que o Arguido tenha providenciado pela correção do lapso aquando da assinatura da ata, sendo certo que non quod est in actis non est in mundo.
Com efeito, conforme decorre de fls. 350 dos presentes autos, no processo n.° 960/14....... o Tribunal foi informado do atraso do Ilustre Mandatário da embargada, o que não sucedeu relativamente ao indicado processo n.° 2226/14......., em causa nestes autos.
Os «diferentes» «timings» registados em matéria de espera apenas consolidam a falta de objetividade de procedimento do Arguido na matéria.
3.2. Requereu o Arguido que fossem juntas aos autos atas de todas as diligências por si realizadas entre 07.09.2016 e 12.12.2017, sugerindo que o procedimento que seguiu no processo n.° 2226/14......., em causa nestes autos, terá sido igualmente seguido noutros processos.
A partir do módulo «Histórico da Gestão Processual», da listagem de «Documentos Partilhados Devolvidos», extraíram-se do Citius os elementos pretendidos, os quais constituem o Anexo A.
Da análise da documentação aí constante decorre que uma situação idêntica à seguida no referido processo n.° 2226/14....... ocorreu tão-só no processo n.° 22Q2Q/11….. oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de € 2788,41, numa audiência de discussão e julgamento realizada em 18.10.2016 .
Apenas naquelas duas situações o julgamento iniciou-se e findou antes de decorrerem mais de 10 minutos da hora agendada para o seu início, sem a presença de qualquer interveniente processual, nomeadamente de qualquer mandatário das partes.
Em ambos os casos inexistia alçada para recurso.
Da análise da documentação constante do Anexo A decorre que a audiência prévia, a tentativa de conciliação ou o julgamento começaram antes de decorrerem 10 minutos da hora designada para o seu início, sem a presença de um dos mandatários judiciais das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, findando em todo o caso 14 minutos ou mais depois da hora designada para o seu início, nos 10 processos seguintes com os números:
- 22472/11......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €2266,76, audiência final em 20.09.2016, iniciada cerca de 7 minutos depois da hora agendada e encerrada 31 minutos depois da hora agendada ;
- 9307/12......, oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de €11 667,08, audiência de discussão e julgamento em 11.10.2016, iniciada cerca de 6 minutos depois da hora agendada e encerrada 14 minutos depois da hora agendada;
- 14765/10........, oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de €6288,02, audiência de discussão e julgamento em 18.10.2016, iniciada cerca de 8 minutos depois da hora agendada e encerrada 16 minutos depois da hora agendada;
- 85/07......, oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de €78 692,31, audiência de discussão e julgamento em 07.11.2016 (1.ª sessão) e 02.02.2017 (2.ª sessão), iniciadas cerca de 5 e 2 minutos depois da hora agendada e encerradas 34 e 25 minutos j depois da hora agendada, respetivamente;
- 11304/09......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €29 558,83, audiência prévia em 07.11.2016, iniciada cerca de 5 minutos depois da hora agendada e encerrada 17 minutos depois da hora agendada;
- 22665/08......., oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de €20 270,38, audiência de discussão e julgamento em 20.12.2016, iniciada cerca de 7 minutos depois da hora agendada e encerrada 25 minutos depois da hora agendada;
- 29686/09......., oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de €16 223,13, audiência de discussão e julgamento em 19.01.2017, iniciada em hora não indicada e encerrada 15 minutos depois da hora agendada ;
- 35845/11......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €2512,68, audiência final em 21.02.2017, iniciada cerca de 5 minutos depois da hora agendada e encerrada 25 minutos depois da hora agendada;
- 42037/06......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €15 574,41, audiência final em 09.05.2017, iniciada em hora indicada e encerrada 15 minutos depois da hora agendada e
- 13762/13......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €1291,66, audiência final em 14.11.2017, iniciada cerca de 7 minutos depois da hora agendada e encerrada 46 minutos depois da hora agendada.
Por outro lado, à semelhança dos 10 processos indicados nos artigos 17. a 26. da acusação, da documentação constante do Anexo A, resulta que o Arguido aguardou entre 10 e 30 minutos pela presença de mandatário forense ausente, sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, nos 12 processos seguintes, com os números:
- 26367/09........, embargos de executado (2013), inquirição de testemunhas em incidente de oposição à penhora, com o valor processual de €35 802,21, em 09.06.2016 aguardou cerca de 30 minutos;
- 21048/08........, embargos de terceiro, audiência final, com o valor processual de €8500,00, em 12.09.2016 aguardou cerca de 12 minutos;
- 16832/12......., oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de €10 707,11, em 11.10.2016 aguardou cerca de 21 minutos;
- 16832/12......., oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de €10 707,11, em 11.10.2016 aguardou cerca de 21 minutos;
- 16832/12......., oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de €10 707,11, em 11.10.2016 aguardou cerca de 21 minutos;
- 20660/08......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €7759,07, em 03.11.2016 aguardou cerca de 10 minutos;
- 24667/10......, oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de €300 785,80, em 29.11.2016 aguardou cerca de 17 minutos;
- 20147/13....., embargos de executado (2013), com o valor processual de €10 800,00, em 15.03.2017 e mandou aguardar 2 cerca de 15 minutos;
- 13631/14......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €29 900,00, em 05.04.2017 e aguardou pelo menos cerca de 18 minutos;
- 6070/14......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €2 252 987,38, em 26.04.2017 mandou que se aguardasse «alguns minutos pela chegada das pessoas convocadas;
- 6070/14......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €2 252 987,38, em 26.04.2017 mandou que se aguardasse «alguns minutos pela chegada das pessoas convocadas»;
- 69414/05........, embargos de executado (2013), com o valor processual de €8956,17, em 28.06.2017 aguardou pelo menos cerca de 16 minutos.
Ou seja.
Na matéria aqui em causa conclui-se pela inexistência de um critério por parte do Arguido.
Tal ausência de critério decorria já manifesto do confronto dos artigos 9. e 17. a 26. da acusação, pelo que quanto a tal afigura-se desnecessário aduzir matéria factual à acusação deduzida.
Por outro lado, uma vez que as descritas situações de início de diligência processual sem a presença do mandatário forense de uma das partes diferem do ocorrido no referido processo n.° 2226/14......., pois neste estiveram ausentes ambos os Advogados das partes e a diligência iniciou-se e findou antes de decorrerem 10 minutos sobre a hora agendada para o respetivo início, urge, por um lado, não aduzir matéria factual nova decorrente da análise feita ao Anexo I e, por outro lado, importa eliminar da acusação os respetivos artigos 17., 20. a 22. e 24. a 26., uma vez que nestas a falta respeita apenas a um dos mandatários, matéria impertinente, atento o ocorrido no processo n.° 2226/14........
A circunstância de ter anteriormente acontecido uma outra situação idêntica à ocorrida naquele processo n.° 2226/14......., em causa nestes autos, não justifica o sucedido neste.
O precedente é inócuo na matéria, sendo que dado o objeto destes autos não há aqui que aduzir o sucedido na apontada situação idêntica.
De todo o modo, o respetivo procedimento disciplinar estaria prescrito nos termos do artigo 178.° da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.
3.3. No que respeita à requerida indicação do valor da causa dos processos indicados de 17. a 26. da acusação.
Atento o supra referido, releva tão-só os processos indicados em 18., 19. e 23. da acusação.
Na sequência de elementos probatórios requeridos pelo Arguido, entretanto juntos aos autos, constata-se que tais processos têm valor superior ao dobro da alçada do Tribunal de 1.ª Instância, pelo que a respetiva decisão final é suscetível de recurso ordinário, ao contrário da decisão proferida no referido processo n.° 2226/14......., em causa nestes autos.
Por constituir matéria fatual decorrente da defesa apresentada e ser suscetível de revestir pertinência no presente procedimento, importa aduzi-la quanto aos artigos 18., 19. e 23. da acusação, consignando que nos processos aí referidos o valor da causa cifra-se em €12 912,39, €21 053,63 e €1596.640,50, respetivamente, conforme fls. 364, 365 e 369 dos autos.
4. Quanto ao artigo 27.° da acusação.
Em causa está o chamado elemento subjetivo da infração disciplinar. Isto é, o conhecimento e a vontade de atuação por parte do agente.
Embora tal matéria respeite ao foro íntimo daquele, a mesma pode e deve ser inferida a partir de factos objetivos apurados, em função das regras da experiência comum e da lógica.
Ora, assim procedendo, não se vislumbra a menor razão para alterar o constante do artigo 27.° da acusação.
Com efeito.
Conforme já ficou demonstrado, o Arguido não adotou uma postura uniforme quando no início de uma diligência judicial não estavam presentes os respetivos mandatários forenses e estes não informavam o Tribunal do seu atraso ou ausência.
Nos processos 20239/07........., 960/14....... e 271/14........ esperou entre 15 e 30 minutos pela chegada de mandatário forense.
Relativamente ao referido processo n.° 2226/14......., em causa nestes autos, o Arguido iniciou e findou o julgamento antes de decorrerem 10 minutos sobre a hora agendada para o respetivo início, na ausência de qualquer interveniente processual, nomeadamente dos respetivos mandatários judiciais.
Igual procedimento sucedeu no processo n.° 22020/11........
De comum, o processo n,° 2226/14....... e o processo n.° 22020/11....... têm o facto do valor da causa não permitir a interposição de recurso ordinário.
Diversamente, nos processos n.°s 20239/07........., 960/14....... e 271/14........, cujos valores da causa permitem a interposição de recurso ordinário, embora no início das respetivas diligências judiciais também ninguém se encontrasse presente, o Arguido aguardou entre 15 e 30 minutos pela chegada de mandatário forense.
Nestes termos, em função de tais elementos, à luz das regras da experiência comum e da lógica, a nossa convicção é que o Arguido agiu no processo n.° 2226/14......., em causa nestes autos, conforme indicado, bem sabendo que o mesmo não tinha alçada de recurso e por forma a evitar a realização de julgamento e o tempo e trabalho acrescido dele decorrente, tornando assim o mais simples possível o desfecho do caso, com decisões de facto e de direito assaz simplificadas.
Não fosse esse o propósito do Arguido e por certo teria esperado pelo menos 15 minutos pela chegada dos Advogados das partes, tal como o fez em situações similares.
5. Relativamente ao referido processo n.° 20853/08..........
A factualidade indicada nos artigos 28. a 41. da acusação não foi impugnada pelo Arguido, sendo que a mesma encontra-se fundada nos elementos documentais aí referidos.
A defesa põe, contudo, em causa o artigo 42.° da acusação e, pois, também nesta sede, o chamado elemento subjetivo da infração disciplinar.
Vejamos.
5.1. No que se refere ao «adiar a decisão de mérito da causa».
Conforme decorre dos artigos 29 a 94 do requerimento executivo e do requerimento executivo aperfeiçoado , na medida em que a matéria relativa a «receitas líquidas» obtidas pela exequente «em 2000 e 2001» foi amplamente objeto de pronúncia por parte das partes ao longo do processo, aquando da acusação afigurou-se que a pretendida decisão de mérito poderia ser proferida sem prévio cumprimento do disposto no artigo 3.°, n.° 3, do Código de Processo Civil, que protelaria tal decisão de mérito, tanto mais que a pronúncia quanto à litigância de má-fé poderia sempre ser proferida em momento ulterior à decisão de mérito e na sequência desta, após cumprimento do contraditório.
Face ao alegado na defesa, admite-se que in casu o cumprimento ou não daquele preceito legal possa não ser normativamente líquido, envolvendo, pois, a questão em apreço alguma natureza jurisdicional, termos em que importa ora eliminar da factualidade apurada a expressão «visando adiar a decisão de mérito da causa».
5.2. Quanto à postura revelada pelo Arguido e linguagem utilizada.
Regista-se a posição do Arguido nesta sede, nomeadamente a inexistência da menor reconsideração na matéria, o que revela da sua personalidade.
Num processo entrado em juízo em 25.09.2008 , ainda sem saneador/condensação em novembro de 2017, no qual tiveram intervenção ao longo do tempo diversos Juízes de Direito, em página e meia de despacho/decisão, o Arguido condenou a exequente no pagamento de uma multa de 7 Ucs, ordenou a extração de certidão para instauração de procedimento criminal relativamente a duas pessoas, uma tradutora e uma Advogada-Estagiária que subscreveu nessa qualidade um intitulado «certificado de tradução», condenou a exequente em 2 Ucs de taxa de justiça e, antecipando a decisão quanto ao mérito da causa que pretendia tomar, notificou as partes quanto a tal e ainda a exequente quanto a eventual condenação em litigância de má-fé.
Entretanto naquele despacho, proclamou que a exequente atuou de «uma forma absolutamente lamentável», atuação essa que que foi «desmascarada pelos opoentes».
Ora, no referido «certificado de tradução», a Ilustre Advogada estagiária que o subscreve «certifica» a comparência da tradutora perante si e a declaração desta, «sob compromisso de honra, que a tradução para língua portuguesa dos documentos anexos, escritos em língua inglesa, foi por ela feita e reproduz fiel e corretamente o respetivo original, tradução essa pela qual» «declarou assumir inteira e completa responsabilidade».
Ou seja, a responsabilidade da tradução é da respetiva tradutora e só desta.
Pretender assacar carácter doloso a erros ocorridos na tradução e responsabilizar por eles a exequente, que foi condenada em 7 UCs de multa, bem como a Ilustre Advogada estagiária subscritora da referida «certidão de tradução», com a extração de uma certidão para procedimento criminal por falsidade, sugere, no mínimo, uma situação de conluio entre tradutor/exequente/advogado e coloca em crise o bom nome destes, o que o Arguido bem sabia.
Nestes termos, a postura do Arguido revela-se autocrática, de afirmação de poder, com uma linguagem nada polida e nesse sentido desabrida.
* *
Em suma, em função das considerações que antecedem e da prova pessoal e documental produzida nos autos, importa, pois,
1. Eliminar os artigos 17., 20. a 22. e 24. a 26. da acusação;
2. Indicar o valor da causa quanto aos processos referidos nos artigos 18., 19. e 23. da acusação;
3. Eliminar do artigo 42. da acusação a expressão «visando adiar a decisão de mérito da causa».
III.
Da factualidade dada aqui como provada.
Analisados os autos e face ao exposto, entendem-se provados os seguintes factos:
CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS
O Arguido nasceu no dia ……1974, tem, pois, 44 anos de idade;
2. Ingressou no Centro de Estudos Judiciários em ……2003, integrando o …. Curso Normal.
3. Concluída a formação inicial, por despacho do Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura de 30.06.2006, com efeitos a partir de 15.07 seguinte, foi nomeado Juiz de Direito e colocado como auxiliar no Tribunal Judicial da comarca......., pelo que é Juiz de Direito há pouco mais de 12 anos.
4. Após o que foi sucessivamente nomeado e colocado nos Tribunais Judiciais das Comarcas de
3.1. ........, por decisão de 18.07.2006,
3.2. ........, por decisão de 16.07.2007, como Juiz de Direito auxiliar,
3.3. ........, por decisão de 15.07.2008, como Juiz de Direito efetivo,
3.4. ........, na Instância Local ........, Secção Genérica, por decisão de 08.07.2014, como Juiz de Direito efetivo,
3.5. ........, na Instância Central de Execuções........, por decisão de 07.07.2015, como Juiz de Direito auxiliar,
3.6. ........, na Instância Central, 1.ª Secção de Execução, por decisão de 12.07.2016, como Juiz de Direito auxiliar,
3.7. ........, no Juízo de Comércio e Juízo de Execução........, lugar de efetivo (art. 107.°), por decisão de 11.07.2017, tendo a partir de 01 setembro 2017 sido colocado exclusivamente naquele Juízo de ExecuçãoS4.
5. Do certificado de registo individual do Arguido constam as classificações de:
- “Bom”, como Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca ........, no período de 05.09.2006 a 31.08.2007 (deliberação do Conselho Superior da Magistratura de
17.06.2008),
- “Bom com Distinção”, como Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca ........, no período de 01.09.2007 a 30.09.2012 (deliberação do Conselho Superior da Magistratura de 27.11.2012) e
- "Muito Bom”, como Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca ........, de 01.10.2012 a 31.08.2014, da Instância Local ........, Secção Genérica, de 01.09.2014 a 31.08.2015, da Instância Central de Execuções ........, de 01.09.2015 a 31.08.2016, e da Instância Central de Execuções ........, entre 01.09 e 31.12.2016 (deliberação do Conselho Superior da Magistratura de 19.09.2017)55.
6. Do registo disciplinar do Arguido consta que:
6.1. Por deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 15.09.2015, foi-lhe aplicada a pena de advertência, «pela prática de uma infração disciplinar, consubstanciada na violação do dever de zelo e de prossecução do interesse público e de correção», em razão da «prática reiterada» de um «agendamento desajustado, porque em total sobreposição de diligências judiciais», porquanto, em resumo, conforme refere aquela deliberação, que aqui no mais se dá por integralmente reproduzida, ficou demonstrado que
- No «dia 31 de janeiro de 2014», por causa daquela prática, no âmbito de uma «tentativa de conciliação», num processo de divórcio, que se realizava no «gabinete», quando «o Senhor Advogado Dr. BB solicitou (...) a palavra para ditar requerimento, (...)», «o Senhor Juiz arguido, pressupondo a extensão do requerimento, transmitiu ao Causídico que continuasse a ditar na Secretaria, em virtude de continuar as outras diligências, ordenando à Oficial de Justiça (...) que os acompanhasse para o efeito, e convocou outro Oficial de Justiça para secretariar no seu gabinete», o que veio a suceder;
- No dia 27.05.2014, no âmbito de uma conferência de pais realizada em processo tutelar cível, após «o Senhor Juiz arguido (...) ditar o despacho tabelar destinado à notificação das partes para alegações e requerimentos de prova, o Dr. BB pediu (...) a palavra por pretender apresentar requerimento, o que aconteceu, e sobre o qual recaiu decisão de indeferimento, tendo o Senhor Juiz arguido se aprestado a terminar a conferência de pais», sendo que então «o Dr. BB pretendeu formular requerimento adicional» e «o Senhor Juiz arguido assentando na previsível demora da diligência, solicitou ao Dr. BB que elaborasse na Secretaria e oportunamente decidiria, pois que aguardava ser ouvido em processo judicial através de videoconferência», termos em que «o Dr. BB não aceitou ir, mais uma vez, para o balcão público da secretaria e questionou expressamente o Senhor Juiz se estava em causa uma ordem, tendo o Senhor Juiz arguido afirmado categoricamente que se tratava, na realidade, de uma ordem», após o que «o Dr. BB retirou-se e o ato [foi] assim dado por encerrado»;
- «Na deliberação do CSM datada de 15.07.2013, relativa ao Processo …..545 que apreciou queixa apresentada por Advogada, determinado o arquivamento por irrelevância disciplinar, justificou, embora, dirigir”... recomendação ao Exmo. Senhor Juiz no sentido de ter mais cuidado na adjetivação das suas decisões»;
6.2. Por deliberação do Permanente do Conselho Superior da Magistratura de 12.12.2017, na sequência de processo de inquérito, o Arguido foi suspenso preventivamente de funções, em 12.12.2017.
DOS FACTOS PROPRIAMENTE DITOS
Quanto ao Processo n.º 2226/14.......
7. No âmbito dos autos de execução que com o n.° 2226/14....... corriam termos na então Instância Central de Execução ........, lugar de Juiz .., em 16.09.2015 a ali executada, V........... - Comércio de Automóveis, Lda., instaurou Embargos de Executado contra a ali exequente, M.......... - S............., Lda., sendo que o respetivo valor do processo cifrava-se em € 1132,76 .
8. No âmbito daqueles autos de Embargos, em 13.09.2017, o Arguido designou «para realização da audiência de discussão e julgamento (...) o dia 12/10/2017, pelas 10.30 horas, sem prejuízo do disposto no artigo 151.º do CPC».
9. No âmbito dos mesmos autos de Embargo, em 12.10.2017, pelas 10.30 horas, o Senhor Escrivão Auxiliar CC procedeu à chamada, tendo verificado que não se encontrava ninguém presente, o que constatou igualmente cerca das 10.34 horas, após o que o Arguido abriu a audiência pelas 10.35 horas e proferiu o seguinte despacho: «Tendo em conta que foi dado cumprimento ao disposto no art. 151.° do Código de Processo Civil e que não foi comunicado qualquer impedimento por parte dos Ilustres Mandatários em comparecer na presente audiência e sendo também certo que não se encontra presente qualquer testemunha não se produzirá qualquer prova e determina-se que, oportunamente, sejam os autos conclusos para prolação de sentença» .
10. As salas de audiências do Juízo de Execução ....... situam-se no … piso do Edifício … do chamado ........, sendo que o respetivo acesso implica a prévia identificação de pessoas, por seguranças, no hall de entrada daquele edifício, situado no piso 0 do mesmo edifício .
11. Na sequência do referido em 8., no apontado dia 12.10.2017, após as 10.35 horas e não depois das 10.40 horas, os Senhores Advogados DD e EE, enquanto causídicos das partes, bem como testemunhas indicadas no âmbito do mencionado processo de Embargos de Executado, chegaram ao referido piso … onde se situam as salas de julgamento do Juízo de Execução de ........ .
12. Entretanto, apercebendo-se que já havia sido realizado julgamento no âmbito dos referidos autos de Embargos de Executado, os Senhores Advogados DD e EE, enquanto causídicos das partes, procuraram falar com o Arguido, o que não lograram.
Igualmente do âmbito do referido processo de Embargos de Executado, em 12.10.2017, pelas 16.36 horas, a Senhora Advogada DD, em nome da Embargada/Exequente e da Embargante/Executada, referindo que o requerimento será também subscrito pelo Senhor Advogado EE, apresentou requerimento na qual referiu, além do mais, que os mandatários das partes e as testemunhas, «em virtude dos procedimentos de identificação implementados à entrada do Tribunal, apenas às 10h37 subiram ao … piso, onde se situa a secretaria e a sala de audiências», tendo constatado pouco depois que o julgamento já tinha ocorrido, termos em que concluíram requerendo o agendamento de «nova data para realização de audiência de discussão e julgamento» .
14. Em 13.10.2017, o Senhor Advogado da Embargante/Executada apresentou declaração eletrónica de adesão do requerimento indicado em 13 .
15. Na sequência do indicado em 13. e 14., em 17.10.2017, o Arguido proferiu despacho do seguinte teor:
«Fls. 74:
Indeferido por manifesta falta de fundamento legal, recordando-se aos requerentes que “10.30” é a hora para iniciar o julgamento e não a hora para chegar ao Tribunal.
Custas do incidente anómalo a cargo da opoente e exequente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs a cargo de cada uma, nos termos do art. 7.°, n.°s 4 e 8, do RCP.» 16.
Em 16.11.2017, o Arguido proferiu sentença nos referidos autos de Embargos de Executado, os quais julgou improcedentes, sendo que a respetiva notificação às partes foi elaborada naquela mesma data, sem que entretanto as mesmas tenham requerido algo .
Diversamente.
17. No processo n.° 20239/07........., Embargos de Executado, cujo valor da causa cifrava-se em €12.912,39, designada tentativa de conciliação para 01.02.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava ninguém, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse até às 11 horas pela comparência das partes.
18. No processo n.° 960/14......., Embargos de Executado, cujo valor da causa cifrava-se em € 21 053,63, designada tentativa de conciliação para 21.03.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava ninguém, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse 15/20 minutos pela comparência dos convocados.
19. No processo n.° 271/14........, Embargos de Executado, cujo valor da causa cifrava-se em €1596.640,50, designada tentativa de conciliação para 17.10.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava ninguém, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse por 20 minutos pela comparência das partes.
20. Ao proceder da forma descrita, nomeadamente em 9., 15. e 16., o Arguido agiu de modo livre, consciente e voluntário, com o propósito de não despender tempo com a diligência de julgamento e tornar assim o mais simples possível a decisão de mérito da causa, bem sabendo que a circulação na cidade de ........ causa por vezes alguns atrasos, tal como sucede com as formalidades de acesso ao Juízo de Execução ........; sabia igualmente que os indicados autos de execução n.° 2226/14....... não tinham alçada para recurso e que a sua descrita conduta naqueles autos reportada a outubro passado violava o seu dever de administrar a Justiça e de correção.
No que respeita ao Processo n.º 20853,08…...
21. Em 25.09.2008 a então S.......... - Sociedade Portuguesa de Navios Tanque, SA., e S.......... Internacional - SGPS (…..), Sociedade Unipessoal, Lda., vieram interpor execução para pagamento de quantia certa contra P............ - P........, SA., e S....... Marítima, SA., dando à execução um acórdão arbitrai, com quantia exequenda em parte líquida e em parte ilíquida.
22. Em 19.12.2011, as então executadas P............ - P........, SA., e S....... Marítima, SA., vieram deduzir oposição àquela liquidação, a qual passou a constituir o Apenso E do referido processo n.° 20853/08....... .
23. Em 11.06.2012, a Senhora Juíza de Direito então titular dos autos, designou audiência preliminar para o dia 27.09 seguinte.
24. Em 27.09.2012 realizou-se tal audiência preliminar, tendo o Senhor Juiz de Direito que a ela presidiu determinado que os autos lhe fossem conclusos.
25. Em 31.01.2014, o Senhor Juiz de Direito titular dos autos proferiu despacho de aperfeiçoamento.
26. Em 26.02.2014, a Exequente juntou aos autos articulado aperfeiçoado, bem como diversos documentos, entre os quais dois em língua inglesa.
27. Em 03.03.2014, o Senhor Juiz de Direito titular dos autos proferiu despacho em que, além mais, ordenou a notificação da Exequente para juntar tradução dos referidos documentos.
28. Em 17.03.2014, a Exequente juntou aos autos alegada tradução daqueles documentos, acompanhada de um «certificado de tradução», assinado pela Ilustre Senhora Advogada Estagiária FF, na qual esta, no que aqui releva, certificava que Senhora «Dra. GG» lhe «declarou, sob compromisso de honra, que a tradução para língua portuguesa dos documentos anexos, escritos em língua inglesa, foi por ela feita e reproduz fiel e corretamente o respetivo original, tradução essa pela qual (...) declarou assumir inteira e completa responsabilidade» .
29. Em 24.03.2014, em articulado que juntou então aos autos, as Executadas referiram, além do mais, que «a tradução do contrato de financiamento adulterou a versão original em língua inglesa, do mesmo, pelo que» impugnaram «a sua tradução».
30. Em articulado seguinte, a Exequente veio reconhecer que «a tradução inicialmente oferecida do contrato supra referenciado (...) não é integralmente fiel ao respetivo original» e requereu «a junção aos autos (i) de nova tradução do dito contrato, a qual, crê, não enferma já de quaisquer lapsos, sendo fiel ao respetivo original, máxime no que se refere à tradução, para português, da expressão COA constante dos pontos 7 e 8 da Parte A do Anexo 3 do referido instrumento negociai e, bem assim, (ii) de carta redigida pela tradutora responsável por ambas as traduções explicando os motivos que estiveram na base dos lapsos identificados (...)» °.
31. Em 22.04.2016, o Senhor Juiz de Direito titular dos autos designou para 31.05 seguinte a realização de uma tentativa de conciliação.
32. Em 31.05.2016 realizou-se tal tentativa de conciliação, tendo o Senhor Juiz de Direito que a ela presidiu determinado que os autos lhe fossem conclusos.
33. Em 09.06.2017, o Senhor Juiz de Direito titular dos autos ordenou que estes fossem conclusos após férias judiciais de verão.
34. Aberta nova conclusão nos autos em 20.11.2017, o Arguido proferiu em 22.11.2017 o seguinte despacho:
«Fls. 354-614:
Na sequência da notificação de fls. 344, veio a exequente juntar aos autos uma tradução do contrato de mútuo celebrado com o Christiania Bank que apresenta desconformidades face ao documento original em inglês, desde logo ao nível nos pontos 7 e 8 da Parte A do Anexo 3 (fls. 4418), onde, de uma forma absolutamente lamentável, se faz corresponder a expressão COA (Contract of Affreightment - tal como definido na cláusula 1.1. b) do Contrato de Mútuo ou seja, o contrato de Afretamento celebrado entre o exequente e a executada P........) a “Plano de Contabilidade”, o que teria a virtualidade de “afastar” uma eventual “dependência” do financiamento face ao contrato de afretamento celebrado com o executado P........ para efeitos da consideração de eventuais benefícios da exequente para dedução ao valor de €8.673.795,00, desde logo quando o exequente, no requerimento executivo alega que não bá qualquer valor a deduzir, com o propósito de que a quantia exequenda inclua tal valor in totum.
E, tendo tal situação sido desmascarada pelos opoentes a fls. 646-651, veio o exequente juntar nova tradução, onde tal desconformidade (para mais da autoria de uma tradutora oficial e certificada por uma advogada- estagiária, perguntando-se com que base tal certificação foi emitida) é eliminada.
Ora, tal conduta da exequente não pode deixar de ser considerada como uma violação do dever de cooperação com o Tribunal na descoberta da verdade que sobre si recai e, como tal, condena-se o exequente no pagamento de uma multa que se fixa em 7 UCs, nos termos do art. 21°, n.° 2, do RCP.
Mais extraia certidão de fls. 354-614, 616-674 e 748-1002 e deste despacho e remeta ao MP para instauração de procedimento criminal quanto a um eventual crime de falsidade da tradução (e da certificação de documento que padece de falsidade intelectual).
Fls. 708:
Na medida em que os arts. 1.° a 95.° do requerimento de fls. 617e ss está intimamente ligado à factualidade alegada subsequentemente ao abrigo do contraditório, não existe qualquer nulidade, pelo que se indefere a sua arguição.
Custas a cargo do exequente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs, nos termos do art. 7.°, n.° 4, do RCP.
Tendo em conta que, ainda que ao arrepio daquilo que alegou no requerimento executivo, a exequente obteve, em 2000 e 2001, as receitas líquidas que refere no quadro de fls. 191-192, que, por si só, ultrapassam o valor de €8.673.795,00 (tomando desnecessária a apreciação da questão de saber se o COA trouxe benefícios ao nível das condições do financiamento), notifique as partes para, em 10 dias, se pronunciarem, querendo quanto à antecipação do mérito da causa, bem como a exequente para, atento o que se referiu supra, se pronunciar quanto a uma eventual condenação por litigância de má fé» .
35. Ao atuar nos termos indicados em 34., o Arguido procedeu de modo livre, consciente e voluntário, bem sabendo que atuava mais de três anos após a ocorrência da alegada falsificação que invocou e da prolação de três despachos judiciais no processo em causa, optando nesse contexto por uma postura autocrática, de afirmação de poder, utilizando uma linguagem desabrida, sugestiva de mancomunação entre Exequente, representada por Advogado, e Tradutora, ofensiva da honorabilidade de Advogado, bem sabendo ainda que ao assim proceder
violava os seus deveres profissionais de administrar a justiça e de correção.
*
A factualidade dada como provada resulta da integração conjunta e crítica, à luz das regras da experiência comum, da prova pessoal e documental indicada nas notas de rodapé 52 a 86 e do seu confronto com os documentos constantes do Anexo I, bem como dos CD’s juntos aos autos. Explicitando.
1. Prova Pessoal, registada em auto:
a) Declarações do Arguido (autos de fls. 166 a 171 e 307 a 309).
b) Depoimento das Testemunhas
1. Senhor Advogado EE (autos de fls. 67 a 69),
2. Senhora Advogada DD (auto de fls. 70 a 72),
3. Senhor Escrivão Auxiliar CC (auto de fls. 74 a 76 e
373 a 375);
2. Documental:
A constante dos autos, designadamente de fls. 8 a 13, 17 a 62, 84 a 132,141 a 147, 154, 155,173,174, 206, 207, 233 a 300, 302 a 305, 311, 312, 364, 365 e 369 dos autos, no seu confronto entre si e com os documentos constantes do Anexo I, nomeadamente dos constantes de fls. 11 a 14, 20 a 23, 27 a 31, 66 a 69 a 81, 93 a 96,116 a 119,124 a 127,154 a 158,172 a 180, 200 a 204, 221 a 224, 242 a 245, 270 a 272, 291 a 293, 302 a 308 a 311, 350 a 353 e 427 a 430 do Anexo A).
IV.
Do enquadramento jus-disciplinar dos factos apurados e sua qualificação.
1. Nos termos do artigo 81.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.° 21/85, de 30 de julho, «constituem infração disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais e os atos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções».
No que ora releva, a infração disciplinar do Juiz pressupõe, pois, uma violação dos seus deveres funcionais, por ação ou omissão, dolosa ou negligentemente.
Tais deveres encontram-se explicitados no referido Estatuto dos Magistrados Judiciais, bem como no regime legal com ele conexo na matéria, nomeadamente a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.° 35/2014, de 20 de junho, enquanto direito subsidiário, conforme artigo 131.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
Nos termos do artigo 3.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, «é função da magistratura judicial administrar a justiça de acordo com as fontes a que, segundo a lei, deva recorrer e fazer executar as suas decisões».
Na administração da justiça, na aplicação do direito ao caso concreto a ela submetido, importa que o Juiz, além do mais, tenha consideração pelos diversos intervenientes processuais, nomeadamente procedendo de forma razoável e com uma semântica adequada.
Em conformidade com o disposto no artigo 73.°. n.° 2. alínea h), da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, constitui dever do Juiz o de «correção».
Nos termos do n.° 10 daquela última referida norma legal, o dever de correção «consiste em tratar com respeito os utentes dos órgãos ou serviços e os restantes trabalhadores e superiores hierárquicos».
Tal dever de correção do Juiz justifica, além do mais, que o mesmo trate com respeito quem com ele se relaciona no exercício da função judicial, nomeadamente os Senhores Advogados que patrocinam as partes em processos judiciais e outros intervenientes nestes.
Nomeadamente, o dever de correção do Juiz impõe da parte deste uma postura de razoabilidade na sua relação com os mandatários judiciais das partes e outros intervenientes processuais.
2. Em matéria de pontualidade.
O dever de correção justifica que o Juiz espere mais do que cinco minutos pela presença dos convocados para um julgamento por ele designado.
É certo que aqueles estão sujeitos ao dever de pontualidade.
Contudo, justifica-se alguma tolerância quanto a tal pontualidade, uma tolerância razoável que não se compadece nunca com a circunstância de se iniciar e findar um julgamento nos cinco minutos subsequentes à hora agendada para o mesmo, sem a presença de qualquer interveniente processual, nomeadamente qualquer mandatário forense.
A administração da Justiça num Estado de Direito democrático material, que não formal, impõe uma postura relacional que considere os restantes sujeitos processuais, tanto mais que a grande urbe, como ........, causa em si mesmo atrasos, as formalidades de acesso ao Juízo de Execução ........ são só por si suscetíveis de provocar atrasos e os autos não tinham alçada para recurso.
Afigura-se que no caso a invocação do disposto no artigo 151.° do Código de Processo Civil carece de fundamento.
Desde logo, por o mesmo inserir-se na secção dos «atos de magistrados», sendo seu escopo regular a marcação e início de diligências por aqueles presididas.
Depois, porque da circunstância dos «mandatários judiciais» deverem «comunicar prontamente (...) quaisquer circunstâncias impeditivas da sua presença» não se retira que tal deva suceder até à hora da diligência designada, podendo o mesmo suceder depois desta sem que a comunicação não seja pronta, pois as «circunstâncias impeditivas» podem, elas próprias, justificar algum atraso na comunicação.
Finalmente, por o bom senso reclamar alguma tolerância na pontualidade dos Senhores Advogados e outros intervenientes processuais, o legislador, certo que aquela tolerância era próprio do Juiz, não indicou expressamente o tempo que este deve esperar por aqueles antes de iniciar a diligência judicial.
4. Da factualidade dada como provada decorre que o Arguido
Quanto ao indicado processo 2226/14........
As apuradas circunstâncias em que procedeu a julgamento revelam desconsideração pelas partes, seus advogados e testemunhas, bem como uma postura relacional irrazoável.
No que se refere ao referido processo 20853/08.........
O despacho/decisão de 22.11.2017 revela uma linguagem imprópria de Juiz e tece juízos de valor quanto à exequente e a uma Senhora Advogada Estagiária que se afiguram de todo em todo inadequados à função judicial.
5. Nestes termos, ao proceder nos termos que se deu como provados, tratando de atuações em dois processos judiciais distintos, cometeu o Arguido duas infrações disciplinares consubstanciadas na violação dos seus deveres profissionais de administrar a justiça e de correção, previstas e punidas pelos artigos 3.° e 82.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, bem como 73.°, n.°s 2, alínea h), e 10 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.° 35/2014, de 30 de junho, aplicável por força do disposto no artigo 131.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
V.
Da sanção disciplinar aplicável.
1. Na matéria relevam desde logo os artigos 91.° a 95.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
Considerando tais preceitos legais, por se entender que os factos em causa não constituem «faltas leves», nem implicam em si «quebra do prestigio exigível ao magistrado para que possa manter-se no meio em que exerce funções», afigura-se que deve ser aplicada uma pena de multa a cada uma das apontadas infrações disciplinares.
Do nosso ponto de vista in casu está-se perante situações em que o Arguido atua sem cuidar do cumprimento de deveres do cargo.
2. Concretizando cada uma daquelas penas.
Inexiste especial circunstância agravante ou atenuante propriamente dita nos termos e para os efeitos dos artigos 97.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, bem como 190.°, n.° 2, e 191.°, n.° 1, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.
Com efeito, não se descortinam «circunstâncias» «que diminuam acentuadamente a gravidade do facto ou a culpa do agente».
É certo que o Arguido tem mais de dez anos de exercício das funções de Juiz (facto 5. dado como provado) e tem duas notações de mérito nas três que lhe foram atribuídas (facto 6.1. dado como provado).
Contudo, tem também registo disciplinar (facto 9. dado como provado), o que obsta a que se possa entender que o Arguido apresenta um desempenho de «exemplar comportamento e zelo».
Nos termos dos artigos 87.° e 102.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, a pena de multa em causa deve ser fixada em dias, «no mínimo de 5 e no máximo de 90», sendo que a mesma «implica o desconto, no vencimento do magistrado, da importância correspondente ao número de dias aplicado».
Assim e considerando o disposto no artigo 96.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, levando em conta a relativa gravidade dos factos em causa, a apurada culpa do Arguido, a personalidade revelada pelo mesmo a partir dos factos apurados e a circunstância do Arguido ter averbado uma infração disciplinar no seu registo disciplinar, afigura-se de aplicar a sanção disciplinar de 20 dias de multa a cada uma das apontadas infrações disciplinares cometidas pelo Arguido.
3. Em sede de pena única.
Atento o disposto no artigo 99.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, por estar-se perante um concurso de infrações, importa aplicar ao Arguido uma «única pena».
Tudo ponderado, levando em conta as infrações disciplinares em causa, a circunstância do Arguido não ser primário e a apurada personalidade do Arguido revelada nos factos em causa, cometidos no exercício da sua profissão de Juiz, somos de parecer que a pena única de multa concreta deve situar-se no ponto médio da moldura da pena abstrata e, pois, fixar-se em 30 (trinta) dias de multa.
Atento o período de férias estivais em curso e por ser do meu conhecimento que o Ilustre Mandatário do Arguido faleceu há dias, decorrido aquele período, notifique o Arguido, por carta registada.
Após, remeta de imediato os autos ao Conselho, entregando-os em mão.
Lisboa, 30 de julho de 2018 – (fls 371 a 406).
6º - No dia 29-01-2019, em sessão Plenária do CSM, foi proferida deliberação a qual, depois de dar conta da tramitação do procedimento referido em 2º e de reproduzir as apreciações preliminares e os factos dados como provados no relatório referido em 5º, tinha o seguinte teor (fls 436 vº a 441):
III – Apreciação da responsabilidade disciplinar
1. Considerações Gerais
A Magistratura Judicial tem por função administrar a justiça, competindo-lhe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados – artigo 202.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e artigo 3.º, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais - Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, (EMJ).
Resulta do artigo 216.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa que os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões. Ressalvando, contudo, as exceções consignadas na lei.
O artigo 5.º, do EMJ, reafirma o mesmo princípio de irresponsabilidade mas logo estipula que «Só nos casos especialmente previstos na lei os magistrados judiciais podem ser sujeitos, em razão do exercício das suas funções, a responsabilidade civil, criminal ou disciplinar» (n. 3)
Ora, de acordo com o disposto no artigo 82.º EMJ, constituem infração disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais e os atos ou omissões da sua vida pública, ou que nela se repercutam, incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções.
Na realidade, apesar da consagração geral da irresponsabilidade, os juízes estão sujeitos a diversos deveres profissionais. Designadamente os previstos nos artigos 8.º e segs. do EMJ, bem como os que, atualmente, resultam da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas - Lei n.º 35/2014, de 20 de junho (LGTFP), de aplicação subsidiária.
Os elementos objetivos previstos no citado artigo 82.º traduzem-se, pois;
- nos atos violadores dos deveres profissionais dos magistrados judiciais, sejam os enumerados no EMJ, sejam os enumerados na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas;
- ou nos atos ou omissões da vida pública ou que nela se repercutam, incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício da função.
O artigo 82.º do EMJ não tem, assim, de enumerar os deveres profissionais a que se refere, mas todos estão previstos na lei; não tem de dizer a que atos ou omissões incompatíveis com a dignidade se reporta, pois são todos os que violem o bem jurídico que se quis proteger.
2. Em concreto, é imputada ao Ex.mo senhor Juiz a violação dos deveres profissionais de administrar a justiça e de correção.
O dever de administrar a justiça resulta dos artigos 202.º, n.os 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e 3.º do EMJ, onde se refere que «é função da magistratura judicial administrar a justiça de acordo com as fontes a que, segundo a lei, deva recorrer e fazer executar as suas decisões». Trata-se de um dever especial, inerente à função específica dos juízes, que se enquadrará na previsão do dever geral de prossecução do interesse público previsto no art.º 73.º, n.º 2, al. a) e n.º 3 da LGTFP.
Este dever de prossecução do interesse público na justiça consiste na sua defesa, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Com as necessárias adaptações decorrentes do estatuto de soberania que é constitucionalmente deferido aos Tribunais, o dever de correção consiste em tratar com respeito os sujeitos e intervenientes processuais, outros magistrados, advogados, outros profissionais forenses, funcionários judiciais e público em geral (artigo 73º, nº 10 do LGTFP). Ou seja, nas suas relações profissionais, o Juiz deve usar urbanidade, de respeito e polidez.
No presente caso, atentos os factos acima descritos, assinalam-se duas ordens de condutas distintas, praticadas, essencialmente, em 2 processos que o Ex.mo Senhor Juiz tinha a seu cargo.
Por um lado, as condutas registadas no processo 2226/14......., em que procedeu a julgamento sem a presença dos restantes intervenientes processuais convocados (advogados e testemunha).
Por outro, a conduta respeitante ao despacho proferido no processo 20853/08........, designadamente quanto à linguagem usada e aos juízos de valor proferidos.
Quanto à segunda das condutas imputadas (ou seja, ao uso de linguagem imprópria de Juiz e de juízos de valor quanto à exequente e a uma Senhora Advogada Estagiária que se afiguram de todo em todo inadequados à função judicial) impõem-se algumas considerações.
Como já acima referimos, os juízes estão sujeitos ao dever de correção. E a violação de tal dever constitui – verificadas as restantes condições – infração disciplinar.
Contudo, entendemos que, atendendo à especificidade de funções e aos interesses em conflito, em situações de litígio, apenas podem constituir a violação de tal dever a violação evidente e despropositada dos deveres de urbanidade e respeito devidos aos sujeitos e intervenientes processuais, outros magistrados, advogados, outros profissionais forenses, funcionários judiciais e público em geral.
Está em causa um despacho judicial em que o Ex.mo senhor Juiz, no âmbito dos seus poderes de direção do processo, decide, em síntese, condenar o exequente no pagamento de uma multa por violação do dever de cooperação com o Tribunal na descoberta da verdade; e determinar a extração e envio de uma certidão ao Ministério Público para instauração de procedimento criminal quanto a um eventual crime.
Estas duas decisões surgem, contudo, após o cumprimento do dever legal de fundamentação. No caso, o Ex.mo Senhor Juiz, justifica-as pelas circunstâncias que expressou. Em concreto: que a exequente juntou aos autos uma tradução do contrato de mútuo celebrado que apresenta desconformidades face ao documento original em inglês. Explicita, ainda, que tal desconformidade poderia conduzir à alteração do valor em discussão no processo.
Não obstante, o Ex.mo Senhor Juiz, a invés de indicar, unicamente, tais fundamentos, escreveu que «de uma forma absolutamente lamentável, se faz corresponder a expressão COA (Contract of Affreightment – tal como definido na cláusula 1.1. b) do Contrato de Mútuo –, ou seja, o contrato de Afretamento celebrado entre o exequente e a executada P........) a “Plano de Contabilidade”, o que teria a virtualidade de (…)».
E ainda que «tendo tal situação sido desmascarada pelos opoentes a fls. 646-651, veio o exequente juntar nova tradução, onde tal desconformidade (para mais da autoria de uma tradutora oficial e certificada por uma advogada-estagiária, perguntando-se com que base tal certificação foi emitida) é eliminada».
Concordamos que as expressões a negrito («de uma forma absolutamente lamentável» e «desmascarada») constituem linguagem «desabrida, sugestiva de mancomunação». Entendemos que tais expressões seriam evitáveis e supérfluas à própria decisão. Contudo, entendemos que, ainda assim, não constituem violação do dever de correção para efeitos disciplinares. Especialmente porque o Ex.mo senhor Juiz entendeu existirem indícios da prática de crime – e participou-o no cumprimento de obrigação legal – bem como de conduta que revelava má fé processual.
Não nos cabe, no âmbito deste processo disciplinar, apurar da justeza destas duas decisões. No entanto, tais decisões, só por si, ou seja, independentemente da fundamentação, representam juízos de valor negativos. E mal se compreenderia que os juízes não os pudessem emitir visto que decorrem de obrigações legais.
As expressões – e juízos – referidas não encerram considerações simpáticas ou agradáveis para os respetivos recetores mas, ressalvado o respeito por opinião contrária, não assumem a gravidade suficiente, dentro do contexto em que foram proferidas, para serem consideradas infração disciplinar. Relevando, unicamente, na avaliação ao serviço a que o Ex.mo Senhor Juiz será, necessariamente, sujeito.
Quanto à segunda das infrações imputadas, ou seja, a registada no processo 2226/14......., em que procedeu a julgamento sem a presença dos restantes intervenientes processuais convocados (advogados e testemunha).
Vimos já que é função dos juízes administrar a justiça. Que é função dos juízes a sua defesa, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Ora, em concreto, apurou-se que o Ex.mo senhor Juiz (ao não aguardar pelos intervenientes processuais durante um prazo razoável, bem como ter ignorado o requerimento conjunto apresentado) agiu com o propósito de não despender tempo com a diligência de julgamento no âmbito do processo n.º 2226/14....... e tornar, assim, o mais simples possível a decisão de mérito da causa. Apesar de bem saber que a circulação na cidade ........ causa por vezes alguns atrasos, tal como sucede com as formalidades de acesso ao Juízo de Execução ......... Sabia igualmente que os indicados autos de execução n.º 2226/14....... não tinham alçada para recurso.
O apuramento de tais factos – e que não se resumem ao facto de ter iniciado o julgamento passados poucos minutos após a hora designada – resulta evidente das restantes condutas apuradas nos processos analisados pelo Ex.mo senhor inspetor judicial, instrutor.
Pois, como bem refere (são nossos os destaques) «A partir do módulo “Histórico da Gestão Processual”, da listagem de “Documentos Partilhados Devolvidos”, extraíram-se do Citius os elementos pretendidos, os quais constituem o Anexo A.
» Da análise da documentação aí constante decorre que uma situação idêntica à seguida no referido processo n.º 2226/14....... ocorreu tão-só no processo n.º 22020/11......., oposição à execução comum (art. 813.º CPC), com o valor processual de €2788,41, numa audiência de discussão e julgamento realizada em 18.10.2016.
“ Apenas naquelas duas situações o julgamento iniciou-se e findou antes de decorrerem mais de 10 minutos da hora agendada para o seu início, sem a presença de qualquer interveniente processual, nomeadamente de qualquer mandatário das partes.
» Em ambos os casos inexistia alçada para recurso.
» Da análise da documentação constante do Anexo A decorre que a audiência prévia, a tentativa de conciliação ou o julgamento começaram antes de decorrerem 10 minutos da hora designada para o seu início, sem a presença de um dos mandatários judiciais das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, findando em todo o caso 14 minutos ou mais depois da hora designada para o seu início, nos 10 processos seguintes com os números:
“ (…).
» Por outro lado, à semelhança dos 10 processos indicados nos artigos 17. a 26. da acusação, da documentação constante do Anexo A, resulta que o Arguido aguardou entre 10 e 30 minutos pela presença de mandatário forense ausente, sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, nos 12 processos seguintes, com os números:
» (…).»
Tais factos permitem a conclusão da ocorrência dos factos acima descritos, referentes à intenção do Ex.mo senhor Juiz em termos exemplarmente descritos pelo Ex.mo senhor inspetor judicial instrutor (são igualmente nossos os destaques):
«Resulta, pois, evidente, a ausência de critério uniforme por parte do Ex.mo Senhor Juiz.
» Conforme já ficou demonstrado, o Arguido não adotou uma postura uniforme quando no início de uma diligência judicial não estavam presentes os respetivos mandatários forenses e estes não informavam o Tribunal do seu atraso ou ausência.
» Nos processos 20239/07........., 960/14....... e 271/14........ esperou entre 15 e 30 minutos pela chegada de mandatário forense.
» Relativamente ao referido processo n.º 2226/14......., em causa nestes autos, o Arguido iniciou e findou o julgamento antes de decorrerem 10 minutos sobre a hora agendada para o respetivo início, na ausência de qualquer interveniente processual, nomeadamente dos respetivos mandatários judiciais.
» Igual procedimento sucedeu no processo n.º 22020/11........
» De comum, o processo n.º 2226/14....... e o processo n.º 22020/11....... têm o facto do valor da causa não permitir a interposição de recurso ordinário.
» Diversamente, nos processos n.ºs 20239/07........., 960/14....... e 271/14........, cujos valores da causa permitem a interposição de recurso ordinário, embora no início das respetivas diligências judiciais também ninguém se encontrasse presente, o Arguido aguardou entre 15 e 30 minutos pela chegada de mandatário forense.
» Nestes termos, em função de tais elementos, à luz das regras da experiência comum e da lógica, a nossa convicção é que o Arguido agiu no processo n.º 2226/14....... em causa nestes autos, conforme indicado, bem sabendo que o mesmo não tinha alçada de recurso e por forma a evitar a realização de julgamento e o tempo e trabalho acrescido dele decorrente, tornando assim o mais simples possível o desfecho do caso, com decisões de facto e de direito assaz simplificadas.
» Não fosse esse o propósito do Arguido e por certo teria esperado pelo menos 15 minutos pela chegada dos Advogados das partes, tal como o fez em situações similares.»
Como bem refere o Ex.mo senhor inspetor judicial instrutor «A administração da Justiça num Estado de Direito democrático material, que não formal, impõe uma postura relacional que considere os restantes sujeitos processuais, tanto mais que a grande urbe, como ........, causa em si mesmo atrasos, as formalidades de acesso ao Juízo de Execução ........ são só por si suscetíveis de provocar atrasos e os autos não tinham alçada para recurso.
» Afigura-se que no caso a invocação do disposto no artigo 151.º do Código de Processo Civil carece de fundamento.
» Desde logo, por o mesmo inserir-se na secção dos “atos de magistrados”, sendo seu escopo regular a marcação e início de diligências por aqueles presididas.
» Depois, porque da circunstância dos “mandatários judiciais” deverem “comunicar prontamente (…) quaisquer circunstâncias impeditivas da sua presença” não se retira que tal deva suceder até à hora da diligência designada, podendo o mesmo suceder depois desta sem que a comunicação não seja pronta, pois as “circunstâncias impeditivas” podem, elas próprias, justificar algum atraso na comunicação.
» Finalmente, por o bom senso reclamar alguma tolerância na pontualidade dos Senhores Advogados e outros intervenientes processuais, o legislador, certo que aquela tolerância era próprio do Juiz, não indicou expressamente o tempo que este deve esperar por aqueles antes de iniciar a diligência judicial.»
Tal conduta com as finalidades referidas (evitar a realização de julgamento e o tempo e trabalho acrescido dele decorrente, tornando assim o mais simples possível o desfecho do caso, com decisões de facto e de direito assaz simplificadas) em nada se pode confundir com a administração da justiça. Ou com o – invocado - exercício do poder jurisdicional conferido aos juízes. É, precisamente, o oposto. Com a sua conduta, o Ex.mo Senhor Juiz subtraiu às partes a reclamada e justificada análise ponderada do pleito, com processo justo, que oportunamente haviam submetido a julgamento.
Cometeu, pois, a infração imputada. Contudo sem que esteja em causa, e ressalvado o respeito devido por opinião contrária, o dever de correção. Embora mereçam censura, que não disciplinar, os termos utilizados no despacho proferido em 17.10.2017, e descrito em 15 dos factos provados. A pontualidade é um valor a preservar na administração da justiça. A razoabilidade na apreciação da pontualidade – e de outras circunstâncias - é, igualmente, uma virtude que tem que ser exigida aos juízes. Neste caso, contudo, a falta de razoabilidade do Ex.mo senhor Juiz manifesta-se mais, a nosso ver, no dever de administração da justiça, como já acima referimos, que, propriamente, com o dever de correção, que demandaria alguma tolerância para com os atrasos dos restantes sujeitos, ainda que não o comuniquem, como foi o caso.
Em conclusão, o Ex.mo senhor Juiz cometeu uma infração disciplinar por violação do dever de administrar a justiça.
3. Da pena
A determinação da medida concreta da pena a aplicar ao Ex.mo senhor Juiz deverá obedecer nomeadamente aos critérios consignados no artigo 96.º do EMJ (gravidade do facto, culpa do agente, personalidade e circunstâncias que deponham a seu favor ou contra do agente infrator).
De acordo com o artigo 85.º, n.º 1 do EMJ, os magistrados judiciais estão sujeitos às seguintes penas:
a) Advertência;
b) Multa;
c) Transferência;
d) Suspensão de exercício;
e) Inatividade;
f) Aposentação compulsiva;
g) Demissão.
Nos termos do artigo 91.º do EMJ, a pena de advertência é aplicável a faltas leves que não devam passar sem reparo.
De harmonia com o disposto no artigo 92.° do EMJ, a pena de multa é aplicável a casos de negligência ou desinteresse pelo cumprimento dos deveres do cargo. A pena de multa é fixada em dias, no mínimo de cinco e no máximo de noventa – artigo 87.° do referido diploma.
Por outro lado, dispõe o artigo 94.º do EMJ que as penas de suspensão de exercício e de inatividade são aplicáveis nomeadamente nos casos de negligência grave ou de grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais, salvo se a condenação aplicar pena de demissão.
Na determinação da medida da pena, como já referimos, atende-se à gravidade do facto, à culpa do agente, à sua personalidade e às circunstâncias que deponham a seu favor ou contra ele – artigo 96.° do EMJ.
Na escolha do tipo de pena, consideramos que a infração praticada pelo Ex.mo senhor Juiz revela, como já referimos, desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais.
Nesta medida, consideramos, também, que a conduta do Ex.mo senhor Juiz se subsume à previsão do disposto no artigo 92.º, do EMJ. Ou seja, no caso, na pena de multa. A qual, nos termos do artigo 87.º do mesmo Estatuto, é fixada em dias, no mínimo de 5 e no máximo de 90.
Não se verificam, no caso, quaisquer fundamentos para a atenuação especial, já que dos factos não se pode concluir que existam circunstâncias anteriores ou posteriores à infração, ou contemporâneas dela, que diminuam acentuadamente a gravidade do facto ou a culpa do agente (artigo 97º do EMJ).
Como bem se refere no relatório final, o Ex.mo senhor Juiz «tem mais de dez anos de exercício das funções de Juiz (facto 5. dado como provado) e tem duas notações de mérito nas três que lhe foram atribuídas (facto 6.1. dado como provado).
Contudo, tem também registo disciplinar (facto 9. dado como provado), o que obsta a que se possa entender que o Arguido apresenta um desempenho de “exemplar comportamento e zelo”.»
Tudo sopesado concluímos que a pena a aplicar ao caso concreto deve ser fixada em 20 (vinte) dias de multa.
Por último, tendo presente quer a condenação anterior, quer a ausência de espírito crítico e verdadeira vontade de mudança de atitude do Ex.mo senhor Juiz, como resulta da defesa apresentada, em que as condutas são justificadas a coberto da independência da soberana função de julgar, resulta que a simples censura e a ameaça da pena não são suficientes para realizar as finalidades da punição. Pelo que, no caso, torna-se necessário o cumprimento da pena.
IV.
Por todo o exposto, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura delibera que o Exmo. Juiz de Direito AA, cometeu uma infração disciplinar, consubstanciada na violação do dever de administração da justiça, nos termos dos artigos 3.º, n.º 1, 81.º, 82.º, 85.º, n.º 1, b), 87.º, 92.º, 96.º, do Estatuto dos Magistrados Judiciais do Estatuto dos Magistrados Judiciais e sanciona-se o mesmo em 20 (vinte) dias de multa.
........, 29.1.2019” – (fls 424 a 441).
7º - A deliberação referida em 6º foi notificada ao autor a 04-02-2019 (fls. 448).
8º - A 06.03.2019 o autor impugnou a deliberação referida em 6º junto do Supremo Tribunal de Justiça, dando origem ao processo n.º 12/19…...
9º - No âmbito do processo referido em 8º, foi a 05-02-2020 proferido acórdão (fls 451 a 502) no qual, depois de reproduzir a deliberação do CSM se deixaram consignados o seguinte excurso fundamentador e segmento dispositivo:
“3. Apreciação
Como já se disse, suscitou o A. na sua petição ou requerimento inicial os seguintes vícios da deliberação impugnada:
I – Violação do princípio non bis in idem
II – Vício de insuficiência da matéria de facto e erro na apreciação da prova;
III – Violação do princípio da independência do Juiz e violação de lei
IV – Erro sobre os pressupostos jurídico-factuais (não verificação do elemento objectivo de ilícito disciplinar)
V - Violação do princípio da proporcionalidade. Atenuação especial da pena
I - Violação do princípio non bis in idem
Muito embora o não invoque nas alegações, afirma o A. no seu requerimento inicial que ocorreu violação do princípio non bis in idem por se fazer constar o registo de um processo que foi arquivado por irrelevância disciplinar.
Defende o recorrido que não ocorreu qualquer violação do citado princípio.
De acordo com o artigo 131.º do EMJ, «são aplicáveis subsidiariamente, em matéria disciplinar, as normas do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional, Local, do Código Penal, bem como do Código Processo Penal, e diplomas complementares».
Assim é aplicável ao presente processo disciplinar, subsidiariamente os princípios previstos no Código Processo Penal e na Constituição da República Portuguesa (doravante designada pela CRP) relativos ao processo penal.
De entre os vários princípios constitucionais, em matéria processual penal, destaca-se o princípio non bis in idem – previsto no art. 29.º, n.º 5 da CRP. Dispõe este preceito que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
O princípio non bis in idem tem acolhimento constitucional – artigo 29.º da CRP - artigo esse integrado no capítulo dos «direitos, liberdades e garantias pessoais». Daí que se deva considerar fundamental a garantia conferida aos cidadãos de não sofrerem uma dupla perseguição pelos mesmos factos.
O princípio tem por ratio, sublinha Henrique Salinas, a “garantia da paz jurídica do cidadão, traduzindo-se numa limitação do ius puniendi estatal, ao impedir a repetição de um processo contra a mesma pessoa”.
Segundo J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, o princípio “comporta duas dimensões: (a) como direito subjetivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objetivo (dimensão objetivado direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto (…). A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infração, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime”.
E prosseguem os citados autores:
“É problemático saber em que medida é que os princípios consagrados neste artigo extensíveis a outros domínios sancionatórios. (…) há-de, porém, entender-se que esses princípios devem, na parte pertinente, valer por analogia para os demais domínios sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação social e o ilícito disciplinar”.
O princípio non bis in idem, segundo o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, constitucionalmente previsto para a lei criminal, vale, no essencial, para os demais domínios sancionatórios, designadamente no âmbito do direito disciplinar.
Como entende Américo Taipa de Carvalho, em anotação ao artigo 29.º, da Constituição, “(…) embora o art. 29.º se refira somente à lei criminal, deve considerar-se que parte destes princípios se aplicam também aos outros dois ramos do chamado direito público sancionatório: o direito de mera ordenação social e o direito disciplinar (Lei n.º 58/08 – Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas)”.
Também o acórdão desta Secção do Contencioso de 23-06-2016, proferido no processo n.º 16/14.0YFLSB (Relator: Cons. Fernando Bento) se pronuncia no sentido de que o princípio em apreço proíbe que na actividade sancionatória se proceda a uma dupla valoração do mesmo substrato material. As fundamentais razões dessa proibição residem, por um lado, na paz jurídica que ao arguido se deve garantir finda a perseguição de que foi alvo e, por outro lado, no interesse em evitar pronúncias díspares sobre factos unitários. E, para que a referida proibição assuma o devido alcance, a doutrina fá-la acompanhar do que designa por um mandado de esgotante apreciação de toda a matéria cognoscível.
As fundamentais razões dessa proibição residem, por um lado, na paz jurídica que ao arguido se deve garantir finda a perseguição de que foi alvo e, por outro lado, no interesse em evitar pronúncias díspares sobre factos unitários. E, para que a referida proibição assuma o devido alcance, a doutrina fá-la acompanhar do que designa por um mandado de esgotante apreciação de toda a matéria cognoscível.
Posto isto, vejamos o caso em apreço.
No caso concreto não se verifica qualquer violação do princípio non bis in idem, na medida em que os factos provados em 6.1, na deliberação impugnada, apenas são a transcrição da pena aplicada (pena de advertência) e de alguns dos factos dados como provados na deliberação do Plenário do CSM ... (Processo n.º ...), a qual se encontra junta a fls. 45 a 62 do processo administrativo (Vol. I Apenso a estes autos).
O teor do facto constante do facto provado 6.1. da deliberação impugnada: «Na deliberação do CSM datada de 15.07.2013, relativa ao Processo 2013-545-D2 que apreciou queixa apresentada por Advogada, determinado o arquivamento por irrelevância disciplinar, justificou, embora, dirigir “… recomendação ao Exmo Senhor Juiz no sentido de ter mais cuidado na adjetivação das suas decisões”», consta como facto provado n.º 29 daquela deliberação do Plenário do CSM de 15-09-2015.
Assim verifica-se que a deliberação impugnada apenas se limitou a transcrever alguma da factualidade dada como provada naquela deliberação, onde se incluía aquele facto provado n.º 29, com vista a enquadrar os factos que estiveram na origem da aplicação da pena de advertência.
Veja-se nesse sentido o decidido no acórdão da Secção do Contencioso deste Supremo Tribunal de 30-03-2017, proferido no Proc. n.º 62/16.9YFLSB (Relator: Cons. Tavares de Paiva:
«VIII - Não viola qualquer normativo ou princípio que reja a atividade administrativa, a deliberação classificativa que narra em moldes objetivos uma deliberação de arquivamento de processo disciplinar do COJ.»
Desta forma, a deliberação impugnada apenas transcreveu um facto provado da deliberação que aplicou ao arguido uma pena de advertência, não trazendo, fora deste contexto, tal facto à colação.
Conforme bem se refere na deliberação impugnada «ao indicar aqui tal factualidade, não se pretende, como é óbvio, sancionar disciplinarmente a conduta aí em causa, mas tão só integrar factualmente a sanção disciplinar aplicada no referido procedimento disciplinar n.º .....389».
Inexiste desde modo, qualquer dupla valoração do mesmo substrato material.
Isto é, em momento algum da deliberação impugnada se faz uma apreciação jurídica daquele facto (deliberação do CSM datada de 15-07-2013) e/ou se retira alguma consequência ou ilação daquele facto. A deliberação recorrida não efetuou qualquer interpretação daquele facto.
O que foi considerado como antecedente/registo disciplinar foi apenas a pena de advertência aplicada pela deliberação do Plenário do CSM de 15-09-2015, no âmbito da fundamentação da determinação e medida da pena aplicada nestes autos.
O registo/antecedente disciplinar ou a sua ausência, nos termos do artigo 96.º do EMJ, apenas são ponderados como circunstâncias que depõem a favor ou contra o arguido. Esta ponderação em nada se confunde com a violação do princípio non bis in idem.
Por tudo o que atrás se expôs, inexiste qualquer violação do princípio non bis in idem.
II - Vício de insuficiência da matéria de facto e erro manifesto na apreciação da prova
Sustenta o A. na sua petição - artigo 41.º - que a matéria de facto dada como provada não retrata corretamente a realidade e/ou é manifestamente insuficiente.
Entende o CSM que a matéria de facto não padece de qualquer vício de erro na apreciação da prova e que inexiste qualquer insuficiência da matéria de facto.
Vejamos então se ocorre insuficiência da matéria de facto fixada e/ou contradições na decisão sobre a matéria de facto, com relevância para a correta e rigorosa decisão jurídica da causa.
Primeiro importa atentar o que nos diz o EMJ relativamente ao procedimento do processo disciplinar e à fixação da matéria de facto relevante no processo, sendo que se aplica supletivamente a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20-06, face ao disposto no artigo 131.º do EMJ.
O artigo 117.º do EMJ, sob a epígrafe «Acusação», dispõe que:
«1 - Concluída a instrução e junto o registo disciplinar do arguido, o instrutor deduz acusação no prazo de dez dias, articulando discriminadamente os factos constitutivos da infração disciplinar e os que integram circunstâncias agravantes ou atenuantes, que repute indiciados, indicando os preceitos legais no caso aplicáveis.
» 2 - Se não se indiciarem suficientemente factos constitutivos da infração ou da responsabilidade do arguido, ou o procedimento disciplinar se encontrar extinto, o instrutor elabora em dez dias o seu relatório, seguindo-se os demais termos aplicáveis.»
Por seu lado, o artigo 118.º do EMJ, sobre o direito de resposta do arguido, estabelece que:
«1 - É entregue ao arguido ou remetida pelo correio, sob registo, com aviso de receção, cópia da acusação, fixando-se um prazo entre 10 e 30 dias para apresentação da defesa.»
Os artigos 119.º e 120.º do EMJ versam sobre a «nomeação do defensor» e sobre o «exame do processo», respetivamente.
O artigo 121.º do EMJ, sobre a defesa do arguido, dispõe que:
«1 - Com a defesa, o arguido pode indicar testemunhas, juntar documentos ou requerer diligências.
» 2 - Não podem ser oferecidas mais de três testemunhas a cada facto.»
O artigo 122.º .do mesmo Estatuto, versa sobre o «Relatório», dispondo que:
«Terminada a produção da prova, o instrutor elabora, no prazo de quinze dias, um relatório, do qual devem constar os factos cuja existência considere provada, a sua qualificação e a pena aplicável».
E, por fim, estabelece o artigo 123.º do EMJ, sob a epígrafe «Notificação de decisão», que:
«A decisão final, acompanhada de cópia do relatório a que se refere o artigo anterior, é notificada ao arguido com observância do disposto no artigo 118.º.»
Importa também dar nota do que a LTFP estipula no seu artigo 220.º, sob a epígrafe «Decisão»:
«1 - Junto o parecer referido no n.º 4 do artigo anterior, ou decorrido o prazo para o efeito, sendo o caso, a entidade competente analisa o processo, concordando ou não com as conclusões do relatório final, podendo ordenar novas diligências, a realizar no prazo que para tal estabeleça.
» 2 - Antes da decisão, a entidade competente pode solicitar ou determinar a emissão, no prazo de 10 dias, de parecer por parte do superior hierárquico do trabalhador ou de unidades orgânicas do órgão ou serviço a que o mesmo pertença.
» 3 - O despacho que ordene a realização de novas diligências ou que solicite a emissão de parecer é proferido no prazo máximo de 30 dias, a contar da data da receção do processo.
» 4 - A decisão do procedimento é sempre fundamentada quando não concordante com a proposta formulada no relatório final do instrutor, sendo proferida no prazo máximo de 30 dias, a contar das seguintes datas:
» a) Da receção do processo, quando a entidade competente para punir concorde com as conclusões do relatório final;
» b) Do termo do prazo que marque, quando ordene novas diligências;
» c) Do termo do prazo fixado para emissão de parecer.
» 5 - Na decisão não podem ser invocados factos não constantes da acusação nem referidos na resposta do trabalhador, exceto quando excluam, dirimam ou atenuem a sua responsabilidade disciplinar.
» 6 - O incumprimento dos prazos referidos nos n.os 3 e 4 determina a caducidade do direito de aplicar a sanção».
O n.º 5 do artigo 220.º, aludindo ao princípio da vinculação temática constitui uma concretização, no mesmo passo, dos princípios do dispositivo e da aquisição processual, determinando que na decisão final não podem ser invocados factos não constantes da acusação nem referidas na resposta do trabalhador, exceto quando excluam, dirimam ou atenuem a sua responsabilidade disciplinar.
Concluiu-se, face à dinâmica processual de um processo disciplinar, culminando numa decisão final (artigo 220.º, n.º 5, da LTFP), que na fase de instrução, impõe-se apurar e emitir pronúncia quanto aos factos constantes da acusação, aos factos apresentados pela defesa na sua resposta e todos aqueles factos que vêm ao conhecimento do processo quando excluam, dirimam ou atenuem a responsabilidade disciplinar.
O A. apresentou resposta/defesa à acusação (cfr fls. 332 a 339 dos autos apensos) e já na mesma defendia, o que em sede de recurso vem reafirmar, que a matéria de facto não retrata corretamente a realidade (ou seja, incorre em erro na apreciação da prova) e/ou é manifestamente insuficiente.
Alegou o A. na sua resposta à acusação, reiterando-o na presente ação, que o procedimento adotado no caso do Proc. n.º 2226/14....... é o mesmo que sempre adotou em todos os casos - independentemente de a causa admitir recurso ou não – isto é, iniciar as diligências na hora designada para o seu início, se os mandatários não prevenirem o tribunal de que estavam atrasados, como se pode concluir através da leitura das diligências por ele presididas, nomeadamente nos processos nºs 960/14....... e 85/07......, sendo que a factualidade provada não espelha o que acontece na realidade.
Inclusive na defesa apresentada, requereu o A. como prova documental a junção aos autos de:
- certidão de ata da audiência de julgamento do proc. n.º 960/14......., para prova dos factos constantes do n.º 19 da defesa apresentada;
- certidão da ata de audiência de julgamento do proc. n.º 85/07...... (sessão de 02-02-2017) para prova dos factos constantes do n.º 19 da defesa apresentada;
- certidões das atas de todas as demais diligências realizadas pelo recorrente entre 07-09-2016 e 12-12-2017 para prova dos factos n.os 16 a 18 e 24 da defesa apresentada.
Se atentarmos ao teor dos factos constantes nos n.os 16 a 18, 19 e 24 da resposta à acusação apresentada pelo arguido, o mesmo defende que sempre adotou o mesmo critério/entendimento – só esperar pelos mandatários e intervenientes processuais quando avisavam o atraso – quanto a todas as diligências, independentemente de a decisão ou despacho serem ou não passíveis de recurso.
Vemos assim que em sede de defesa o arguido apresenta como factos a ponderar e apreciar (ainda que genericamente alegados) todas as diligências por si presididas, nomeadamente nos processos n.os 960/14....... e 85/07...... (sessão de 02-02-2017), com vista a fazer prova de que o seu critério de atuação em todas as diligências era uniforme, independentemente de serem ou não as decisões passíveis de recurso.
Desta forma, todos os factos narrados ou descritos relativos a essas diligências judiciais, podem (e devem) ser conhecidos e trazidos à matéria de facto por serem factos referidos pela defesa.
Posto isto, vejamos se assiste razão ao A., ou seja, se existe insuficiência da matéria de facto provada por ordem a obter uma rigorosa decisão jurídica da causa (tal qual a mesma foi apreciada e decidida pela deliberação recorrida).
Recordemos os factos que constam como provados na deliberação impugnada, quanto ao proc. n.º 2226/14.......:
7. No âmbito dos autos de execução que com o n.° 2226/14....... corriam termos na então Instância Central de Execução ......., lugar de Juiz ..., em 16.09.2015 a ali executada, V........... - Comércio de Automóveis, Lda., instaurou Embargos de Executado contra a ali exequente, M.......... - S............., Lda., sendo que o respetivo valor do processo cifrava-se em € 1132,76 .
8. No âmbito daqueles autos de Embargos, em 13.09.2017, o Arguido designou «para realização da audiência de discussão e julgamento (...) o dia 12/10/2017, pelas 10.30 horas sem prejuízo do disposto no artigo 151º do CPC".
9. No âmbito dos mesmos autos de Embargo, em 12.10.2017, pelas 10.30 horas, o Senhor Escrivão Auxiliar CC procedeu à chamada, tendo verificado que não se encontrava ninguém presente, o que constatou igualmente cerca das 10.34 horas, após o que o Arguido abriu a audiência pelas 10.35 horas e proferiu o seguinte despacho: «Tendo em conta que foi dado cumprimento ao disposto no art. 151.° do Código de Processo Civil e que não foi comunicado qualquer impedimento por parte dos Ilustres Mandatários em comparecer na presente audiência e sendo também certo que não se encontra presente qualquer testemunha não se produzirá qualquer prova e determina-se que, oportunamente, sejam os autos conclusos para prolação de sentença».
10. As salas de audiências do Juízo de Execução ........ situam-se no … piso do Edifício … do chamado........., sendo que o respetivo acesso implica a prévia identificação de pessoas, por seguranças, no hall de entrada daquele edifício, situado no piso 0 do mesmo edifício .
11. Na sequência do referido em 8., no apontado dia 12.10.2017, após as 10.35 horas e não depois das 10.40 horas, os Senhores Advogados DD e EE, enquanto causídicos das partes, bem como testemunhas indicadas no âmbito do mencionado processo de Embargos de Executado, chegaram ao referido piso … onde se situam as salas de julgamento do Juízo de Execução ........ .
12. Entretanto, apercebendo-se que já havia sido realizado julgamento no âmbito dos referidos autos de Embargos de Executado, os Senhores Advogados DD e EE, enquanto causídicos das partes, procuraram falar com o Arguido, o que não lograram.
Igualmente do âmbito do referido processo de Embargos de Executado, em 12.10.2017, pelas 16.36 horas, a Senhora Advogada DD, em nome da Embargada/Exequente e da Embargante/Executada, referindo que o requerimento será também subscrito pelo Senhor Advogado EE, apresentou requerimento na qual referiu, além do mais, que os mandatários das partes e as testemunhas, «em virtude dos procedimentos de identificação implementados à entrada do Tribunal, apenas às 10h37 subiram ao … piso, onde se situa a secretaria e a sala de audiências», tendo constatado pouco depois que o julgamento já tinha ocorrido, termos em que concluíram requerendo o agendamento de «nova data para realização de audiência de discussão e julgamento» .
14. Em 13.10.2017, o Senhor Advogado da Embargante/Executada apresentou declaração eletrónica de adesão do requerimento indicado em 13 .
15. Na sequência do indicado em 13. e 14., em 17.10.2017, o Arguido proferiu despacho do seguinte teor:
«Fls. 74:
Indeferido por manifesta falta de fundamento legal, recordando-se aos requerentes que “10.30” é a hora para iniciar o julgamento e não a hora para chegar ao Tribunal.
Custas do incidente anómalo a cargo da opoente e exequente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs a cargo de cada uma, nos termos do art. 7.°, n.°s 4 e 8, do RCP.» 16.
Em 16.11.2017, o Arguido proferiu sentença nos referidos autos de Embargos de Executado, os quais julgou improcedentes, sendo que a respetiva notificação às partes foi elaborada naquela mesma data, sem que entretanto as mesmas tenham requerido algo.
Diversamente.
17. No processo n.° 20239/07........., Embargos de Executado, cujo valor da causa cifrava-se em €12.912,39, designada tentativa de conciliação para 01.02.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava ninguém, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse até às 11 horas pela comparência das partes.
18. No processo n.° 960/14......., Embargos de Executado, cujo valor da causa cifrava-se em € 21 053,63, designada tentativa de conciliação para 21.03.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava ninguém, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse 15/20 minutos pela comparência dos convocados.
19. No processo n.° 271/14........, Embargos de Executado, cujo valor da causa cifrava-se em €1596.640,50, designada tentativa de conciliação para 17.10.2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava ninguém, o Arguido, que presidiu à diligência, ordenou que se aguardasse por 20 minutos pela comparência das partes.
20. Ao proceder da forma descrita, nomeadamente em 9., 15. e 16., o Arguido agiu de modo livre, consciente e voluntário, com o propósito de não despender tempo com a diligência de julgamento e tornar assim o mais simples possível a decisão de mérito da causa, bem sabendo que a circulação na cidade ........ causa por vezes alguns atrasos, tal como sucede com as formalidades de acesso ao Juízo de Execução ........; sabia igualmente que os indicados autos de execução n.° 2226/14....... não tinham alçada para recurso e que a sua descrita conduta naqueles autos reportada a outubro passado violava o seu dever de administrar a Justiça e de correção.
Atentemos na fundamentação de direito - aspeto jurídico da causa - utilizada pelo CSM para considerar preenchida uma infração disciplinar pela violação do dever de administrar a justiça, no âmbito do referido proc n.º 2226/14.oT8LSB-A, inscrita no “Ponto III – Apreciação da responsabilidade disciplinar”, da deliberação recorrida.
Deste ponto III (discussão jurídica da causa), conclui-se que o dever profissional de administrar a justiça – contemplado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República e artigo 3.º do EMJ, dever especial, inerente à função especifica dos juízes que se enquadrará na previsão do dever geral de prossecução do interesse público previsto no artigo 73.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, da LTFP - foi considerado violado devido ao apuramento de várias condutas detetadas nos processos analisados pelo Senhor Inspetor Judicial (instrutor do processo disciplinar).
Porém, essas condutas apesar de terem servido de fundamento (de direito) para o CSM integrar a violação do dever profissional, não resultam da factualidade dada como provada.
Observa-se que o CSM fundamenta a violação pelo Juiz - arguido, do dever profissional de administração da justiça com matéria de facto que não resulta da factualidade dada como provada.
Com efeito, consta da apreciação de direito (transcrição) da deliberação impugnada:
«Ora, em concreto, apurou-se que o Ex.mo Senhor Juiz (ao não aguardar pelos intervenientes processuais durante um prazo razoável, bem como ter ignorado o requerimento conjunto apresentado) agiu com o propósito de não despender tempo com a diligência de julgamento no âmbito do processo nº 2226/14....... e tornar, assim, o mais simples possível a decisão de mérito da causa. Apesar de bem saber que a circulação na cidade de ........ causa por vezes alguns atrasos, tal como sucede com as formalidades de acesso ao Juízo de Execução ......... Sabia igualmente que os indicados autos de execução n.º 2226/14....... não tinham alçada para recurso.
» O apuramento de tais factos – e que não se resumem ao facto de ter iniciado o julgamento passados poucos minutos após a hora designada – resulta evidente das restantes condutas apuradas nos processos analisados pelo Ex.mo senhor inspetor judicial, instrutor.
» Pois, como bem refere (são nossos os destaques) “A partir do módulo ‘Histórico da Gestão Processual’, da listagem de ‘Documentos Partilhados Devolvidos’, extraíram-se do Citius os elementos pretendidos, os quais constituem o Anexo A.
» Da análise da documentação aí constante decorre que uma situação idêntica à seguida no referido processo n.º 2226/14....... ocorreu tão-só no processo n.º 22020/11......., oposição à execução comum (art. 813.º CPC), com o valor processual de €2788,41, numa audiência de discussão e julgamento realizada em 18.10.2016.
» Apenas naquelas duas situações o julgamento iniciou-se e findou antes de decorrerem mais de 10 minutos da hora agendada para o seu início, sem a presença de qualquer interveniente processual, nomeadamente de qualquer mandatário das partes.
» Em ambos os casos inexistia alçada para recurso.
» Da análise da documentação constante do Anexo A decorre que a audiência prévia, a tentativa de conciliação ou o julgamento começaram antes de decorrerem 10 minutos da hora designada para o seu início, sem a presença de um dos mandatários judiciais das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, findando em todo o caso 14 minutos ou mais depois da hora designada para o seu início, nos 10 processos seguintes com os números:
» (…).
» Por outro lado, à semelhança dos 10 processos indicados nos artigos 17. a 26. da acusação, da documentação constante do Anexo A, resulta que o Arguido aguardou entre 10 e 30 minutos pela presença de mandatário forense ausente, sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, nos 12 processos seguintes, com os números:
» (…).»
Tais factos permitem a conclusão da ocorrência dos factos acima descritos, referentes à intenção do Ex.mo senhor Juiz em termos exemplarmente descritos pelo Ex.mo senhor inspetor judicial instrutor (são igualmente nossos os destaques):
«Resulta, pois, evidente, a ausência de critério uniforme por parte do Ex.mo Senhor Juiz.
» Conforme já ficou demonstrado, o Arguido não adotou uma postura uniforme quando no início de uma diligência judicial não estavam presentes os respetivos mandatários forenses e estes não informavam o Tribunal do seu atraso ou ausência.
» Nos processos 20239/07........., 960/14....... e 271/14........ esperou entre 15 e 30 minutos pela chegada de mandatário forense.
» Relativamente ao referido processo n.º 2226/14......., em causa nestes autos, o Arguido iniciou e findou o julgamento antes de decorrerem 10 minutos sobre a hora agendada para o respetivo início, na ausência de qualquer interveniente processual, nomeadamente dos respetivos mandatários judiciais.
» Igual procedimento sucedeu no processo n.º 22020/11........
» De comum, o processo n.º 2226/14....... e o processo n.º 22020/11....... têm o facto do valor da causa não permitir a interposição de recurso ordinário. » Diversamente, nos processos n.ºs 20239/07........., 960/14....... e 271/14........, cujos valores da causa permitem a interposição de recurso ordinário, embora no início das respetivas diligências judiciais também ninguém se encontrasse presente, o Arguido aguardou entre 15 e 30 minutos pela chegada de mandatário forense.
» Nestes termos, em função de tais elementos, à luz das regras da experiência comum e da lógica, a nossa convicção é que o Arguido agiu no processo n.º 2226/14......., em causa nestes autos, conforme indicado, bem sabendo que mesmo não tinha alçada de recurso e por forma a evitar a realização de julgamento e o tempo e trabalho acrescido dele decorrente, tornando assim o mais simples possível o desfecho do caso, com decisões de facto e de direito assaz simplificadas.
» Não fosse esse o propósito do Arguido e por certo teria esperado pelo menos 15 minutos pela chegada dos Advogados das partes, tal como o fez em situações similares.»
Verifica-se assim que na apreciação do aspeto jurídico da causa assumem-se como assentes, factos que não constam da factualidade dada como provada.
Começa por convocar uma situação idêntica à assumida no proc. n.º 2226/14........– referente ao proc n.º 22020/11…… – uma oposição à execução comum (artigo 813.º do CPC) com o valor processual de € 2788,41, numa audiência de discussão e julgamento realizada em 18-10-2016.
Fundamenta que «da análise de toda a documentação que constituem o Anexo A (Módulo “Histórico da gestão processual”, da listagem de “Documentos Partilhados Devolvidos”» decorre apenas uma situação idêntica à seguida no processo n.º 2226/14......., que foi a que ocorreu no processo n.º 22020/11......., que apenas naquelas duas situações o julgamento iniciou-se e findou antes de decorrerem mais de 10 minutos da hora agendada para o seu início, sem a presença de qualquer interveniente processual, nomeadamente de qualquer mandatário das partes e que em comum aqueles processos têm o facto do valor da causa não permitir interposição de recurso.
Porém estes factos não constam da matéria fáctica dada como provada. Ou seja, a Entidade Recorrida/Demandada baseia-se nesta factualidade para fundamentar a apreciação da conduta do arguido, contudo esses factos não foram dados como provados.
Sendo que, como já se fez referência, esta factualidade foi invocada pelo arguido, o ora A., na defesa que apresentou quanto à acusação, quando requereu a junção de todas as diligências presididas pelo mesmo, com vista a efetuar prova do facto por si alegado de que iniciava o julgamento na hora agendada não aguardando pelos mandatários das partes, a não ser que avisassem o atraso, para todos os processos independentemente da alçada para recurso.
Como tal impunha-se uma tomada de posição quanto a este facto, dada a sua relevância quanto ao critério seguido pelo arguido nas várias diligências.
É verdade que consta da deliberação recorrida, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, que «este precedente é inócuo na matéria, sendo que dado o objeto destes autos não há aqui que aduzir o sucedido na apontada situação idêntica. De todo o modo, o respetivo procedimento disciplinar estaria prescrito nos termos do artigo 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas».
Todavia, por um lado, se tal facto era inócuo, não poderia ser levado à fundamentação de direito para integrar a conduta violadora do dever de administrar a justiça e, por outro lado, entendemos que não será inócuo face ao alegado pelo arguido na sua defesa quanto ao critério adotado pelo mesmo nas diligências, na medida em este facto é aferidor de que apenas naquelas duas situações o julgamento se iniciou e findou antes de decorrerem mais de 10 minutos da hora agendada para o seu início, sem a presença de qualquer interveniente processual, nomeadamente de qualquer mandatário das partes e que em ambos os casos inexistia alçada para recurso.
A circunstância de se entender que o procedimento disciplinar estaria prescrito relativamente à conduta levada a cabo no proc. n.º 22020/11......., em nada se deve confundir com a circunstância de aquele facto dever constar do conjunto da matéria de facto a ser considerada como relevante e aferidor de um critério seguido pelo arguido. Ou, numa outra formulação, a circunstância de não poder ser eventualmente objeto de censura disciplinar, não afasta a possibilidade de ser considerada matéria de facto relevante para apuramento de um critério seguido pelo recorrente. Trata-se de duas realidades distintas que não podem ser confundidas.
Para além da diligência presidida pelo A. no proc. n.º 22020/11......., o CSM volta a utilizar factos na fundamentação que não constam da factualidade dada como provada, ao assumir que:
«Da análise da documentação constante do anexo A decorre que a audiência prévia, a tentativa de conciliação ou o julgamento começaram antes de decorrerem 10 minutos da hora designada para o seu início, sem a presença de um dos mandatários judiciais das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, findando em todo o caso 14 minutos ou mais depois da hora designada para o seu início em 10 processos seguintes com os números (…)»;
E que:
«à semelhança dos 10 processos indicados nos art.s 17. a 26. da acusação, da documentação constante do Anexo A, resulta que o Arguido aguardou entre 10 e 30 minutos pela presença de mandatário forense ausente, sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência nos 12 processos seguintes com os números (…)».
Para se concluir que:
«Tais factos permitem a conclusão da ocorrência dos factos acima descritos, referentes à intenção do Exmo. Senhor Juiz em termos exemplarmente descritos pelo Exmo. Senhor inspetor judicial instrutor. “Resulta pois evidente a ausência de critério uniforme por parte do Exmo. Senhor juiz».
Constata-se assim que o CSM na fundamentação de direito, para integrar a conduta do arguido como violadora do dever de administrar a justiça, volta a basear-se em factos que constam da acusação, mas que não foram transpostos para a factualidade dada como provada na deliberação impugnada – mais concretamente os factos da acusação n.os 17. (proc. n.º 6553/11.......), 20. (Proc. n.º 13817/06.......), 21. (Proc. n.º 4941/14.......), 22. (Proc. n.º 1925/14.......), 24. (Proc. n.º 5245/14......), 25. (Proc. n.º 668/14......) e 26. (Proc. n.º 4542/12......).
O CSM na fundamentação de direito também chama à colação o comportamento do arguido em 12 processos - em que o Arguido aguardou entre 10 e 30 minutos pela presença de mandatário forense ausente, sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência - que não constam da factualidade dada como provada. São eles os processos com os números:
- 26367/09........, embargos de executado (2013), inquirição de testemunhas em incidente de oposição à penhora, com o valor processual de €35 802,21, em 09.06.2016 aguardou cerca de 30 minutos;
- 21048/08........., embargos de terceiro, audiência final, com o valor processual de €8500,00, em 12.09.2016 aguardou cerca de 12 minutos;
- 16832/12......, oposição à execução comum (art. 813.º CPC), com o valor processual de €10 707,11, em 11.10.2016 aguardou cerca de 21 minutos;
- 16832/12......., oposição à execução comum (art. 813.º CPC), com o valor processual de €10 707,11, em 11.10.2016 aguardou cerca de 21 minutos;
- 16832/12......., oposição à execução comum (art. 813.º CPC), com o valor processual de €10 707,11, em 11.10.2016 aguardou cerca de 21 minutos;
- 20660/08......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €7759,07, em 03.11.2016 aguardou cerca de 10 minutos;
- 24667/10......, oposição à execução comum (art. 813.º CPC), com o valor processual de €300 785,80, em 29.11.2016 aguardou cerca de 17 minutos;
- 20147/13....., embargos de executado (2013), com o valor processual de €10 800,00, em 15.03.2017 mandou aguardou cerca de 15 minutos;
- 13631/14......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €29 900,00, em 05.04.2017 aguardou pelo menos cerca de 18 minutos;
- 6070/14......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €2 252 987,38, em 26.04.2017 mandou que se aguardasse «alguns minutos pela chegada das pessoas convocadas;
- 6070/14......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €2 252 987,38, em 26.04.2017 mandou que se aguardasse alguns minutos pela chegada das pessoas convocadas;
- 69414/05........, embargos de executado (2013), com o valor processual de €8956,17, em 28.06.2017 aguardou pelo menos cerca de 16 minutos.
Uma vez mais, o CSM na fundamentação de direito da deliberação impugnada, para integrar a conduta do arguido como violadora do dever de administrar a justiça, também invoca o comportamento do arguido em mais 10 processos que não constam da factualidade dada como provada - em que a audiência prévia, a tentativa de conciliação ou o julgamento começaram antes de decorrerem 10 minutos da hora designada para o seu início, sem a presença de um dos mandatários judiciais das partes e sem que este tenha comunicado o respectivo atraso ou ausência, findando em todo o caso 14 minutos ou mais depois da hora designada para o seu início, com os números:
- 22472/11......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €2266,76, audiência final em 20.09.2016, iniciada cerca de 7 minutos depois da hora agendada e encerrada 31 minutos depois da hora agendada;
- 9307/12......, oposição à execução comum (art. 813.º CPC), com o valor processual de €11 667,08, audiência de discussão e julgamento em 11.10.2016, iniciada cerca de 6 minutos depois da hora agendada e encerrada 14 minutos depois da hora agendada;
- 14765/10........, oposição à execução comum (art. 813.º CPC), com o valor processual de €6288,02, audiência de discussão e julgamento em 18.10.2016, iniciada cerca de 8 minutos depois da hora agendada e encerrada 16 minutos depois da hora agendada;
- 85/07......, oposição à execução comum (art. 813.º CPC), com o valor processual de €78 692,31, audiência de discussão e julgamento em 07.11.2016 (1.ª sessão) e 02.02.2017 (2.ª sessão), iniciadas cerca de 5 e 2 minutos depois da hora agendada e encerradas 34 e 25 minutos depois da hora agendada, respetivamente;
- 11304/09......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €29 558,83, audiência prévia em 07.11.2016, iniciada cerca de 5 minutos depois da hora agendada e encerrada 17 minutos depois da hora agendada;
- 22665/08......., oposição à execução comum (art. 813.º CPC), com o valor processual de €20 270,38, audiência de discussão e julgamento em 20.12.2016, iniciada cerca de 7 minutos depois da hora agendada e encerrada 25 minutos depois da hora agendada;
- 29686/09......., oposição à execução comum (art. 813.º CPC), com o valor processual de €16 223,13, audiência de discussão e julgamento em 19.01.2017, iniciada em hora não indicada e encerrada 15 minutos depois da hora agendada;
- 35845/11......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €2512,68, audiência final em 21.02.2017, iniciada cerca de 5 minutos depois da hora agendada e encerrada 25 minutos depois da hora agendada;
- 42037/06......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €15 574,41, audiência final em 09.05.2017, iniciada em hora indicada e encerrada 15 minutos depois da hora agendada e
- 13762/13......., embargos de executado (2013), com o valor processual de €1.291,66, audiência final em 14.11.2017, iniciada cerca de 7 minutos depois da hora agendada e encerrada 46 minutos depois da hora agendada.
Temos assim que na fundamentação de direito da deliberação impugnada, o CSM convoca o comportamento do arguido em 7 processos (que apenas constam da acusação), em 10 processos (em que o recorrente inicia a audiência prévia, a tentativa de conciliação ou o julgamento antes de decorrerem 10 minutos da hora designada e finda em todo o caso 14 minutos ou mais depois da hora designada e sem a presença de um dos mandatários judiciais das partes), e em outros 12 processos (onde o arguido aguardou entre 10 e 30 minutos pela presença de mandatário forense ausente, sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência), sem que tais condutas/comportamento figurem na factualidade dada como provada.
Ou seja, a indicação desses 29 processos e sua tramitação/dinâmica processual não foram levados à factualidade dada como provada. Sendo que, com base também nessa matéria de facto o CSM conclui pela ausência de critério uniforme por parte do arguido, ora A.
Apenas se pode fundamentar uma conduta integradora da violação do dever da administração da justiça tendo por base a matéria de facto dada como provada no âmbito de um processo disciplinar.
Essa factualidade dada como provada é o único acervo ou substrato material passível de integrar uma conduta ilícita e culposa.
Quaisquer factos que não constem desse acervo não podem servir de fundamento para caracterizar uma conduta como ilícita e culposa.
O CSM fundamentou a apreciação da conduta do arguido ao longo do tempo com indicação de vários processos e comportamentos levados a cabo pelo mesmo, e concluiu pela ausência de um critério uniforme, porém essa factualidade não se encontra totalmente espelhada nos factos dados como provados.
Pelo contrário, da factualidade dada como provada resulta a existência de um critério, ou seja, o arguido aguarda, nas diligências de tentativa de conciliação, pelo menos 15 minutos pela chegada dos mandatários judiciais e não adotou a mesma conduta (ou seja, não aguardou tempo algum pela chegada dos mandatários judiciais) quando se tratou de uma audiência de julgamento de processo cujo valor da causa não admite interposição de recurso.
Não se pode olvidar que as diligências de tentativa de conciliação e de audiência de julgamento são distintas. No processo n.º 2226/14....... estamos perante uma audiência de julgamento e nos processos n.ºs 20239/07......., 960/14....... e 271/14........ estamos perante tentativas de conciliação.
Há que reconhecer que numa diligência na qual, por regra, se produz prova (audiência de julgamento) se impõe um comportamento mais exigente e diligente por banda do juiz, do que uma diligência onde não se produz prova e cujo objetivo é a obtenção de acordo entre as partes (tentativa de conciliação). Porém, não se podem confundir os propósitos das referidas diligências, sendo que, relativamente à diligência de «Tentativa de conciliação», «as partes não podem ser convocadas exclusivamente para esse fim mais do que uma vez», conforme estipula o artigo 594.º, n.º 1, do CPC.
Da factualidade dada como provada, a título exemplificativo não resulta que tenha ocorrido mais uma situação idêntica à do proc. n.º 22020/11......., nem que noutros processos, cujo valor da causa admite interposição de recurso, em audiências de julgamento/audiência final, o arguido tenha aguardado algum tempo pela chegada dos mandatários judiciais e outros intervenientes, sem que estes tenham comunicado o respetivo atraso.
É verdade que foi considerado que se afigurava desnecessário aduzir esta matéria factual à acusação deduzida. Todavia, o certo é que o CSM para fundamentar a conduta violadora do dever de administrar a justiça (aspeto jurídico da causa) convoca tais factos/condutas, os quais foram trazidos à discussão pela defesa como Aferidor do critério seguido pelo A.
Ou, dito de outra forma, se é certo que, na fundamentação da matéria de facto tanto o Sr. Inspetor Judicial no relatório final como a deliberação impugnada assumem que não levam esta matéria à factualidade provada por se afigurar desnecessária, a verdade é que na fundamentação de direito a mesma foi utilizada e considerada necessária, servindo-se da mesma para concluir que existe uma ausência de critério uniforme na atuação do arguido, agora A., nos vários processos presididos pelo mesmo.
Tanto o relatório final do Sr. Inspetor Judicial como a deliberação recorrida assumem, apreciam e fundamentam a infração disciplinar e a respetiva pena num pressuposto que não tem totalmente reflexo na factualidade provada, dando um salto lógico-dedutivo que não assenta em factos provados que o substanciem. Sendo que, aliás, assumem que tais factos (factos n.os 17., 20., 21, 22, 24, 25. e 26 da acusação, mais 10 processos e mais 12 processos) são irrelevantes, por não conterem um critério idêntico seguido pelo arguido, e, de seguida na fundamentação de direito da deliberação recorrida, utilizam tal matéria para fundamentar a ausência de critério uniforme e para integrar a conduta do arguido como violadora do dever de administrar a justiça.
Pelo exposto, perante a concreta configuração do dever profissional cuja violação se imputa ao A. e eventual sanção, poderia justificar-se, para uma correta, rigorosa e suficiente decisão jurídica da causa a ampliação da matéria de facto, quanto às várias condutas levadas a cabo pelo arguido nas diligências a que presidiu e que se fazem referência na deliberação recorrida, ampliação que, no entanto, este Supremo Tribunal, no âmbito da presente ação impugnatória, se encontra impedido de impor à entidade administrativa demandada (CSM) já que não intervém aqui como tribunal de revista, assim se preservando também o respeito pelo princípio da separação de poderes.
Cumprindo realçar que o arguido na sua defesa referencia as diligências levadas a cabo nos processos nºs 960/14....... e 85/07...... (sessão de 02-02-2017), como aferidoras de um critério adotado por si, sucedendo que tais factos não resultam da factualidade dada como provada. Porém, a dinâmica processual da diligência do proc. n.º 85/07...... (sessão de 02-02-2017) serviu de apreciação no aspeto jurídico da causa na deliberação agora impugnada.
Dado que foram diligências levadas a cabo pelo arguido no lapso temporal em que foram apreciados as demais diligências e que a própria diligência do proc. n.º 85/07........ (sessão de 02-02-2017) serviu de apreciação no aspeto jurídico da causa pelo CSM e que poderão servir de aferição do critério adotado pelo A., entendemos que ambas as diligências, realizadas no proc. n.º 960/14....... (objeto de apreciação na instrução do processo disciplinar) e no proc. n.º 85/07...... (igualmente objeto de apreciação na instrução do processo disciplinar) e respetivas dinâmicas processuais devem constar da ampliação da matéria de facto.
Verifica-se assim que a matéria de facto dada como provada é insuficiente para considerar violado o dever profissional de administrar a justiça.
Para além da insuficiência da matéria de facto, o arguido alega que existiu erro na apreciação da prova - não correspondência com a realidade - de alguns dos factos dados como provados constantes na deliberação impugnada.
Importa também conhecer de tal matéria, na medida em que se trata de vício quanto à matéria de facto.
Em sede de defesa alegou o arguido que no facto provado n.º 10 apenas se fazem considerações genéricas sem se referir e demonstrar se tais circunstâncias ocorreram no caso concreto omitindo-se a que horas os senhores advogados se apresentaram na portaria do Tribunal para acederem ao edifício, que tinham escritório em ........ e …… e como tal utentes habituais …… em ........, bem sabendo que o procedimento de entrada é igual em todos os edifícios. Mais refere que no facto provado n.º 20 não se pode afirmar que 10H30 são hora de ponta em ........, nem hora de ponta na entrada do edifício do Tribunal e que se estavam atrasados no trânsito ou na entrada do edifício, nada impedia os mandatários de informarem o Tribunal.
Não vemos em que medida o facto provado n.º 10. integre um facto não coincidente com a realidade - erro na apreciação da prova - na medida em que é composto apenas por elementos objetivos, observáveis por qualquer cidadão que visite aquelas instalações – «As salas de audiências do Juízo de Execução ........ situam-se no … piso do edifício .. do chamado.........., sendo que o respetivo acesso implica a prévia identificação de pessoas, por seguranças, no hall de entrada daquele edifício, situado no piso 0 do mesmo edifício».
O mesmo se diga quando ao facto provado n.º 20 no segmento «bem sabendo que circulação na cidade ........ causa por vezes alguns atrasos, tal como sucede com as formalidades de acesso ao Juízo de Execução ........». São factos objetivos, comum a qualquer cidadão que no seu dia-a-dia circule pela cidade ........ e que seja utente dos edifícios do........, e, sem dúvida, fruto das regras da experiência comum e do Senhor Juiz.
Inequívoco se torna que os Senhores Advogados sabem e têm obrigação de saber que a hora designada por despacho judicial é a hora do início das diligências judiciais e não a hora de entrada no tribunal e que se devem acautelar dos procedimentos de entrada em edifícios dos Tribunais e dos atrasos que isso pode provocar e que também se devem acautelar que de manhã (ainda que 10H30 já não seja hora de ponta) a circulação em ........ causa alguns atrasos e se estão atrasados devem comunicar prontamente ao Tribunal.
Porém estas premissas acabadas de referir em nada afastam os factos provados n.º 10. e o facto provado em 20. quanto aos acessos ao Tribunal – atrasos devidos à circulação ........ de manhã e devido às formalidade de acesso ao Juízo de Execução ......... Cumpre referir que o facto provado n.º 20 não fala em “hora de ponta”, apenas refere que de manhã a circulação ....... causa por vezes alguns atrasos – trata-se de um facto notório e incontornável, pelo que não vemos em que medida este segmento deste facto integre qualquer erro na apreciação da prova.
Relativamente à hora que os Senhores Advogados terão chegado junto ao Juízo de Execução ........, também claro se verifica que os mesmos, até às 10H34, não estavam junto à Secção e/ou sala de audiências quando foi feita a segunda chamada e que não informaram o Tribunal que não estariam às 10H30 na diligência. E que a diligência pese embora na ata não conste a hora de terminus, terá terminado escassos minutos depois, não tendo sido realizado o julgamento dos autos, por ausência dos intervenientes processuais que não estavam presentes aquando da chamada.
Face à conjugação da prova indicada na deliberação impugnada, mormente a prova testemunhal ali referida (Sra. Advogada Dra. DD e Senhor Advogado Dr. EE) e ao teor do requerimento junto aos embargos de executado em 12-10-2017, e conjugado com a ata de audiência de julgamento de 12-10-2017, não se vislumbra qualquer erro na apreciação da prova quanto ao facto provado n.º 11, no sentido que terão chegado ao piso … onde se situam as salas de julgamento do Juízo de Execução após as 10h35 horas e não depois das 10H40.
Nesta medida, concorda-se com a deliberação recorrida quando referiu que em causa está a apreciação, num quadro de razoabilidade, da conduta do Juiz e já tendo por base as premissas acima elencadas de que 10H30 é supostamente a hora do início das diligências e não a hora de entrada no tribunal, sendo que «neste contexto, configura-se absolutamente inócuo saber, em concreto, «a que horas os Senhores Advogados se apresentaram na portaria do tribunal», a circunstância destes terem ou não «escritório em ........ e ……», serem ou não «utentes habituais …… em ........», conhecerem ou não «o procedimento de entrada no edifício» do Juízo de Execução ........, as concretas razões do respetivo atraso, nomeadamente o concreto tempo gasto no «procedimento de entrada no edifício» do Tribunal, o facto de ser ou não «hora de ponta», bem como a circunstância de não terem informado o Tribunal do respetivo atraso».
Sustenta ainda o A. que o facto provado n.º 12 faz transparecer que os advogados tentaram falar com o arguido (ainda que por intermédio do Sr. Funcionário) e este é que se recusou a ouvir as razões aduzidas pelo atraso e para a falta de comunicação de que estavam atrasados, o que não corresponde à verdade.
Não acompanhamos tal raciocínio.
O facto provado n.º 12 é linear e objetivo, despido de adjetivações, apenas consta que os advogados procuraram falar com o arguido, o que não lograram. Ao contrário do alegado pelo recorrente, daqueles factos não se conclui que o Recorrente se recusou a ouvir as razões aduzidas pelo atraso e para a falta de comunicação de que estavam atrasados.
Assim não vemos no aludido facto provado n.º 12 qualquer erro na apreciação da prova.
Por último, defende o A. que nos processos identificados nos factos provados n.os 17. a 19, apenas aguardou pela chegada dos mandatários faltosos porque apesar de não constar das atas, estes contactaram o Tribunal informando que estavam atrasados, ocorrendo omissão/lapso nas atas.
Não vislumbramos qualquer erro na apreciação da prova destes factos. Estes factos reproduzem o que consta nas respetivas atas das diligências e nas mesmas não constam a indicação da comunicação de atraso dos mandatários.
Resulta da fundamentação da matéria de facto da deliberação impugnada, a indicação de várias atas de processos onde foi expressamente feita menção que os Senhores Advogados telefonaram a informar que estavam atrasados e que por esse motivo o Senhor Juiz determinou que se aguardasse a chegada dos mesmos e não se iniciou de imediato a diligência.
Não vemos em que medida, se fariam constar numas atas o aviso de atraso dos mandatários e noutras atas não. Sendo que, defende o A., o único motivo devido ao qual não iniciava a diligência na hora agendada era quando comunicavam o atraso. Não vemos em que medida o Senhor Juiz, sendo alegadamente tão rigoroso no começo das diligências e sendo esse o seu único procedimento, se não se certificasse, aquando da assinatura daquelas, da não menção do motivo devido ao qual não iniciava na hora designada.
Desta feita, não vemos em que medida aquela factualidade enferme de erro na apreciação da prova, enquanto desconforme com a realidade.
Pelo exposto, consideramos que os aludidos factos n.os 10, 11, 12, 17 a 19 e 20, este no segmento «sabendo que a circulação na cidade........ causa por vezes alguns atrasos, tal como sucede com as formalidades de acesso ao Juízo de Execução ........», ao contrário do alegado pelo A., não padecem de qualquer erro na apreciação da prova (desconformidade com a realidade), e nessa medida, não se vislumbra qualquer vício que afete, em concreto, essa matéria de facto.
Para além do vício de insuficiência de decisão sobre a matéria de facto para a rigorosa decisão de direito da causa, a própria deliberação impugnada encerra em si mesma contradições na sua fundamentação, mormente entre a factualidade dada como provada e a sua fundamentação de direito.
Vejamos.
A fundamentação dos atos administrativos tem consagração constitucional no artigo 268.°, n.° 3, da Constituição da República, segundo o qual «Os atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos», tendo tal princípio concretização, em particular, nos artigos 152.° e 153.º, ambos do CPA.
Nestes dois últimos preceitos determina-se que a fundamentação deve ser expressa através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos ou propostas que constituirão, neste caso, parte integrante do respetivo ato.
Mais se afirma (artigo 153.º, n.º 2 do CPA) que equivale à falta de fundamentação a adoção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato.
Segundo VIEIRA DE ANDRADE, «o dever de fundamentação expressa obriga a que o órgão administrativo indique as razões de facto e de direito que o determinaram a praticar o ato, exteriorizando, nos seus traços decisivos, o procedimento interno de formação da vontade decisória. O dever cumpre-se desde que exista uma declaração a exprimir um discurso que pretenda justificar a decisão, independentemente de esse arrazoado ser materialmente coreto, convincente ou inatacável».
Por sua vez, ESTEVES DE OLIVEIRA, P. COSTA GONÇALVES e PACHECO DE AMORIM, consideram que o dever de fundamentação (nos casos em que é exigido) como «um importante sustentáculo da legalidade administrativa e instrumento fundamental da respetiva garantia contenciosa, para além de elemento fundamental da interpretação do ato administrativo» e explicam que «a fundamentação do ato vai nele indicada especificamente ou por remissão (total ou parcial), e consiste na "exposição sucinta das razões de facto e de direito da decisão”, constando sempre do documento ou da declaração em que se externa o ato, quando for um ato legalmente carecido de fundamentação».
Também JOÃO CAUPERS entende por fundamentação da decisão administrativa, «a indicação das razões que conduziram à sua tomada», considerando-a «um fator indispensável ao controlo da legalidade da mesma, especialmente, quando tomada com um grau de discricionariedade significativo».
Como consideram GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, o direito à fundamentação expressa dos atos administrativos integra «um princípio fundamental da administração do Estado de direito, pois a fundamentação não só permite captar claramente a atividade administrativa (principio da transparência da ação administrativa) e a sua correção (principio da boa administração) mas também, principalmente, possibilita um controlo contencioso mais eficaz do ato. Em relação aos atos praticados no exercício de poderes discricionários a fundamentação é mesmo um requisito essencial, visto que sem ela ficaria substancialmente frustrada a possibilidade de impugnar com êxito os seus vícios mais típicos».
A fundamentação consiste assim na expressão dos motivos que encaminharam a decisão para um determinado sentido e na exposição dos pressupostos de facto e de direito que conduziram ao pronunciamento e, como emerge do n.º 2 do artigo 153.° do CPA, deve ser clara, suficiente e coerente.
Sendo, em consequência, ilegal a fundamentação «obscura» - que não permite apurar o sentido das razões apresentadas -, «contraditória» - que não se harmoniza os fundamentos logicamente entre si ou não se conforma aqueles com a decisão final -, ou «insuficiente» - que não explica por completo a decisão tomada.
Que tal fundamentação não carece de ser aprofundada nem extensa, é a própria lei que assim o determina, ao estatuir o seu carácter sucinto no n.º 1 do artigo 152° do CPA.
Pelo exposto, apenas releva, como vício do ato, a insuficiência da fundamentação que seja manifesta, dado que se tem como suficiente a exposição sucinta dos fundamentos e dos elementos necessários à expressão das razões do ato, apreensíveis por um destinatário normal e razoável.
Conforme se afirma no acórdão desta Secção do Contencioso de 26-10-2016, proferido no processo n.º 106/15.1YFLSB:
«IX - A fundamentação tem ainda de ser clara, coerente e completa, sendo, ilegal a fundamentação “obscura” - que não permite apurar o sentido das razões apresentadas -, “contraditória” - que não se harmoniza os fundamentos logicamente entre si ou não se conforma aqueles com a decisão final -, ou “insuficiente” - que não explica por completo a decisão tomada. Faltando a fundamentação devida ou se a fundamentação não satisfizer os requisitos exigidos por lei, o ato administrativo é ilegal por vício de forma, sendo, como tal, anulável (art. 163.°, n.º 1, do CPA»..
E ainda como se assume no acórdão desta mesma Secção de 27-04-2016, proferido no processo n.º 79/15.0YFLSB:
«V - São tidos como vícios do ato a falta de fundamentação e, por outro lado, a insuficiência, a obscuridade ou a incongruência da fundamentação empregue que sejam manifestas (cfr. n.º 2 do art. 152.° do CPA)».
Ora, consideramos que a fundamentação da deliberação impugnada se afigura contraditória e incongruente entre si, na medida em que resulta dos factos provados que o arguido praticou as condutas relativas aos processos n.os 2226/14....... e 20853/08........ «bem sabendo que violava o seu dever de administrar a justiça e de correção» e na fundamentação de direito e decisão consideraram que no que concerne à conduta relativa ao Proc. n.º 2226/14....... apenas violou o «dever de administrar a justiça» mas não ocorreu violação do «dever de correção» e relativamente ao Proc n.º 20583/08....... fundamentaram afirmando que o arguido quanto àquela conduta não cometeu qualquer infração disciplinar não tendo violado qualquer dever profissional de administrar a justiça e dever de correção.
Mais concretamente:
Na fundamentação de direito da deliberação impugnada, resulta que a segunda conduta imputada ao arguido na acusação - processo n.º 20853/08........ – que o arguido não violou o dever profissional de correção e, nessa medida, não cometeu infração disciplinar. Contudo, resulta da factualidade dada como provada - facto provado n.º 35 - que o arguido «optando nesse contexto por uma postura autocrática, de afirmação de poder, utilizando uma linguagem desabrida, sugestiva de mancomunação entre Exequente, representada por Advogado, e Tradutora, ofensiva da honorabilidade de Advogado, bem sabendo ainda que ao assim proceder violava os deveres profissionais de administrar a justiça e de correção» [sublinhado agora].
Na fundamentação de direito da deliberação impugnada, resulta que a primeira conduta imputada ao arguido na acusação - processo n.º 2226/14....... – que o arguido não violou o dever de correcção, conforme resulta da seguinte transcrição:
«Cometeu, pois, a infração imputada. Contudo sem que esteja em causa, e ressalvado o respeito devido por opinião contrária, o dever de correção. Embora mereçam censura, que não disciplinar, os termos utilizados no despacho proferido em 17.10.2017, e descrito em 15 dos factos provados. A pontualidade é um valor a preservar na administração da justiça. A razoabilidade na apreciação da pontualidade – e de outras circunstâncias - é, igualmente, uma virtude que tem que ser exigida aos juízes. Neste caso, contudo, a falta de razoabilidade do Ex.mo senhor Juiz manifesta-se mais, a nosso ver, no dever de administração da justiça, como já acima referimos, que, propriamente, com o dever de correção, que demandaria alguma tolerância para com os atrasos dos restantes sujeitos, ainda que não o comuniquem, como foi o caso.
“ Em conclusão, o Ex.mo senhor Juiz cometeu uma infração disciplinar por violação do dever de administrar a justiça”.
Porém resulta da factualidade dada como provada - facto 20. que a conduta do arguido naqueles autos reportada a outubro passado violava o seu dever de administrar a Justiça e de correção.
Existe esta contradição entre a factualidade provada e os fundamentos de direito na deliberação impugnada.
Pelo exposto, entendemos que, neste segmento, estamos perante uma fundamentação contraditória da deliberação impugnada.
Da anulabilidade. Regime
O n.º 1 do artigo 163.º do CPA prevê que são «anuláveis os atos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção».
Por isso, com propriedade, pode-se afirmar que a violação de lei se deteta «na discrepância entre o conteúdo ou o objeto do ato e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis», constituindo, por outras palavras, «o vício de que enferma o ato administrativo, cujo objeto, incluindo os respetivos pressupostos, contrarie as normas jurídicas com as quais se devia conformar».
Equivalendo-se a fundamentação contraditória a falta de fundamentação e face ao vício de insuficiência da matéria de facto para uma rigorosa decisão da causa, gera-se a anulabilidade da deliberação, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do CPA.
Conforme supra referido, o regime da anulabilidade dos atos está previsto no artigo 163.º do CPA, […]
Com base nessas premissas, entendemos que no caso em análise impõe-se o efeito anulatório da deliberação recorrida, sendo que não se encontra preenchida nenhuma das três situações previstas no n.º 5 do artigo 163.º do CPA.
Pelo exposto, impõe-se a anulação da deliberação impugnada.
Face à procedência da questão colocada pelo A. quanto à insuficiência da matéria de facto dada como provada, fica prejudicada a apreciação das restantes questões sobre o mérito suscitadas no recurso.
III – DECISÃO
Pelo exposto e na procedência da ação proposta pelo A. AA, acordam os Juízes da Secção do Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça em anular a deliberação impugnada”.
[…] - (cf. doc. fls 483 a 502 e fls 43 vº a 95 da presente acção administrativa).
10º - O acórdão referido em 9º foi objecto de notificação por ofícios expedidos pela Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça a 06-02-2020 (idem).
11º - O acórdão referido em 9º transitou em julgado a 20-02-2020.
12º - Na sequência do acórdão referido em 9º e ainda no âmbito do procedimento referido em 2º, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura, reunido a 02-06-2020, apreciou o projecto de decisão final elaborado pela Vogal Exma Senhora Dra. AAA, (fls 505 a 525) com proposta de aplicação da sanção de multa no valor de € 750,20, correspondente a quatro remunerações base diárias, por aplicação do EMJ na redacção resultante da Lei n.º 67/2019, de 24 de Agosto, que, apesar de obter 8 (oito) votos a favor (dos Exmos Senhores, Vice- Presidente, Prof. Doutor BBB, Dr. CCC, Dra. DDD, Dra. EEE, Dr. FFF, Dra. AAA e Dr. GGG), não obteve vencimento (pelos oito votos desfavoráveis, dos Exmos. Senhores, Presidente, com voto de qualidade, Prof. Doutor HHH, Dra. III, Prof. Doutor JJJ, Prof. Doutor KKK, Prof. Doutor LLL, Dr. MMM e Dr. NNN), obtendo vencimento a posição pela qual, aplicando a versão do EMJ anterior à da Lei n.º 67/2019, de 24 de Agosto, determinou a aplicação ao ora autor da sanção de multa de vinte dias, designando-se para relator da decisão, por vencimento, o Exmo Senhor Juiz Desembargador Dr. NNN (doc. 1 junto com a petição inicial, que constitui fls 19 a 40 e fls 527 a 548 do processo disciplinar).
13º - A deliberação que obteve vencimento na reunião referida em 12º tinha o seguinte teor:
Processo Disciplinar n.° .....63
Exm.º Senhor Juiz Dr. AA
Vogal Relator: Juiz Desembargador Dr. KK
Delibera o Plenário do Conselho Superior da Magistratura:
I - Relatório
Por despacho de Sua Excelência o Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura de 15.12.2017 foi determinada a instauração de inquérito ao Exmo. Senhor Juiz de Direito AA.
Tal procedimento teve por objeto uma queixa apresentada pelos Exm°s. Senhores Advogados DD e EE, na qual, em resumo, davam conta que em 12.10.2017, no âmbito de uns autos de Embargos de Executado, relativamente a um julgamento aí designado para as 10.30 horas, presidido pelo Senhor Juiz de Direito AA, este deu por realizado tal julgamento pelas 10.35 horas, sem a presença daqueles Ilustres Advogados, que apenas lograram alcançar o piso relativo à sala de julgamento pelas 10.37 horas e, muito embora tenham tentado de imediato contactar o Senhor Juiz de Direito AA, não o conseguiram, após o que, no mesmo dia, apresentaram requerimento àquele Senhor Juiz expondo a situação e pedindo a designação de nova data para julgamento, o qual foi indeferido pelo Senhor Juiz de Direito AA que condenou cada um das partes em 2 UC’s de taxa de justiça, a título de custas pelo incidente anómalo que suscitaram.
Na sequência dos diversos elementos juntos aos autos em sede de inquérito, no final deste, em 18.01.2018, foi proposta a instauração de processo disciplinar relativamente ao Senhor Juiz de Direito AA.
2. Na sessão do Conselho Permanente do CSM, realizada em 30.01.2018, foi deliberado converter os referidos autos de inquérito «em processo disciplinar, constituindo o inquérito (...) a parte instrutória do processo disciplinar».
Naquela sessão do Conselho Permanente foi ainda deliberado que fosse «alargado o âmbito daquele procedimento disciplinar, «nele se considerando o expediente referente ao procedimento n.° 2018/GAVPM/0356, para os fins tidos por convenientes»,
Tal expediente era constituída por uma participação subscrita pelos Exm°s. Senhores Advogados HH, II e JJ, quanto a atuação do Senhor Juiz de Direito AA no âmbito do processo n.° 20853/08........, pendente no Juízo de Execução ........, nomeadamente no que respeita à decisão de 22.11.2017 aí proferida, que aqueles Ilustres Causídicos entendiam, em resumo, «configurar grave ofensa aos princípios da imparcialidade, isenção e correção», assim como «uma clara e grosseira violação do dever de (...) urbanidade que impende sobre todos Magistrados Judiciais»
*
A instrução a instrução do processo disciplinar foi declarada aberta em 27.02 seguinte, sendo que nessa sede:
• Juntaram-se diversos elementos referentes ao aludido processo de Oposição à Execução Comum (art 813.° CPC) n.° 20853/08........, nomeadamente a referida decisão subscrita pelo Senhor Juiz AA em 22.11.2017, bem como cópia do requerimento executivo constante dos respetivos autos principais;
• Procedeu-se à audição do Senhor Juiz de Direito AA;
• Juntou-se registo disciplinar atualizado daquele.
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Foi deduzida acusação contra o Senhor Juiz de Direito em 18-04-2018, aí se imputando ao mesmo o cometimento de duas infrações disciplinares por violação dos seus deveres profissionais de administrar a justiça e de correção, prevista e punida pelos artigos 3.° e 82.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, bem como 73.°, n.°s 2, alínea h), e 10 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.° 35/2014, de 30 de junho, aplicável por força do disposto no artigo 131.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
Na acusação sufragou-se entendimento no sentido de que as descritas condutas do Arguido são suscetíveis de ser encaradas como situações de desinteresse pelo cumprimento dos deveres do cargo e de quebra do prestígio exigível ao magistrado, termos em que são puníveis com as sanções de multa e mesmo transferência.
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Notificado da acusação, o Exmo. Senhor Juiz de Direito apresentou Defesa em 15-05-2018, refutando a acusação e referindo, em síntese, que a mesma contém factos que não correspondem à verdade, bem como factos que embora correspondam à verdade não configuram qualquer infração disciplinar, pois que apenas configuram o cumprimento de uma norma legal, a saber o disposto no art. 151.º do Código de Processo Civil, procedimento esse que é por si adotado em todos os casos em que os mandatários não se encontram presentes à hora marcada para o início das diligências.
Assim, sempre que estes informam que se encontram atrasados, aguarda pelos mesmos, independentemente do valor do processo em causa, ainda que tal facto nem sempre conste das actas.
Conclui alegando que no processo 2226/14...... não houve qualquer comunicação por parte dos mandatários que se encontravam atrasados, motivo pelo qual iniciou a audiência de julgamento à hora designada, sem a presença daqueles.
Quanto ao processo 20853/08....... considera também não ter cometido qualquer excesso de linguagem, não insinuando qualquer conluio entre a exequente e a. tradutora, apenas se limitando a fundamentar a sua decisão de extrair certidão.
Na mesma peça processual, o Senhor Juiz de Direito requereu a produção de
prova pessoal e documental, o que foi integralmente deferido.
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Pelo Exmo. Senhor Inspetor foi apresentado o Relatório final, em 30-07-2018, no qual propõe que, com base nos factos elencados no mesmo, o Exmo. Senhor Juiz seja sancionado pela prática de duas infrações disciplinares, por violação dos seus deveres profissionais de administrar a justiça e de correção, previstos e punidos pelos art.s 3.º e 82.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, bem. como 73.° n.os 2 alínea h) e 10 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei 35/2014 de 30 de junho, aplicável por força do disposto no art. 131.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
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Por Deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 29-01-2019, foi aplicada ao Exmo. Senhor Juiz a sanção de 20 dias de multa pela prática de uma infração disciplinar, consubstanciada na violação do dever de administração da justiça, nos termos dos art.s 3.º n.° 1, 81.°, 82.°, 85.° n.° 1 al. b), 87.°, 92.° e 96.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
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Por acórdão proferido pela Secção do Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 05-02-2020 foi anulada a referida deliberação, pelos fundamentos que constam de fls 450 a 502.
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II — Dos Factos
A — Factos provados (Acrescentando-se os factos mencionados no acórdão anulatório e que, em sede de fundamentação da matéria de facto expressamente se assinalarão)
1 — O Exmo. Sr. Juiz nasceu no dia ……1974;
2 — Ingressou no Centro de Estudos Judiciários em …..2003, integrando o …. Curso Normal.
3 — Concluída a formação inicial, por despacho do Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura de 30-06-2006, com efeitos a partir de 15-07 seguinte, foi nomeado Juiz de Direito e colocado como auxiliar no Tribunal Judicial da comarca ........
4 — Após o que foi sucessivamente nomeado e colocado nos Tribunais Judiciais das Comarcas de:
4.1. ........, por decisão de 18-07-2006,
4.2. ........, por decisão de 16-07-2007, como Juiz de Direito auxiliar,
4.3. ........, por decisão de 15-07-2008, como Juiz de Direito efetivo,
4.4. ........, na Instância Local ........, Secção Genérica, por decisão de 08-07-2014, como Juiz de Direito efetivo,
4.5. ........, na Instância Central de Execuções ........, por decisão de 07-07-2015, como Juiz de Direito auxiliar,
4.6. ........, na Instância Central, 1.ª Secção de Execução, por decisão de 12-07-2016, como Juiz de Direito auxiliar,
4.7. ........, no Juízo de Comércio e Juízo de Execução ........, lugar de efetivo (art. 107.°), por decisão de 11-07-2017, tendo a partir de 01 setembro 2017 sido colocado exclusivamente naquele Juízo de Execução.
5 — Do certificado de registo individual do Exmo. Sr. Juiz constam as classificações de:
— «Bom», como Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca ........, no período de 05-09-2006 a 31-08-2007 (deliberação do Conselho Superior da Magistratura de 17-06-2008),
— «Bom com Distinção», como Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca ......., no período de 01-09-2007 a 30-09-2012 (deliberação do Conselho Superior da Magistratura de 27-11-2012) e
— «Muito Bom», como Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca ........, de 01-10-2012 a 31-08-2014, da Instância Local ........, Secção Genérica, de 01-09-2014 a 31-08-2015, da Instância Central de Execuções ........, de 01-09-2015 a 31-08-2016, e da Instância Central de Execuções ........, entre 01-09 e 31-12-2016 (deliberação do Conselho Superior da Magistratura de 19-09-2017).
6 — Do registo disciplinar do Exmo. Senhor Juiz consta que:
6.1. Por deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 15-09-2015, foi-lhe aplicada a pena de advertência, «pela prática de uma infração disciplinar, consubstanciada na violação do dever de zelo e de prossecução do interesse público e de correção», em razão da «prática reiterada» de um «agendamento desajustado, porque em total sobreposição de diligências judiciais», porquanto, em resumo, conforme refere aquela deliberação, que aqui no mais se dá por integralmente reproduzida, ficou demonstrado que
— No «dia 31 de janeiro de 2014», por causa daquela prática, no âmbito de uma «tentativa de conciliação», num processo de divórcio, que se realizava no «gabinete», quando «o Senhor Advogado Dr. BB solicitou (...) a palavra para ditar requerimento, (...)», «o Senhor Juiz arguido, pressupondo a extensão do requerimento, transmitiu ao Causídico que continuasse a ditar na Secretaria, em virtude de continuar as outras diligências, ordenando à Oficial de Justiça (...) que os acompanhasse para o efeito, e convocou outro Oficial de Justiça para secretariar no seu gabinete», o que veio a suceder;
— No dia 27-05-2014, no âmbito de uma conferência de pais realizada em processo tutelar cível, após «o Senhor Juiz arguido (...) ditar o despacho tabelar destinado à notificação das partes para alegações e requerimentos de prova, o Dr. BB pediu (...) a palavra por pretender apresentar requerimento, o que aconteceu, e sobre o qual recaiu decisão de indeferimento, tendo o Senhor Juiz arguido se aprestado a terminar a conferência de pais», sendo que então «o Dr. BB pretendeu formular requerimento adicional» e «o Senhor Juiz arguido assentando na previsível demora da diligência, solicitou ao Dr. BB
que elaborasse na Secretaria e oportunamente decidiria, pois que aguardava ser ouvido em processo judicial através de videoconferência», termos em que «o Dr. BB não aceitou ir, mais uma vez, para o balcão público da secretaria e questionou expressamente o Senhor Juiz se estava em causa uma ordem, tendo o Senhor Juiz arguido afirmado categoricamente que se tratava, na realidade, de uma ordem», após o que «o Dr. BB retirou-se e o ato [foi] assim dado por encerrado»;
— «Na deliberação do CSM datada de 15-07-2013, relativa ao Processo 2013-545-D2 que apreciou queixa apresentada por Advogada, determinado o arquivamento por irrelevância disciplinar, justificou, embora, dirigir «... recomendação ao Exmo. Senhor Juiz no sentido de ter mais cuidado na adjetivação das suas decisões»;
6.2. Por deliberação do Permanente do Conselho Superior da Magistratura de 12-12-2017, na sequência de processo de inquérito, o Arguido foi suspenso preventivamente de funções, em 12-12-2017.
7 - No âmbito dos autos de execução que com o n.° 2226/14....... corriam termos na então Instância Central de Execução de ........, lugar de Juiz ..., em 16-09-2015 a ali executada, V........... - Comércio de Automóveis, Lda., instaurou Embargos de Executado contra a ali exequente, M.......... - S............., Lda., sendo que o respetivo valor do processo cifrava-se em € 1132,76 .
8 - No âmbito daqueles autos de Embargos, em 13-09-2017, o Exmo. Senhor Juiz designou «para realização da audiência de discussão e julgamento (...) o dia 12/10/2017, pelas 10.30 horas, sem prejuízo do disposto no artigo 151.º do CPC».
9 - No âmbito dos mesmos autos de Embargo, em 12-10-2017, pelas 10.30 horas, o Senhor Escrivão Auxiliar CC procedeu à chamada, tendo verificado que não se encontrava ninguém presente, o que constatou igualmente cerca das 10.34 horas, após o que o Exmo. Senhor Juiz abriu a audiência pelas 10.35 horas e proferiu o seguinte despacho: «Tendo em conta que foi dado cumprimento ao disposto no art. 151.° do Código de Processo Civil e que não foi comunicado qualquer impedimento por parte dos Ilustres Mandatários em comparecer na presente audiência e sendo também certo que não se encontra presente qualquer testemunha não se produzirá qualquer prova e determina-se que, oportunamente, sejam os autos conclusos para prolação de sentença» .
10 — As salas de audiências do Juízo de Execução ........ situam-se no … piso do Edifício … do chamado........., sendo que o respetivo acesso implica a prévia identificação de pessoas, por seguranças, no hall de entrada daquele edifício, situado no piso 0 do mesmo edifício .
11 — Na sequência do referido em 8., no apontado dia 12-10-2017, após as 10.35 horas e não depois das 10.40 horas, os Senhores Advogados DD e EE, enquanto causídicos das partes, bem como testemunhas indicadas no âmbito do mencionado processo de Embargos de Executado, chegaram ao referido piso … onde se situam as salas de julgamento do Juízo de Execução ........ .
12 — Entretanto, apercebendo-se que já havia sido realizado julgamento no âmbito dos referidos autos de Embargos de Executado, os Senhores Advogados DD e EE, enquanto causídicos das partes, procuraram falar com o Exmo. Senhor Juiz, o que não lograram.
13 — Igualmente do âmbito do referido processo de Embargos de Executado, em 12-10-2017, pelas 16.36 horas, a Senhora Advogada DD, em nome da Embargada/Exequente e da Embargante/Executada, referindo que o requerimento será também subscrito pelo Senhor Advogado EE, apresentou requerimento na qual referiu, além do mais, que os mandatários das partes e as testemunhas, «em virtude dos procedimentos de identificação implementados à entrada do Tribunal, apenas às 10h37 subiram ao … piso, onde se situa a secretaria e a sala de audiências», tendo constatado pouco depois que o julgamento já tinha ocorrido, termos em que concluíram requerendo o agendamento de «nova data para realização de audiência de discussão e julgamento» .
14 — Em 13-10-2017, o Senhor Advogado da Embargante/Executada apresentou declaração eletrónica de adesão do requerimento indicado em 13.
15 — Na sequência do indicado em 13. e 14., em 17-10-2017, o Exmo Senhor Juiz proferiu despacho do seguinte teor:
«Fls. 74:
Indeferido por manifesta falta de fundamento legal, recordando-se aos requerentes que “10.30” é a hora para iniciar o julgamento e não a hora para chegar ao Tribunal.
Custas do incidente anómalo a cargo da opoente e exequente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs a cargo de cada uma, nos termos do art. 7.°, n.°s 4 e 8, do RCP.»
16 — Em 16-11-2017, o Exmo. Senhor Juiz proferiu sentença nos referidos autos de Embargos de Executado, os quais julgou improcedentes, sendo que a respetiva notificação às partes foi elaborada naquela mesma data, sem que entretanto as mesmas tenham requerido algo.
17 — No processo n.º 6553/11......., Oposição à Execução Comum, cujo valor da causa cifrava-se em € 15 965,76, designada tentativa de conciliação para 11-01-2017, às 10.30horas, como a esta hora não se encontrava presente o Ilustre mandatário do Opoente, o Exmo. Senhor Juiz ordenou que aguardasse 15 minutos pela chegada daquele.
18 — No processo n.° 20239/07........., Embargos de Executado, cujo valor da causa cifrava-se em €12 912,39, designada tentativa de conciliação para 01-02-2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava ninguém, o Exmo. Senhor Juiz ordenou que se aguardasse até às 11 horas pela comparência das partes.
19 — No processo n.° 960/14......., Embargos de Executado, cujo valor da causa cifrava-se em € 21 053,63, designada tentativa de conciliação para 21-03-2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava ninguém, o Exmo. Senhor Juiz ordenou que se aguardasse 15/20 minutos pela comparência dos convocados.
20 — No processo 13817/06......., Embargos de Executado, cujo valor da causa cifrava-se em € 14 430,00, designada audiência final para 24-05-2017, às 10. 30 horas, como a esta hora não se encontrava o Ilustre Mandatário do Embargado, o Exmo. Senhor Juiz ordenou que se aguardasse 10 minutos pela chegada daquele.
21 — No processo 4941/14....., Embargos de Executado, cujo valor da causa cifrava-se em € 49 766,05, designada tentativa de conciliação para 29-06-2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava o Ilustre Mandatário do Embargado, o Exmo. Senhor Juiz ordenou que se aguardasse 15 minutos pela chegada daquele.
22 — No processo 1925/14......, Embargos de Executado, cujo valor da causa cifrava-se em € 42 397,18, designada tentativa de conciliação para 05-07-2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava o Ilustre Mandatário da Embargante, o Exmo. Senhor Juiz ordenou que se aguardasse 10 minutos pela chegada daquele.
23 — No processo n.° 271/14........, Embargos de Executado, cujo valor da causa cifrava-se em €1596.640,50, designada tentativa de conciliação para 17-10-2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava ninguém, o Exmo. Senhor Juiz ordenou que se aguardasse por 20 minutos pela comparência das partes.
24 — No processo n.° 5245/14......, Embargos de Terceiro, cujo valor da causa cifrava-se em € 30 000,01, designada tentativa de conciliação para 24-10-2017, às 10. 30 horas, como a esta hora não se encontrava o Ilustre Mandatário do Embargado, o Exmo. Senhor Juiz ordenou que se aguardasse 20 minutos pela chegada daquele.
25 — No processo n.° 668/14......, Embargos de Executado, cujo valor da causa cifrava-se em € 85 051,03, designada audiência final para 07-11-2017, às 10.30 horas, como a. esta hora não se encontrava o Ilustre Mandatário da Embargada e testemunhas desta, o Exmo. Senhor Juiz aguardou pela chegada daquele causídico, o que sucedeu pelas 10.42 minutos, tendo declarado aberta a audiência pelas 10.50 horas.
26 — No processo n.° 4542/12......., Oposição à Execução Comum, cujo valor da causa cifrava-se em € 300 384,33, designada tentativa de conciliação para 08-11-2017, às 10.30 horas, como a esta hora não se encontrava presente o Ilustre mandatário dos Opoentes, o Exmo. Senhor Juiz ordenou que aguardasse 10 minutos pela chegada daquele.
27 — No processo 26367/09........, embargos de executado (2013), designada inquirição de testemunhas em incidente de oposição à penhora, com o valor processual de €35 802,21, em 09-06-2016, o Exmo. Senhor Juiz, aguardou cerca de 30 minutos pela presença de mandatário forense, sem este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência.
28 — No processo 21048/08........, embargos de terceiro, designada audiência final, com o valor processual de €8500,00, em 12-09-2016, o Exmo. Senhor Juiz aguardou cerca de 12 minutos pela presença de mandatário forense, sem este tenha
comunicado o respetivo atraso ou ausência.
29 — No processo 16832/12......., oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de €10 707,11, em 11-10-2016, o Exmo. Senhor Juiz aguardou cerca de 21 minutos pela presença de mandatário forense, sem este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência.
30 — No processo 16832/12......., oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de €10 707,11, em 11.10.2016, o Exmo. Senhor Juiz aguardou cerca de 21 minutos pela presença de mandatário forense, sem este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência.
31 — No processo 16832/12......., oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de €10 707,11, em 11.10.2016, o Exmo. Senhor Juiz
aguardou cerca de 21 minutos pela presença de mandatário forense, sem este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência .
32 — No processo 20660/08......., embargos de executado (2013), com o valor processual de € 7759,07, em 03-11-2016, o Exmo. Senhor Juiz aguardou cerca de 10 minutos pela presença de mandatário forense, sem este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência.
33 — No processo 24667/10......, oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de € 300 785,80, em 29-11-2016, o Exmo. Senhor Juiz aguardou cerca de 17 minutos pela presença de mandatário forense, sem este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência.
34 — No processo 20147/13....., embargos de executado (2013), com o valor processual de € 10 800,00, em 15-03-2017, o Exmo. Senhor Juiz mandou aguardar cerca de 15 minutos pela presença de mandatário forense, sem este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência.
35 — No processo 13631/14......., embargos de executado (2013), com o valor processual de € 29 900,00, em 05-04-2017, o Exmo. Senhor Juiz aguardou pelo menos cerca de 18 minutos pela presença de mandatário forense, sem este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência.
36 — No processo 6070/14......., embargos de executado (2013), com o valor processual de € 2 252 987,38, em 26-04-2017, o Exmo. Senhor Juiz mandou que se aguardasse alguns minutos pela chegada das pessoas convocadas sem tenha sido comunicado o respetivo atraso ou ausência.
37 — No processo 6070/14......., embargos de executado (2013), com o valor processual de € 2 252 987,38, em 26-04-2017, o Exmo. Senhor Juiz mandou que se
aguardasse alguns minutos pela chegada das pessoas convocadas sem tenha sido comunicado o respetivo atraso ou ausência.
38 — No processo 69414/05........, embargos de executado (2013), com o valor processual de € 8956,17, em 28-06-2017, o Exmo Senhor Juiz aguardou pelo menos cerca de 16 minutos pela presença de mandatário forense, sem este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência.
39 — No processo 22472/11......., embargos de executado (2013), com o valor processual de € 2266,76, a audiência final em 20-09-2016, foi iniciada cerca de 7 minutos depois da hora agendada, sem a presença de um dos mandatários das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, e encerrada 31 minutos depois da hora agendada.
40 — No processo 9307/12......, oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de € 11 667,08, audiência de discussão e julgamento em 11-10-2016, foi iniciada cerca de 6 minutos depois da hora agendada, sem a presença de um dos mandatários das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência e encerrada 14 minutos depois da hora agendada.
41 — No processo 14765/10........, oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de € 6288,02, audiência de discussão e julgamento em 18-10-2016, foi iniciada cerca de 8 minutos depois da hora agendada, sem a presença de um dos mandatários das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência e encerrada 16 minutos depois da hora agendada.
42 — No processo 85/07......, oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de € 78 692,31, audiência de discussão e julgamento em 07-11-2016 (1.ª sessão) e 02.02.2017 (2.ª sessão), foram iniciadas cerca de 5 e 2 minutos depois da hora agendada, sem a presença de um dos mandatários das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência e encerradas 34 e 25 minutos depois da hora agendada, respetivamente.
43 — No processo 11304/09......., embargos de executado (2013), com o valor processual de € 29 558,83, audiência prévia em 07-11-2016, foi iniciada cerca de 5 minutos depois da hora agendada, sem a presença de um dos mandatários das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, e encerrada 17 minutos depois da hora agendada.
44 — No processo 22665/08......., oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de € 20 270,38, audiência de discussão e julgamento em 20-12-2016, foi iniciada cerca de 7 minutos depois da hora agendada, sem a presença de um dos mandatários das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência e encerrada 25 minutos depois da hora agendada.
45 — No processo 29686/09......., oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de € 16 223,13, audiência de discussão e julgamento em 19-01-2017, foi iniciada em hora não indicada sem a presença de um dos mandatários das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência e encerrada 15 minutos depois da hora agendada.
46 — No processo 35845/11......., embargos de executado (2013), com o valor processual de € 2512,68, audiência final em 21-02-2017, foi iniciada cerca de 5 minutos depois da hora agendada, sem a presença de um dos mandatários das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência e encerrada 25 minutos depois da hora agendada.
47 — No processo 42037/06......., embargos de executado (2013), com o valor processual de € 15 574,41, audiência final em 09-05-2017, foi iniciada à hora indicada sem a presença de um dos mandatários das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência e encerrada 15 minutos depois da hora agendada.
48 — No processo 13762/13......., embargos de executado (2013), com o valor processual de € 1291,66, audiência final em 14-11-2017, foi iniciada cerca de 7 minutos depois da hora agendada, sem a presença de um dos mandatários das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, e encerrada 46 minutos depois da hora agendada.
49 — No processo n.° 22020/11......., oposição à execução comum (art. 813.° CPC), com o valor processual de € 2788,41, designada audiência de discussão para 18-10-2016, pelas 11 horas, à hora indicada ninguém se encontrava presente, foi iniciada pelas 11 horas e 2 minutos e após prolação da decisão da matéria de facto foi encerrada pelas 11.10 minutos.
50 — Ao proceder da forma descrita, nomeadamente em 9., 15. e 16., o Senhor Juiz agiu de modo livre, consciente e voluntário, com o propósito de não despender tempo com a diligência de julgamento e tornar assim o mais simples possível a decisão de mérito da causa, bem sabendo que a circulação na cidade de ........ causa por vezes alguns atrasos, tal como sucede com as formalidades de acesso ao Juízo de Execução de ........; sabia igualmente que os indicados autos de execução n.° 2226/14....... não tinham alçada para recurso e que a sua descrita conduta naqueles autos reportada a outubro passado violava o seu dever de administrar a Justiça e de correção.
No que respeita ao Processo n.º 20853/08……
51 — Em 25-09-2008 a então S.......... - Sociedade Portuguesa de Navios Tanque, SA., e S.......... Internacional - SGPS (……), Sociedade Unipessoal, Lda., vieram interpor execução para pagamento de quantia certa contra P............ - P........, SA., e S....... Marítima, SA., dando à execução um acórdão arbitrai, com quantia exequenda em parte líquida e em parte ilíquida.
52 — Em 19-12-2011, as então executadas P............ - P........, SA., e S....... Marítima, SA., vieram deduzir oposição àquela liquidação, a qual passou a constituir o Apenso E do referido processo n.° 20853/08........
53 — Em 11-06-2012, a Senhora Juíza de Direito então titular dos autos, designou audiência preliminar para o dia 27.09 seguinte.
54 — Em 27-09-2012 realizou-se tal audiência preliminar, tendo o Senhor Juiz de Direito que a ela presidiu determinado que os autos lhe fossem conclusos.
55 — Em 31-01-2014, o Senhor Juiz de Direito titular dos autos proferiu despacho de aperfeiçoamento.
56 — Em 26-02-2014, a Exequente juntou aos autos articulado aperfeiçoado, bem como diversos documentos, entre os quais dois em língua inglesa.
57 — Em 03-03-2014, o Senhor Juiz de Direito titular dos autos proferiu despacho em que, além mais, ordenou a notificação da Exequente para juntar tradução dos referidos documentos.
58 — Em 17-03-2014, a Exequente juntou aos autos alegada tradução daqueles documentos, acompanhada de um «certificado de tradução», assinado pela Ilustre Senhora Advogada Estagiária FF, na qual esta, no que aqui releva, certificava que Senhora «Dra. GG» lhe «declarou, sob compromisso de honra, que a tradução para língua portuguesa dos documentos anexos, escritos em língua inglesa, foi por ela feita e reproduz fiel e corretamente o respetivo original, tradução essa pela qual (...) declarou assumir inteira e completa responsabilidade» .
59 — Em 24-03-2014, em articulado que juntou então aos autos, as Executadas referiram, além do mais, que «a tradução do contrato de financiamento adulterou a versão original em língua inglesa, do mesmo, pelo que» impugnaram «a sua tradução».
60 — Em articulado seguinte, a Exequente veio reconhecer que «a tradução inicialmente oferecida do contrato supra referenciado (...) não é integralmente fiel ao respetivo original» e requereu «a junção aos autos (i) de nova tradução do dito contrato, a qual, crê, não enferma já de quaisquer lapsos, sendo fiel ao respetivo original, máxime no que se refere à tradução, para português, da expressão COA constante dos pontos 7 e 8 da Parte A do Anexo 3 do referido instrumento negocial e, bem assim, (ii) de carta redigida pela tradutora responsável por ambas as traduções explicando os motivos que estiveram na base dos lapsos identificados (...)» °.
61 — Em 22-04-2016, o Senhor Juiz de Direito titular dos autos designou para 31.05 seguinte a realização de uma tentativa de conciliação.
62 — Em 31-05-2016 realizou-se tal tentativa de conciliação, tendo o Senhor Juiz de Direito que a ela presidiu determinado que os autos lhe fossem conclusos.
63 — Em 09-06-2017, o Senhor Juiz de Direito titular dos autos ordenou que estes fossem conclusos após férias judiciais de verão.
64 — Aberta nova conclusão nos autos em 20-11-2017, o Exmo. Senhor Juiz AA proferiu em 22-11-2017 o seguinte despacho:
«Fls. 354-614:
» Na sequência da notificação de fls. 344, veio a exequente juntar aos autos uma tradução do contrato de mútuo celebrado com o Christiania Bank que apresenta desconformidades face ao documento original em inglês, desde logo ao nível nos pontos 7 e 8 da Parte A do Anexo 3 (fls. 4418), onde, de uma forma absolutamente lamentável, se faz corresponder a expressão COA (Contract of Affreightment - tal como definido na cláusula 1.1. b) do Contrato de Mútuo ou seja, o contrato de Afretamento celebrado entre o exequente e a executada P........) a “Plano de Contabilidade”, o que teria a virtualidade de “afastar” uma eventual “dependência” do financiamento face ao contrato de afretamento celebrado com o executado P........ para efeitos da consideração de eventuais benefícios da exequente para dedução ao valor de €8.673.795,00, desde logo quando o exequente, no requerimento executivo alega que não bá qualquer valor a deduzir, com o propósito de que a quantia exequenda inclua tal valor in totum.
» E, tendo tal situação sido desmascarada pelos opoentes a fls. 646-651, veio o exequente juntar nova tradução, onde tal desconformidade (para mais da autoria de uma tradutora oficial e certificada por uma advogada- estagiária, perguntando-se com que base tal certificação foi emitida) é eliminada.
» Ora, tal conduta da exequente não pode deixar de ser considerada como uma violação do dever de cooperação com o Tribunal na descoberta da verdade que sobre si recai e, como tal, condena-se o exequente no pagamento de uma multa que se fixa em 7 UCs, nos termos do art. 21°, n.° 2, do RCP.
» Mais extraia certidão de fls. 354-614, 616-674 e 748-1002 e deste despacho e remeta ao MP para instauração de procedimento criminal quanto a um eventual crime de falsidade da tradução (e da certificação de documento que padece de falsidade intelectual).
» Fls. 708:
» Na medida em que os arts. 1.° a 95.° do requerimento de fls. 617e ss está intimamente ligado à factualidade alegada subsequentemente ao abrigo do contraditório, não existe qualquer nulidade, pelo que se indefere a sua arguição.
» Custas a cargo do exequente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs, nos termos do art. 7.°, n.° 4, do RCP.
» Tendo em conta que, ainda que ao arrepio daquilo que alegou no requerimento executivo, a exequente obteve, em 2000 e 2001, as receitas líquidas que refere no quadro de fls. 191-192, que, por si só, ultrapassam o valor de €8.673.795,00 (tomando desnecessária a apreciação da questão de saber se o COA trouxe benefícios ao nível das condições do financiamento), notifique as partes para, em 10 dias, se pronunciarem, querendo quanto à antecipação do mérito da causa, bem como a exequente para, atento o que se referiu supra, se pronunciar quanto a uma eventual condenação por litigância de má fé» .
65 — Ao atuar nos termos indicados em 64., o Exmo. Senhor Juiz procedeu de modo livre, consciente e voluntário, bem sabendo que atuava mais de três anos após a ocorrência da alegada falsificação que invocou e da prolação de três despachos judiciais no processo em causa.
66 — O Exmo. Senhor Juiz AA aufere a remuneração base mensal de € 5626,63.
*
B — Factos não provados
a) Ao atuar nos termos descritos em 64 o Exmo. Senhor Juiz adotou uma postura autocrática, de afirmação de poder, utilizando uma linguagem ofensiva da honorabilidade de Advogado, bem sabendo ainda que ao assim proceder violava os seus deveres profissionais de administrar a justiça e de correção.
b) Sempre que os Advogados informam que se encontram atrasados, o Exmo. Senhor Juiz aguarda pelos mesmos, independentemente de tal constar das atas.
*
III- Motivação da decisão sobre a matéria de facto
A convicção quanto à matéria de facto provada assentou na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida nos autos, quer pessoal, quer documental que foi sendo indicada nas notas de rodapé e do seu confronto com os documentos constantes do Anexo I, bem como dos CD’s juntos aos autos.
Cumpre referir que, em função do acórdão anulatório proferido pela Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça, procedeu-se ao aditamento dos factos descritos sob os números 17, 20, 21, 22, 24, 25, 26. 27 a 49, cuia fundamentação se encontra vertida nas notas de rodapé aos mesmos respeitantes.
Quanto ao mais, aderiu-se, no essencial, à apreciação efetuada pelo Exmo. Senhor Inspetor e vertida no relatório final.
Assim:
1. Prova Pessoal, registada em auto:
a) Declarações do Arguido (autos de fls. 166 a 171 e 307 a 309).
b) Depoimento das Testemunhas:
1. Exmo. Senhor Advogado Dr. EE (autos de fls. 67 a
69),
2. Exma Senhora Advogada Dra DD (auto de fls. 70 a 72),
3. Senhor Escrivão Auxiliar CC (auto de fls. 74 a 76 e 373 a 375);
2. Documental:
Para além da mencionada nas notas de rodapé, a constante dos autos, designadamente de fls. 8 a 13, 17 a 62, 84 a 132, 141 a 147, 154, 155, 173, 174, 206, 207, 233 a 300, 302 a 305, 311, 312, 364, 365 e 369, no seu confronto entre si e com os documentos constantes do Anexo A, nomeadamente dos constantes de fls. 11 a 14,20 a 23, 27 a 31, 66 a 69 a 81, 93 a 96, 116 a 119, 124 a 127, 154 a 158, 172 a 180, 200 a 204, 221 a 224, 242 a 245, 270 a 272, 291 a 293, 302 a 308 a 311, 350 a 353 e 427 a 430.
Mais concretamente e, em função da defesa apresentada pelo Exmo. Senhor Juiz:
— Quanto aos factos 5 e 6.1, os mesmos fundamentam-se no teor dos documentos a fls. 41 (Percurso Profissional) e 42 (Classificações), complementados com o teor de fls. 173 (Registo Disciplinar), sendo que o Exmo. Senhor Juiz não aduziu na matéria qualquer facto concreto que possa ou pertinentemente deva ser aditado.
— Quanto ao alegado relativamente ao processo n.° 2226/14....... em si mesmo.
Em causa está o apurado facto de o Exmo. Senhor Juiz ter iniciado e concluído o julgamento cerca de cinco minutos depois da hora agendada para o seu início, sem a presença de qualquer interveniente processual e determinando então a conclusão dos autos para sentença, sendo que os respetivos Advogados e testemunhas compareceram em Tribunal não mais que 10 minutos depois da hora agendada e procuraram que o julgamento ocorresse, quer por diligências que então fizeram, quer por requerimento que apresentaram, sem, contudo, o conseguirem, em processo insuscetível de recurso em razão do valor da causa.
Naquele contexto, configura-se absolutamente inócuo saber, em concreto, «a que horas os Senhores Advogados se apresentaram na portaria do tribunal», a circunstância destes terem ou não «escritório em ........ e ……..», serem ou não «utentes habituais ........», conhecerem ou não «o procedimento de entrada no edifício» do Juízo de Execução ........, as concretas razões do respetivo atraso, nomeadamente o concreto tempo gasto no «procedimento de entrada no edifício» do Tribunal, o facto de ser ou não «hora de ponta», bem como a circunstância de não terem informado o Tribunal do respetivo atraso.
Aliás, em tais matérias o Exmo. Senhor Juiz não aduziu factos concretos e muito menos elementos de prova pertinentes que os fundamentem, refugiando-se antes em afirmações genéricas e conclusivas.
De todo o modo, quanto a tais matérias, da prova produzida não é possível infirmar o constante em sede de acusação, nem explicitar factualidade dela integrante ou aditar nova factualidade em função da prova produzida nos autos.
No que respeita ao concreto atraso verificado por parte dos Ilustres Advogados e testemunhas.
Na participação apresentada refere-se que os Senhores Advogados e as testemunhas «apenas às 10H37 subiram ao … piso onde se situa a secretaria judicial e sala de audiências», e aí «aguardaram por 10 minutos» pela chamada, após o que «deslocaram-se à secretaria judicial e quando foram atendidos (cerca de 10 minutos depois) obtiveram a informação de que a 1.ª chamada havia sido feita às 10H30 e a segunda às 10H33, tendo a diligência sido dada sem efeito, por falta de comparência das partes e seus mandatários, às 10H35».
Tal é igualmente referido no requerimento que os Ilustres Advogados apresentaram no referido processo.
O Exmo. Senhor Advogado Dr. EE, participante, quando ouvido na qualidade de testemunha, referiu que «subiram ao …. piso» «alguns minutos» após as «10.30 horas», sendo que aí «esperaram que fosse feita chamada para o processo em causa» e, na falta desta, «por volta das 10,45/10,50 horas abordaram um funcionário do Juízo de Execução o qual lhes disse que o julgamento já tinha ocorrido.
A Exma. Senhora Advogada Dra. DD, igualmente participante, na qualidade de testemunha nos autos disse que «por volta das 10.25 horas (...) chegou à porta de entrada do edifício do Juízo de Execução ........, onde aguardou pelos procedimentos de identificação, o que terá demorado alguns minutos», após o que subiu «ao … piso onde» aguardou alguns minutos pela chamada pelo julgamento do processo em causa», sendo que «passados uns minutos e face à ausência de qualquer chamada» abordou «um funcionário na Secção de Execuções».
O Senhor Escrivão Auxiliar CC, quando ouvido como testemunha em 04-01-2018 disse que «à hora designada, como procede em todos os processos, realizou a chamada e verificou que não se encontrava presente qualquer pessoa para o processo em causa. Após deslocou-se à sala de audiência n.° 3 e daí telefonou ao Senhor Juiz AA, comunicando que ninguém estava presente. O Senhor Juiz perguntou-lhe se alguém havia telefonado a comunicar algum atraso e perante resposta negativa do depoente o Senhor Juiz afirmou-lhe que se deslocaria de imediato à sala de julgamento. Entretanto, o depoente deslocou-se mais uma vez ao átrio onde costumam comparecer os convocados para julgamento e aí constatou de novo que ninguém se encontrava presente, pelo que voltou de novo à sala de julgamento onde momentos depois chegou o Senhor Juiz, o qual proferiu o despacho que consta da ata e assim terminou a audiência final», sendo que «entretanto, já na secção, apercebeu-se que junto à mesma se encontravam os Ilustres Advogados do processo em causa, tendo então informado os mesmos que o julgamento já tinha acontecido» .
Finalmente, da ata relativa à audiência final em causa consta que foi «realizada chamada à hora designada» e «cerca 04 (quatro) minutos depois da hora designada», tendo-se constado a ausência de qualquer dos convocados», após o que a «audiência final» foi «aberta» às «10 horas e 35 minutos» e «pelo Mm.° Juiz de Direito foi proferido o seguinte: Despacho “Tendo em conta que foi dado cumprimento ao disposto no art. 151.° do Código de Processo Civil e que não foi comunicado qualquer impedimento por parte dos Ilustres Mandatários em comparecer na presente audiência e sendo também certo que não se encontra presente qualquer testemunha não se produzirá qualquer prova e determina-se que, oportunamente, sejam os autos conclusos para prolação de sentença Notifique”. De imediato, pelo Mm.° Juiz de Direito foi encerrada a presente audiência» .
Não tendo visto os Ilustres Advogados aquando dos factos em causa, as declarações do Arguido revelam-se inócuas quanto à factualidade em apreço.
Perante tais elementos probatórios afigura-se justificada a factualidade indicada nos artigos 9 e 11:
A audiência iniciou-se pelas 10.35 horas e, após despacho tabelar, encerrou de imediato, sendo que instantes depois, quando o Senhor Escrivão Adjunto se encontrava na Secção, o mesmo foi abordado pelos Ilustres Advogados participantes que já aí se encontravam há algum tempo, aguardando a realização de uma chamada para julgamento, estima-se que pelo menos desde as 10.40 horas, atentas os indicados depoimentos prestados e a proximidade da sala de audiências e da Secção de processos, assim como as regras da experiência comum e da lógica.
Quanto ao modo pelo qual o Exmo. Senhor Juiz soube da presença dos Ilustres Advogados.
Na participação apresentada ao Conselho Superior da Magistratura refere-se que naquelas circunstâncias «os signatários (...) solicitaram o contacto com o Mmo. Juiz, a fim de explicar a situação, contacto esse que não foi permitido».
Tal é igualmente referido no requerimento que os Ilustres Advogados apresentaram no referido processo.
O Exmo. Senhor Advogado Dr. EE, participante, ouvido na qualidade de testemunha, referiu que os Ilustres Advogados das partes «abordaram um funcionários do Juízo de Execução» e «pediram para falar com o Juiz, o que não foi possível, não sabendo precisar se o dito funcionário terá afirmado tal impossibilidade após ter falado com o Senhor Juiz ou simplesmente por estar a cumprir ordens prévias do Senhor Juiz da causa».
A Exma. Senhora Advogada Dra. DD, igualmente participante, na qualidade de testemunha nos autos, disse que «pediram (...) ao funcionário para falar com o Juiz ou para o mesmo explicar ao Senhor Juiz a situação: que estavam todos presentes e que o atraso verificado decorria tão simplesmente de procedimentos de identificação», sendo que perante tal solicitação o funcionário disse “que o Juiz não tolera atrasos e que naquele Juízo era assim que funcionava, que o Meritíssimo Juiz não recebia ninguém e que não valia a pena ele, funcionário, ir falar com o Juiz, que tinha sido dado despacho e que era assim”.
O Senhor Escrivão Auxiliar CC, quando ouvido como testemunha em 04.01.2018 disse que «os Advogados (...) pediram ao depoente sucedido e que o Senhor Juiz era muito rigoroso na pontualidade das diligências pelo que a situação já seria irreversível», sendo que «lembra-se que relativamente à situação em causa falou com o Senhor Juiz AA, no gabinete deste, não sabendo precisar se os advogados ainda se encontravam no Tribunal ou se já se tinham ido embora, tendo ficado com a convicção, na sequência da conversa havida com o Senhor Juiz, que situação era irreversível para o mesmo».
Por outro lado, o mesmo Escrivão Auxiliar, CC, quando ouvido de novo como testemunha, por arrolado na defesa, em 20-06-2018 referiu que «tem ideia que, ainda com» os Ilustres Mandatários das partes «presentes no Tribunal se deslocou ao gabinete do Senhor Juiz de Direito Dr. AA e aí expôs-lhe a situação, informando-o da presença dos Srs. Advogados e da indignação manifestada pelos mesmos», sendo que «então o Senhor Juiz referiu que o julgamento estava feito e o despacho proferido, após o que transmitiu tal aos Srs. Advogados», explicitando ainda que «sem ter a certeza do realmente sucedido a ideia que hoje tem é que foi a pedido dos Srs. Advogados que foi falar com o Senhor Juiz e que depois de falar com o mesmo terá transmitido aos Srs. Advogados o declarado pelo Senhor Juiz ainda quando os mesmos se encontravam no Tribunal».
Na matéria, o Exmo. Senhor Juiz disse na sua resposta, em sede de inquérito, que tomou conhecimento da presença dos Ilustres Advogados aquando da partilha da ata e na sequência de pedido de esclarecimento do próprio, o que reafirmou quando ouvido em declarações no inquérito e no processo disciplinar.
No cotejo de tais elementos probatórios, divergentes, e até contraditórios, quanto ao preciso momento em que o Exmo. Senhor Juiz soube da presença dos Ilustres Advogados e testemunhas em Tribunal, urge entender que nada foi apurado nessa sede, delimitando-se a matéria nos termos constantes do descrito em 12 cuja factualidade assim descrita resulta de forma unânime da apontada prova pessoal produzida.
Não se está, pois, perante uma situação de dúvida razoável, mas de factualidade não provada.
- Quanto ao facto descrito em 50, em causa está o chamado elemento subjetivo da infração disciplinar. Isto é, o conhecimento e a vontade de atuação por parte do agente.
Como se analisa do elenco de factos relacionados com o início e fim das diligências ocorridas em múltiplos processos, o Exmo. Senhor Juiz não adotou uma postura uniforme quando, no início de uma diligência judicial, não estavam presentes os respetivos mandatários forenses e estes não informavam o Tribunal do seu atraso ou ausência.
Nos processos 20239/07........., 960/14....... e 271/14........ esperou entre 15 e 30 minutos pela chegada de mandatário forense (cf. respetivamente fls. 144, 145 e 364, 146,147, 365 dos autos e 273 a 275 do anexo A, 154, 155 dos autos e 388 a 390 do anexo A).
Relativamente ao referido processo n.° 2226/14......., em causa nestes autos, o Exmo. Senhor Juiz iniciou e findou o julgamento antes de decorrerem 10 minutos sobre a hora agendada para o respetivo início, na ausência de qualquer interveniente processual, nomeadamente dos respetivos mandatários judiciais (cf. fls. 18 a 20 dos autos).
Igual procedimento sucedeu no processo n.° 22020/11....... (cf. fls 93 a 96 do anexo A).
De comum, o processo n.° 2226/14....... e o processo n.° 22020/11....... têm o. facto de o valor da causa não permitir a interposição de recurso ordinário.
Diversamente, nos processos n.os 20239/07……., 960/14…… e 271/14........, cujos valores da causa permitem a interposição de recurso ordinário, embora no início das respetivas diligências judiciais também ninguém se
encontrasse presente, o Senhor Juiz aguardou entre 15 e 30 minutos pela chegada de mandatário forense.
Nestes termos, em função de tais elementos, à luz das regras da experiência comum e da lógica, a nossa convicção é que o Exmo. Senhor Juiz agiu no processo n.° 2226/14......., em causa nestes autos, conforme indicado, bem sabendo que o mesmo não tinha alçada de recurso e por forma a evitar a realização de julgamento e o tempo e trabalho acrescido dele decorrente, tomando assim o mais simples possível o desfecho do caso, com decisões de facto e de direito assaz simplificadas.
Não fosse esse o propósito, por certo teria esperado pelo menos 15 minutos pela chegada dos Advogados das partes, tal como o fez em situações similares.
- Relativamente ao referido processo n.° 20853/08........,
Os factos 51 a 64 não foram impugnados pelo Exmº Senhor Juiz, sendo que a mesma encontra-se fundada nos elementos documentais aí referidos.
De todo o modo, deu-se por não provada a matéria constante da alínea a) da factualidade não provada, uma vez que, como melhor se discutirá em sede de direito, é entendimento que a conduta descrita em 65, inequivocamente livre e voluntária, como de resto admitido pelo Exmo Senhor Juiz, e não obstante a deselegância patente, não tem suficiente densidade para constituir a violação de um dever funcional constitutivo de infração disciplinar.
No que se refere à alínea b), seguindo a argumentação expendida no relatório final, após a junção dos elementos pedidos, em sede de defesa, atas de todas as diligências por si realizadas entre 07-09-2016 e 12-12-2017, sugerindo que o procedimento que seguiu no processo n.° 2226/14......., em causa nestes autos, terá sido igualmente seguido noutros processos.
A partir do módulo «Histórico da Gestão Processual», da listagem de «Documentos Partilhados Devolvidos», extraíram-se do Citius os elementos pretendidos, os quais constituem o Anexo A.
Da análise da documentação aí constante decorre que uma situação idêntica à seguida no referido processo n.° 2226/14....... ocorreu tão-só no processo n.° 22020/11......., oposição à execução comum (art 813.° CPC), com o valor processual de €2788,41, numa audiência de discussão e julgamento realizada em 18-10-2016.
Apenas naquelas duas situações o julgamento iniciou-se e findou antes de decorrerem mais de 10 minutos da hora agendada para o seu início, sem a presença de qualquer interveniente processual, nomeadamente de qualquer mandatário das partes.
Em ambos os casos inexistia alçada para recurso.
Da análise da documentação constante do Anexo A decorre que a audiência prévia, a tentativa de conciliação ou o julgamento começaram antes de decorrerem 10 minutos da hora designada para o seu início, sem a presença de um dos mandatários judiciais das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, findando em todo o caso 14 minutos ou mais depois da hora designada para o seu início, nos 10 processos descritos nos factos 39 a 48.
Por outro lado, à semelhança dos 10 processos indicados nos artigos 17 a 26 da factualidade provada, da documentação constante do Anexo A, resulta que o Exmo. Senhor Juiz aguardou entre 10 e 30 minutos pela presença de mandatário forense ausente, sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, nos processos descritos nos factos 27 a 38.
Tais constatações, por sua vez, levam-nos também a fundamentar a factualidade dada por não provada descrita na alínea b).
Finalmente, quanto ao facto 66, o mesmo fundamentou-se no recibo de vencimento do Exmo. Senhor Juiz, o qual solicitei nos serviços competentes deste Conselho Superior da Magistratura.
IV — Questão prévia da Violação do princípio ne bis in idem
Como se constata da factualidade dada por provada em 6.1, em conformidade com os documentos que fazem fls. 45 a 62 dos autos, descreveu-se o constante do procedimento disciplinar n.° .....389.
Ao indicar aqui tal factualidade, não se pretende sancionar disciplinarmente a conduta aí em causa, mas tão-só integrar factualmente a sanção disciplinar aplicada no referido procedimento disciplinar n.° .....389 e nessa medida não se vislumbra qualquer violação do princípio non bis in iâem.
V — Apreciação da responsabilidade disciplinar
1. Antes de mais cumpre dizer que a anulação administrativa de que foi objeto a deliberação deste Conselho Superior da Magistratura de 29-01-2019, não contende com o decurso do prazo de prescrição a que alude o art. 83.°-C n.° 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na redação que lhe foi dada pela Lei 67/2019 (anterior art. 178.° n.° 5 da LGTFP, aplicável à data daquela deliberação por força do art.° 131.º do EMJ).
Com efeito, nos recursos administrativos das decisões do Conselho dos Oficiais de Justiça para o Conselho Superior da Magistratura ou nos recursos das deliberações do Conselho Permanente para o Plenário do CSM, deve ser entendida como decisão final a decisão do Plenário do CSM.
Tratando-se de deliberações que tenham por objeto infrações disciplinares de magistrados judiciais, a decisão final que deve ser tida em conta para efeitos do respeito do prazo prescricional de 18 meses é também a deliberação do Plenário do CSM, sendo que os recursos destas deliberações do Plenário para seção do contencioso do STJ têm natureza jurisdicional pelo que as mesmas suspendem o prazo prescricional como determina o atual art. 83.°-C n.° 2 (anterior art. 178.° n.° 6 da LGTFP).
2. Considerações Gerais
A Magistratura Judicial tem por função administrar a justiça, competindo-lhe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados - artigo 202.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa e artigo 3.°, n.° 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na redação da Lei n.° 21/85, de 30 de julho (EMJ).
Resulta do artigo 216.°, n. 2, da Constituição da República Portuguesa que os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões. Ressalvando, contudo, as exceções consignadas na lei.
O artigo 5.°, do EMJ, reafirma o mesmo princípio de irresponsabilidade mas logo estipula que «Só nos casos especialmente previstos na lei os magistrados judiciais podem ser sujeitos, em razão do exercício das suas funções, a responsabilidade civil, criminal ou disciplinar» (n.º 3).
Ora, de acordo com o disposto no artigo 82.° EMJ, constituem infração disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais e os atos ou omissões da sua vida pública, ou que nela se repercutam, incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções.
Na realidade, apesar da consagração geral da irresponsabilidade, os juízes estão sujeitos a diversos deveres profissionais. Designadamente os previstos nos artigos 8.° e segs. do EMJ, bem como os que, atualmente, resultam da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas - Lei n.° 35/2014, de 20 de junho (LGTFP), de aplicação subsidiária.
Os elementos objetivos previstos no citado artigo 82.° traduzem-se, pois;
— nos atos violadores dos deveres profissionais dos magistrados judiciais, sejam os enumerados no EMJ, sejam os enumerados na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas;
— ou nos atos ou omissões da vida pública ou que nela se repercutam, incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício da função.
O artigo 82.° do EMJ não tem, assim, de enumerar os deveres profissionais a que se refere, mas todos estão previstos na lei; não tem de dizer a que atos ou omissões incompatíveis com a dignidade se reporta, pois são todos os que violem o bem jurídico que se quis proteger.
3. Em concreto, é imputada ao Ex.mo senhor Juiz a violação dos deveres profissionais de administrar a justiça e de correção.
O dever de administrar a justiça resulta dos artigos 202.°, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e 3.° do EMJ, onde se refere que «é função da magistratura judicial administrar a justiça de acordo com as fontes a que, segundo a lei, deva recorrer e fazer executar as suas decisões». Trata-se de um dever especial, inerente à função específica dos juízes, que se enquadrará na previsão do dever geral de prossecução do interesse público previsto no art. 73.°, n.° 2, al. a) e n.° 3 da LGTFP.
Este dever de prossecução do interesse público na justiça consiste na sua defesa, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Com as necessárias adaptações decorrentes do estatuto de soberania que é constitucionalmente deferido aos Tribunais, o dever de correção consiste em tratar com respeito os sujeitos e intervenientes processuais, outros magistrados, advogados, outros profissionais forenses, funcionários judiciais e público em geral (artigo 73°, n° 10 do LGTFP). Ou seja, nas suas relações profissionais, o Juiz deve usar urbanidade, de respeito e polidez.
No presente caso, atentos os factos acima descritos, assinalam-se duas ordens de condutas distintas, praticadas, essencialmente, em 2 processos que o Ex.mo Senhor Juiz tinha a seu cargo.
Por um lado, as condutas registadas no processo 2226/14....... em que procedeu a julgamento sem a presença dos restantes intervenientes processuais convocados (advogados e testemunha).
Por outro, a conduta respeitante ao despacho proferido no processo 20853/08........, designadamente quanto à linguagem usada e aos juízos de valor proferidos.
Quanto à segunda das condutas imputadas (ou seja, ao uso de linguagem imprópria de Juiz e de juízos de valor quanto à exequente e a uma Senhora Advogada Estagiária que se afiguram de todo em todo inadequados à função judicial) impõem-se algumas considerações.
Como já acima referimos, os juízes estão sujeitos ao dever de correção. E a violação de tal dever constitui - verificadas as restantes condições - infração disciplinar.
Contudo, entendemos que, atendendo à especificidade de funções e aos interesses em conflito, em situações de litígio, apenas podem constituir a violação de tal dever a violação evidente e despropositada dos deveres de urbanidade e respeito devidos aos sujeitos e intervenientes processuais, outros magistrados, advogados, outros profissionais forenses, funcionários judiciais e público em geral.
Está em causa um despacho judicial em que o Ex.mo senhor Juiz, no âmbito dos seus poderes de direção do processo, decide, em síntese, condenar o exequente no pagamento de uma multa por violação do dever de cooperação com o Tribunal na descoberta da verdade; e determinar a extração e envio de uma certidão ao Ministério Público para instauração de procedimento criminal quanto a um eventual crime.
Estas duas decisões surgem, contudo, após o cumprimento do dever legal de fundamentação. No caso, o Exmo. Senhor Juiz, justifica-as pelas circunstâncias que expressou. Em concreto: que a exequente juntou aos autos uma tradução do contrato de mútuo celebrado que apresenta desconformidades face ao documento original em inglês. Explicita, ainda, que tal desconformidade poderia conduzir à alteração do valor em discussão no processo.
Não obstante, o Exmo. Senhor Juiz, a invés de indicar, unicamente, tais fundamentos, escreveu que «de uma forma absolutamente lamentável, se faz corresponder a expressão CQA (Contract of Affreightment - tal como definido na cláusula 1.1. b) do Contrato de Mútuo ou seja, o contrato de Afretamento celebrado entre o exequente e a executada P........) a “Plano de Contabilidade”, o que teria a virtualidade de (...)»
E ainda que «tendo tal situação sido desmascarada pelos opoentes a fls. 646-651, veio o exequente juntar nova tradução, onde tal desconformidade (para mais da autoria de uma tradutora oficial e certificada por uma advogada-estagiária, perguntando- se com que base tal certificação foi emitida) é eliminada».
Concordamos que as expressões a negrito («de uma forma absolutamente lamentável» e «desmascarada»), seriam evitáveis e supérfluas à própria decisão. Contudo, entendemos que, ainda assim, não constituem violação do dever de correção para efeitos disciplinares. Especialmente porque o Exmo Senhor Juiz entendeu existirem indícios da prática de crime - e participou-o no cumprimento de obrigação legal - bem como de conduta que revelava má fé processual.
Não nos cabe, no âmbito deste processo disciplinar, apurar da justeza destas duas decisões. No entanto, tais decisões, só por si, ou seja, independentemente da fundamentação, representam juízos de valor negativos. E mal se compreenderia que os juízes não os pudessem emitir visto que decorrem de obrigações legais.
As expressões - e juízos - referidas não encerram considerações simpáticas ou agradáveis para os respetivos recetores mas, ressalvado o respeito por opinião contrária, não assumem a gravidade suficiente, dentro do contexto em que foram proferidas, para serem consideradas infração disciplinar. Relevando, unicamente, na avaliação ao serviço a que o Exmo. Senhor Juiz será, necessariamente, sujeito.
Quanto à primeira das infrações imputadas, ou seja, a registada no processo 2226/14....... em que procedeu a julgamento sem a presença dos restantes intervenientes processuais convocados (advogados e testemunha).
Vimos já que é função dos juízes administrar a justiça. Que é função dos juízes a sua defesa, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Ora, em concreto, apurou-se que o Exmo. Senhor Juiz (ao não aguardar pelos intervenientes processuais durante um prazo razoável, bem como ter ignorado o requerimento conjunto apresentado) agiu com o propósito de não despender tempo com a diligência de julgamento no âmbito do processo n.º 2226/14....... e tornar, assim, o mais simples possível a decisão de mérito da causa. Apesar de bem saber que a circulação na cidade de ........ causa por vezes alguns atrasos, tal como sucede com as formalidades de acesso ao Juízo de Execução ......... Sabia igualmente que os indicados autos de execução n.° 2226/14....... não tinham alçada para recurso.
O apuramento de tais factos - e que não se resumem ao facto de ter iniciado o julgamento passados poucos minutos após a hora designada - resulta evidente das restantes condutas apuradas nos processos analisados pelo Exmo senhor inspetor judicial, instrutor.
Pois, como bem refere (são nossos os destaques) «(A partir do módulo “Histórico da Gestão Processual”, da listagem de “Documentos Partilhados Devolvidos”, extraíram-se do Citius os elementos pretendidos, os quais constituem o Anexo A.
Da análise da documentação aí constante decorre que uma situação idêntica à seguida no referido processo n.° 2226/14....... ocorreu tão-só no processo n.° 22020/1….., oposição à execução comum (art 813.° CPC), com o valor processual de € 2.788,41, numa audiência de discussão e julgamento realizada em 18-10-2016.
» Apenas naquelas duas situações o julgamento iniciou-se e findou antes de decorrerem mais de 10 minutos da hora agendada para o seu início, sem a presença de qualquer interveniente processual, nomeadamente de qualquer mandatário das partes.
» Em ambos os casos inexistia alçada para recurso.
» Da análise da documentação constante do Anexo A decorre que a audiência prévia, a tentativa de conciliação ou o julgamento começaram antes de decorrerem 10 minutos da hora designada para o seu início, sem a presença de um dos mandatários judiciais das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, findando em todo o caso 14 minutos ou mais depois da hora designada para o seu início, nos 10 processos seguintes com os números:
» (…)
» Por outro lado, à semelhança dos 10 processos indicados nos artigos 17 a 26. da acusação, da documentação constante do Anexo A, resulta que o Arguido aguardou entre 10 e 30 minutos pela presença de mandatário forense ausente, sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, nos 12 processos seguintes, com os números
» (...)», constituindo estes 12 processos os descritos nos factos 27 a 38.
Tais factos permitem a conclusão da ocorrência dos factos acima descritos, referentes à intenção do Exmo senhor Juiz em termos exemplarmente descritos pelo Exmo. senhor inspetor judicial instrutor (são igualmente nossos os destaques):
«Resulta, pois, evidente, a ausência de critério uniforme por parte do Ex.mo Senhor Juiz.
» Conforme já ficou demonstrado, o Arguido não adotou uma postura uniforme quando no início de uma diligência judicial não estavam presentes os respetivos mandatários forenses e estes não informavam o Tribunal do seu atraso ou ausência.
» Nos processos 20239/07........., 960/14....... e 271/14........ esperou entre 15 e 30 minutos pela chegada de mandatário forense.
» Relativamente ao referido processo n.º 2226/14......., em causa nestes autos, o Arguido iniciou e findou o julgamento antes de decorrerem 10 minutos sobre a hora agendada para o respetivo início, na ausência de qualquer interveniente processual, nomeadamente dos respetivos mandatários judiciais.
» Igual procedimento sucedeu no processo n.º 22020/11…...
» De comum, o processo n.° 2226/14....... e o processo n.º 22020/11....... têm o facto do valor da causa não permitir a interposição de recurso ordinário.
» Diversamente, nos processos nºs 20239/07........., 960/14....... e 271/14........, cujos valores da causa permitem a interposição de recurso ordinário, embora no início das respetivas diligências judiciais também ninguém se encontrasse presente, o Arguido aguardou entre 15 e 30 minutos pela chegada de mandatário forense.
» Nestes termos, em função de tais elementos, à luz das regras da experiência comum e da lógica, a nossa convicção é que o Arguido agiu no processo n.° 2226/14......., em causa nestes autos, conforme indicado, bem sabendo que o mesmo não tinha alçada de recurso e por forma a evitar a realização de julgamento e o tempo e trabalho acrescido dele decorrente, tornando assim o mais simples possível o desfecho do caso, com decisões de facto e de direito assaz simplificadas.
» Não fosse esse o propósito do Arguido e por certo teria esperado pelo menos 15 minutos pela chegada dos Advogados das partes, tal como o fez em situações similares.»
Como bem refere o Exmo. senhor inspetor judicial instrutor «A administração da Justiça num Estado de Direito democrático material, que não formal, impõe uma postura relacional que considere os restantes sujeitos processuais, tanto mais que a grande urbe, como ........, causa em si mesmo atrasos, as formalidades de acesso ao Juízo de Execução........ são só por si suscetíveis de provocar atrasos e os autos não tinham alçada para recurso.
» Afigura-se que no caso a invocação do disposto no artigo 151.° do Código de Processo Civil carece de fundamento.
» Desde logo, por o mesmo inserir-se na secção dos “atos de magistrados”, sendo seu escopo regular a marcação e início de diligências por aqueles presididas.
» Depois, porque da circunstância dos “mandatários judiciais” deverem “comunicar prontamente (...) quaisquer circunstâncias impeditivas da sua presença” não se retira que tal deva suceder até à hora da diligência designada, podendo o mesmo suceder depois desta, sem que a comunicação não seja pronta, pois as “circunstâncias impeditivas”, podem, elas próprias, justificar algum atraso na comunicação.
» Finalmente, por o bom senso reclamar alguma tolerância na pontualidade dos Senhores Advogados e outros intervenientes processuais, o legislador, certo que aquela tolerância era próprio do Juiz, não indicou expressamente o tempo que este deve esperar por aqueles antes de iniciar a diligência judicial».
Tal conduta com as finalidades referidas (evitar a realização de julgamento e o tempo e trabalho acrescido dele decorrente, tomando assim o mais simples possível o desfecho do caso, com decisões de facto e de direito assaz simplificadas) em nada se pode confundir com a administração da justiça. Ou com o - invocado - exercício do poder jurisdicional conferido aos juízes. É, precisamente, o oposto. Com a sua conduta, o Exmo. Senhor Juiz subtraiu às partes a reclamada e justificada análise ponderada do pleito, com processo justo, que oportunamente haviam submetido a julgamento.
Cometeu, pois, a infração imputada. Contudo sem que esteja em causa, e ressalvado o respeito devido por opinião contrária, o dever de correção. Embora mereçam censura, que não disciplinar, os termos utilizados no despacho proferido em 17-10-2017, e descrito em 15 dos factos provados. A pontualidade é um valor a preservar na administração da justiça. A razoabilidade na apreciação da pontualidade - e de outras circunstâncias - é, igualmente, uma virtude que tem que ser exigida aos juízes. Neste caso, contudo, a falta de razoabilidade do Exmo senhor Juiz manifesta-se mais, a nosso ver, no dever de administração da justiça que demandaria alguma tolerância para com os atrasos dos restantes sujeitos, ainda que não o comuniquem, como foi o caso, que, propriamente, com o dever de correção.
Em conclusão, o Exmo. senhor Juiz cometeu uma infração disciplinar por violação do dever de administrar a justiça.
4. Da pena
A determinação da medida concreta da pena a aplicar ao Exmo senhor Juiz deverá obedecer nomeadamente aos critérios consignados no artigo 96.° do EMJ (gravidade do facto, culpa do agente, personalidade e circunstâncias que deponham a seu favor ou contra do agente infrator).
De acordo com o artigo 85.°, n.° 1 do EMJ, os magistrados judiciais estão sujeitos às seguintes penas:
a) Advertência;
b) Multa;
c) Transferência;
d) Suspensão de exercício;
e) Inatividade;
f) Aposentação compulsiva;
g) Demissão.
Nos termos do artigo 91.° do EMJ, a pena de advertência é aplicável a faltas leves que não devam passar sem reparo.
De harmonia com o disposto no artigo 92.° do EMJ, a pena de multa é aplicável a casos de negligência ou desinteresse pelo cumprimento dos deveres do cargo. A pena de multa é fixada em dias, no mínimo de cinco e no máximo de noventa - artigo 87.° do referido diploma.
Por outro lado, dispõe o artigo 94.° do EMJ que as penas de suspensão de exercício e de inatividade são aplicáveis nomeadamente nos casos de negligência grave ou de grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais, salvo se a condenação aplicar pena de demissão.
Na determinação da medida da pena, como já referimos, atende-se à gravidade do facto, à culpa do agente, à sua personalidade e às circunstâncias que deponham a seu favor ou contra ele - artigo 96.° do EMJ.
Na escolha do tipo de pena, consideramos que a infração praticada pelo Exmo. senhor Juiz revela, como já referimos, desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais.
Nesta medida, consideramos, também, que a conduta do Exmo. senhor Juiz se subsume à previsão do disposto no artigo 92.°, do EMJ. Ou seja, no caso, na pena de multa. A qual, nos termos do artigo 87.° do mesmo Estatuto, é fixada em dias, no mínimo de 5 e no máximo de 90.
Não se verificam, no caso, quaisquer fundamentos para a atenuação especial, já que dos factos não se pode concluir que existam circunstâncias anteriores ou posteriores à infração, ou contemporâneas dela, que diminuam acentuadamente a gravidade do facto ou a culpa do agente (artigo 97.° do EMJ).
Como bem se refere no relatório final, o Exmo. senhor Juiz «tem mais de dez anos de exercício das funções de Juiz (facto 5. dado como provado) e tem duas notações de mérito nas três que lhe foram atribuídas (facto 6.1. dado como provado).
» Contudo, tem também registo disciplinar (facto 9. dado como provado), o que obsta a que se possa entender que o Arguido apresenta um desempenho de “exemplar comportamento e zelo”».
Tudo sopesado concluímos que a pena a aplicar ao caso concreto deve ser fixada em 20 (vinte) dias de multa.
Por último, tendo presente quer a condenação anterior, quer a ausência de espírito crítico e verdadeira vontade de mudança de atitude do Exmo. senhor Juiz, como resulta da defesa apresentada, em que as condutas são justificadas a coberto da independência da soberana função de julgar, resulta que a simples censura e a ameaça da pena não são suficientes para realizar as finalidades da punição. Pelo que, no caso, toma-se necessário o cumprimento da pena.
5. Da Aplicação da Lei mais Favorável
No dia 1 de janeiro de 2020 entrou em vigor a Lei 67/2019, a qual veio alterar a Lei 21/85, introduzindo profundas alterações ao EMJ, designadamente e, para o que aqui nos importa, ao nível do Direito Disciplinar, concretizando condutas que constituem ilícitos disciplinares e instituindo previsões legais que até aqui apenas se encontravam previstas no direito subsidiário, mormente o Código Penal e a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.
É jurisprudência unânime o entendimento segundo o qual em direito disciplinar, enquanto direito punitivo, se deve observar o disposto no art. 29.° n.° 4 da Constituição da República Portuguesa, o qual dispõe que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável.
A este propósito os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira dizem-nos:
«É problemático saber em que medida é que os princípios consagrados neste artigo são extensíveis a outros domínios sancionatórios. A epígrafe “aplicação da lei criminal” e o teor textual do preceito restringem a sua aplicação direta apenas ao direito criminal propriamente dito (crimes e respetivas sanções). Há-de, porém, entender-se que esses princípios devem, na parte pertinente, valer por analogia para os demais domínios sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação social e o ilícito disciplinar. Será o caso do princípio da legalidade “lato sensu” (mas não o da tipicidade), da não retroatividade, da aplicação retroativa da lei mais favorável, da necessidade e proporcionalidade das sanções.»
Por outro lado, princípio básico da aplicação da lei no tempo nestas matérias que se extrai do disposto no n.° 4 do art. 2.º do Código Penal é o da aplicação do regime mais favorável em bloco, ou seja, aplicando o conjunto de todas as regras do regime vigente na data da prática dos factos ou, alternativamente, todo o regime ulterior.
Além disso, toma-se necessário acentuar que o novo Estatuto dos Magistrados Judiciais procedeu a uma profunda alteração do regime sancionatório, procedendo à tipificação das condutas sancionáveis, distinguindo agora claramente as infrações muito graves (art. 83.°-G), das graves (art. 83.°-H) e das leves (art. 83.°-I) e estabelecendo normas claras para a determinação da sanção aplicável.
Posto isto, analisando a conduta do Exmo. Senhor Juiz supra descrita, à luz do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na atual redação, constata-se que a mesma constitui uma infração grave, nos termos do disposto no art. 83.° n.° 1-H al. e), não se verificando, por outro lado, qualquer circunstância dirimente das previstas no art. 84.°-A ou mesmo a prevista no art. 83.°-J.
Isto é, olhada a conduta do Exmo. Senhor Juiz, na perspetiva do Estatuto dos Magistrados Judiciais, concluímos que praticou uma infração grave a que, por regra, corresponde a sanção de suspensão de exercício, por força do disposto no art. 101.° n.° 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais. In casu, não é aplicável a sanção de transferência porque a sua conduta não pôs em crise «a sua manutenção no meio social em que desempenha o cargo...» (art. 100.°, n.° 1),
Nos termos do Estatuto dos Magistrados Judiciais atualmente em vigor, perante a prática de uma infração grave, importa ponderar a aplicação de sanção de multa,
«caso não se mostre necessária ou adequada, face às circunstâncias do caso, a aplicação de outra sanção disciplinar mais gravosa» (art. 99.°, n.° 1).
Analisando as circunstâncias do caso, porém, tem de se concluir pela necessidade de sanção mais gravosa face às circunstâncias em que a mesma foi praticada. Efetivamente está em causa uma conduta dolosa, por motivos censuráveis - «com o propósito de não despender tempo com a diligência de julgamento e tomar assim o mais simples possível a decisão de mérito da causa» - e em relação a um processo em que as consequências da sua conduta se mostram particularmente gravosas - sabendo que os indicados autos de execução n.° 2226/14…… «não tinham alçada para recurso».
Concomitantemente, não se verifica nenhuma circunstância que diminua «acentuadamente a gravidade do facto ou a culpa do arguido», designadamente das previstas nas diversas alíneas do art. 85.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, face aos antecedentes disciplinares, a uma conduta de não reconhecimento dos elementos subjetivos da infração, inexistência de provocação ou de arrependimento ativo. Pelo contrário, como resulta do exposto (facto 50) a sua conduta violadora do seu dever de administrar a Justiça foi intencional e inequivocamente prejudicial para o sistema de justiça (art. 85.°-A do Estatuto dos Magistrados Judiciais).
Em conclusão, à luz do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na sua redação atual, a conduta do Ex.mo Sr. Juiz teria de ser sancionada com a sanção de transferência em medida superior a 20 dias (art. 95.° n.° 2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais).
Consequentemente, constata-se que o regime mais favorável e que, por isso, deve ser aplicado, é o vigente à data da prática da infração.
VI — Por todo o exposto, delibera o Plenário do Conselho Superior da Magistratura na aplicabilidade do regime sancionatório vigente na data da prática da infração por ser o mais favorável e, consequentemente, em aplicar ao Exmo Juiz de Direito AA, a sanção de multa de vinte dias, nos termos dos art.s 3.º, n.° 1, 81.°, 82.°, 85.° n.° 1 al. b), 87.°, 92.° e 96.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais na redação vigente na data da prática dos factos, por ter cometido uma infração disciplinar, consubstanciada na violação do dever de administração da justiça - (doc. 1 junto à petição inicial, de fls19 a 40 e 527 a 548 do processo disciplinar).
14º - O autor foi notificado da deliberação referida em 13º a 17-06-2020 (fls 556).
B) Fundamentação de direito
As questões colocadas pelo autor e que importa decidir são as seguintes:
(i). Prescrição do procedimento disciplinar;
(ii). Nulidade por falta de audiência prévia;
(iii). Violação do princípio ne bis in idem;
(iv). Incorrecta valoração de factos (falta de fundamentação ou erro nos pressupostos);
(v). Violação do princípio da independência do juiz;
(vi). Não verificação de ilícito disciplinar e violação de lei;
(vii). O pedido de reenvio prejudicial.
Prescrição do procedimento disciplinar
Alega o autor que se verifica no caso em apreço a prescrição do procedimento disciplinar, porquanto à data da deliberação impugnada (02-06-2020), há muito que havia prescrito o prazo de 18 meses consagrado no artigo 83.º-C do Estatuto dos Magistrados Judicias (EMJ), considerando que o procedimento disciplinar em apreço foi instaurado a 30-01-2018. Mais alega que o argumento invocado no acto impugnado, no sentido de que, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 83.º-C do EMJ, o prazo de 18 meses de prescrição do procedimento se tem por suspenso em virtude da existência do recurso de impugnação da deliberação de 29-01-2020, a qual foi anulada por este Tribunal no âmbito do processo n.º 12/19.0YFLSB, não tem acolhimento legal, posto que os antigos recursos, agora acções administrativas, não têm qualquer efeito suspensivo. Além disso, prossegue o autor, conforme decorre da letra da lei, a suspensão do prazo de 18 meses do procedimento disciplinar só suspende se “por força de decisão jurisdicional ou de apreciação jurisdicional de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou prosseguir” (cf. n.º 2 do art. 83.º-C do EMJ), o que não é de todo o caso.
O CSM na sua contestação, como já se referiu, alegou que no decorrer do processo disciplinar registaram-se factos que conduziram à suspensão do decurso do prazo de prescrição do procedimento, obstando a que se possa considerar que o mesmo decorreu integralmente, devendo improceder a invocada excepção de prescrição.
Importa decidir.
1.2. O poder disciplinar tem no exercício da acção disciplinar o reflexo da sua principal manifestação, consistente no poder de promover ou determinar a “investigação disciplinar”, face a determinadas condutas, eventualmente, antijurídicas, dos seus autores, sendo a instauração do respectivo procedimento o apanágio da acção disciplinar (Ana Fernanda Neves, “Direito Disciplinar da Função Pública”, volume II, 2007, pp. 12 a 17, dissertação de doutoramento, inédito, que se encontra integralmente disponível e acessível para consulta online in
https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/164/2/ulsd054618_td_vol_2.pdf).
O exercício do poder disciplinar está submetido ao direito disciplinar, enquanto conjunto de normas que enumeram os deveres a que estão sujeitos os trabalhadores da Administração Pública vinculados por uma relação jurídica de emprego público e que definem a tramitação procedimental destinada a efectivar a sua responsabilidade pelo incumprimento de tais deveres mediante a aplicação de sanções disciplinares. De modo que um e outro promovem uma dupla finalidade, na medida em que, se por um lado conferem à Administração os meios para assegurar a ordem no interior dos serviços, reagindo contra as faltas dos trabalhadores, por outro lado representam um importante instrumento de protecção destes contra o arbítrio da hierarquia administrativa, assegurando um conjunto de garantias essenciais. Neste sentido, vide, Paulo Veiga e Moura, “Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública” Anotado, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pág. 36.
Aliás, «[…] tanto o regime disciplinar (natureza do ilícito, princípios gerais, tipos de sanções, seus limites, regras gerais do processo) da função pública como o do ordenamento laboral […] comungam de um mínimo denominador de garantias de defesa, que explicitadas na “Constituição processual criminal” constituem uma dimensão essencial do Estado de Direito Democrático, um núcleo constitucional de salvaguarda dos sujeitos arguidos num procedimento sancionador, tornando o sistema de garantias independente de filiações jurídicas em outros ramos do Direito […]» (Ana Fernanda Neves, “Relação Jurídica de Emprego Público”, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pág. 303).
Insere-se nesse escopo garantístico — resultante, desde logo, dos princípios garantísticos imanentes a qualquer processo de cariz sancionatório, incluindo o processo disciplinar, à luz do disposto nos artigos 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa o estabelecimento de um princípio de duração limitada do exercício do poder disciplinar. Daí que a perseguição disciplinar, atenta a natureza sancionatória subjacente a este ramo do direito, deva estar temporalmente limitada, por razões de certeza e segurança jurídicas.
Em ordem a assegurar tal desiderato, o legislador previu prazos de caducidade e de prescrição.
Haverá, no entanto, que efectuar preliminarmente uma precisão devida por rigor metodológico-conceptual e clareza expositiva: o legislador previu, a propósito desta limitação de exercício de jus puniendi em sede disciplinar, três realidades distintas.
A primeira é a caducidade do direito a instaurar o procedimento disciplinar (na terminologia do art. 83.º-B do EMJ, na sua redacção actual), ou prescrição da infracção disciplinar e/ou do direito de instaurar o procedimento disciplinar (cf. nºs 1 e 2 do art. 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aplicável até à entrada em vigor da Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto, ex vi art. 131.º do EMJ na sua redação anterior), que, «[…] em rigor, assume a natureza de prazo de caducidade do exercício desse direito, pois trata-se do período durante o qual a administração, depois de tomar conhecimento do facto gerador de eventual sanção disciplinar, deve instaurar o respectivo processo» (neste sentido, cf. acórdão do STJ proferido a 19-09-2013 no processo n.º 16/13.7YFLSB.S1).
A segunda é a prescrição do procedimento disciplinar propriamente dito, e que tem vista a extinção do ius puniendi do Estado, resultante da falta de diligência dos órgãos judiciários ou disciplinares no procedimento que lhes incumbe levar a cabo.
A última é a prescrição da pena disciplinar, que ocorre quando, entre o trânsito em julgado da decisão que aplica a pena disciplinar e o momento em que esta vai ser executada, medeia um período de tempo superior ao indicado na lei.
Essas divergências, de resto, foram exploradas nos sucessivos diplomas aplicáveis ao caso dos autos, tanto na redação vigente à data da instauração do procedimento disciplinar, como na redação vigente à data da aplicação da deliberação impugnada, como veremos de seguida.
O processo disciplinar relativo aos juízes rege-se pelo Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ).
Na sua versão actual, decorrente da redacção da Lei nº 67/2019, de 27 de Agosto e em vigor a partir de 01-01-2020, o EMJ prevê prazos de caducidade da infracção e do direito de instaurar procedimento [cf. art. 83.º-B] e de prescrição do próprio procedimento [cf. art. 83.º-C], bem como as respectivas vicissitudes suspensivas [cf. art. 83.º-C].
Porém, à data da instauração do procedimento disciplinar, ainda não o previa expressamente. Utilizava-se, por isso, o disposto no artigo 131.º desse diploma, que mandava aplicar subsidiariamente as normas de diplomas complementares.
Assim, por força dessa remissão, em matéria de prescrição em sede de procedimento disciplinar relativamente a magistrados judiciais, regia à data da instauração do procedimento disciplinar, o art. 178.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, doravante designada abreviadamente por LGTFP), aqui aplicável ex vi artigo 131.º do EMJ.
Por se revelar de interesse, aqui se deixa reproduzido o teor dos preceitos pertinentes do artigo 178.º da LGTFP, subordinado à epígrafe “Prescrição da infracção disciplinar e do procedimento disciplinar”:
Artigo 178.º
Prescrição da infracção disciplinar e do procedimento disciplinar
1 - A infracção disciplinar prescreve no prazo de um ano sobre a respetiva prática, salvo quando consubstancie também infracção penal, caso em que se sujeita aos prazos de prescrição estabelecidos na lei penal à data da prática dos factos.
2 - O direito de instaurar o procedimento disciplinar prescreve no prazo de 60 dias sobre o conhecimento da infração por qualquer superior hierárquico.
[…]
5 - O procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses, a contar da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o trabalhador não tenha sido notificado da decisão final.
6 - A prescrição do procedimento disciplinar referida no número anterior suspende-se durante o tempo em que, por força de decisão ou de apreciação judicial de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar.
7 - A prescrição volta a correr a partir do dia em que cesse a causa da suspensão.
Da leitura do preceito legal supra transcrito (e cuja redacção corresponde, no essencial, aos artigos 83.º-B a 83.º-D do EMJ na redação resultante da Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto) resulta que no artigo 178.º da LGTFP se consagram, na verdade, três prazos distintos de prescrição, tal como deu conta o Acórdão da Secção de Contencioso deste Supremo Tribunal de 10-12-2019 (processo n.º 29/19.3YFLSB), disponível em www.dgsi.pt:
- Um prazo de prescrição da infração disciplinar (n.º 1), correspondente ao prazo de caducidade previsto no art. 83.º-B, n.º 1, do EMJ na sua redacção actual;
- Um prazo de prescrição do direito de instaurar o procedimento disciplinar (n.º 2), correspondente ao prazo de caducidade previsto no art. 83.º-B, n.º 2, do EMJ na sua redacção vigente;
- Um prazo de prescrição do procedimento disciplinar (n.º 5), correspondente ao prazo estabelecido no art. 83.º-C do EMJ na sua redacção vigente.
Desenvolvendo o que se afirmou no referido acórdão, temos pois que distinguir:
i) O prazo de prescrição (recte: caducidade) da infração disciplinar, i.e., do direito de instaurar o procedimento disciplinar objectivamente aferido, tendo por referência, portanto, a data da prática da infracção objectivamente aferida, e não a data do seu conhecimento por quem tenha a competência para instaurar o procedimento disciplinar (n.º 1);
ii) O prazo de prescrição (recte: caducidade) do direito de instaurar procedimento disciplinar, i.e., desse direito subjectivamente aferido, tendo já por referência o momento da tomada de conhecimento da infracção (n.º 2); e
iii) O prazo de prescrição do próprio procedimento disciplinar (n.º 5).
Os demais preceitos do artigo 178.º regulam as vicissitudes interruptivas ou suspensivas dos prazos prescricionais indicados.
Não estando em causa os dois primeiros prazos (o da infração disciplinar e o da instauração), centremos a nossa análise no terceiro, atinente ao prazo prescricional do próprio procedimento disciplinar, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 178.º da LGTFP e 83.º- C do EMJ.
Trata-se aqui de uma figura que apenas foi dada à estampa a propósito do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, em 2008, traduzindo então uma solução inovatória e recebida com gáudio pela doutrina da especialidade, que já advertia há muito que a inexistência de um prazo prescricional do próprio procedimento «[…] propicia[va] o arbítrio da acção disciplinar […]» (Ana Fernanda Neves, “Direito Disciplinar da Função Pública”, volume II, 2007, pág. 104, dissertação de doutoramento, inédito, acessível online na presente data in https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/164/2/ulsd054618_td_vol_2.pdf; vide também Raquel Carvalho, “Comentário ao Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas”, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2012, p. 44). Aventou-se mesmo que se trata «[…] de um passo em frente no sentido de alcançar a necessária eficiência do serviço (que não se compadece com o sucessivo retardamento da concretização da justiça disciplinar) e de reforçar a tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos do trabalhador/arguido, seguramente incompatíveis com o estigma de a todo o tempo poder vir a ser objecto de uma sanção disciplinar […]» (Paulo Veiga e Moura, op. cit., p. 96).
De acordo com o regime que decorre dos preceitos invocados, são estabelecidos três princípios: i) o procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses contados da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o arguido não tenha sido notificado da decisão final; ii) a prescrição do procedimento disciplinar suspende-se durante o tempo em que, por força de decisão jurisdicional ou de apreciação jurisdicional de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar; e iii) a prescrição volta a correr a partir do dia em que cesse a causa da suspensão.
No caso dos autos, o presente processo disciplinar foi instaurado a 30-01-2018, por deliberação do Conselho Permanente - (cf. nº 2 da Fundamentação de facto).
Assim, o referido prazo de 18 meses, considerando a data da instauração do processo disciplinar e não sobrevindo qualquer facto com a virtualidade de interferir na sua contagem, teria terminado a 30-07-2019.
Essa decisão final (a primeira), isto é, a deliberação que aplicou a sanção disciplinar, foi tomada na sessão no Plenário do CSM de 29-01-2019, sendo notificada ao autor a 04-02-2019 – (cf. pontos 6º e 7º dos factos provados).
Entretanto, o autor, a 06-03-2019, veio impugnar a referida deliberação de 29-01-2019, junto do Supremo Tribunal de Justiça, dando origem ao processo n.º 12/19.0YFLSB, no âmbito do qual foi proferido a 05-02-2020 acórdão, que transitou em julgado a 20-02-2020, que determinou a anulação da referida deliberação - Vide matéria de facto provada sob os nºs 8º a 11º.
Por força da anulação, o CSM viria a proferir a deliberação ora impugnada a 02-06-2020, notificando o autor do teor dessa nova deliberação a 17-06-2020 - cf. pontos nºs12º a 14º da Fundamentação de facto.
A questão que se coloca, pois, é se na pendência do proc. n.º 12/19.0YFLSB o prazo prescricional continuou a correr termos ou, ao invés, se se suspendeu. Aqui reside o cerne do dissídio neste ponto em concreto. Em caso de negar relevância suspensiva à interposição do recurso contencioso, é apodítico que à data da prolação da deliberação impugnada (02-06-2020) já havia decorrido o prazo de 18 meses contados da instauração do procedimento disciplinar (30-01-2018); caso contrário, se a interposição traduzir vicissitude suspensiva do prazo de prescrição, a deliberação sub judicio terá sido praticada dentro do prazo de 18 meses.
Vejamos, pois.
O art. 178.º, nºs 6 e 7, da LGTFP, à semelhança do que a atual redação do n.º 2 do art. 83.º-C do EMJ também veio entretanto a estabelecer, prevê que o prazo de prescrição do procedimento disciplinar de 18 meses se suspende durante o tempo em que, por força de decisão ou de apreciação judicial de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar, voltando a correr a partir do dia em que cesse a causa da suspensão.
Em anotação à solução normativa, esclarecem os autores Paulo Veiga E Moura / Cátia Arrimar, “Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas”, 1.º volume, artigos 1.º a 240.º, Coimbra Editora, 2014, p. 512) :
“O terceiro prazo prescricional estabelecido no presente preceito constitui uma continuidade da inovação resultante do Estatuto Disciplinar de 2008, uma vez que até aí se previa a prescrição do direito de instaurar o procedimento disciplinar.
Contudo, decorre do n.º 5 do presente artigo que, após a sua instauração, o procedimento disciplinar tem de estar concluído no prazo máximo de 18 meses, devendo até ao termo de tal prazo ser comunicada ao arguido a decisão final, sob pena de prescrever o próprio procedimento disciplinar e não se poder sancionar o trabalhador. Trata-se de um passo em frente no sentido de alcançar a necessária eficiência do serviço (que não se compadece com o sucessivo retardamento da concretização da justiça disciplinar) e de reforçar a tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos do trabalhador/arguido, seguramente incompatíveis com o estigma de a todo o tempo poder vir a ser objeto de uma punição disciplinar. […]
Também relativamente a este prazo prescricional de 18 meses se prevê a possibilidade de ocorrer a sua suspensão sempre que ocorra uma questão prejudicial, do foro jurisdicional, que inviabilize que o procedimento depois de instaurado possa começar ou avançar (e entre estas causas incluem-se a comunicação ao serviço de que depende o trabalhador da sua pronúncia em sede criminal, do recebimento em juízo da acusação contra ele deduzida ou da sua condenação pela prática de um crime […].
Porém, estas são as únicas situações em que é admissível a suspensão daquele prazo, pelo que as nulidades ou outras questões processuais suscitadas ao longo do procedimento disciplinar, inclusive a interposição de recursos hierárquicos, não suspende o decurso do prazo prescricional de 18 meses.
Por seu turno, a jurisprudência tem vindo a asseverar que a impugnação contenciosa das deliberações que aplicam sanções e penas disciplinares se subsume na previsão aludida e, por conseguinte, suspende o prazo prescricional.
Com efeito, tal como vem sendo entendido de forma uniforme pela jurisprudência, estribada em princípio geral de direito com consagração nos artigos 306.º, n.º 1, e 321.º do Código Civil, aplicável em processo disciplinar, a prescrição não corre enquanto o titular do direito estiver impossibilitado de exercê-lo.
O acórdão do STA de 06-12-2005 (proc. n.º 042203 — Pleno) decidiu:
“É princípio geral de direito, com aflorações no Direito Civil, Criminal e contra ordenacional o de que a prescrição não corre durante o período em que não pode ser exercido o direito a que respeita.
Não pode, pois, contar-se no prazo prescricional o período de tempo decorrido entre a interposição do recurso contencioso e o trânsito em julgado do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que o decide, já que nesse intervalo o titular do direito está privado do respectivo exercício”.
E ainda os de 14-12-2005 (proc. n.º 01127/04), de 02-04-2008 (proc. n.º 0774/07), de 14-05-2009 (proc. n.º 0857/08) e de 27-01-2010 (proc. n.º 0551/09), todos acessíveis in http://www.dgsi.pt/jsta.
Também a Secção de Contencioso do STJ tem entendido que a impugnação contenciosa da deliberação do CSM que aplique sanção disciplinar suspende o prazo prescricional.
Assim, no Ac. do STJ de 05-07-2012 (proc. n.º 126/11.5YFLSB), deixou-se estabelecido o seguinte:
“Contrariamente ao que o recorrente sustenta, o procedimento disciplinar não tem duas fases, uma fase administrativa e uma fase judicial, que suportem a construção que elabora, no sentido da aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 121.º do Código Penal a um suposto conjunto formado por essas duas fases.
O procedimento disciplinar tem natureza administrativa e termina com uma decisão administrativa – no caso do procedimento disciplinar instaurado contra magistrados judiciais, com a deliberação do Conselho Superior da Magistratura (seja do Conselho Permanente, seja do Plenário, se houver reclamação).
Essa decisão pode ser judicialmente impugnada; e, se for o caso, inicia-se um processo diferente, de natureza judicial; processo esse que, como o recorrente expressamente afirma nas suas alegações, a fls. 39 – em contradição com a construção que sustenta – «é hoje, em rigor, uma ação administrativa especial de impugnação de ato administrativo».
Tanto basta para que se não possa aplicar o n.º 3 do artigo 121.º do Código Penal, tal como o recorrente pretende, ou seja, considerando que, desde o início do procedimento disciplinar e até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida na impugnação judicial deduzida contra a decisão administrativa final, não podem decorrer mais de vinte e sete meses (os dezoito previstos no artigo 6.º, n.º 6 do EDTAP acrescidos da metade a que se refere o n.º 3 do artigo 121º do Código Penal).
[…]
Da conjugação entre os n.os 6 e 7 do artigo 6.º do EDTAP resulta:
– que o procedimento disciplinar prescreve, se o arguido não for notificado da decisão final no prazo de dezoito meses, contado desde data em que o procedimento foi instaurado,
– que este prazo apenas se suspende (o artigo 6.º não define qualquer causa de interrupção) «durante o tempo em que, por força de decisão jurisdicional ou de apreciação jurisdicional de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar».
Compreende-se que a razão de celeridade que o legislador quis imprimir na atuação disciplinar da Administração não possa aqui determinar solução diferente, uma vez que a mesma está impedida de atuar, por razões que lhe são estranhas e que obviamente escapam ao seu controlo.
A lei não previu, e manifestamente não quis prever, qualquer prazo para a decisão judicial que vier a ser tomada, se a decisão disciplinar administrativa vier a ser judicialmente impugnada […]
Claro que em caso de impugnação judicial de uma decisão disciplinar final, se a decisão for anulada, a Administração tem de respeitar o prazo de dezoito meses previsto no n.º 6, se a anulação for compatível com uma nova decisão condenatória; mas isso não significa que a apreciação judicial esteja sujeita a prazo de prescrição. Significa que, em tal hipótese, o procedimento administrativo “renasce” e, portanto, está sujeito ao mesmo prazo prescricional.
Do mesmo modo, no Ac. de 19-09-2013 (proc. n.º 16/13.7YFLSB), ainda por apelo ao artigo 6.º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem Funções Públicas (preceito que corresponde aos actuais artigos 178.º da LGTFP e 83.º-C e 83.º-D do EMJ), deixou-se consignado no respetivo sumário o seguinte:
“I - A prescrição do procedimento disciplinar extingue o «ius puniendi» do Estado, extinção resultante da falta de diligência dos órgãos judiciários ou disciplinares no procedimento que lhes incumbe levar a cabo.
II - Da prescrição do procedimento disciplinar há que distinguir 2 situações que lhe estão próximas:
- Uma, que a antecede, é a prescrição do direito a instaurar o procedimento disciplinar, que, em rigor, assume a natureza de prazo de caducidade do exercício desse direito, pois trata-se do período durante o qual a administração, depois de tomar conhecimento do fato gerador de eventual sanção disciplinar, deve instaurar o respetivo processo.
- Outra, que lhe sucede, é a prescrição da pena disciplinar, que ocorre quando, entre o trânsito em julgado da decisão que aplica a pena disciplinar e o momento em que esta vai ser executada, medeia um período de tempo superior ao indicado na lei.
III - O processo disciplinar relativo aos juízes rege-se pelo EMJ, que não contempla qualquer norma relativa à prescrição do procedimento disciplinar. Utiliza-se, por isso, o disposto no art. 131.º desse diploma, que manda aplicar subsidiariamente as normas de diplomas complementares.
IV - Sobre a prescrição do procedimento disciplinar o art. 6.º do EDTFP - Lei 58/2008, de 09-09 - estabelece 3 princípios:
- O procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses contados da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o arguido não tenha sido notificado da decisão final.
- A prescrição do procedimento disciplinar referida no n.º anterior suspende-se durante o tempo em que, por força de decisão jurisdicional ou de apreciação jurisdicional de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar.
- A prescrição volta a correr a partir do dia em que cesse a causa da suspensão.
V - A tese aparentemente defendida pelo CSM e pelo MP nas respetivas alegações, de que a contagem do prazo de prescrição do procedimento disciplinar ficou suspensa desde que o recorrente impugnou judicialmente a primeira deliberação disciplinar do plenário do CSM até à deliberação que é objeto do presente recurso, não tem o menor fundamento legal.
VI - Na verdade, dos n.ºs 7 e 8 do art. 6.º do EDTFP, aplicável ao caso, resulta que, por um lado (n.º 7), a prescrição do procedimento disciplinar suspende-se durante o tempo em que, por força de decisão jurisdicional ou de apreciação jurisdicional de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar, por outro (n.º 8), que a prescrição volta a correr a partir do dia em que cesse a causa da suspensão.
VII - Assim, após o trânsito em julgado do primeiro acórdão do STJ de 06-06-2012, cessou a causa de suspensão do procedimento disciplinar que ocorrera por força do n.º 7 dessa disposição, e voltou a correr a contagem do prazo da prescrição, iniciado anteriormente, de acordo com o disposto no n.º 8, pois o processo deixou de estar no âmbito jurisdicional e voltou ao domínio do órgão administrativo competente para averiguar quais as infrações disciplinares cometidas e aplicar as respetivas penas.
VIII - De resto, seria absurdo que, anulada por via judicial a primeira deliberação sancionatória e regressado o processo ao órgão administrativo competente, este pudesse protelar indefinidamente a marcha do processo até a uma nova deliberação, pois, qualquer que fosse o tempo decorrido, não ocorreria a prescrição, por se encontrar suspensa a contagem do referido prazo.
E, no respetivo excurso fundamentador, consignou-se o seguinte:
“O instituto da prescrição dos direitos sancionatórios (penal e disciplinar) tem por finalidade acelerar a atividade do Estado no exercício da ação penal ou disciplinar e, ao mesmo tempo, assegurar aos arguidos um tempo certo durante o qual podem ser sujeitos a sanção pelos ilícitos cometidos, a partir do qual ficarão libertos da respetiva responsabilidade.
Com a prescrição extingue-se o “ius puniendi” do Estado, extinção resultante da falta de diligência dos órgãos judiciários ou disciplinares no procedimento que lhes incumbe levar a cabo.
O procedimento disciplinar é a atividade desenvolvida pelos órgãos disciplinares competentes, tendo em vista eventual acusação, julgamento e decisão relativamente a uma infração disciplinar indiciada.
Da prescrição do procedimento disciplinar há que distinguir duas situações que lhe estão próximas.
Uma, que a antecede, é a prescrição do direito a instaurar o procedimento disciplinar, que, em rigor, assume a natureza de prazo de caducidade do exercício desse direito, pois trata-se do período durante o qual a administração, depois de tomar conhecimento do fato gerador de eventual sanção disciplinar, deve instaurar o respetivo processo.
Outra, que lhe sucede, é a prescrição da pena disciplinar, que ocorre quando, entre o trânsito em julgado da decisão que aplica a pena disciplinar e o momento em que esta vai ser executada, medeia um período de tempo superior ao indicado na lei.
O procedimento disciplinar corre desde a instauração do processo até à decisão final condenatória ou absolutória. A prescrição do procedimento disciplinar ocorre se é excedido o prazo máximo fixado pela lei entre um momento e outro.
O processo disciplinar relativo aos juízes rege-se pelo EMJ, que não contempla qualquer norma relativa à prescrição do procedimento disciplinar.
Rege, por isso, o disposto no art. 131.º desse diploma, que manda aplicar subsidiariamente as normas de diplomas complementares.
Sobre a prescrição do procedimento disciplinar dispõe o artigo 6.º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas (EDTEFP) - Lei n.º 58/2008, de 9 de setembro, o seguinte (na parte que aqui importa, pois os outros números referem-se à prescrição do direito a instaurar o procedimento disciplinar e à prescrição da pena disciplinar):
(…)
6 — O procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses contados da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o arguido não tenha sido notificado da decisão final.
7 — A prescrição do procedimento disciplinar referida no número anterior suspende-se durante o tempo em que, por força de decisão jurisdicional ou de apreciação jurisdicional de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar.
8 — A prescrição volta a correr a partir do dia em que cesse a causa da suspensão.
Ora, o procedimento disciplinar no presente caso iniciou-se em 06-07-2010, data em que o plenário do CSM, na sequência da apreciação do relatório elaborado no âmbito do inquérito ao Tribunal do Trabalho de ..., decidiu instaurar procedimento disciplinar ao recorrente, por haver indícios de violação dos deveres de prossecução do interesse público e de zelo.
O prazo correu ininterruptamente até 30-09-2011, data da notificação ao recorrente da primeira deliberação do plenário do Conselho Superior da Magistratura (de 20-09-2011), que o condenou na pena única, especialmente atenuada, de 30 (trinta) dias de multa.
Entre 06-07-2010 e 30-09-2011 decorreu 1 ano, 2 meses e 24 dias.
Entre 30-09-2011 e 18 de junho de 2012, data em que transitou em julgado o Acórdão do STJ de 06-06-2012, que decidiu o recurso interposto pelo ora recorrente da deliberação de 20-09-2011, que, no fundamental, anulou a deliberação em causa, o prazo de prescrição do procedimento disciplinar esteve suspenso, nos termos do art. 6.º, n.º 7, do EDTEFP.
Entre 18 de junho de 2012 (data em que cessou a causa da suspensão) e 21 de janeiro de 2013 (data da notificação ao recorrente da deliberação ora recorrida, de 15-01-2013), decorreram 7 meses e 3 dias.
Assim, o procedimento disciplinar, excluído o tempo em que esteve a ser apreciada jurisdicionalmente a primeira sanção aplicada, decorreu pelo tempo inicial de 1 ano, 2 meses e 24 dias, a que acresce o tempo de 7 meses e 3 dias, durante o qual o procedimento disciplinar continuou pendente e com o prazo da prescrição a correr, até ao momento em que foi notificada ao recorrente a nova sanção aplicada e ora impugnada. Isto é, o procedimento disciplinar e o respetivo prazo prescricional correram durante 1 ano, 9 meses e 27 dias, portanto, por mais de 18 meses.
(…)
Na verdade, dos n.ºs 7 e 8 do artigo 6.º do EDTEFP, aplicável ao caso, resulta que, por um lado (n.º 7), a prescrição do procedimento disciplinar suspende-se durante o tempo em que, por força de decisão jurisdicional ou de apreciação jurisdicional de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar, por outro (n.º 8), que a prescrição volta a correr a partir do dia em que cesse a causa da suspensão.
Assim, após o trânsito em julgado do acórdão de 06-06-2012, cessou a causa de suspensão do procedimento disciplinar que ocorrera por força do n.º 7 dessa disposição, e voltou a correr a contagem do prazo da prescrição, iniciado anteriormente, de acordo com o disposto no n.º 8, pois o processo deixou de estar no âmbito jurisdicional e voltou ao domínio do órgão administrativo competente para averiguar quais as infrações disciplinares cometidas e aplicar as respetivas penas.
De resto, seria absurdo que, anulada por via judicial a primeira deliberação sancionatória e regressado o processo ao órgão administrativo competente, este pudesse protelar indefinidamente a marcha do processo até a uma nova deliberação do órgão disciplinar competente, pois, qualquer que fosse o tempo decorrido, não ocorreria a prescrição, por se encontrar suspensa a contagem do referido prazo”.
Vejamos agora o enquadramento factual relevante:
a) A 15-12-2017 foi instaurado inquérito – Ponto 1º da Fundamentação de facto;
b) O procedimento disciplinar iniciou-se a 30-01-2018, data da deliberação de instauração do processo disciplinar – (2º).
c) O prazo de prescrição de 18 meses correu ininterruptamente até 04-02-2019, data da notificação da deliberação que aplicou a sanção disciplinar – (6º e 7º);
d) Entre aquelas datas de 30-01-2018 e 04-02-2019 decorreu 1 ano e 5 dias;
e) Entre 04-02-2019 e 20-02-2020, data em que transitou em julgado o acórdão anulatório do STJ de 05-02-2020, que decidiu o recurso interposto pelo ora autor da deliberação de 29-01-2019, o prazo de prescrição do procedimento disciplinar esteve suspenso, nos termos do disposto no art. 178.º, n.º 6, da LGTFP, aqui aplicável ex vi art. 131.º do EMJ na redacção vigente à data da instauração do procedimento disciplinar, e 83.º-C do EMJ;
f) A 20-02-2020 cessou a causa da suspensão da prescrição, retomando a contagem daquele prazo;
g) Entretanto, por efeito da legislação excepcional aprovada no contexto COVID-19, concretamente de acordo com o artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, os prazos de prescrição suspenderam-se a partir de 12-03-2020, cessando tal causa de suspensão a 03-06-2020, por efeito da entrada em vigor do artigo 6.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio;
h) Entre 20-02-2020 e 12-03-2020 decorreram 21 dias do prazo prescricional de 18 meses;
i) E, entre 03-06-2020 (cessação da causa e suspensão) e 17-06-2020 (data da notificação ao recorrente da deliberação ora recorrida, de 02-06-2020), decorreram mais 14 dias.
Em suma, considerando: i) o prazo decorrido ininterruptamente até à notificação da deliberação jurisdicionalmente anulada, ii) o período de suspensão do prazo prescricional por força da impugnação judicial da referida deliberação, iii) a data em que cessou a causa de suspensão e iv) a data da notificação da deliberação ora recorrida (a qual constitui decisão do processo disciplinar em questão), apenas decorreu 1 ano, 1 mês e 10 dias, donde, não se mostra excedido o prazo de 18 meses de prescrição do procedimento disciplinar.
Nesta conformidade, julga-se improcedente a pretensão do autor com este fundamento.
Nulidade por falta de audiência prévia
O autor invoca ainda a nulidade do acto impugnado por preterição da audiência prévia. Alega que na deliberação impugnada foram aditados factos novos, que não constavam nem da acusação nem tão pouco do Relatório Final, aludindo, especificamente, aos factos 17, 20, 21, 22, 24, 25 e 26 da deliberação sub judice.
Considera que foi preterido o seu direito de audiência prévia, na medida em que não foi ouvido antes da elaboração do Relatório Final que sustenta a deliberação impugnada, nem foi notificado, antes da prolação da deliberação impugnada, para se pronunciar sobre as novas provas juntas aos autos, nem para requerer diligências que entendesse pertinentes, assim como não foi notificado de qualquer novo Relatório Final.
Ainda no que respeita à violação do direito de audiência prévia, o autor entende que deveria ter sido ouvido quanto à questão da lei aplicável no tempo e, bem assim, notificado do projeto de deliberação que foi rejeitado (vencido).
Por último, e ainda no que respeita à pretensa falta de audiência prévia, o autor suscita também anulação da deliberação impugnada por, no seu entender, estar em causa uma competência deliberativa do Conselho Permanente, pelo que “o facto de ter sido o Conselho Plenário a decidir, coartou, também aqui, o direito do autor de, em sede de audiência prévia, poder contraditar a fundamentação de facto e de direito ínsita na nova deliberação impugnada”.
Cumpre decidir.
Nas palavras do insigne Professor Marcelo Caetano, (“Do Poder Disciplinar no Direito Administrativo Português”, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, pág. 175) o procedimento disciplinar “não obedece a formas rígidas e solenes: é simples e dúctil. […] Um ponto apenas é considerado essencial: a faculdade de defesa ampla do arguido”. Trata-se de um direito de conteúdo assimilável ao direito a um “processo justo” e inerentes garantias de defesa de que goza o arguido em processo crime, na certeza de que a tendência que se tem verificado para a progressiva autonomização do direito disciplinar relativamente ao direito penal “é contrabalançada pelo progressivo alargamento das garantias de direito penal ao direito disciplinar” (cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/95, de 16-02-1995, acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos e publicado no DR 1.ª série, de 10.03.1995). Fala-se ainda, a este respeito, que “as garantias de processo penal surgirão como o “magma” das garantias de um processo sancionatório público” (Ana Fernanda Neves, O Direito Disciplinar…, volume I, cit., p. 34).
Preceitua o artigo 203º nº 1 da LGTFP, aprovada pela Lei nº 35/2014, de 20 de Junho o seguinte:
“ É insuprível a nulidade resultante da falta de audiência do trabalhador em artigos de acusação, bem como a que resulte de omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade”.
De acordo com o nº 1 do EMJ na sua redacção actual, “constitui nulidade insuprível a falta de audiência do arguido com possibilidade de defesa e a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade que ainda possam utilmente realizar-se ou cuja realização fosse obrigatória”.
Por seu turno, o n.º 2 deste preceito estatui que “as restantes nulidades consideram-se sanadas se não forem arguidas na defesa ou, a ocorrerem posteriormente, no prazo de cinco dias contados da data do seu conhecimento”.
Significa isto que as nulidades insupríveis são a falta de audiência do arguido e a omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade. As demais são sanáveis, embora o suprimento tenha de ser reclamado até à defesa ou nos 5 dias posteriores ao respetivo conhecimento.
A omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade teve, durante muito tempo, “escassa autonomia, porque, a não ser em casos pontuais, a omissão de tais diligências normalmente integra formas de revelação da falta de audiência do arguido. Razão porque esta continua a ser, para a Doutrina e a Jurisprudência, a nulidade insuprível por excelência” (João Castro Neves, “O Novo Estatuto Disciplinar (1984) Algumas Questões”, Revista do Ministério Público, ano 6, vol. 21, pág. 24).
“Haverá nulidade insuprível decorrente da omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade, por exemplo, nas seguintes situações: // — falta de inquirição válida — cfr. Art. 61.º, n.os 3, 4 e 5 e Ac. STA de 73-07-05, Acs. Dout., 144-1637; // — falta de inquirição de testemunhas oferecidas pelo arguido — cfr. Arts. 59.º e 61.º, n.os 3, 4 e 5 e Acs. STA de 73-07-26, Acs, Dout. 143-1533; de 91-12-19, BMJ 412-530, de 93-11-04, Proc. N.º 31198; de 94-06-30, Proc. N.º 33319; e de 97-11-06, proc. N.º 28566; // — falta de realização de exames, peritagens ou quaisquer outras diligências indispensáveis à prova ou esclarecimento dos factos, […]” (Manuel Leal-Henriques, Procedimento Disciplinar. Função pública. Outros Estatutos. Regime de Férias, Faltas e Licenças, 4.ª edição, 2002, Lisboa, Reis dos Livros, p. 261).
A jurisprudência mais recente não diverge substancialmente da supra mencionada, sendo apontados os seguintes “exemplos de hipóteses reconduzíveis à noção de nulidade insuprível, além das que resultam diretamente do n.º 1: // a) Falta de notificação do mandatário do coarguido para estar presente na inquirição das testemunhas de defesa de outro coarguido (Acórdão do STA de 18/06/2008, P. n.º 145/08) ou testemunhas do próprio arguido (Acórdão do STA de 11/10/2006, P. n.º 1166/05). // b) Integra o conceito de nulidade insuprível uma nota de culpa em que relativamente à matéria de facto na acusação, não se fazem referências de tempo, nem se diz que sanção se pretende aplicar (Acórdão do STA de 13/02/2008, P. n.º 167/07). // c) Acusação vaga e genérica (Acórdãos do STA de 18/06/2009, P. n.º 4594/08, e de 12/05/2010, P. n.º 116/09). // d) Falta de notificação da acusação. // e) Concessão de prazo insuficiente para a defesa”. (Raquel Carvalho, op. cit., p. 120).
Nessa medida, a expressão “falta de audiência”, entendida em sentido amplo (abarcando, por conseguinte, a própria “omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade”), configurada que é como nulidade insuprível segundo os próprios termos do citado normativo, tem sido integrada, pela jurisprudência e pela doutrina, com realidades diversas e várias, como o sejam, além de outras, as situações de: i) acusação despida de qualquer expressão factual e contendo apenas juízos valorativos ou conclusivos, com remissão para peças ou documentos do processo, que não identifiquem inteiramente as infrações; ii) ausência de formalidades essenciais à acusação e à defesa; iii) falta de notificação da acusação (pessoal ou por carta registada com aviso de receção); iv) falta de publicação de aviso no Diário da República quando necessário; v) concessão de prazo insuficiente para defesa; vi) não prorrogação injustificada do prazo para a defesa; vii) negação do direito de defesa ampla; viii) falta de nomeação de curador quando necessário; ou ix) não notificação ao arguido da junção de documentos, ou de declarações ou depoimentos, por ele não requeridos e efetuados posteriormente à apresentação da defesa.
Nestes exactos termos, vide o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 17-09-2009, processo n.º 00233/00-Porto, in http://www.dgsi.pt/jtcn, e deste Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do recente acórdão proferido a 30-06-2020 no âmbito do proc. n.º 49/19.0YFLSB, cuja exposição, aliás, aqui se seguiu de perto.
Ainda seguindo de perto a exposição do citado Acórdão do STJ de 30-06-2020, importa ter igualmente presente nesta sede as especiais exigências constitucionais que se fazem sentir ao nível do direito disciplinar público. De tal sorte que, sendo imposta pelo artigo 271.º da Constituição uma responsabilidade do tipo disciplinar, somos desde logo confrontados com a perspectiva de um cidadão poder ficar sujeito a sanções decorrentes do exercício indevido de tarefas especificamente confiadas ao abrigo de funções públicas, que se distinguem em face das missões que lhe são atribuídas e do interesse por si prosseguido. Neste sentido, vide Rui Medeiros / Tiago Maceirinha, «Artigo 271.º», in AA.VV., Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, organização de Jorge Miranda / Rui Medeiros, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 633; Pedro Fernández Sánchez, «Notas sobre o Enquadramento Constitucional do Regime Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas», in AA.VV., O Regime Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas, Advogados e Magistrados Judiciais, coord. de Pedro Fernández Sánchez / Luís M. Alves, edição do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados e da Editora da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, p. 8.
Daí que a CRP não permita que esse regime disciplinar não seja acompanhado de garantias substantivas e processuais suficientes. Isso mesmo é denunciado no artigo 269.º, n.º 3, da CRP, que assegura ao arguido de procedimento disciplinar integrado no regime da função pública os direitos procedimentais de audiência e defesa, precisamente aqueles que, sendo próprios do estatuto de arguido em sede criminal, o n.º 10 do artigo 32.º da Constituição reconhece como devendo ser estendidos e aplicáveis a qualquer procedimento sancionatório.
Naturalmente, as garantias constitucionais previstas para o processo criminal (nomeadamente as previstas nos restantes números do artigo 32.º) não deverão ser aplicadas tout court e qua tale a qualquer processo sancionatório. Até porque o diferente impacto produzido por uma sanção penal não justificaria essa equiparação legal absoluta, como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 659/2006, de 28-11-2006, proferido no processo n.º 637/06.
Todavia, nem a doutrina nem a jurisprudência constitucional põem em causa que a generalidade dos princípios que norteiam o Direito Penal nunca fica totalmente alheia à abertura de procedimentos punitivos e à aplicação das respetivas sanções. Em todo o caso, “[…] tendo em mente a identidade da redação adotada para o n.º 10 do artigo 32.º e para o n.º 3 do artigo 269.º, tal implica que o amplíssimo repositório de jurisprudência constitucional emitida a propósito da generalidade dos processos sancionatórios pode ser aplicado em benefício do regime da função pública. Dito de outro modo, […] o intérprete pode lançar mão do rico manancial de coordenadas formuladas no âmbito da aplicação do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição sempre que a jurisprudência se revelar lacunosa no tratamento específico dos trabalhadores em funções públicas” (Fernández Sánchez, op. cit., pp. 9 e 10).
Veja-se o que a este respeito se consignou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 62/2016, de 03-02-2016 (processo n.º 457/2015):
“A garantia de audiência e defesa do arguido decorre, para os trabalhadores da Administração Pública, como um elemento central do estatuto da função pública, do disposto no artigo 269.º, n.º 3, da Constituição, mas que a revisão constitucional de 1989 tornou extensiva aos processos de contraordenação e aos demais processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10). No entanto, da garantia de audiência e defesa não é possível retirar uma extensão ao processo disciplinar da generalidade do regime substantivo em matéria penal. O preceito constitucional apenas releva no plano adjectivo e significa que é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 180/14).
Tem-se admitido, em todo o caso, que os princípios da constituição criminal, e especificamente os previstos nos artigos 29.º e 32.º da CRP, apesar de se restringirem no seu teor literal ao direito criminal, devam valer, no essencial, e por analogia, para todos os domínios sancionatórios: o princípio da legalidade das penas, o princípio da não retroactividade e o princípio da lei mais favorável ao arguido e o princípio da culpa (acórdãos do TC n.ºs 161/95, 227/92, 574/95 e 160/2004). A jurisprudência constitucional tem igualmente admitido, em processo disciplinar, o princípio da presunção de inocência do arguido, como decorrência do direito a um processo justo, não apenas na sua vertente probatória, correspondendo à aplicação do princípio “in dubio pro reo”, pelo qual é à Administração que cabe o ónus da prova dos factos que integram a infracção, quer ao nível do próprio estatuto ou condição do arguido em termos de tornar ilegítima a imposição de qualquer ónus ou restrição de direitos que, de qualquer modo, representem e se traduzam numa antecipação da condenação (assim, o acórdão do TC n.º 123/92, que julgou inconstitucional a norma que determina, na sequência da prolação do despacho de pronúncia, e durante a suspensão do exercício de funções da mesma decorrente, a perda da totalidade do vencimento”).
Daí que sejam princípios de direito disciplinar exercido na relação jurídica de emprego público, entre outros, os princípios da legalidade sancionatória, da culpa, do respeito pelos direitos de audiência, defesa e contraditório, do respeito pelos direitos fundamentais, da proporcionalidade das sanções, o princípio ne bis in idem e o princípio da presunção de inocência do trabalhador. Encontramo-nos, nos casos apontados, perante manifestações ou concretizações do direito de defesa, consagrado nos n.os 1, 2 e 3 do artigo 32.º da Constituição para o processo criminal, mas extensível ao processo disciplinar, não só por determinação constitucional expressa (artigo 269.º, n.º 3, do mesmo diploma), mas também porque o direito de audiência e defesa integra o cerne do princípio do Estado de direito democrático, sendo, por isso, inerente a todos os processos sancionatórios.
Simultaneamente, a alusão à garantia de audiência e defesa em processo disciplinar não significa que a isso se reduzam os direitos dos arguidos nesse tipo de processos. Pelo contrário: o processo disciplinar deve configurar-se como um processo justo, aplicando-se-lhe, na medida do possível, as regras ou princípios de defesa constitucionalmente estabelecidos para o processo penal, nomeadamente, as garantias de legalidade, o direito à assistência de defensor, o princípio do contraditório e o direito de consulta do processo (João Castro Neves, op. cit., pp. 7 e passim).
Neste conspecto, a própria doutrina penalista vem de há muito ensinando que, “[…] na medida em que as penas disciplinares são um mal infligido a um agente, devem […] em tudo quanto não esteja expressamente regulado, aplicar-se os princípios que garantem e defendem o indivíduo contra todo o poder punitivo […]” (Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Coimbra, Almedina, 1971, p. 37). Ou, noutra formulação, “as sanções disciplinares têm fins idênticos aos das penas crimes; são, por isso, verdadeiras penas: como elas reprovam e procuram prevenir faltas idênticas por parte de quem quer que seja obrigado a deveres disciplinares e essencialmente daquele que os violou, […] aquelas sanções têm essencialmente em vista o interesse da função que defendem, e a sua actuação repressiva e preventiva é condicionada pelo interesse dessa função, por aquilo que mais convenha ao seu desempenho atual ou futuro […] no que não seja essencialmente previsto na legislação disciplinar ou desviado pela estrutura específica do respetivo ilícito, há que aplicar a este e seus efeitos as normas do direito criminal comum […]» (José Beleza Dos Santos, Ensaio sobre a Introdução ao Direito Criminal, Lisboa, Atlântida Editora, 1968, pp.113 e 116).
Tendo por pano de fundo a Doutrina supra exposta e na medida em que o poder disciplinar tem a sua razão de ser nos próprios fins públicos do direito sancionatório, que pode atingir uma extrema severidade de moldura sancionatória abstrata, facilmente se percebe que tenham de ser observados os mesmos princípios garantísticos de defesa do arguido que presidem ao direito penal.
Desde logo, é nesta sede aplicável o princípio da vinculação temática, consagrado no artigo 359.º, n.º 1, do vigente Código de Processo Penal (doravante CPP), segundo o qual a “alteração substancial dos factos descritos na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso”. Ou seja, proíbe-se a alteração substancial dos factos da acusação, conceito que o artigo 1.°, n.° 1, alínea f), do CPP define como “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
Esclareça-se ainda, a este propósito, que a solução do artigo 359.º do vigente CPP se afasta do estatuído no artigo 447.° do CPP/1929, pois que hoje, à luz do direito processual penal, “também a diversa qualificação pode significar a alteração substancial dos factos, ainda que naturalisticamente considerados sejam os mesmos” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, Noções Gerais, Elementos do Processo Penal, Lisboa, Verbo, 2010, p. 359).
Assim, por imperativo do artigo 32.º, nºs 1 e 2, da CRP cumpre observar, não só as garantias de defesa do arguido e a estrutura acusatória do processo, como também o princípio do contraditório do arguido, de modo a evitar que, pese embora no contexto dos mesmos factos naturalísticos da acusação, venha a ser surpreendido por juízos jurídicos de desvalor de acção e resultado distintos, que originem uma condenação por crime diferente ou por sanção concreta distinta por reporte à sanção abstrata cominada na lei.
A própria doutrina administrativa, ponderando a ratio punitiva subjacente à perseguição disciplinar e cotejando-a com a natureza, que lhe reconhece próxima, da perseguição criminal, não deixou, desde cedo, de fazer notar que “[a] redação dos artigos da acusação corresponde ao acto mais delicado do processo disciplinar, visto que neles se fixa a matéria de facto sobre a qual, daí por diante, versará a discussão processual e que pode servir de base à decisão final. Factos não articulados não poderão ser mais ser invocados contra o arguido ou fundamentar a sua condenação. E têm-se por não articulados os factos apenas insinuados ou obscura, vaga ou confusamente apresentados” (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, volume II, 10.ª edição, 2013, Almedina, pp. 845 e 846).
É a acusação, pois, que determina, com efeitos preclusivos, os limites da perseguição disciplinar que se há-de determinar ao arguido – sejam esses limites em termos de moldura sancionatória, seja mesmo em termos de «factologia» imputada ao arguido. Trata-se aqui do denominado princípio da vinculação temática, que passou a estar consagrado normativamente nos diplomas que se seguiram ao Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, sendo hodiernamente estabelecido de forma expressa que “na decisão não podem ser invocados factos não constantes da acusação nem referidos na resposta do arguido, excepto quando excluam, dirimam ou atenuem a sua responsabilidade disciplinar” (vide artigo 220.º, n.º 5, da LGTFP).
Veiga e Moura e Cátia Arrimar, op. cit, p. 624, esclarecem, a propósito desta solução normativa, que “o n.º 5 reforça a importância da maneira como se formula a acusação, pois qualquer facto que não conste da acusação não pode nunca ser tido em consideração, exceto se resultar da matéria de facto alegada na defesa do arguido ou for um facto que afaste ou diminua a sua responsabilidade. // Trata-se de uma concretização dos princípios do dispositivo e da aquisição da prova, excecionando-se apenas os factos que comprovem a ausência de responsabilidade, os quais poderão ser tidos em consideração desde que constem do processo, independentemente da sua alegação em sede de acusação ou defesa”.
Mais assertivamente: “não podem dar-se como provados factos que não constem da acusação, sob pena de nulidade. A excepção reconduz-se aos factos que beneficiam a posição jurídica do arguido, designadamente circunstâncias dirimentes ou atenuantes» (Raquel Carvalho, op. cit., pág. 156).
É na acusação, portanto, que se delimita o thema decidendum ou o objecto da(s) imputação/ões feita(s) ao trabalhador arguido. E, se “nada obsta a que na pendência de um procedimento disciplinar, o objecto da investigação se alargue a outras infrações entretanto também participadas” ou conhecidas (Carlos Alberto Fernandes Cadilha, «Direito Disciplinar da Função Pública. Alguns tópicos», texto policopiado para apoio à preleção ocorrida a 09-05-2003 aos auditores de justiça do curso de formação de juízes dos tribunais administrativos e fiscais), sempre se exigirá, em contrapartida, que o ajustamento de novas infrações posteriores ao despacho acusatório, bem como a introdução de alterações significativas ao mesmo, implique a reelaboração da acusação e a concessão de novo período de defesa ao trabalhador.
Na verdade, se a acusação é a “pedra de toque da defesa do trabalhador, o pilar do contraditório [ou] o momento do confronto do trabalhador com a juridicidade da infracção e com as consequências que legalmente estão previstas […]”, então o arguido “[…] não pode ser sancionado senão pelos factos constantes da acusação […]” (Ana Fernanda Neves, O Direito…, vol. II, cit., pág. 391). “a defesa à acusação é a defesa contra “o todo juridicamente possível”, no concreto. A fixação dos factos e a apreciação de direito no relatório/decisão final, ao dever conter-se necessariamente nos limites daquela, nada “furta” à pronúncia do arguido” (idem, ibidem, pág. 392).
Daí que a acusação tenha de elencar com previsão tanto os factos como a qualificação jurídica pertinente, não podendo ser ocultado ao trabalhador o valor jurídico dos factos e da decisão projectada com base neles. Daí também que o recorte punitivo, factual e de qualificação jurídica da decisão projectada deva constar da acusação.
Ainda a este propósito, mais ensina a doutrina da especialidade que “a alteração dos factos que não os coloque fora do recorte infracional levado à acusação (infracção e sanção aplicável, incluindo, portanto, os elementos de determinação da sanção concretamente a aplicar, como, por exemplo, uma circunstância agravante) — “inalterabilidade ou identidade dos factos imputados” — e a alteração de qualificação jurídica para um patamar inferior de gravidade, de modo a que se possa dizer com segurança que não propicia acrescento defensivo não passível de ser aduzido em face da anterior acusação, não justifica a apresentação de nova acusação (sem prejuízo da eventual pertinência de nova audição). Uma alteração substancial da acusação (v.g., consideração de factos novos, redefinição mais gravosa dos factos, consideração de circunstâncias agravantes, modificação que agrave a qualificação jurídica) subsequente à respetiva notificação importa notificação de nova acusação e a reabertura ou reajustamento do período de defesa» (idem, ibidem, pág. 393).
Concluindo: em homenagem ao princípio da vinculação temática, a decisão sancionatória não pode conter, por adicionamento, matéria de facto que não se mostre descrita na acusação, uma vez que, nesta fase do procedimento disciplinar, ou seja, após dedução da acusação, o facto juridicamente relevante é o facto materialmente ilícito e culposo e não o facto naturalístico.
Por esse motivo, constitui elemento essencial da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, sendo estes que constituem o objeto do processo disciplinar e por sua vez, serão objeto de apreciação e decisão pela entidade competente para o exercício da função disciplinar. De tal sorte que a decisão sancionatória há de incidir apenas sobre a matéria da acusação, sendo sancionado com nulidade insuprível o despacho disciplinar que aplique uma pena por factos substancialmente diversos ou com qualificação jurídica diversa dos descritos na peça acusatória, por falta de audiência do arguido no exercício do contraditório, correlativo do princípio constitucional estatuído no artigo 269.°, n.° 3, da CRP, pelo que o procedimento disciplinar em tramitação da acusação, para o relatório final e para o despacho decisório tem, naturalmente, de seguir o estipulado no regime remissivo do CPP.
O aludido princípio da vinculação temática, oriundo do direito processual penal, tem sido, de resto, abordado e aplicado em sede de apreciação jurisdicional do exercício da perseguição disciplinar por autoridades administrativas. Sem preocupações de exaustividade, aqui se deixam enunciadas algumas decisões que, ao longo dos anos, foram sendo proferidas pelos tribunais superiores da jurisdição administrativa a este respeito:
— Acórdão do STA de 07-12-1989, in Apêndice ao Diário da República, 2.ª série, de 30-12-1994, pág. 7114: “Verifica-se a nulidade do processo disciplinar, por falta de audiência do arguido, quando no relatório final do instrutor, que antecedeu a decisão punitiva, foi introduzido, como agravante, um facto que não constava da acusação”;
— Acórdão do STA de 08-03-1990, in Apêndice ao Diário da República, 2.ª série, de 12-01-1995, pág. 1895: “Constitui nulidade insuprível prevista no artigo 42.º do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, e viola o artigo 269.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, que garante ao arguido o direito à audiência e defesa, o acto punitivo que se fundamenta em factos, integrantes de infracção disciplinar, que não se contêm na nota de culpa nem foram objeto de acusação complementar”;
— Acórdão do STA de 13-10-1992, processo n.º 029875, cujo sumário está acessível in http://www.dgsi.pt/jsta: “I - A qualificação jurídica da falta constante da nota de culpa não vincula a entidade que detém o poder de punir. II - Deve, porém, ser ouvido o arguido sobre a nova qualificação da falta que lhe é imputada, sem o que são violados os seus direitos de audiência e defesa. III - Tal violação gera a nulidade insuprível do processo disciplinar”;
— Acórdão do STA de 12-04-1994, processo n.º 032236, cujo sumário está acessível in http://www.dgsi.pt/jsta: “Encontra-se assegurado o direito de audiência e defesa se o arguido teve o ensejo de exercitar a sua defesa, de modo eficaz e organizado, e a coberto de qualquer surpresa; e isto mormente se não foram tomados em consideração no acto punitivo factos novos não incluídos na nota de culpa, nem deveres jurídicos supostamente infringidos não expressamente contemplados na acusação nem um enquadramento jurídico disciplinar dos factos indiciados em moldura sancionatória mais gravosa do que a que constava na peça acusatória”;
— Acórdão do STA de 19-01-1995, processo n.º 031496, , cujo sumário está acessível in http://www.dgsi.pt/jsta: “Embora a qualificação da falta constante da nota de culpa não vincule a entidade que detém o poder de punir, deve, também, ser ouvido o arguido sobre a nova qualificação da falta, sem o que são violados os seus direitos da audiência e defesa”;
— Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) de 12-05-2005, processo n.º 011503/02, integralmente disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtca, cujo sumário é o seguinte: “1. Na medida em que o poder disciplinar tem a sua razão de ser nos próprios fins públicos do direito sancionatório, é evidente que têm de ser observados os mesmos princípios garantísticos de defesa do Arguido que presidem ao direito penal. 2. Desde logo o princípio da vinculação temática, art.º 359.º n.º 1 do Código de Processo Penal vigente, isto é, a “alteração substancial dos factos descritos na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal [no pr. disciplinar pela Administração Pública] para o efeito de condenação no processo em curso”. 3. Ou seja, proíbe-se a alteração substancial dos factos da acusação, conceito que o art.º 1.º n.º 1 alínea f) do CPP define como “aquela que tiver por efeito a imputação ao Arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis” sendo que também a diversa qualificação pode significar a alteração substancial dos factos, ainda que naturalísticamente considerados sejam os mesmos. 4. Constitui elemento essencial da Acusação e, por arrastamento, do Relatório Final, a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, sendo estes que constituem o objeto do processo disciplinar daí em diante, no tocante ao desenvolvimento da instância procedimental e que, por sua vez, serão objeto de apreciação e decisão pela entidade competente para o exercício da função disciplinar. 5. O despacho sancionatório há de incidir apenas sobre a matéria da Acusação, sendo sancionada por nulidade insuprível a decisão disciplinar que aplique uma pena por factos substancialmente diversos dos descritos na peça acusatória, por falta de audiência do Arguido no exercício do contraditório, correlativo do princípio constitucional estatuído no art.º 269.º n.º 3 CRP - vd. Art.º 42.º n.º 1 ED”;
— Acórdão do mesmo TCAS de 02-10-2008, processo n.º 03645/08, integralmente acessível em http://www.dgsi.pt/jtca, de cujo sumário consta, além do mais, o seguinte: “3. Em homenagem ao princípio da vinculação temática e face ao disposto nos art.°s. 59.° n.° 4 (acusação), 65.° n.° l (relatório final) e 66.° n.° 4 (decisão) todos do DL 24/84, 16.01, ED, a decisão sancionatória não pode conter por adicionamento matéria de facto que não se mostre descrita nos despachos de acusação e relatório final, uma vez que, nesta fase do procedimento disciplinar, ou seja, pós dedução da acusação, o facto juridicamente relevante é o facto materialmente ilícito e culposo e não o facto naturalístico”;
— Acórdão do STA de 30-10-2014, processo n.º 01169/13, integralmente disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jsta, no qual se deixou consignado em sede de fundamentação fáctico-jurídica, além do mais, o seguinte:
(ii) Necessidade de nova acusação por ter havido alteração da qualificação jurídica.
A questão não fica totalmente resolvida, uma vez que o autor considera ter havido uma alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação.
Esta questão, embora conexionada com a anterior é diferente, na medida em que agora o que vamos averiguar é se os factos da acusação (que podem ser atendidos após expurgado o vício gerador de nulidade do acto anterior) subsistem com a qualificação jurídica original, ou se houve (como alega o autor) alteração dessa qualificação jurídica.
Vejamos este ponto.
Na acusação do processo disciplinar 2/2010 relativamente aos factos 1 a 19 (relativos à avocação de um processo) o art. 19.º tinha a seguinte imputação:
“19. Com estes factos, documentados no anexo B, infringiu o magistrado arguido, de forma muito grave, o dever geral de imparcialidade que se encontra previsto na alínea c), do n.º 2, do artigo 3.º da Lei n.º 58/2008, de 29 de setembro.”.
No Acórdão da Secção Disciplinar que deu execução ao acórdão anulatório, os mesmos factos sofreram alguma modificação, tendo o art. 15.º a seguinte redação:
“15. Ao actuar deste modo, consciente, voluntário e persistente, infringiu o dever geral de lealdade, previsto na al. g) do n.º 2, do art. 3.º do Estatuto disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas (ED), aprovado pela Lei 58/2008, de 9 de Setembro, aplicável “ex vi” artigo 216.º do Estatuto do Ministério Público, na redacção introduzida pela lei n.º 60/98, de 27 de Agosto.”
Decorre do exposto que foi alterada a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido. Na acusação fora-lhe imputado a violação do dever geral de imparcialidade e foi punido nesse enquadramento jurídico.
Após a declaração de nulidade da respetiva punição, por violação do princípio “ne bis in idem”, a entidade detentora do poder disciplinar poderia reformular a decisão é certo, suprimindo o vício reconhecido na decisão do STA, mantendo válido todo o procedimento disciplinar. Mas teria que respeitar as regras deste procedimento que impõem que o arguido seja notificado dos factos da acusação e da qualificação jurídica de tais factos.
O art. 204.º do EMP considera “nulidade insuprível a falta de audiência do arguido com possibilidade de defesa…”
O art. 197.º, 2 do EMP diz-nos que “Concluída a instrução e junto o registo disciplinar do arguido, o instrutor deduz acusação no prazo de dez dias, articulando discriminadamente os factos constitutivos da infração disciplinar e os que integram circunstâncias agravantes ou atenuantes que repute indicados, indicando os preceitos legais no caso aplicáveis”.
Existirá, portanto, falta de audiência do arguido, sempre que este venha a ser punido por factos ou preceitos legais não indicados na acusação. Falta essa que, nos termos do art. 204.º do EMP é geradora de nulidade insuprível. Nulidade insuprível do procedimento, que, por seu turno e nos termos do art. 134.º do CPA fere o ato punitivo de anulabilidade.
No presente caso verifica-se que o arguido veio a ser punido com fundamento em normas legais não indicadas na acusação como qualificando a sua conduta descrita nos artigos 1 a 15 dos factos dados como provados, mais concretamente as normas que se reportam ao dever de lealdade previsto na al. g) do n.º 2 do art. 3.º da Lei 58/2008, de 9 de setembro.
Relativamente aos mesmos factos o arguido fora notificado, sim, no âmbito do processo disciplinar 2/2010, com a indicação de que os mesmos infringiam o dever geral de imparcialidade previsto na al. c), do n.º 2, do art. 3.º da Lei 58/2008 de 9 de setembro.
Portanto, ocorreu efectivamente a violação do art. 204.º do EMP, devidamente articulado com o art. 134.º do EMP, na justa medida em que o arguido não foi notificado de uma acusação de onde constassem as normas legais que foram aplicadas no acto punitivo.
Daí que, neste ponto, o arguido tenha toda a razão, devendo em consequência proceder o alegado vício.
Também a Secção de Contencioso do STJ se tem debruçado sobre esta matéria. De seguida enuncia-se o resultado de um périplo por algumas das decisões mais recentes, com sumários acessíveis em http://www.stj.pt:
- Acórdão de 23-03-2016 (processo n.º 31/15.6YFLSB): “II - Fundando-se a deliberação recorrida nos factos que constavam da acusação e do relatório final, do seu conhecimento, não pode proceder a arguição de nulidade (art. 124.º, n.º 1, do EMJ) com base no argumento de que foi preterida a audição da recorrente. III - Ao CSM é lícito alterar a qualificação jurídica dos factos narrados na acusação conquanto tal não implique um gravame para a posição do arguido, devendo, se tal suceder, ser salvaguardado o seu direito de defesa”;
— Acórdão de 31-03-2016 (processo n.º 8/16.4YFLSB): “O princípio da vinculação temática da decisão punitiva aos factos vertidos na acusação (art. 55.°, n.º 5, do EDTFP) constitui uma concretização, no mesmo passo, dos princípios do dispositivo e da aquisição processual e veda apenas a consideração de factos que não constem da acusação, sendo que a sua inobservância conduz a uma nulidade insuprível do procedimento disciplinar (n.º 1 do art. 37.° do EDTFP), a qual, porém, apenas acarreta a anulabilidade do ato administrativo punitivo”;
— Acórdão de 27-04-2016 (processo n.º 79/15.0YFLSB): “IV - Sendo o procedimento disciplinar um procedimento administrativo especial, de natureza sancionatória, o processo de integração de hipotéticas lacunas, após recurso à analogia dentro do próprio direito processual disciplinar, fará apelo às normas e princípios do procedimento administrativo em geral - cfr o art. 2.º do CPA. Só, em seguida, se recorrerá às normas e princípios do direito processual penal que é de todos os regimes jurídico processuais, aquele que revela maior apuramento nas garantias de defesa. O CPP não será, assim, aplicável de forma automática. V - A decisão, em procedimento disciplinar, não é uma sentença (cfr art. 55.º do EDTEFP) — o que se exige é que aquela decisão seja fundamentada quando não concordante com a proposta formulada no relatório final do instrutor, não podendo ser invocados factos não constantes da acusação nem referidos na resposta do arguido, excepto quando excluam, dirimam ou atenuem a sua responsabilidade disciplinar”;
— Acórdão de 26-11-2016 (processo n.º 11/16.4YFLSB): “A inobservância do princípio da vinculação temática da decisão punitiva aos factos vertidos na acusação (constante do n.º 5 do art. 55.º do EDTFP e do n.º 5 do art. 220.º da LGTFP) tem como consequência a nulidade insuprível do procedimento disciplinar, a qual, porém, apenas acarreta a anulabilidade do ato administrativo punitivo por incursão em vício de violação de lei”;
— Acórdão de 04-05-2017 (processo n.º 72/16.6YFLSB): “III - A inobservância do princípio da vinculação temática da decisão punitiva aos factos da acusação (n.º 5 do art. 220.º da LGTFP) tem como consequência a nulidade insuprível do procedimento disciplinar, o que conduz à anulabilidade da primeira. IV - Posto que os factos delimitadores e fundadores da responsabilidade disciplinar constavam já do elenco vertido na acusação (ainda que enquadrados na infração a outros deveres funcionais) de que o recorrente foi oportunamente notificado e sobre os quais teve oportunidade de se pronunciar, não se divisa que haja sido infringido o mencionado princípio ou preterido o direito de audiência prévia, sancionado nos termos n.º 1 do art. 124.º do EMJ. V -Desde que se mantenha inalterada a base factual, ao recorrido é lícito alterar a qualificação jurídica dos factos narrados na acusação, conquanto tal alteração não represente um agravamento da posição do arguido relativamente ao proposto pelo instrutor. O dever de comunicar a alteração da qualificação jurídica (cuja omissão constitui mera irregularidade) só deve ser cumprido quando se perspetive uma moldura sancionatória mais gravosa do que aquela relativamente à qual o arguido teve a possibilidade de exercer o seu direito de defesa. VI - Revelando-se a alteração da qualificação jurídica inócua do ponto de vista das garantias de defesa do arguido, a falta da prévia comunicação ao recorrente não constitui motivo para invalidar a deliberação recorrida”;
— Acórdão de 28-02-2018 (processo n.º 30/17.3YFLSB): “Contendo o relatório final factos novos e considerações com os quais a recorrente não foi confrontada e tendo aí sido sustentado que a valoração da factualidade integrava o conceito a que a alude a al. c) do n.º 1 do art. 95.º do EMJ e não aquele a que se reporta a al. a) do mesmo preceito, é de concluir pela violação grave dos princípios da audiência e do contraditório, o que, nos termos do n.º 1 do art. 124.º do EMJ, acarreta a nulidade da deliberação impugnada”;
— Acórdão de 28-02-2018 (processo n.º 75/17.3YFLSB): “III - A acusação (art. 117.º do EMJ) deve conter todos os factos imputados ao arguido, não devendo o relatório a que se refere o art. 122.º do EMJ conter factos novos sobre os quais não foi possível ao arguido defender-se. IV - No relatório final e sempre que tal redunde num prejuízo para a defesa do arguido, não se pode, igualmente, alterar a qualificação jurídica dos factos, já que quem prepara e orienta a defesa face a uma determinada acusação não deve ser inopinadamente confrontada com uma outra”;
— Acórdão de 30-06-2020 (processo n.º 49/19.0YFLSB), este acessível online in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:49.19.0YFLSB: “XV - São princípios de direito disciplinar no domínio da relação jurídica de emprego público, entre outros, os princípios da legalidade sancionatória, da culpa, do respeito pelos direitos de audiência, defesa e contraditório, do respeito pelos direitos fundamentais, da proporcionalidade das sanções, o princípio ne bis in idem e o princípio da presunção de inocência do trabalhador. Encontramo-nos, nos casos apontados, perante manifestações ou concretizações do direito de defesa, consagrado nos n.os 1 a 3 do art. 32.º da CRP para o processo criminal, mas extensível ao processo disciplinar, não só por determinação constitucional expressa (art. 269.º, n.º 3, do mesmo diploma), mas também porque o direito de audiência e defesa integra o cerne do princípio do Estado de direito democrático, sendo, por isso, inerente a todos os processos sancionatórios. // XVI - Desde logo, é nesta sede aplicável o princípio da vinculação temática, consagrado no art. 359.º, n.º 1, do CPP e, no que ora importa, no art. 220.º, n.º 5, da LGTFP, de acordo com o qual a acusação tenha de elencar com previsão tanto os factos como a qualificação jurídica pertinente, não podendo ser ocultado ao trabalhador o valor jurídico dos factos e da decisão projetada com base neles. Daí também que o recorte punitivo, factual e de qualificação jurídica da decisão projetada deva constar da acusação. // XVII - Por esse motivo, constitui elemento essencial da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, sendo estes que constituem o objeto do processo disciplinar e que, por sua vez, serão objeto de apreciação e decisão pela entidade competente para o exercício da função disciplinar. De tal forma que a decisão sancionatória há de incidir apenas sobre a matéria da acusação, sendo sancionado com nulidade insuprível o despacho disciplinar que aplique uma pena por factos substancialmente diversos ou com qualificação jurídica diversa dos descritos na peça acusatória, por falta de audiência do arguido no exercício do contraditório, correlativo do princípio constitucional estatuído no art. 269.°, n.º 3, da CRP, pelo que o procedimento disciplinar em tramitação da acusação, para o relatório final e para o despacho decisório tem, naturalmente, de seguir o estipulado no regime aplicável pela remissão para o CPP. // […] XXV - Traduzindo esta imputação uma alteração “factológica” (ao nível do tipo objetivo e subjetivo de infração disciplinar), bem como uma alteração de qualificação jurídica relevante - na exata medida em que foi essa alteração que possibilitou a aplicação de pena disciplinar (posto que, sem tal alteração, o demandante não teria sido punido) -, prefigura-se a verificação da nulidade insuprível consagrada no art. 203.º, n.º 1, ex vi art. 220.º, n.º 5, ambos da LGTFP, o que determina a anulação do ato impugnado”.
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Perante este enquadramento normativo pertinente, revertamos a nossa atenção para o caso concreto dos autos.
Recuperando as ocorrências processualmente relevantes fixadas no probatório, temos que os factos 17, 20, 21, 22, 24, 25 e 26 não constavam do relatório final nem foram tomados em linha de consideração na primeira deliberação do CSM que entretanto viria a ser anulada pelo STJ. Assim foi porque no relatório final [reproduzido em 5º dos factos provados], após apreciação da defesa do ora autor, se consignou, além do mais, o seguinte:
“Em suma, em função das considerações que antecedem e da prova pessoal e documental produzida nos autos, importa, pois:
1. Eliminar os artigos 17., 20. a 22. e 24. a 26. da acusação;
[…]
3.2. Requereu o Arguido que fossem juntas aos autos actas de todas as diligências por si realizadas entre 07.09.2016 e 12.12.2017, sugerindo que o procedimento que seguiu no processo n.º 2226/14......., em causa nestes autos, terá sido igualmente seguido noutros processos.
A partir do módulo «Histórico da Gestão Processual», da listagem de «Documentos Partilhados Devolvidos», extraíram-se do Citius os elementos pretendidos, os quais constituem o Anexo A.
Da análise da documentação aí constante decorre que uma situação idêntica à seguida no referido processo n.º 2226/14....... ocorreu tão-só no processo n.º 22020/11......., oposição à execução comum (art. 813.º CPC), com o valor processual de €2.788,41, numa audiência de discussão e julgamento realizada em 18.10.2016.
Apenas naquelas duas situações o julgamento iniciou-se e findou antes de decorrerem mais de 10 minutos da hora agendada para o seu início, sem a presença de qualquer interveniente processual, nomeadamente de qualquer mandatário das partes.
Em ambos os casos inexistia alçada para recurso.
Da análise da documentação constante do Anexo A decorre que a audiência prévia, a tentativa de conciliação ou o julgamento começaram antes de decorrerem 10 minutos da hora designada para o seu início, sem a presença de um dos mandatários judiciais das partes e sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, findando em todo o caso 14 minutos ou mais depois da hora designada para o seu início, nos 10 processos seguintes com os números:
[…]
Por outro lado, à semelhança dos 10 processos indicados nos artigos 17. a 26. da acusação, da documentação constante do Anexo A, resulta que o Arguido aguardou entre 10 e 30 minutos pela presença de mandatário forense ausente, sem que este tenha comunicado o respetivo atraso ou ausência, nos 12 processos seguintes, com os números:
[…]
Ou seja.
Na matéria aqui em causa conclui-se pela inexistência de um critério por parte do Arguido.
Tal ausência de critério decorria já manifesto do confronto dos artigos 9. e 17. a 26. da acusação, pelo que quanto a tal afigura-se desnecessário aduzir matéria factual à acusação deduzida.
Por outro lado, uma vez que as descritas situações de início de diligência processual sem a presença do mandatário forense de uma das partes diferem do ocorrido no referido processo n.º 2226/14......., pois neste estiveram ausentes ambos os Advogados das partes e a diligência iniciou-se e findou antes de decorrerem 10 minutos sobre a hora agendada para o respectivo início, urge, por um lado, não aduzir matéria factual nova decorrente da análise feita ao Anexo I e, por outro lado, importa eliminar da acusação os respectivos artigos 17., 20. a 22. e 24. a 26., uma vez que nestas a falta respeita apenas a um dos mandatários, matéria impertinente, atento o ocorrido no processo n.º 2226/14........
A circunstância de ter anteriormente acontecido uma outra situação idêntica à ocorrida naquele processo n.º 2226/14......., em causa nestes autos, não justifica o sucedido neste.
[…]
Porém, sem que se possa negar pertinência a esta constatação, o que é certo é que, como se constata aliás do próprio relatório final e da deliberação que o acolheu, a acusação elaborada no âmbito do procedimento disciplinar contemplava os aludidos factos 17, 20, 21, 22, 24, 25 e 26 [cf. ponto 3º do probatório], que viriam a ser recuperados na deliberação ora impugnada. E sobre eles teve o ora autor ampla oportunidade para se pronunciar e defender.
De resto, na sua defesa, o demandante pronunciou-se especificadamente relativamente aos referidos factos apurados na acusação [cf. ponto 4) dos factos provados]. Tanto assim foi que foi o próprio arguido e ora autor que, nos nºs 16 a 18, 19 e 24 da resposta à acusação apresentada, defendendo que sempre adoptou o mesmo critério/entendimento (só esperar pelos mandatários e intervenientes processuais quando avisavam o atraso), suscitou serem factos a ponderar e apreciar (ainda que genericamente alegados) todas as diligências por si presididas, nomeadamente nos processos nºs 960/14....... e 85/07...... (sessão de 02-02-2017), com vista a fazer prova de que o critério de actuação em todas as diligências era uniforme, independentemente de serem ou não as decisões passíveis de recurso.
Quanto a estes factos, em concreto, nada há a apontar ao acto impugnado, posto que, como vimos já, é a acusação que determina, com efeitos preclusivos, os limites da perseguição disciplinar que se há-de determinar ao arguido. Se na acusação já constavam os factos e o arguido, na sua defesa, se pronunciou acerca desses factos, não há por que anular o acto que tomou em linha de consideração estes factos em concreto.
E que dizer da factualidade levada aos factos 27 a 49 da deliberação impugnada? Sendo inequívoco que não constavam da acusação, será que poderão traduzir uma violação do princípio da vinculação temática, ou por não ser facultada oportunidade ao arguido para se defender?
Julgamos que não, por três ordens de razão distintas, uma de ordem conceptual ou dogmática relativa ao aludido princípio da vinculação temática, e os demais por força da dinâmica factual apurada. Damos conta de cada um desses argumentos sucintamente de seguida.
Em primeiro lugar, como vimos já, “nada obsta a que na pendência de um procedimento disciplinar, o objecto da investigação se alargue a outras infrações entretanto também participadas” ou conhecidas (Fernandes Cadilha, cit.). E se tal exige, em contrapartida, a reelaboração da acusação e a concessão de novo período de defesa ao trabalhador quando se verifique o ajustamento de novas infrações posteriores ao despacho acusatório, bem como a introdução de alterações significativas ao mesmo, já não se verificará idêntica exigência quando essas alterações não sejam posteriores ou não se revelem significativas.
Na verdade, como esclarecem os tratadistas, “o facto relevante para o direito penal não é o mero evento naturalístico, mas o evento impregnado de um sentido, de um desvalor. […] Assim, enquanto a alteração dos factos não implicar diverso juízo de valor, não estaremos perante alteração substancial e a alteração do juízo de desvalor que o tipo legal traduz representa necessariamente que o sentido dos eventos é tomado diversamente, são outros e substancialmente outros os factos. […] É que o mesmo juízo de desvalor pode ser comum a diversas normas, a diversos tipos, que mantendo em comum o juízo de ilicitude divergem apenas na sua quantidade, não na sua essência, mas na gravidade, sendo a este segundo aspecto que atende a parte final do art.° 1.° n.° 1 al. f) [do CPP] quando considera que há alteração substancial ainda quando se mantenha o mesmo crime, desde que resultem agravados os limites máximos das sanções aplicáveis […]» (Germano Marques da Silva, op. cit., p. 359). Mais esclarece o autor que «[…] podem alterar-se as circunstâncias e a forma de culpabilidade que o crime não será materialmente diverso, desde, que a razão do juízo de ilicitude permaneça a mesma […]».
Ora, no caso vertente, temos que os factos aludidos não traduziram um agravamento da moldura sancionatória nem uma alteração substancial ao libelo acusatório. Sendo factos, do ponto de vista ontológico ou naturalístico, diversos dos factos constantes nos pontos 17, 20, 21, 22, 24, 25 e 26 da acusação, constituem, ainda assim, mero desenvolvimento ou complemento de um único e mesmo evento impregnado de um desvalor: a conduta reiterada assumida pelo autor na condução processual com referência à tolerância demonstrada no início pontual de diligências no caso de atraso de mandatários ou das partes. Tanto assim que essa suposta nova «factologia» não implicou qualquer alteração da sanção ou pena aplicada, que foi idêntica na primeira deliberação e no acto impugnado: 20 dias de multa.
Assim, esses factos não «alargam» o objecto do processo, não o fazem perder a sua identidade, não se passando a um diferente objecto do processo (Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, 2003, p. 112). Assim, o objeto do procedimento disciplinar manteve-se, pois a infração pela qual o autor vinha acusado foi exatamente a mesma pela qual veio a ser condenado, sendo a pena também a mesma.
Em segundo lugar, como tivemos oportunidade de deixar estabelecido, foi o próprio arguido e ora autor que, nos nº 16 a 18, 19 e 24 da resposta à acusação apresentada, defendendo que sempre adoptou o mesmo critério/entendimento (só esperar pelos mandatários e intervenientes processuais quando avisavam o atraso), suscitou serem factos a ponderar e apreciar (ainda que genericamente alegados) todas as diligências por si presididas, nomeadamente nos processos nºs 960/14....... e 85/07...... (sessão de 02-02-2017), com vista a fazer prova de que o critério de actuação em todas as diligências era uniforme, independentemente de serem ou não as decisões passíveis de recurso.
Significa isto que, em bom rigor, muitos dos factos ora em apreço são provenientes da própria defesa do autor. Como tal, nenhum acrescido exercício de audiência prévia se justificava.
Finalmente, importa recordar que a deliberação ora impugnada foi proferida na sequência da prolação do Acórdão do STJ, que anulou a precedente deliberação de 29-01-2019. Recuperemos aqui o que se deixou estabelecido no referido Acórdão da Secção do Contencioso do STJ, proferido no processo n.º 12/19.0YFLSB, na parte II – Vício de insuficiência da matéria de facto e erro manifesto na apreciação da prova:
“Se atentarmos no teor dos factos constantes nos n.ºs 16 a 18, 19 e 24 da resposta à acusação apresentada pelo arguido, o mesmo defende que sempre adoptou o mesmo critério/entendimento – só esperar pelos mandatários e intervenientes processuais quando avisavam o atraso – quanto a todas as diligências, independentemente de a decisão ou despacho serem ou não passíveis de recurso.
Vemos assim que em sede de defesa o arguido apresenta como factos a ponderar e apreciar (ainda que genericamente alegados) todas as diligências por si presididas, nomeadamente nos processos n.ºs 960/14....... e 85/07...... (sessão de 02-02-2017), com vista a fazer prova de que o critério de atuação em todas as diligências era uniforme, independentemente de serem ou não as decisões passíveis de recurso.
Desta forma, todos os factos narrados ou descritos relativos a essas diligências judiciais, podem (e devem) ser conhecidos e trazidos à matéria de facto por serem factos referidos pela defesa.
[…]
É verdade que foi considerado que se afigurava desnecessário aduzir esta matéria factual à acusação. Todavia, o certo é que o CSM para fundamentar a conduta violadora do dever de administrar a justiça (aspecto jurídico da causa) convoca tais factos/condutas, os quais foram trazidos à discussão pela defesa como aferidor do critério seguido pelo A.
Ou, dito de outra forma, se é certo que, na fundamentação da matéria de facto tanto o Sr. Inspetor Judicial no relatório final como a deliberação impugnada assumem que não levam esta matéria à factualidade provada por se afigurar desnecessária, a verdade é que na fundamentação de direito a mesma foi utilizada e considerada necessária, servindo-se da mesma para concluir que existe uma ausência de critério uniforme na atuação do arguido, agora A., nos vários processos presididos pelo mesmo.
[…]
Pelo exposto, perante a concreta configuração do dever profissional cuja violação se imputa ao A. e eventual sanção, poderia justificar-se, para uma correcta, rigorosa e suficiente decisão jurídica da causa a ampliação da matéria de facto, quanto às várias condutas levadas a cabo pelo arguido nas diligências a que presidiu e que se fazem referência na deliberação recorrida, ampliação que, no entanto, este Supremo Tribunal, no âmbito da presente acção impugnatória, se encontra impedido de impor à entidade administrativa demandada (CSM) já que não intervêm aqui como tribunal de revista, assim se preservando também o respeito pelo princípio da separação de poderes.
Cumprindo realçar que o arguido na sua defesa referencia as diligências levadas a cabo nos processos n.ºs 960/14....... e 85/07...... (sessão de 02-02-2017), como aferidoras de um critério adoptado por si, sucedendo que tais factos não resultam da factualidade dada como provada. Porém, a dinâmica processual da diligência do proc. n.º 85/07,9YYLSB-B (sessão de 02-02-2017) serviu de apreciação no aspecto jurídico da causa na deliberação agora impugnada.
Dado que foram diligências levadas a cabo pelo arguido no lapso temporal em que foram apreciadas as demais diligências e que a própria diligência do proc. n.º 85/07...... (sessão de 02-02-2017) serviu de apreciação no aspecto jurídico da causa pelo CSM e que poderão servir de aferição do critério adotado pelo A., entendemos que ambas as diligências, realizadas no proc. n.º 960/14.4YY (objecto de apreciação na instrução do processo disciplinar) e no proc. n.º 85/07...... (igualmente objecto de apreciação na instrução do processo disciplinar) e respectivas dinâmicas processuais devem constar da ampliação da matéria de facto.
Verifica-se assim que a matéria de facto dada como provada é insuficiente para considerar violado o dever profissional de administrar a justiça.
Já o sabemos: as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades (cf. artigos 205.º da CRP e 158.º do CPTA).
Assim, em execução do referido Acórdão da Secção do Contencioso do STJ proferido no processo n.º 12/19.0YFLSB e em estrito cumprimento do princípio do caso julgado, na deliberação ora impugnada foi assinalado o seguinte:
III- Motivação da decisão sobre a matéria de facto
A convicção quanto à matéria de facto provada assentou na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida nos autos, quer pessoal, quer documental que foi sendo indicada nas notas de rodapé e do seu confronto com os documentos constantes do Anexo I, bem como dos CD’s juntos aos autos.
Cumpre referir que, em função do acórdão anulatório proferido pela Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça, procedeu-se ao aditamento dos factos descritos sob os números 17, 20, 21, 22, 24, 25, 26, 27 a 49, cuja fundamentação se encontra vertida nas notas de rodapé aos mesmos respeitantes.
Quanto ao mais, aderiu-se, no essencial, à apreciação efetuada pelo Exmº Senhor Inspector e vertida no relatório final”.
Em suma, conforme assinalado no aludido Acórdão da Secção do Contencioso do STJ, proferido no processo n.º 12/19.0YFLSB, em sede de defesa o arguido apresentou como factos a ponderar e apreciar (ainda que genericamente alegados) todas as diligências por si presididas. Logo, pese embora a verificada ampliação da matéria de facto, estando em causa o cumprimento de acórdão e factos provenientes da defesa, nenhum acrescido exercício de audiência prévia se justificava.
Por conseguinte, nada há a apontar ao acto impugnado também neste ponto.
Quanto à suposta preterição de audiência prévia por não ter sido ouvido antes da elaboração do Relatório Final que sustenta a deliberação impugnada, assim como pela ausência de notificação de qualquer novo Relatório Final, diga-se desde já, atalhando caminho, não assistir qualquer razão ao autor.
Desde logo, do teor do relatório final, em si mesmo, não tem de ser dado conhecimento ao arguido. Em nenhum ponto normativo se vislumbra tal exigência, seja no art. 122.º do EMJ na redacção vigente à data dos factos, seja no art. 120.º e 121.º do mesmo EMJ na redacção actual, seja no art. 219.º da LGTFP.
O que os artigos 123.º (redacção anterior) ou 121.º (redacção actual) do EMJ e 220.º da LGTFP exigem, diversamente, é que a decisão final seja objecto de notificação, juntamente com o teor do Relatório Final em que se estribou essa decisão, mas não este em si mesmo.
Simplesmente, essa formalidade já fora cumprida a montante, aquando da notificação da primeira deliberação da entidade demandada.
Importa fazer notar que o único Relatório Final produzido nos autos do procedimento disciplinar foi aquele de que o ora autor foi notificado, aquando da prolação da deliberação do CSM de 29 deJaneiro de 2019. Isto pelo simples facto de que, após a anulação dessa deliberação pelo Acórdão da Secção do Contencioso do STJ, proferido no processo n.º 12/19.0YFLSB, inexistiu qualquer relatório final: a entidade demandada limitou-se a, no legítimo reexercício do poder administrativo e dentro dos limites do julgado anulatório, proferir nova deliberação com observância do que aí se determinara no aresto do STJ.
Com efeito, a referida decisão anulatória tem como objecto a deliberação do Plenário do CSM, de 29-01-2019. Do teor do Acórdão da Secção do Contencioso do STJ, proferido no processo n.º 12/19.0YFLSB, no excerto supra transcrito e realçado, verifica-se que o alcance da referida decisão anulatória não abrange o relatório final, nem a acusação. Daí que, atento o alcance da decisão anulatória, apenas a deliberação em questão foi anulada, mantendo-se inalterados todos os demais elementos do processo.
Refere ainda o autor que o acto impugnado padece da nulidade indicada por falta de notificação antes da prolação da deliberação impugnada, para se pronunciar sobre as novas provas juntas aos autos ou para requerer diligências que entendesse pertinentes.
Só se as novas diligências conduzirem a uma alteração substancial dos factos da acusação é que deverá ser concedido novo prazo de defesa ao arguido.
Neste sentido, Acórdão STA de 03-03-2005, proc. n.º 2015/02) e Leal-Henriques, op. cit., p. 371; Raquel Carvalho, op. cit., p. 156). Não foi esse o caso, como vimos.
De todo o modo, não se divisa sequer que utilidade poderia resultar para o autor uma pronúncia “sobre as novas provas juntas aos autos” ou para “requerer diligências que entendesse pertinentes”. E isto por duas ordens de razão distintas.
Por um lado, importa reter que alguma doutrina e a jurisprudência dos órgãos de cúpula das jurisdições comum e administrativa tem vindo a reconhecer, não só i) uma grande amplitude “discricionária” ao Instrutor do processo disciplinar, em sede de apreciação dos requerimentos probatórios do trabalhador ou arguido, como também ii) um espaço de legitimidade e validade dos actos que indeferem diligências instrutórias requeridas por arguidos em procedimentos disciplinares.
No campo doutrinário, essa apologia é veiculada por Abel Antunes / David Casquinha (Direito Disciplinar Público – Comentário ao Regime Jurídico-Disciplinar da LTFP, ........, Rei dos Livros, 2018, pp. 699 e 700), quando defendem que o instrutor não tem de realizar diligências irrelevantes ou dispensáveis do ponto de vista da produção de prova, designadamente porque se destinam a provar factos relativamente aos quais já não subsistem quaisquer dúvidas. Igualmente pode o instrutor indeferir a realização de diligências notoriamente despropositadas ou sem qualquer relação com o objecto do processo.
Na jurisprudência, anotam-se três exemplos, todos integralmente disponíveis para consulta online in http://www.dgsi.pt, e de que damos conta sucintamente de seguida.
No seu Acórdão de 06-10-2011, proferido no processo n.º 0667/11, o STA decidiu que “não ocorre a omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade se a prova já produzida é inatacável, e demolidora no sentido de que a arguida praticou os factos que lhe eram imputados, mostrando-se a realização dessas diligências absolutamente inútil”.
Por seu turno, o STJ, no seu Acórdão de 24-11-2016, proferido no processo n.º 3/16.3YFLSB, decidiu que “a inquirição das testemunhas pode ser recusada pelo Instrutor se manifestamente impertinente e desnecessária, nos termos do art. 218.º n.º 1 da LGTFP e não apenas quando o Sr. Instrutor considere suficientemente provados os factos alegados pelo trabalhador”. O direito de defesa do arguido, refere-se ali, “não é absoluto e ilimitado, sendo que as diligências de prova não devem ser admitidas se forem manifestamente desnecessárias e impertinentes para a descoberta e apuramento da verdade”.
Pode ainda ler-se no sumário do Acórdão do STJ proferido a 04-07-2019 no processo n.º 69/18.1YFLSB, além do mais, o seguinte: “II — O princípio do inquisitório implica para a Administração um poder-dever de acção na procura, selecção e avaliação dos factos que considera relevantes para o procedimento e seu desfecho final. III — O princípio do inquisitório permite, numa perspetiva negativa, a pura recusa em se abrir qualquer período de produção de prova, se for entendido o seu carácter desnecessário ou supérfluo à luz da verdade material já conhecida, ou de recusa, mesmo quando aberto o período de produção de prova, de tudo o que for impertinente ou dilatório. IV — No que especificamente respeita à produção da prova em procedimento disciplinar, dispõe o n.º 1 do art. 216.º da LGTFP que o trabalhador pode requerer quaisquer diligências, sendo que, como decorre do n.º 1 do art. 218.º do mesmo diploma, o instrutor pode rejeitá-las quando as mesmas sejam manifestamente impertinentes e desnecessárias, não tendo de realizar diligências irrelevantes ou dispensáveis do ponto de vista da produção de prova, designadamente porque se destinam a provar factos relativamente aos quais já não subsistem quaisquer dúvidas ou por serem notoriamente despropositadas ou sem qualquer relação com o objeto do processo […]”.
Por outro lado, e mais decisivamente, importa aqui recuperar mais uma vez o que já tivemos oportunidade de reiteradamente deixar estabelecido a montante: foi o próprio arguido e ora autor que, nos nºs 16 a 18, 19 e 24 da resposta à acusação apresentada, defendendo que sempre adoptou o mesmo critério/entendimento (só esperar pelos mandatários e intervenientes processuais quando avisavam o atraso), suscitou serem factos a ponderar e apreciar (ainda que genericamente alegados) todas as diligências por si presididas, nomeadamente nos processos nºs 960/14....... e 85/07...... (sessão de 02-02-2017), com vista a fazer prova de que o critério de actuação em todas as diligências era uniforme, independentemente de serem ou não as decisões passíveis de recurso.
Ou seja: foi o autor que requereu produção de prova, a qual foi integralmente cumprida; e os factos que o autor alega que foram acrescentados – como efectivamente foram e é expressamente reconhecido na deliberação ora impugnada - resultaram da defesa por si apresentada. Dito por outras palavras: a prova de que se socorreu a entidade demandada após a dedução da acusação resultou das próprias iniciativas probatórias do arguido em sede de defesa.
Sempre se refira, adicionalmente, que o procedimento disciplinar, após dedução da acusação, deixa de ter natureza secreta, podendo ser consultado por quem demonstre ter interesse atendível no mesmo. E, de facto, dispõe o artigo 216.°, n.° 1, da LGTFP que, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, durante o prazo para apresentação da defesa, pode o trabalhador ou o seu representante ou curador referidos no artigo anterior, bem como o advogado por qualquer deles constituído, examinar o processo a qualquer hora de expediente. Idêntica solução resultava expressamente do art. 120.º do EMJ na redacção vigente à data dos factos e do art. 111.º na redacção actualmente vigente.
Nada impedia, pois, o recorrente de ter acesso ao processo, consultar o mesmo e inclusivamente pedir a confiança do mesmo. Só se de facto lhe tivesse sido recusado, ilegitimamente, o acesso ao processo, a sua consulta ou a confiança do mesmo é que poderíamos estar perante uma nulidade insuprível (Raquel Carvalho, op. cit., pág. 149). Não foi isso que ocorreu no caso sub judicio.
Improcede, também por aqui, a alegação do autor.
Por último, e ainda no que respeita à pretensa falta de audiência prévia, o autor suscita também anulação da deliberação impugnada por, no seu entender, estar em causa uma competência deliberativa do Conselho Permanente, pelo que “o facto de ter sido o Conselho Plenário a decidir, coartou, também aqui, o direito do autor de, em sede de audiência prévia, poder contraditar a fundamentação de facto e de direito ínsita na nova deliberação impugnada”.
Por competência de um órgão administrativo deve entender-se o complexo de poderes funcionais conferido por lei a cada órgão para o desempenho das atribuições da pessoa coletiva em que esteja integrado (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo. Volume I. Introdução - Organização Administrativa - Actos e Contratos Administrativos, 10.ª Edição, 11.ª Reimpressão, Coimbra, Almedina, 2013, p. 223; João CAUPERS, Contencioso Administrativo, ........, Editorial Notícias, 1996, pp. 70 e 71; José Manuel Sérvulo Correia, Noções de direito administrativo, ........, Danúbio, 1982, p. 172; Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, ........, Lex, 1999, pp. 180 e 181).
No domínio do Direito Administrativo, a competência só pode ser conferida, delimitada ou retirada pela lei. Vale isto por dizer que é sempre a lei que fixa a competência dos órgãos da Administração Pública. Assim o dispõe o artigo 36.º, n.º 1, do CPA, que desta forma consagra o princípio da legalidade da competência, também expresso às vezes pela ideia de que a competência é de ordem pública.
Deste princípio decorrem alguns corolários da maior importância, exaustivamente tratados na doutrina e na jurisprudência. São eles os seguintes: (1) a competência não se presume: isto quer dizer que só há competência quando a lei a confere inequivocamente a um dado órgão; (2) a competência é imodificável: nem a Administração nem os particulares podem alterar o conteúdo ou a repartição da competência estabelecidos por lei; e (3) a competência é irrenunciável e inalienável: os órgãos administrativos não podem em caso algum praticar actos pelos quais renunciem os seus poderes ou os transmitam para outros órgãos da Administração ou para entidades privadas.
Importa, contudo, clarificar que esta última regra não obsta a que possa haver hipóteses de transferência do exercício da competência (designadamente, a delegação de poderes e a concessão), nos casos e dentro dos limites em que a lei o permitir (artigos 36.º e 44.º ss. do Código de Procedimento Administrativo).
São diversas as consequências para um acto praticado por um órgão que não detenha a competência para a sua prática. Se um órgão exerce o poder que pertença a outro órgão de soberania, seja legislativo, seja judicial, o vício consubstancia usurpação de poder e determinará a nulidade do acto praticado, ao abrigo do disposto no artigo 161.º, n.º 2, alínea a), do CPA. Se o órgão exerce poder que pertença ao poder executivo, mas fora das atribuições específicas da pessoa colectiva a que pertence, o acto é igualmente nulo, mas agora por força da alínea b) do mesmo artigo 161.º, n.º 2, do CPA. Se, por último, o órgão tiver praticado um poder que esteja atribuído à pessoa colectiva a que pertence, mas que tenha sido atribuído a outro órgão dessa mesma pessoa colectiva, então o acto será já meramente anulável (artigo 163.º do CPA).
O caso dos autos situar-se-ia, no limite, neste último caso. Mas, em boa verdade, não se prefigura ter ocorrido tal vício.
Não resulta expressamente do EMJ a faculdade de avocação pelo Conselho Plenário de deliberações que, em princípio, deveriam ser tomadas pelo Conselho Permanente.
No entanto, tal faculdade resulta das regras gerais de direito administrativo.
Com efeito, como advertem Mário Esteves de Oliveira / Pedro Costa Gonçalves / João Pacheco Amorim, (Código de Procedimento Administrativo Comentado, Coimbra, Almedina, 2.ª edição, reimpressão, 2010, p. 230) “vigorando a delegação, o titular da competência originária continua a poder exercer os poderes delegados, desde que “previna” a respetiva competência, mediante um acto de avocação, através do qual chama a si a condução ou decisão — ou só esta, se estiverem concluídas as fases procedimentais anteriores — de um procedimento ou caso administrativo concreto […]».
Trata-se, no fundo, não só de um corolário da irrenunciabilidade da competência, como também de uma consequência do poder/dever do delegante de vigiar o uso dos poderes delegados, “[…] sem o que a delegação implicaria a alienação dos poderes e até poderia criar a subversão das situações […]” (Marcello Caetano,, Manual…, tomo I, cit., p. 550).
Nessa perspetiva, o acto praticado pelo delegante não estará ferido de incompetência, justamente porque o delegante, avocando uma competência que é originariamente sua, não chega a transferi-la para o delegado (Ana Raquel Moniz, “Estudos sobre Regulamentos Administrativos”, no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, LXXXVI, 2010, p. 214, nota 8).
Isso mesmo decorre, bem vistas as coisas, do próprio artigo 152.º do EMJ, quando expressamente qualifica a competência atribuída ao Conselho Permanente como uma competência tacitamente delegada.
Como tal, é perfeitamente legítima, porque acomodada normativamente (seja tacitamente sustentada no disposto no artigo 151.º, alínea e), do EMJ, seja nos artigos 136.º e 144.º ss. do CPA), a avocação da competência tacitamente delegada no Conselho Permanente, pelo Conselho Plenário.
Dir-se-á que nem o EMJ nem qualquer outro diploma subsidiariamente aplicável (maxime o CPA) regulam a forma que deve ser adoptada relativamente ao acto de avocação previsto no artigo 49.º, n.º 2, do CPA, como reflexo da competência delegada a que se reporta o artigo 44.º.
Tal não obsta, porém, a que se deva reconhecer figura da avocação tácita ou implícita pelo órgão ou agente administrativo delegante, admitindo assim que a prática do acto correspondente ao exercício da competência delegada pode conter em si o acto de avocação. Nesse sentido se tem pronunciado a doutrina administrativista (vide, inter alia, os contributos de Sérvulo Correia, Noções…, cit., pág. 292; Esteves de Oliveira …, cit., pp. 598, 694 e 796).
André Salgado de Matos conclui igualmente que a ideia da avocação implícita “[…] não tem, aliás, nada de estranho no quadro da teoria do acto administrativo, no qual é pacificamente aceite a existência de atos administrativos implícitos” (“A natureza jurídica da delegação de poderes: uma referência”, em AA.VV., Estudos em Homenagem ao Prof. Sérvulo Correia, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2010, p. 158). O autor (idem, ibidem), secundado por Ana Raquel Moniz («Estudos…», cit., pág. 214, nota 8), faz, no entanto, depender tal possibilidade de se verificar ter sido tal precedida, no procedimento administrativo, da ponderação da existência de uma relação de delegação, dos interesses públicos subjacentes à respectiva constituição e ainda das necessidades que determinam a decisão de avocação.
Ora, no sentido da admissibilidade da avocação pelo Conselho Plenário de competências do Conselho Permanente (nomeadamente em sede da apreciação das classificações relativas a juízes de 1.ª instância), já se pronunciou reiteradamente a Secção de Contencioso do STJ.
Além do recente Acórdão de 27-05-2020 (proc. n.º 39/19.2YFLSB, cuja exposição aqui seguimos de perto), atente-se no sumário do Acórdão da secção de contencioso do STJ proferido a 23-01-2018, no processo n.º 70/17.2YFLSB, no qual se consignou, além do mais, o seguinte: “I.O facto de a apreciação das classificações de serviço relativas a juízes de direito dos tribunais de 1.ª instância pertencer ao Conselho Permanente do CSM (art. 152.º do EMJ) não impede a sua avocação pelo respetivo Conselho Plenário. II. A avocação da deliberação pelo órgão delegante pode ser implícita, designadamente quando as circunstâncias que a rodeiam revelarem a existência de um interesse específico nessa avocação”.
O julgamento aí efectuado foi desenvolvido no respetivo excurso fundamentador nos seguintes termos:
“Nos termos do art. 149.º, al. a), do EMJ, cabe ao CSM, além do mais, “nomear, colocar, transferir, promover, exonerar, apreciar o mérito profissional, exercer a acção disciplinar …”, mas tal competência considera-se “tacitamente delegada no conselho permanente, sem prejuízo da sua revogação pelo plenário do Conselho, as competências previstas nas alíneas a), d), e) e h) a j) do art. 149.º, salvo as respeitantes aos tribunais superiores e respectivos juízes” (art. 152.º).
Assim, de acordo com o modelo instituído, a competência para aqueles actos é do Conselho Plenário do CSM, ainda que tacitamente esteja delegada no respetivo Conselho Permanente, cuja deliberação é suscetível de reclamação para o primeiro (art. 151.º, al. b)).
Não prevê o EMJ a possibilidade de o Conselho Plenário deliberar a avocação de deliberações que deveriam, em princípio, ser tomadas pelo Conselho Permanente, mas tal faculdade emerge das regras gerais de direito administrativo que, aliás, encontram reflexo no facto de o art. 152.º, n.º 2 do EMJ tratar a competência atribuída ao Conselho Permanente como uma competência tacitamente delegada.
Deste modo, é legítima a avocação da competência tacitamente delegada no Conselho Permanente pelo Conselho Plenário, o que, aliás, assegura que a apreciação das matérias se faça com maior solenidade e brevidade, sem prejudicar a tutela dos interessados. Ademais, não existe fundamento legal para a invocação de um “duplo grau decisório” relativamente a um acto administrativo como, na realidade, é a pronúncia do CSM sobre o mérito profissional de juízes de direito no culminar do procedimento (administrativo) de inspeção judicial.
O aí decidido é de manter.
Com efeito, ao nível das competências do Conselho Permanente, o regime previsto no artigo 152.º do EMJ admite que tais competências se encontram tacitamente delegadas pelo Conselho Plenário e, como tal, podem ser por este órgão delegante revogadas (avocadas). Sendo certo que, tal revogação, por estar em causa uma competência própria do Conselho Plenário, delegada no Conselho Permanente, não carece de requisitos especiais, podendo inclusivamente ser tácita ou implícita.
Nestas circunstâncias, não se encontra base legal, nem se alcança sustentação para a exigência de um pretenso duplo grau deliberatório no seio do CSM na situação vertente e nenhum prejuízo se vislumbra para o autor decorrente da intervenção imediata do Conselho Plenário.
Nem se refira que desta avocação, a se, tenha resultado qualquer preterição de garantia à posição jurídica subjectiva do autor.
Assim é, desde logo, precisamente pela circunstância pertinentemente enunciada no acórdão do Supremo de 23-01-2018: é que a avocação, em termos práticos, vem até possibilitar que a apreciação da matéria sub judicio, privilegiando maior celeridade, prossiga uma maior formalidade e solenidade, sem que de modo algum resulte prejudicada a tutela dos interessados.
É certo, não o negamos, que as deliberações em Plenário não são suscetíveis de reclamação (hierárquica), mas apenas de impugnação judicial, a qual não suspende a eficácia do acto recorrido. Porém, como igualmente se sustenta no citado acórdão do Supremo Tribunal de 23-01-2018, “[…] não existe fundamento legal para a invocação de um “duplo grau decisório” relativamente a um acto administrativo como, na realidade, é a pronúncia do CSM sobre o mérito profissional de juízes de direito no culminar do procedimento (administrativo) de inspecção judicial […]”.
Aliás, a evolução legislativa veio reforçar esta ideia, tanto mais que, à luz da nova redacção do 167.º, n.º 2 alínea a), do EMJ, resulta hodiernamente que das deliberações do Conselho Permanente, em matéria disciplinar, em que seja aplicada sanção de admoestação ou multa, admite-se impugnação jurisdicional directa perante o STJ, dispensando a impugnação administrativa necessária perante o Conselho Plenário.
Improcede, pois, a pretensão do autor também com este fundamento.
Violação do princípio ne bis in idem
O autor vem invocar, quanto ao registo disciplinar, a violação do princípio ne bis in idem, porquanto se faz constar desse registo um processo que foi arquivado por irrelevância disciplinar. Mais alega ser falacioso o argumento de que se trata de factos dados como provados num outro processo disciplinar, renovando-se a violação grave já anteriormente cometida, até porque, para se fazer referência a um processo relativo a factos ocorridos em 2014, ou seja, há mais de 6 anos, bastaria a referência à pena aplicada e aos deveres violados, não se podendo olvidar que os factos considerados provados nesse processo disciplinar não eram apenas os referidos no ponto 6.1. da factualidade dada como provada.
Aduz que tal conduta viola, desde logo, os artigos 29.º, n.º 5, da CRP, 4.º do Protocolo n.º 7 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e 50.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE). E, prossegue o autor, “mais grave, o antecedente disciplinar a que o R. tão intensamente faz referência já deveria ter sido eliminado do registo do A. em Setembro de 2017, tendo em conta o disposto no artigo 135.º, alínea a), do EMJ, uma vez que a douta deliberação do CSM que aplicou ao A. a pena de advertência foi proferida em 15-09-2015, o que viola os princípios do processo equitativo e da presunção de inocência (cf. arts. 32.º, n.º 2, da CRP, 48.º da CDFUE e 6.º da CEDH)”.
O princípio non bis in idem encontra-se consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição. Dispõe este preceito que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
Integrado sistematicamente no capítulo dos “direitos, liberdades e garantias pessoais”, deve assim reconhecer-se como fundamental a garantia conferida aos cidadãos de não sofrerem uma dupla perseguição pelos mesmos factos.
Trata-se, pois, de um princípio com previsão e dignidade constitucional e que, apesar de reportado às garantias do arguido em sede criminal, é aplicável também nos outros direitos sancionatórios públicos, no âmbito respetivo (cf. o citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 263/94, de 23-03-1994, processo n.º 566/92). Também no sentido da aplicação do princípio ao domínio disciplinar, vejam-se os ensinamentos de Gomes Canotilho / Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, artigos 1.º a 107.º, 4.ª edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 497 e 498), segundo os quais deve “[…] entender-se que esses princípios devem, na parte pertinente, valer por analogia para os demais domínios sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação social e o ilícito disciplinar”.
O princípio non bis in idem proíbe assim que, na actividade sancionatória, se proceda a uma dupla valoração do mesmo substrato material.
A ratio deste princípio, sublinha Henrique Salinas (Os Limites Objetivos do Ne Bis in Idem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, pág. 147), é a “garantia da paz jurídica do cidadão, traduzindo-se numa limitação dos ius puniendi estatal, ao impedir a repetição de um processo contra a mesma pessoa”.
Idêntico desiderato tem sido denunciado pela jurisprudência dos tribunais superiores das jurisdições comum e administrativa. O STA afirmou que tamanha proibição encontra as suas justificações fundamentais, por um lado, nos princípios da culpa (impeditivo de que, por um duplo sancionamento do mesmo substrato, se exceda o limite proporcional da culpa do arguido) e da paz e segurança jurídicas (que devem ser garantidos ao arguido finda a perseguição de que o mesmo foi alvo, sob pena de, a admitir-se uma permanente ameaça da imposição de diferentes sanções em simultâneo ou sucessivas no tempo e pelos mesmos factos, estaria a submeter-se o mesmo a um tratamento desumano) e, por outro lado, no interesse em evitar pronúncias díspares sobre factos unitários (cf. Acórdão do STA de 13-07-2016, proferido no processo n.º 0516/14).
Por seu turno, nos Acórdãos de 23-06-2016 e de 04-07-2019, proferidos respetivamente nos processos nºs 16/14.0YFLSB e 69/18.1YFLSB, também o STJ já deixou estabelecido que as fundamentais razões dessa proibição residem, por um lado, na paz jurídica que ao arguido se deve garantir finda a perseguição de que foi alvo e, por outro lado, no interesse em evitar pronúncias díspares sobre factos unitários.
A aplicação do princípio non bis in idem à duplicidade de sanções disciplinares não oferece dificuldades de maior monta, e está de resto expressamente consagrado no artigo 180.º, n.º 3, da LGTFP, que tem a seguinte redação: “Não pode ser aplicada mais de uma sanção disciplinar por cada infração, pelas infrações acumuladas que sejam apreciadas num único processo ou pelas infrações apreciadas em processos apensados”.
Assim, nos limites da punição disciplinar, o princípio é o da não acumulação de sanções, seja pela prática de uma infração, seja pela prática de mais de uma infração.
E, para que a referida proibição assuma o devido alcance, a doutrina (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, 2.ª edição, 2007, pág. 978) e a jurisprudência (cf. Acórdãos do STJ de 23-06-2016 e de 04-07-2019, proferidos respetivamente nos processos nºs 16/14.0YFLSB e 69/18.1YFLSB, e do STA de 23-01-2013, 30-10-2014 e 13-07-2016, proferidos respetivamente nos processos nºs 0772/10 (Pleno), 01169/13 e 0516/14, todos acessíveis em http://www.dgsi.pt) fazem-na acompanhar do que designam por um mandado de esgotante apreciação de toda a matéria cognoscível. Pretende com isto significar-se que, quem averigua da responsabilidade disciplinar de um arguido por via de certos factos deve esgotar todas as consequências sancionatórias que desses factos derivem; porque, se o não fizer, não poderá a perspetiva omitida ser recuperada num outro processo (seja a se, seja em conjunto com a parte já antes tida em conta), por isso traduzir um segundo juízo punitivo sobre os mesmos factos.
Esta mesma questão, nos mesmos exactos termos, foi suscitada no Processo n.º 12/19.0YFLSB, tendo sido apreciada por essa Secção do Contencioso no Acórdão anulatório da deliberação, de 29-01-2019, parcialmente transcrito em 9º da Fundamentação de facto.
Revisitemos aqui a fundamentação do aludido aresto a este respeito, que se considera aplicável, tout court, ao caso vertente.
“I - Violação do princípio non bis in idem
Muito embora o não invoque nas alegações, afirma o A. no seu requerimento inicial que ocorreu violação do princípio non bis in idem por se fazer constar o registo de um processo que foi arquivado por irrelevância disciplinar.
Defende o recorrido que não ocorreu qualquer violação do citado princípio.
De acordo com o artigo 131.º do EMJ, «são aplicáveis subsidiariamente, em matéria disciplinar, as normas do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional, Local, do Código Penal, bem como do Código Processo Penal, e diplomas complementares».
Assim é aplicável ao presente processo disciplinar, subsidiariamente os princípios previstos no Código Processo Penal e na Constituição da República Portuguesa (doravante designada pela CRP) relativos ao processo penal.
De entre os vários princípios constitucionais, em matéria processual penal, destaca-se o princípio non bis in idem – previsto no art. 29.º, n.º 5 da CRP. Dispõe este preceito que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
O princípio non bis in idem tem acolhimento constitucional – artigo 29.º da CRP - artigo esse integrado no capítulo dos «direitos, liberdades e garantias pessoais». Daí que se deva considerar fundamental a garantia conferida aos cidadãos de não sofrerem uma dupla perseguição pelos mesmos factos.
O princípio tem por ratio, sublinha Henrique Salinas, a «garantia da paz jurídica do cidadão, traduzindo-se numa limitação dos ius puniendi estatal, ao impedir a repetição de um processo contra a mesma pessoa»[78].
Segundo J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, o princípio «comporta duas dimensões: (a) como direito subjetivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objetivo (dimensão objetivado direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto (…). A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infração, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime».
E prosseguem os citados autores:
«É problemático saber em que medida é que os princípios consagrados neste artigo extensíveis a outros domínios sancionatórios. (…) há-de, porém, entender-se que esses princípios devem, na parte pertinente, valer por analogia para os demais domínios sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação social e o ilícito disciplinar».
O princípio non bis in idem, segundo o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, constitucionalmente previsto para a lei criminal, vale, no essencial, para os demais domínios sancionatórios, designadamente no âmbito do direito disciplinar.
Como entende Américo Taipa de Carvalho, em anotação ao artigo 29.º, da Constituição, «(…) embora o art. 29.º se refira somente à lei criminal, deve considerar-se que parte destes princípios se aplicam também aos outros dois ramos do chamado direito público sancionatório: o direito de mera ordenação social e o direito disciplinar (Lei n.º 58/08 – Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas)».
Também o acórdão desta Secção do Contencioso de 23-06-2016, proferido no processo n.º 16/14.0YFLSB (Relator: Cons. Fernando Bento) se pronuncia no sentido de que o princípio em apreço proíbe que na atividade sancionatória se proceda a uma dupla valoração do mesmo substrato material. As fundamentais razões dessa proibição residem, por um lado, na paz jurídica que ao arguido se deve garantir finda a perseguição de que foi alvo e, por outro lado, no interesse em evitar pronúncias díspares sobre factos unitários. E, para que a referida proibição assuma o devido alcance, a doutrina fá-la acompanhar do que designa por um mandado de esgotante apreciação de toda a matéria cognoscível.
As fundamentais razões dessa proibição residem, por um lado, na paz jurídica que ao arguido se deve garantir finda a perseguição de que foi alvo e, por outro lado, no interesse em evitar pronúncias díspares sobre factos unitários. E, para que a referida proibição assuma o devido alcance, a doutrina fá-la acompanhar do que designa por um mandado de esgotante apreciação de toda a matéria cognoscível.
Posto isto, vejamos o caso em apreço.
No caso concreto não se verifica qualquer violação do princípio non bis in idem, na medida em que os factos provados em 6.1, na deliberação impugnada, apenas são a transcrição da pena aplicada (pena de advertência) e de alguns dos factos dados como provados na deliberação do Plenário do CSM de ...(Processo n.º ...), a qual se encontra junta a fls. 45 a 62 do processo administrativo (Vol. I Apenso a estes autos).
O teor do facto constante do facto provado 6.1. da deliberação impugnada: «Na deliberação do CSM datada de ..., relativa ao Processo ... que apreciou queixa apresentada por Advogada, determinado o arquivamento por irrelevância disciplinar, justificou, embora, dirigir “… recomendação ao Exmo. Senhor Juiz no sentido de ter mais cuidado na adjetivação das suas decisões”», consta como facto provado n.º 29 daquela deliberação do Plenário do CSM de 15-09-2015.
Assim verifica-se que a deliberação impugnada apenas se limitou a transcrever alguma da factualidade dada como provada naquela deliberação, onde se incluía aquele facto provado n.º 29, com vista a enquadrar os factos que estiveram na origem da aplicação da pena de advertência.
Veja-se nesse sentido o decidido no acórdão da Secção do Contencioso deste Supremo Tribunal de 30-03-2017, proferido no Proc. n.º 62/16.9YFLSB (Relator: Cons. Tavares de Paiva:
«VIII - Não viola qualquer normativo ou princípio que reja a atividade administrativa, a deliberação classificativa que narra em moldes objetivos uma deliberação de arquivamento de processo disciplinar do COJ.»
Desta forma, a deliberação impugnada apenas transcreveu um facto provado da deliberação que aplicou ao arguido uma pena de advertência, não trazendo, fora deste contexto, tal facto à colação.
Conforme bem se refere na deliberação impugnada «ao indicar aqui tal factualidade, não se pretende, como é óbvio, sancionar disciplinarmente a conduta aí em causa, mas tão só integrar factualmente a sanção disciplinar aplicada no referido procedimento disciplinar n.º .....389».
Inexiste desde modo, qualquer dupla valoração do mesmo substrato material.
Isto é, em momento algum da deliberação impugnada se faz uma apreciação jurídica daquele facto (deliberação do CSM datada de 15-07-2013) e/ou se retira alguma consequência ou ilação daquele facto. A deliberação recorrida não efetuou qualquer interpretação daquele facto.
O que foi considerado como antecedente/registo disciplinar foi apenas a pena de advertência aplicada pela deliberação do Plenário do CSM de 15-09-2015, no âmbito da fundamentação da determinação e medida da pena aplicada nestes autos.
O registo/antecedente disciplinar ou a sua ausência, nos termos do artigo 96.º do EMJ, apenas são ponderados como circunstâncias que depõem a favor ou contra o arguido. Esta ponderação em nada se confunde com a violação do princípio non bis in idem.
Por tudo o que atrás se expôs, inexiste qualquer violação do princípio ne bis in idem”.
Como bem se alude no referido douto Acórdão, a mera referência à aplicação daquela pena de advertência não se confunde com qualquer dupla valoração do mesmo substrato material, nem é feita qualquer apreciação jurídica ou se retira qualquer consequência, não tendo a deliberação ora impugnada efectuado qualquer interpretação daquele facto.
Assim, e sem necessidade de mais considerações, prefigura-se que nos presentes autos inexiste igualmente qualquer violação do princípio ne bis in idem.
Incorrecta valoração de factos (falta de fundamentação ou erro nos pressupostos)
O autor alega também que a matéria dada como provada não retrata correctamente a realidade e/ou é manifestamente insuficiente, porque, do seu ponto de vista, considerando os factos que deveriam ter sido dados como provados e não o foram, as regras da lógica e da experiência comum que fundamentaram a decisão teriam conduzido a uma apreciação e resultado diferentes.
No que em concreto respeita ao proc. n.º 2226/14.0T8BLSB-A, o autor, reiterando o que já invocara na sua defesa à acusação, alega desde logo que, no facto provado 10º da deliberação impugnada, “fazem-se apenas considerações genéricas, sem se referir e demonstrar que tais circunstâncias ocorreram no caso concreto, omitindo-se a que horas os Senhores Advogados se apresentaram na portaria do Tribunal para acederem ao edifício.
Quanto à diligência propriamente dita, omite-se que, como a própria testemunha CC referiu (cfr. fls. 23 da douta deliberação impugnada): telefonou ao Senhor Juiz AA, comunicando que ninguém estava presente. O Juiz perguntou-lhe se alguém havia telefonado a comunicar algum atraso e perante resposta negativa do depoente o Senhor Juiz afirmou-lhe que se deslocaria de imediato à sala de julgamento. Entretanto, o depoente deslocou-se mais uma vez ao átrio onde costumam comparecer os convocados para julgamento e aí constatou de novo que ninguém se encontrava presente, pelo que voltou de novo à sala de julgamento onde momentos depois chegou o Senhor Juiz, o qual proferiu o despacho que consta da ata e assim terminou a audiência final. Ora, tal factualidade, contraria em grande parte a versão acolhida na douta deliberação impugnada. Por outro lado, também se omite que os Senhores Advogados tinham escritório em ........ e em …… e, como tal, são utentes habituais …........, em que o procedimento de entrada é igual em todos os edifícios, pelo que bem conheciam como era este procedimento; com efeito, mais sabem os Senhores Advogados que a hora designada por despacho judicial é a hora de início das diligências e não a hora que devem entrar no Tribunal. Sendo certo que, quando estão atrasados, os Advogados podem (aliás como o fazem usualmente) contactar a respetiva Secção dando conta disso mesmo. E omite-se, igualmente na fundamentação se, no caso concreto, foi o procedimento de identificação dos Senhores Advogados na portaria que os impediu de chegar a horas ao Tribunal ou de, no mínimo, contactar a Secção a avisar que estariam atrasados, como outros seus Colegas fazem habitualmente». Alega ainda que «De todo o modo e como é certo e sabido, repete-se, as horas designadas para a realização de diligências não são as horas para chegar ao edifício do Tribunal, mas sim a hora para se iniciar a diligência. // Por último, as 10.30 horas não são hora de ponta em ........ nem são hora de ponta na entrada do edifício e, para além disso, o facto de se estar atrasado no trânsito ou na entrada no edifício, não impede os mandatários de informarem o Tribunal de que estão atrasados, como lhes é imposto pelo artigo 151.º, n.º 5, do CPC. E, se o A. sabe que, por vezes, poderão existir demoras no trânsito em ........, a generalidade das pessoas também o sabe, podendo e devendo salvaguardar essa situação, dirigindo-se mais cedo para o Tribunal e avisando o Tribunal da existência dessa situação e do eventual atraso, sendo certo que não se demonstra minimamente se, naquele dia em concreto isso aconteceu nem a efetiva ocorrência de uma demora na entrada do edifício do tribunal, bastando-se o R. com uma mera probabilidade abstrata».
A factualidade pertinente dada como provada na deliberação impugnada foi, neste ponto, a seguinte:
9 — No âmbito dos mesmos autos de Embargo, em 12-10-2017, pelas 10.30 horas, o Senhor Escrivão Auxiliar CC procedeu à chamada, tendo verificado que não se encontrava ninguém presente, o que constatou igualmente cerca das 10.34 horas, após o que o Exmo. Senhor Juiz abriu a audiência pelas 10.35 horas e proferiu o seguinte despacho: «Tendo em conta que foi dado cumprimento ao disposto no art. 151.° do Código de Processo Civil e que não foi comunicado qualquer impedimento por parte dos Ilustres Mandatários em comparecer na presente audiência e sendo também certo que não se encontra presente qualquer testemunha não se produzirá qualquer prova e determina-se que, oportunamente, sejam os autos conclusos para prolação de sentença» .
10 — As salas de audiências do Juízo de Execução ........ situam-se no … piso do Edifício … do chamado ........, sendo que o respetivo acesso implica a prévia identificação de pessoas, por seguranças, no hall de entrada daquele edifício, situado no piso 0 do mesmo edifício .
11 — Na sequência do referido em 8., no apontado dia 12-10-2017, após as 10.35 horas e não depois das 10.40 horas, os Senhores Advogados DD e EE, enquanto causídicos das partes, bem como testemunhas indicadas no âmbito do mencionado processo de Embargos de Executado, chegaram ao referido piso ... onde se situam as salas de julgamento do Juízo de Execução de ........” .
A deliberação sindicada apreciou esta questão e motivou a sua convicção, rebatendo os argumentos ensaiados pelo arguido e ora autor na sua defesa à acusação (e agora reproduzidos em sede contenciosa) nos seguintes termos:
“Em causa está o apurado facto de o Exmo. Senhor Juiz ter iniciado e concluído o julgamento cerca de cinco minutos depois da hora agendada para o seu início, sem a presença de qualquer interveniente processual e determinando então a conclusão dos autos para sentença, sendo que os respetivos Advogados e testemunhas compareceram em Tribunal não mais que 10 minutos depois da hora agendada e procuraram que o julgamento ocorresse, quer por diligências que então fizeram, quer por requerimento que apresentaram, sem, contudo, o conseguirem, em processo insuscetível de recurso em razão do valor da causa.
Naquele contexto, configura-se absolutamente inócuo saber, em concreto, «a que horas os Senhores Advogados se apresentaram na portaria do tribunal», a circunstância destes terem ou não «escritório em ........ e ……», serem ou não «utentes habituais…...........», conhecerem ou não «o procedimento de entrada no edifício» do Juízo de Execução ........, as concretas razões do respetivo atraso, nomeadamente o concreto tempo gasto no «procedimento de entrada no edifício» do Tribunal, o facto de ser ou não «hora de ponta», bem como a circunstância de não terem informado o Tribunal do respetivo atraso.
Aliás, em tais matérias o Exmo. Senhor Juiz não aduziu factos concretos e muito menos elementos de prova pertinentes que os fundamentem, refugiando-se antes em afirmações genéricas e conclusivas.
De todo o modo, quanto a tais matérias, da prova produzida não é possível infirmar o constante em sede de acusação, nem explicitar factualidade dela integrante ou aditar nova factualidade em função da prova produzida nos autos.
No que respeita ao concreto atraso verificado por parte dos Ilustres Advogados e testemunhas.
Na participação apresentada refere-se que os Senhores Advogados e as testemunhas «apenas às 10H37 subiram ao … piso onde se situa a secretaria judicial e sala de audiências», e aí «aguardaram por 10 minutos» pela chamada, após o que «deslocaram-se à secretaria judicial e quando foram atendidos (cerca de 10 minutos depois) obtiveram a informação de que a 1.ª chamada havia sido feita às 10H30 e a segunda às 10H33, tendo a diligência sido dada sem efeito, por falta de comparência das partes e seus mandatários, às 10H35».
Tal é igualmente referido no requerimento que os Ilustres Advogados apresentaram no referido processo.
O Exmo. Senhor Advogado Dr. EE, participante, quando ouvido na qualidade de testemunha, referiu que «subiram ao … piso» «alguns minutos» após as «10.30 horas», sendo que aí «esperaram que fosse feita chamada para o processo em causa» e, na falta desta, «por volta das 10,45/10,50 horas abordaram um funcionário do Juízo de Execução o qual lhes disse que o julgamento já tinha ocorrido.
A Exma. Senhora Advogada Dra. DD, igualmente participante, na qualidade de testemunha nos autos disse que «por volta das 10.25 horas (...) chegou à porta de entrada do edifício do Juízo de Execução ........, onde aguardou pelos procedimentos de identificação, o que terá demorado alguns minutos», após o que subiu «ao … piso onde» aguardou alguns minutos pela chamada pelo julgamento do processo em causa», sendo que «passados uns minutos e face à ausência de qualquer chamada» abordou «um funcionário na Secção de Execuções».
O Senhor Escrivão Auxiliar CC, quando ouvido como testemunha em 04-01-2018 disse que «à hora designada, como procede em todos os processos, realizou a chamada e verificou que não se encontrava presente qualquer pessoa para o processo em causa. Após deslocou-se à sala de audiência n.° 3 e daí telefonou ao Senhor Juiz AA, comunicando que ninguém estava presente. O Senhor Juiz perguntou-lhe se alguém havia telefonado a comunicar algum atraso e perante resposta negativa do depoente o Senhor Juiz afirmou-lhe que se deslocaria de imediato à sala de julgamento. Entretanto, o depoente deslocou-se mais uma vez ao átrio onde costumam comparecer os convocados para julgamento e aí constatou de novo que ninguém se encontrava presente, pelo que voltou de novo à sala de julgamento onde momentos depois chegou o Senhor Juiz, o qual proferiu o despacho que consta da ata e assim terminou a audiência final», sendo que «entretanto, já na secção, apercebeu-se que junto à mesma se encontravam os Ilustres Advogados do processo em causa, tendo então informado os mesmos que o julgamento já tinha acontecido» .
Finalmente, da ata relativa à audiência final em causa consta que foi «realizada chamada à hora designada» e «cerca 04 (quatro) minutos depois da hora designada», tendo-se constado a ausência de qualquer dos convocados», após o que a «audiência final» foi «aberta» às «10 horas e 35 minutos» e «pelo Mm.° Juiz de Direito foi proferido o seguinte: Despacho “Tendo em conta que foi dado cumprimento ao disposto no art. 151.° do Código de Processo Civil e que não foi comunicado qualquer impedimento por parte dos Ilustres Mandatários em comparecer na presente audiência e sendo também certo que não se encontra presente qualquer testemunha não se produzirá qualquer prova e determina-se que, oportunamente, sejam os autos conclusos para prolação de sentença Notifique”. De imediato, pelo Mm.° Juiz de Direito foi encerrada a presente audiência» .
Não tendo visto os Ilustres Advogados aquando dos factos em causa, as declarações do Arguido revelam-se inócuas quanto à factualidade em apreço.
Perante tais elementos probatórios afigura-se justificada a factualidade indicada nos artigos 9 e 11:
A audiência iniciou-se pelas 10.35 horas e, após despacho tabelar, encerrou de imediato, sendo que instantes depois, quando o Senhor Escrivão Adjunto se encontrava na Secção, o mesmo foi abordado pelos Ilustres Advogados participantes que já aí se encontravam há algum tempo, aguardando a realização de uma chamada para julgamento, estima-se que pelo menos desde as 10.40 horas, atentas os indicados depoimentos prestados e a proximidade da sala de audiências e da Secção de processos, assim como as regras da experiência comum e da lógica”.
Não se vislumbra que o acto impugnado tenha efetuado uma incorrecta valoração dos meios de prova de que dispunha, de incorrecta definição dos factos e de incorrecta apreciação dos mesmos. Tratou-se, em bom rigor, de uma realidade objectiva: como bem se enunciou na deliberação sindicada, em causa está tão-somente o apurado facto de o autor ter iniciado e concluído o julgamento cerca de cinco minutos depois da hora agendada para o seu início, sem a presença de qualquer interveniente processual e determinando então a conclusão dos autos para sentença, sendo que os respetivos Advogados e testemunhas compareceram em Tribunal pouco tempo depois e procuraram que o julgamento ocorresse, quer por diligências que então fizeram, quer por requerimento que apresentaram, sem, contudo, o conseguirem, em processo insusceptível de recurso em razão do valor da causa.
Como bem se refere na deliberação impugnada, naquele contexto era irrelevante apurar, em concreto, “a que horas os Senhores Advogados se apresentaram na portaria do tribunal”, a circunstância destes terem ou não “escritório em ........ e ……”, serem ou não “utentes habituais ..........”, conhecerem ou não “o procedimento de entrada no edifício” do Juízo de Execução ........, bem como as concretas razões do respectivo atraso, nomeadamente o concreto tempo gasto no “procedimento de entrada no edifício” do tribunal ou ainda a circunstância de não terem informado o tribunal do respectivo atraso.
Aliás, a este respeito importa secundar a apreciação jurisdicional que este STJ já efectuou quanto a esta matéria no Acórdão da Secção do Contencioso do STJ, proferido no processo n.º 12/19.0YFLSB, transcrito em 9º da Fundamentação de facto. Aí se deixou consignado o seguinte:
“Não vemos em que medida o facto provado n.º 10. integre um facto não coincidente com a realidade - erro na apreciação da prova - na medida em que é composto apenas por elementos objetivos, observáveis por qualquer cidadão que visite aquelas instalações – «As salas de audiências do Juízo de Execução ........ situam-se no …. piso do edifício … do chamado........, sendo que o respetivo acesso implica a prévia identificação de pessoas, por seguranças, no hall de entrada daquele edifício, situado no piso 0 do mesmo edifício».
O mesmo se diga quando ao facto provado n.º 20 no segmento «bem sabendo que circulação na cidade ........ causa por vezes alguns atrasos, tal como sucede com as formalidades de acesso ao Juízo de Execução ........». São factos objetivos, comum a qualquer cidadão que no seu dia-a-dia circule pela cidade ........ e que seja utente dos edifícios …… em ........, e, sem dúvida, fruto das regras da experiência comum e do Senhor Juiz.
Inequívoco se torna que os Senhores Advogados sabem e têm obrigação de saber que a hora designada por despacho judicial é a hora do início das diligências judiciais e não a hora de entrada no tribunal e que se devem acautelar dos procedimentos de entrada em edifícios dos Tribunais e dos atrasos que isso pode provocar e que também se devem acautelar que de manhã (ainda que 10H30 já não seja hora de ponta) a circulação em ........ causa alguns atrasos e se estão atrasados devem comunicar prontamente ao Tribunal.
Porém estas premissas acabadas de referir em nada afastam os factos provados n.º 10. e o facto provado em 20. quanto aos acessos ao Tribunal – atrasos devidos à circulação ........ de manhã e devido às formalidade de acesso ao Juízo de Execução ......... Cumpre referir que o facto provado n.º 20 não fala em “hora de ponta”, apenas refere que de manhã a circulação de ........ causa por vezes alguns atrasos – trata-se de um facto notório e incontornável, pelo que não vemos em que medida este segmento deste facto integre qualquer erro na apreciação da prova.
Relativamente à hora que os Senhores Advogados terão chegado junto ao Juízo de Execução de ........, também claro se verifica que os mesmos, até às 10H34, não estavam junto à Secção e/ou sala de audiências quando foi feita a segunda chamada e que não informaram o Tribunal que não estariam às 10H30 na diligência. E que a diligência pese embora na ata não conste a hora de terminus, terá terminado escassos minutos depois, não tendo sido realizado o julgamento dos autos, por ausência dos intervenientes processuais que não estavam presentes aquando da chamada.
Face à conjugação da prova indicada na deliberação impugnada, mormente a prova testemunhal ali referida (Sra. Advogada Dra. DD e Senhor Advogado Dr. EE) e ao teor do requerimento junto aos embargos de executado em 12-10-2017, e conjugado com a ata de audiência de julgamento de 12-10-2017, não se vislumbra qualquer erro na apreciação da prova quanto ao facto provado n.º 11, no sentido que terão chegado ao piso … onde se situam as salas de julgamento do Juízo de Execução após as 10h35 horas e não depois das 10H40.
Nesta medida, concorda-se com a deliberação recorrida quando referiu que em causa está a apreciação, num quadro de razoabilidade, da conduta do Juiz e já tendo por base as premissas acima elencadas de que 10H30 é supostamente a hora do início das diligências e não a hora de entrada no tribunal, sendo que «neste contexto, configura-se absolutamente inócuo saber, em concreto, «a que horas os Senhores Advogados se apresentaram na portaria do tribunal», a circunstância destes terem ou não «escritório em ........ e …..», serem ou não «utentes habituais …… em ........», conhecerem ou não «o procedimento de entrada no edifício» do Juízo de Execução........, as concretas razões do respetivo atraso, nomeadamente o concreto tempo gasto no «procedimento de entrada no edifício» do Tribunal, o facto de ser ou não «hora de ponta», bem como a circunstância de não terem informado o Tribunal do respetivo atraso”.
Alega ainda o autor, agora com referência ao ponto 12., que aí “[…] é apenas dito que os Senhores Advogados tentaram falar com o A. e não o lograram, mas omite-se que, […] o A. não tinha conhecimento de que os Senhores Advogados estavam no Tribunal, apenas tendo sabido que haviam estado posteriormente, quando, um pouco antes da hora de almoço ou já depois do almoço, o Senhor Funcionário CC lhe telefonou a dizer que partilhara a ata e o A. o questionou a esse respeito». E conclui «[…] que, com tal redação e confrontando o facto 12 com o facto 50 da factualidade dada como assente na douta deliberação impugnada, onde se afirma, sem qualquer correspondência com a prova existente nos autos e muito menos com a verdade e, salvo o devido respeito, de forma insultuosa até, que o A. apenas visava não perder tempo a realizar o julgamento e ter menos trabalho a elaborar a sentença, faz parecer, a qualquer leitor médio, que os Senhores Advogados tentaram falar com o A. e este é que se recusou a ouvir as razões aduzidas para o atraso e para a falta de comunicação de que estavam atrasados, quando na realidade nada disto sucedeu».
Também por aqui não lhe assiste razão.
É o seguinte o teor do facto provado n.º 12 da deliberação impugnada:
“12 — Entretanto, apercebendo-se que já havia sido realizado julgamento no âmbito dos referidos autos de Embargos de Executado, os Senhores Advogados DD e EE, enquanto causídicos das partes, procuraram falar com o Exmo. Senhor Juiz, o que não lograram”.
Ora, como a este respeito também apreciou e decidiu o STJ no Acórdão de 05-02-2020, proferido no processo n.º 12/19.0YFLSB, em julgamento que ora se reitera:
“Sustenta ainda o A. que o facto provado n.º 12 faz transparecer que os advogados tentaram falar com o arguido (ainda que por intermédio do Sr. Funcionário) e este é que se recusou a ouvir as razões aduzidas pelo atraso e para a falta de comunicação de que estavam atrasados, o que não corresponde à verdade.
Não acompanhamos tal raciocínio.
O facto provado n.º 12 é linear e objetivo, despido de adjetivações, apenas consta que os advogados procuraram falar com o arguido, o que não lograram. Ao contrário do alegado pelo recorrente, daqueles factos não se conclui que o Recorrente se recusou a ouvir as razões aduzidas pelo atraso e para a falta de comunicação de que estavam atrasados.
Assim não vemos no aludido facto provado n.º 12 qualquer erro na apreciação da prova”.
Por último, sustenta-se na petição inicial que nos factos provados de 17-38, referem-se uma série de processos em que o ora demandante determinou que se esperasse por mandatários que não estavam presentes à hora marcada para o início das diligências, com o objectivo de fazer crer que a conduta do autor no processo em causa era uma conduta isolada face à que sempre adoptou em casos similares, para daí se retirar que sabia que estava a proceder ilegalmente e que o fez porque o processo em causa não admitia recurso. “Todavia, omite-se que, […] o A. apenas aguardou pela chegada dos mandatários faltosos porque, apesar de tal não constar das atas, estes contactaram o Tribunal informando que estavam atrasados”.
Por se revelar de interesse para a economia da presente decisão, aqui recuperamos o segmento do excurso fundamentador do Ac. de 05-02-2020 que se pronunciou expressamente sobre esta matéria nos seguintes termos:
“Por último, defende o A. que nos processos identificados nos factos provados nºs 17. a 19, apenas aguardou pela chegada dos mandatários faltosos porque apesar de não constar das atas, estes contactaram o Tribunal informando que estavam atrasados, ocorrendo omissão/lapso nas atas.
Não vislumbramos qualquer erro na apreciação da prova destes factos. Estes factos reproduzem o que consta nas respetivas atas das diligências e nas mesmas não constam a indicação da comunicação de atraso dos mandatários.
Resulta da fundamentação da matéria de facto da deliberação impugnada, a indicação de várias atas de processos onde foi expressamente feita menção que os Senhores Advogados telefonaram a informar que estavam atrasados e que por esse motivo o Senhor Juiz determinou que se aguardasse a chegada dos mesmos e não se iniciou de imediato a diligência.
Não vemos em que medida, se fariam constar numas atas o aviso de atraso dos mandatários e noutras atas não. Sendo que, defende o A., o único motivo devido ao qual não iniciava a diligência na hora agendada era quando comunicavam o atraso. Não vemos em que medida o Senhor Juiz, sendo alegadamente tão rigoroso no começo das diligências e sendo esse o seu único procedimento, se não se certificasse, aquando da assinatura daquelas, da não menção do motivo devido ao qual não iniciava na hora designada.
Desta feita, não vemos em que medida aquela factualidade enferme de erro na apreciação da prova, enquanto desconforme com a realidade.
Pelo exposto, consideramos que os aludidos factos nºs 10, 11, 12, 17 a 19 e 20, este no segmento «sabendo que a circulação na cidade de ........ causa por vezes alguns atrasos, tal como sucede com as formalidades de acesso ao Juízo de Execução de ........», ao contrário do alegado pelo A., não padecem de qualquer erro na apreciação da prova (desconformidade com a realidade), e nessa medida, não se vislumbra qualquer vício que afete, em concreto, essa matéria de facto.
Terminando, para concluir, diremos que não se vislumbra que exista algum vício ao nível da factualidade apurada. Os factos foram integralmente considerados, como foram adequadamente ponderados na fundamentação da decisão acerca do preenchimento do específico tipo de infracção disciplinar e na concreta determinação da medida de pena.
Mais: todas as considerações suscitadas pelo autor na sua defesa à acusação, bem como o exame crítico dos meios de prova, foram objecto de apreciação completa e especificada na decisão ora impugnada, mormente nas páginas 21 a 29 da mesma.
Em face do exposto, não se vislumbra a existência de qualquer errada valoração de circunstâncias relevantes para a decisão, e muito menos susceptíveis de violar os princípios do processo equitativo, da presunção de inocência e do in dubio pro reo, antes se verificando um desacordo do autor, em relação ao juízo efectuado na deliberação impugnada acerca dessas mesmas circunstâncias.
Por conseguinte, é de julgar improcedente a pretensão do autor com este fundamento.
Violação do princípio da independência do juiz
Invoca o autor a este respeito que a apreciação, em sede de processo disciplinar, do despacho judicial em causa nos presentes autos viola o princípio da independência do juiz.
Sustenta que a matéria em causa enquadra-se no disposto nos artigos 151.º, n.º 5, e 603.º, ambos do CPC, tendo o demandante cumprido o estipulado pelo legislador, pelo que a sua eventual violação apenas pode ser sindicada em sede de recurso (e, quanto muito pode ser tida em conta em sede inspectiva) - nunca em sede disciplinar.
Assim, a apreciação do despacho judicial em causa, em sede de processo disciplinar, que culminou com a aplicação de uma sanção disciplinar, é inconstitucional por violação do princípio da independência do juiz.
Nos termos do artigo 204.º da CRP, todos os tribunais, seja qual for a sua categoria, estão impedidos de aplicar normas inconstitucionais. Está este tribunal, portanto, habilitado a apreciar a inconstitucionalidade com vista ao exercício da fiscalização concreta da constitucionalidade (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, 13.ª reimpressão, Coimbra, Almedina,2013 — tomo VI — Inconstitucionalidade e Garantia da Constituição, 4.ª edição revista e atualizada, 2013, Coimbra Editora, p. 244).
Depois, existe um nexo incindível entre a questão de inconstitucionalidade e a questão principal que constitui o objecto do processo (cf. acórdão n.º 169/92 do Tribunal Constitucional, proferido em 06.05.1992, e publicado no Diário da República, 2.ª série, de 18.09.1992, apud Jorge Miranda, op. cit., p. 245, nota 1). De tal sorte que a pretensão do autor está intimamente associada ao juízo de inconstitucionalidade que se haja de efectuar com referência às normas aludidas na petição inicial: se o juízo for de inconstitucionalidade, naturalmente que o acto impugnado terá de ser anulado e a entidade demandada terá de observar esse juízo, expurgada que estará a norma aplicada na deliberação recorrida; caso contrário, naufraga a pretensão do recorrente.
Vejamos, pois.
Entre nós também as garantias de independência estão proclamadas no artigo 4.º do EMJ e no artigo 4.º, n.º 1, da LOSJ.
Por outro lado, o Capítulo III do Titulo V da Constituição, dedicado aos tribunais, referindo-se primacialmente aos juízes dos tribunais judiciais (artigo 215.º), inclui também normas que se reportam a todos os juízes (artigo 216.º) e normas que especificamente visam os juízes dos restantes tribunais (artigo 217.º, nºs 2 e 3).
De acordo com o que dispõe o artigo 215.º da Constituição, “os juízes dos tribunais judiciais formam um corpo único e regem-se por um só estatuto” (n.º 1), remetendo-se para a lei o estabelecimento dos requisitos e das regras de recrutamento dos juízes de tribunais judiciais de primeira instância (n.º 2).
Os nºs 3 e 4 estabelecem critérios constitucionais para o acesso dos juízes aos tribunais superiores (nºs 3 e 4). Outras disposições regem sobre garantias e incompatibilidades (artigo 216.º) e, além de confiarem a competência para a direcção e gestão das magistraturas a órgãos constitucionais autónomos (Conselho Superior da Magistratura e Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais – artigo 217.º, nº s 1 e 2), remetem para a lei a definição de regras próprias sobre a colocação, transferência, promoção e exercício da ação disciplinar dos juízes de qualquer jurisdição, sempre com a “salvaguarda das garantias previstas na Constituição” (artigo 217.º, n.º 3).
Estas disposições, especificamente atinentes ao estatuto dos juízes, não podem deixar de ser interpretadas conjugadamente com os princípios plasmados nos precedentes capítulos do mesmo Título, e especialmente com os do Capítulo I que se referem ao funcionamento dos tribunais e ao exercício da função jurisdicional. Importa, por isso mesmo, revisitá-las. Eis o escopo das linhas que se seguem, para o que aqui seguiremos de perto o excurso expositivo efetuado no acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 620/2007 (Processo n.º 1130/2007), de 20-12-2007 e deste STJ no Acórdão proferido a 27-05-2020 (proc. n.º 48/19.1YFLSB).
O artigo 202.º, sob a epígrafe «função jurisdicional», no seu n.º 1, define os tribunais como os “órgãos de soberania com competência para administrar a justiça”, vindo a identificar, no n.º 2, o conteúdo da função jurisdicional por referência a três diferentes áreas de intervenção: defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da legalidade; dirimição de conflitos de interesses públicos e privados.
O entendimento geral é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir uma reserva de jurisdição, entendida como uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais. Nesse sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito.
A existência de uma reserva de jurisdição é a necessária decorrência da aplicação dos princípios da separação e interdependência de poderes: sendo a competência dos órgãos de soberania definida na Constituição e devendo estes observar a separação e a interdependência nela estabelecidas (artigos 110.º, n.º 2, e 111.º, n.º 1), haverá de concluir-se que a atribuição constitucional de determinada competência a um certo órgão de soberania exclui a possibilidade de ela poder vir a ser legalmente atribuída a qualquer outro, salvo explícita ou implícita autorização constitucional (neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 71/84, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de janeiro de 1985).
Por outro lado, a reserva de jurisdição concretiza-se através de uma reserva do juiz, no sentido de que, dentro dos tribunais, só os juízes poderão ser chamados a praticar os actos materialmente jurisdicionais (José Joaquim Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 3.ª edição revista, 1993, p. 792; Rui Medeiros/ Maria João Fernandes, «Artigo 202.º», Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, coordenação de Jorge Miranda / Rui Medeiros, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 32).
Assim se compreende que o Tribunal Constitucional tenha declarado a inconstitucionalidade de normas atributivas de competência jurisdicional a agentes que, ainda que inseridos na estrutura judiciária, não tenham a qualidade de juiz (acórdãos nºs 182/90 e 247/90, que se pronunciaram sobre a competência dos secretários judiciais para proferir decisões relativas a custas); e, noutros casos, tenha concluído pela constitucionalidade da solução legislativa apenas por considerar que a função judiciária atribuída a quem não tem o estatuto de juiz não integrava o conceito de acto jurisdicional (assim, nos acórdãos nºs 67/2006 e 144/2006, que abordaram a questão da atribuição ao Ministério Público do poder de decidir, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo).
Um outro princípio inerente à reserva de jurisdição consubstancia-se na exigência de que o órgão jurisdicional ao qual possa ser atribuída a função de julgar se encontre rodeado das necessárias garantias de independência e imparcialidade.
A esse propósito, escreveu-se no já citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 71/84, que, “[…] para que determinado órgão possa ser qualificado como tribunal não basta, nem pode bastar, que lhe haja sido cometida uma competência materialmente incluída na função jurisdicional. É que se assim fosse, esvaziar-se-ia completamente de conteúdo a referida reserva da função jurisdicional aos tribunais, na medida em que todo e qualquer órgão se converteria em tribunal pela mera atribuição de uma competência materialmente jurisdicional.
Para que um determinado órgão possa ser qualificado como tribunal é necessário, antes de mais, que ele seja “independente”, como o exige o artigo 208.º da Constituição [o atual artigo 203.º]”.
Por isso, há de concluir-se, como também se refere no acórdão n.º 171/92 (publicado no Diário da República, II Série, de 18 de setembro de 1992), “que tribunais hão de ser visualizados como sendo só aqueles órgãos de soberania que, exercendo funções jurisdicionais, sejam suportados por juízes que desfrutem totalmente de independência funcional e estatutária, não bastando, pois, a mera atribuição de poderes às entidades da Administração para, na resolução dos assinalados casos concretos, poderem decidir sem sujeição a ordens ou instruções».
É esse o postulado que decorre do artigo 203.º da Constituição, segundo o qual “os tribunais são independentes e apenas estão subordinados à lei”.
A independência dos tribunais é descrita como uma independência objectiva, que deriva da própria essência da actividade jurisdicional, e tem como pressuposto a subordinação do juiz à lei; mas também como uma independência subjetiva, esta caracterizada por uma autonomia dos tribunais em relação aos outros poderes do Estado e em relação aos outros contitulares do poder jurisdicional - isso sem prejuízo das relações de hierarquia e supraordenação ditadas pela existência de diferentes categorias de tribunais em cada ordem de jurisdição (Paulo Rangel, Reserva de jurisdição. Sentido dogmático e sentido jurisprudencial. Porto, Universidade Católica Editora, pp. 44 e 45).
No entanto, a independência dos tribunais também postula, pressupõe e exige a independência dos juízes, conforme se afirmou nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 135/88 e 393/89 (publicados no Diário da República, II Série, de 8 de setembro de 1988 e de 14 de setembro de 1989, respetivamente). Por essa mesma razão se diz que a garantia essencial da independência dos tribunais é a independência dos juízes, que por isso se considera necessariamente abrangida pela proteção constitucional que resulta da norma do artigo 203.º (Gomes Canotilho / Vital Moreira, op. cit., p. 794).
É, aliás, essa a ideia que é expressa por José de Oliveira Ascensão [«A reserva constitucional de jurisdição», O Direito, ano 123.º, 1991, II-III (Abril-Setembro), p. 467], quando assevera que “[…] a independência dos tribunais, expressa pelo artigo 206.º da Constituição [atual artigo 203.º], procura assegurar que esse corpo especializado não fique sujeito à pressão de quaisquer outras forças, políticas antes de mais. Mas a descrição do órgão a quem está constitucionalmente confiada a jurisdição é incompleta enquanto não tivermos em atenção a figura do juiz […]. Não é só a magistratura que é independente; cada juiz é dentro dela independente, no âmbito da sua competência. Neste sentido se diz que cada juiz é titular da totalidade da jurisdição […]».
Se é certo que a independência do juiz é sobretudo um dever ético-social que lhe exigirá manter-se alheio e acima das influências exteriores e que, nessa medida, se traduzirá numa forma de independência vocacional, não é menos verdade que deverá, ainda assim, existir um quadro legal que promova e facilite essa independência. É nessa mesma linha de entendimento que se declara que “a independência e imparcialidade da jurisdição exigem garantias orgânicas, estatutárias e processuais” (vide acórdão n.º 52/92 do TC, e, na doutrina, Rui Medeiros / Maria João Fernandes, op. cit., p. 42).
As garantias orgânicas e estatutárias de que se fala são justamente aquelas que vêm mencionadas nos artigos 215.º a 218.º da CRP, a que já se fez referência, e traduzem-se essencialmente na unicidade orgânica e estatutária dos juízes (artigo 215.º, n.º 1), nas garantias de inamovibilidade e irresponsabilidade (artigo 216.º, nºs 1 e 2) e no princípio do autogoverno da magistratura, este traduzido na exigência de que a nomeação, colocação, transferência e promoção dos juízes, bem como o exercício da acção disciplinar, sejam efectuados por um órgão autónomo não dependente do poder executivo (artigos 217.º e 218.º).
Ou seja, o legislador constitucional, ao prescrever que “os juízes do tribunais judiciais formam um corpo único e regem-se por um só estatuto”, não pode ter tido a mera intencionalidade de declarar que os juízes, como qualquer funcionário ou agente administrativo, estão igualmente subordinados a um conjunto de direitos e deveres funcionais, regulados por normas de carácter geral e abstrato que conformam o conteúdo da respectiva relação jurídica de emprego público. Ao invés, a razão de ser do preceito radica antes na necessidade de dar cobertura à garantia de independência dos juízes, em função da sua qualidade de titular de órgão de soberania encarregado de exercer a função jurisdicional. E, porque assim, o estatuto subjectivo dos magistrados está indissociavelmente ligado à reserva de jurisdição e constitui um princípio constitucional material concretizador do Estado de direito, na medida em que se destina a garantir a independência e imparcialidade dos juízes no exercício da função jurisdicional - Vide o citado acórdão do TC n.º 620/2007 (Processo n.º 1130/2007), de 20-12-2007, que aqui se seguiu de perto; na doutrina, Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, 13.ª reimpressão, 2013, Coimbra, Almedina, pp. 667 e 668; Paulo Rangel, Reserva de jurisdição, cit., p. 48).
Por tudo, e em suma, como é sublinhado por Paulo Rangel, tal como está consagrada nos artigos 202.º e 203.º da CRP e nos preceitos subsequentes que regulam o estatuto dos juízes (artigos 215.º a 218.º), pressupõe a necessária convergência entre a dimensão material e a dimensão organizatória da jurisdição, e postula a eliminação das reminiscências da caracterização da função judicial como função pública e a plena assunção dos juízes como titulares de órgãos de soberania (Repensar o poder judicial. Fundamentos e fragmentos, Porto, 2001, pp. 175 e 299).
É, pois, em ordem a e tendo em vista garantir a independência dos juízes, por tudo o que se deixou dito, que a Constituição consagra um conjunto de garantias e de limitação de direitos relativamente ao regime de exercício de funções dos magistrados judiciais, que constitui o verdadeiro estatuto do juiz, e que foi desenvolvido, no plano do direito ordinário, pelo EMJ, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de julho, com as suas ulteriores alterações.
Pois bem, é a esta luz que surge consagrado constitucionalmente no artigo 203.º da CRP o princípio da independência dos tribunais e o da independência dos juízes, com expressão no artigo 4.º do EMJ, pressupõe uma dimensão subjetiva e uma dimensão objetiva.
Na dimensão subjetiva, visa defender os tribunais dos demais poderes do Estado, concretizando-se, desde logo na independência perante o poder executivo, dela derivando a inadmissibilidade de instruções concretas, de preceitos administrativos ou de quaisquer outras formas de pressão ou influência sobre a atividade dos tribunais.
Na vertente da independência dos juízes, que integra a dimensão objetiva, o princípio “convoca várias dimensões densificadoras da liberdade à independência no julgar: (i) liberdade contra injunções ou instruções de quaisquer autoridades; (ii) liberdade de decisão perante coações ou pressões destinadas a influenciar a actividade de “jurisdictio”; (iii) liberdade de acção perante condicionamento incidente sobre a actuação processual; (iiii) liberdade de responsabilidade” (Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume II, Coimbra Editora, 4.ª edição, 2010, pp. 513-514).
Numa e noutra vertente refere-se o princípio ao livre exercício da actividade de julgar, a levar a cabo com respeito apenas pela lei e dentro dos seus limites e das regras extrajurídicas cujo uso a mesma consinta, mormente na avaliação em termos objectivos da matéria de facto, de acordo com a consciência do julgador, livre, portanto de intromissões, injunções, coações ou de quaisquer formas de pressão externa.
Na certeza, porém, de que a independência garantida à função jurisdicional não significa que no exercício dessa função, os actos dos magistrados, estejam isentos a controle disciplinar.
Como referiu já o Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 268/2003, Proc. n.º 465/00):
“Cabendo, por força da Constituição, ao CSM a administração e gestão dos magistrados, estará na primeira linha das suas competências o exercício da acção disciplinar, a título oficioso, - e na prática da vida a título principal -, como modo de responsabilizar os magistrados que pratiquem factos suscetíveis de serem havidos como infracção disciplinar. A competência disciplinar é um atributo ou poder próprio de qualquer organização administrativa, sem o que as instituições dificilmente funcionariam. Sendo a administração desempenhada pelo CSM levada a cabo a título autónomo, só a ele poderá caber a competência disciplinar e esta envolve necessariamente o poder de agir oficiosamente sempre que se verifique uma infracção disciplinar, dado que esta representa uma violação ao dever de cumprir o serviço público que está cometido ao funcionário ou agente (magistrado).
Como é evidente, extravasa a competência do CSM interferir com a independência interna ou endógena do juiz ou seja com o livre exercício da sua actividade de julgador a levar a cabo com respeito apenas pela lei e dentro dos seus limites e das regras extrajurídicas cujo uso a mesma lhe consinta, mormente na avaliação em termos objectivos da matéria de facto, de acordo com a sua consciência”.
De todo o modo, um breve périplo pela jurisprudência da Secção de Contencioso do STJ permite-nos delimitar os campos em que o exercício da acção disciplinar pelo CSM, quando reportada à actuação processual dos magistrados, pode ser julgada legítima.
Assim, visando afirmar a independência quando reportada às decisões judiciais, afirmou-se no Ac. do STJ de 05-06-2012 (proc. n.º 112/11.5YFLSB) que “as decisões dos magistrados judiciais, nomeadamente no que respeita à aplicação e interpretação do Direito, apenas estão sujeitas ao escrutínio dos tribunais superiores - decorrência do art. 203.º da CRP, a que a lei ordinária deu forma, v.g., nos arts. 4.º e 5.º do EMJ […]”
Daí que o mesmo STJ, no seu Ac. de 04-07-2019 (proc. n.º 4/18.7YFLSB), apesar de reconhecer que “o princípio da independência dos tribunais e dos magistrados judiciais proclamado no art. 203.º da CRP e reeditado nos arts. 4.º da LOSJ e do EMJ não significa que o exercício da atividade jurisdicional dos juízes não esteja sujeita à observância dos respectivos deveres funcionais ou profissionais e à correspondente fiscalização disciplinar por parte do órgão (CSM) a que a própria CRP, no seu art. 217.º, confere competência para tal”, não deixou de consignar, logo de seguida, que “esta fiscalização deve cingir-se à verificação da inobservância desses deveres, sem se imiscuir na esfera da apreciação das decisões judiciais”.
E daí também que o mesmo Supremo Tribunal, no seu Ac. de 09-04-2019 (proc. n.º 1/19.5YFLSB) tenha expressamente decidido o seguinte: “Não cabe no âmbito da competência prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 62.º da LOSJ, a possibilidade do Presidente do STJ interferir em questões de matéria jurisdicional, isto é, proceder à apreciação dos despachos proferidos nos processos pelos Exmos. Juízes Relatores ou pelo Coletivo de Juízes, e, em caso de não concordância, proceder à sua revogação e substituição por outros, sob pena de violação clara do princípio da independência dos tribunais e do princípio do juiz natural. Qualquer interpretação que permita considerar que o artigo 62.º, n.º 1, al. f), da LOSJ consagra uma competência do Presidente do STJ para “emitir ordens de serviço” a um Conselheiro relativas ao acto de julgar (mormente, revogar decisões proferidas no processo por um Juiz Conselheiro), mostra-se claramente inconstitucional, por violação dos princípios contidos nos artigos 2.º e 203.º da CRP".
E mesmo no tocante à sindicabilidade das decisões judiciais, nos Acórdãos do STJ de 19-03-2002 e de 18-12-2003, proferidos respetivamente nos processos nºs 1046/01 e 2658/03 (com sumário acessível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/06/sum_cont_1980-2011.pdf), deixou-se consignado que, visando ainda a salvaguarda da independência do poder judicial, sob pena de deslegitimação do exercício do poder conferido ao Conselho Superior da Magistratura, uma decisão judicial só deve ser tida como sendo susceptível de gerar responsabilidade disciplinar quando “não pudesse ser proferida ou tomada, a nenhum título, sob prisma algum ou à luz de qualquer entendimento plausível”.
Este será, portanto, o campo natural, irredutível e inalienável do princípio e garantias de independência, em cuja esfera não se podem verificar quaisquer actuações susceptíveis de a limitar: a conformação ou tentativa de conformação de decisões jurisdicionais. A delimitação negativa de ingerências, seja para efeitos inspectivos, seja para efeitos disciplinares, encontra aqui, pois, o seu reduto inelutável.
Porém, como esclarece aquele mesmo acórdão de 05-06-2012 (proc. n.º 112/11.5YFLSB), citado supra, “se é certo e indiscutível que as decisões dos Magistrados Judiciais, nomeadamente no que respeita à aplicação e interpretação do Direito, apenas estão sujeitas ao escrutínio dos Tribunais superiores […] não é menos verdade que o entendimento prático que se retirou de normas de feição adjectiva – como é o caso das regras de que se valeu o Exm.º Juiz arguido/recorrente, no seu sindicado exercício funcional, concretamente o art. 56.º, c), do C.P.T. e o art. 1.º do Decreto-Lei n.º 185/2000, de 8 de Agosto, inequivocamente vocacionadas para acautelar a celeridade e agilização da marcha processual – enquanto respaldo para o denunciada má gestão da agenda, com o consequente arrastamento/dilação na calendarização e ultimação das diligências do processo, projectadas negativamente no seu desempenho profissional, conforme sobejamente factualizado, tem manifesta dimensão/repercussão disciplinar. É tão-só nessa perspetiva e âmbito que se contextualiza a intervenção do recorrido C.S.M., a quem compete não só a avaliação do desempenho dos Juízes, como igualmente e além do mais, o exercício da respectiva ação disciplinar”.
Como também se ponderou e decidiu no Acórdão de 16-06-2015 (proc. n.º 7/15.3YFLSB), no exercício dessa função de julgar, os actos dos magistrados estão isentos a controle disciplinar, na medida em que “[…] os juízes têm independência para interpretar a CRP e a lei […]”. Contudo, logo se adverte que “[…] a independência garantida à função jurisdicional não significa nem tudo o que possam escrever nos autos constitui necessariamente aplicação do direito [e que] existem certos actos que estão excluídos da esfera de proteção dos princípios da independência e da irresponsabilidade dos juízes pelas suas decisões [já que] sob o manto da função jurisdicional não podem estar incluídas posições pessoais estranhas ao objecto do processo […]”, ou seja, posições que extravasem o âmbito da função jurisdicional, nomeadamente posições eventualmente susceptíveis de configurarem infracção disciplinar.
Aliás, e ainda a propósito da responsabilização disciplinar dos magistrados judiciais e a sua interação com a independência do poder judicial, referiu-se que o comportamento de um juiz no relacionamento com os intervenientes processuais não se confina à decisão judicial em sentido estrito (Acórdão do STJ de 28-02-2018, proferido no processo n.º 69/17).
É assim que, por exemplo, no Ac. de 18-10-2012 (proc. n.º 24/12.5YFLSB) se enuncia expressamente que: “o princípio fundamental da independência decisória do juiz não é afectado pelo facto de a sua actividade processual ser sindicada pelo órgão a que está constitucionalmente cometida a gestão e a disciplina da magistratura judicial, não podendo este órgão, no exercício das suas competências, deixar de valorar o nível de eficácia alcançada por cada magistrado na dirimição dos conflitos de interesses que lhe cabe solucionar. É que, num sistema em que a principal crítica à atividade dos tribunais radica precisamente na morosidade excessiva dos processos e das decisões, não pode naturalmente o CSM deixar de ter em consideração também aspetos quantitativos ou de celeridade e eficácia na atuação do juiz, expressos em índices de produtividade (tendo em conta que uma demora ou dilação temporal excessiva traduz inelutavelmente violação do direito fundamental dos cidadãos o obterem uma justiça em prazo razoável). Implica isto que o juiz tenha sempre de realizar um balanceamento ou ponderação entre as exigências de eficácia e celeridade – condição indispensável à não violação do referido direito fundamental dos cidadãos que pretendem aceder à justiça e os aspectos qualitativos da decisão, expressos nomeadamente nas exigências técnicas de cada decisão ou nas necessidades de reflexão e maturação das várias construções doutrinárias relevantes para a solução do caso – adoptando um método de trabalho que seja adequado a enfrentar com eficiência satisfatória o volume de serviço existente”.
Na mesma linha, o STJ, no seu Ac. de 19-09-2012 (proc. n.º 14/12.8YFLSB), depois de reconhecer que “a independência dos tribunais consagrada no art. 208.º da CRP traduz-se em não pesarem sobre o decidente outros factores que não os juridicamente adequados a conduzir à legalidade e à justiça da decisão [e que u]ma das vertentes deste princípio é a independência dos juízes perante a própria classe, no sentido de que eles não podem ser sujeitos a pressões do seu órgão superior de gestão e disciplina, que é o CSM”, deixou logo de seguida estabelecido que “a decisão favorável pelo CSM de um pedido de aceleração processual, ao abrigo da al. b) do n.º 2 do art. 108.º do CPP, não contende com a independência dos tribunais, não enferma de qualquer ilegalidade e muito menos de inconstitucionalidade, na medida em que integra apenas uma actividade de gestão e organização dos serviços para a qual o recorrido está especialmente vocacionado por lei ─ arts. 136.º e 149.º, al. i), do EMJ”.
No Acórdão do STJ de 17-12-2015 (processo n.º 67/15.7YFLSB) deixou-se expressamente consignado que “o CSM pode e deve avaliar a calendarização e direção das audiências, facultando aos juízes inspecionados elementos adequados a que reflitam sobre a correção dos procedimentos processuais adotados e transmitindo o seu entendimento sobre a forma, no que à celeridade diz respeito, como decorre uma audiência de julgamento, nada impedindo que sugira ao juiz presidente que imprima maior rapidez à condução daquela”.
E, mais recentemente, no seu Ac. de 10-12-2019 (proc. n.º 70/18.5YFLSB), o STJ deixou consignado, além do mais, o seguinte:
“Assim, a proclamada independência dos tribunais e dos juízes, associada ainda ao princípio da separação dos poderes soberanos consagrado no artigo 111.º, n.º 1, da Constituição, comporta, em termos funcionais e orgânicos, uma dimensão externa, ou seja, face aos outros órgãos de soberania e aos demais poderes sociais, e uma dimensão interna, no quadro do poder jurisdicional, garantida esta pela estruturação do sistema judiciário e pela repartição e fixação prévia da jurisdição de cada órgão (art.º 203.º da CRP).
A par disso, tal independência implica, em termos substanciais, que os juízes exerçam a função jurisdicional que lhes está cometida com submissão apenas à Constituição e à lei, o mesmo é dizer, ao sistema das fontes normativas em vigor e ao método judiciário de interpretação e aplicação da lei. E para salvaguarda desse exercício encontram-se instituídos diversos mecanismos de garantia, como são os da inamovibilidade, da irresponsabilidade e da imparcialidade dos juízes, preconizados no artigo 216.º da Constituição e reeditados nos artigos 5.º da LOSJ e 5.º a 7.º do EMJ.
Mas tal não significa que o exercício da actividade jurisdicional dos juízes não esteja sujeito à observância dos respetivos deveres funcionais ou profissionais e, como tal, compreendido no âmbito da acção inspectiva sobre o desempenho daqueles e da fiscalização disciplinar, por parte órgão a que a própria Constituição, no seu artigo 217.º, confere competência para tal e que é o Conselho Superior da Magistratura.
[…]
No caso vertente, a apreciação da deliberação impugnada incidiu sobre práticas e procedimentos imputados à Sr.ª Juíza […] que se consubstanciaram em prolação de decisões e despachos não previstos na lei, inócuos para o exercício do contraditório por banda das partes, desnecessários ao andamento do processo e até retardadores desse andamento, e alguns deles em manifesta incompreensão ou desrespeito de decisões dos tribunais superiores proferidas em sede de recurso.
[…]
Outrossim, os casos de completa omissão de fundamentação ou de adesão acrítica à posição de uma das partes […] são, em si mesmos, configuradores de inobservância do elementar dever de fundamentar as decisões judiciais.
Em nenhuma das situações mencionados está em causa o mérito das decisões proferidas, no quadro das soluções de direito plausíveis, como bem se ressalva na fundamentação da deliberação impugnada.
Trata-se pura e simplesmente de decisões proferidas com total inobservância de disciplina processual indiscutível, nessa medida, em violação dos deveres funcionais do juiz e como tal passíveis de ser objeto da censura […].
Tanto basta para se concluir pela não violação do principio da independência”.
Por último, no seu Ac. de 10-12-2019 (proc. n.º 86/18.1YFLSB), e seguindo a mesma linha de orientação, deixou-se estabelecido o seguinte:
“No exercício da função jurisdicional os juízes apenas devem obediência à Constituição da República Portuguesa e à lei, não estando, pois, sujeitos a quaisquer orientações, regras ou instruções emanadas do Conselho Superior da Magistratura em matéria jurisdicional.
Porém, as decisões jurisdicionais proferidas não estão imunes da responsabilização disciplinar dos juízes.
Com efeito, no exercício das respetivas funções jurisdicionais os juízes estão sujeitos, como todos os trabalhadores que exercem funções públicas, a um conjunto de deveres funcionais (entre os quais se destaca o dever de correcção), sendo uns privatísticos da função judicativa.
Por isso, independentemente da recorribilidade das decisões judiciais, sempre que o conteúdo das mesmas corporizem a violação de qualquer um dos deveres funcionais adstritos aos juízes, cabe ao Conselho Superior da Magistratura a responsabilidade disciplinar que, por incumbência constitucional, terá de investigar os factos e, se for caso disso, sancionar o juiz pela violação dos deveres funcionais a que se encontram adstritos (cfr. n.º 1 do artigo 217.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 81.º, 82.º e 149.º, alínea a), todos do Estatuto dos Magistrados Judiciais – doravante EMJ).
A efectivação da responsabilidade disciplinar dos juízes em nada contende, pois, com a garantia constitucional da independência da magistratura judicial.
Nesse sentido, a responsabilização disciplinar dos juízes não pode deixar de ser tida como uma das formas pelas quais se pode acautelar que a independência do julgador não é subvertida em exercício irresponsável da função jurisdicional.
[…]
Dúvidas não existem de que o despacho em questão se insere na actividade jurisdicional do Demandante no âmbito das funções que desempenhadas no Juízo de Execução em que está colocado (alínea c) do n.º 1 do artigo 723.º do Código de Processo Civil).
Este enquadramento, porém, de acordo com o que se mostra supra explanado, não exime o Demandante de eventual responsabilidade disciplinar que dele possa advir.
Com efeito, na sequência do já salientado, o exercício da função judicativa não se coaduna com o emprego de considerações desprimorosas ou deselegantes dirigidas aos intervenientes processuais.
Aliás, como salienta o Ministério Público, o próprio Código de Processo Civil impõe, como regra de conduta, a observância do dever de recíproca correccção (no artigo 9.º, n.º 1) entre magistrados e advogados, o que fundamentalmente se justifica em vista da noção de que o processo não pode constituir um espaço de exacerbação e exponenciação do conflito.
Assim, dado que a ponderação do comportamento do Demandante em termos de responsabilidade disciplinar nada tem a ver com sindicar o mérito da decisão nem a sua conformidade com os preceitos legais aplicáveis, não pode deixar de se concluir que o enquadramento em que se mostra proferido o despacho em causa não inviabiliza a responsabilização disciplinar do Demandante.
De regresso ao caso dos autos, é inequívoco que a actuação do ora autor que foi objecto de apreciação disciplinar por parte da entidade demandada se insere na actividade jurisdicional no âmbito das funções desempenhadas pelo demandante, enquanto magistrado judicial. Assim é porque, cotejando o art. 4.º, n.º 2, com o art. 7.º-B, n.º 2, ambos do EMJ na sua redação vigente, se conclui que “a concreta tramitação e decisão processual”, à semelhança da “direção da marcha do processo e a gestão do processo”, se inserem na actividade jurisdicional de administrar a justiça.
No entanto, também é inequívoco que não está em causa uma atuação diretamente relacionada com a função de julgar stricto sensu. Do acto impugnado não resulta que a entidade demandada tenha pretendido em momento algum imiscuir-se no labor hermenêutico, reservado ao autor, na interpretação da lei, na análise de factos ou na valoração de prova por parte do sr. juiz demandante. A atuação da entidade demandada não se situa, por conseguinte, naquele campo que traçámos de delimitação negativa nuclear, respeitante à função de julgar stricto sensu.
Por outro lado, e ainda que numa delimitação menos linear do que aquela que efetuámos a montante acerca da delimitação negativa quanto a uma suposta ingerência na função de julgar (que não se tem minimamente por verificada in casu, como vimos), podemos asseverar que a actuação da entidade demandada também não pretendeu verdadeiramente imiscuir-se nem substituir-se ao magistrado naquela actividade, que também é estruturalmente jurisdicional, de definição da concreta tramitação de um dado processo.
O que os autos denotam é, ao invés, um labor de apuramento da existência de um critério uniforme de actuação na gestão e tramitação processual, por parte do magistrado judicial, em casos similares — tudo com vista a apurar se, com a conduta demonstrada (dar início e termo a uma audiência final sem a presença das partes, seus mandatários e testemunhas arroladas, dando por finalizada a instrução sem aguardar a chegada dos intervenientes processuais para, de imediato e sem presidir a qualquer produção de prova sob a forma de imediação, se habilitar a proferir decisão), estava o autor a furtar-se ao dever funcional e profissional de administrar a justiça.
Dito por outras palavras: não se vislumbra que o CSM tenha pretendido sindicar nem substituir-se à valoração na concreta tramitação processual, entendida como poder de condução, tramitação, gestão e decisão de cada um dos processos a cargo do julgador, que se reconhece como jurisdicionalmente exclusiva do magistrado. O que a entidade demandada revelou pretender foi simplesmente avaliar a correcção da conduta do autor (estrita e exclusivamente funcional, profissional e disciplinar), cotejando-a com outras actuações de gestão processual do mesmo magistrado, apuradas objectivamente em sedes diversas.
Indagação essa por parte do CSM que se tem por legítima, no exercício das competências disciplinares que lhe estão constitucional, legal e estatutariamente reconhecidas, e na certeza de que: (i) o comportamento de um juiz no relacionamento com os intervenientes processuais não se confina à decisão judicial em sentido estrito, como vimos já (cf. Acórdãos de 16-06-2015, 28-02-2018 e 10-12-2019, proferidos respetivamente nos processos nºs 7/15.3YFLSB, 67/17.2YFLSB e 86/19.1YFLSB, todos citados a montante e acessíveis in http://www.dgsi.pt/jstj); (ii) “o CSM pode e deve avaliar a calendarização e direcção das audiências [e avaliar] a correcção dos procedimentos processuais adoptados e transmitindo o seu entendimento sobre a forma […] como decorre uma audiência de julgamento[…]» (cf. Ac. de 17-12-2015, proc. n.º 67/15.7YFLSB); e (iii) o entendimento prático que o demandante pretendeu alegadamente extrair das normas adjectivas por si invocadas foi, na perspectiva da entidade demandada, respaldo «[…] para o denunciada má gestão da agenda [apodada de ilícita, porque com aceleração da tramitação, tendo em vista a prolação de decisão de forma supostamente indevida, também porque prescindindo de produção de prova] na calendarização e ultimação das diligências do processo, projectadas negativamente no seu desempenho profissional, [e com] manifesta dimensão/repercussão disciplinar» (Ac. de 05-06-2012, proc. n.º 112/11.5YFLSB).
Assim, perante a notícia ou suspeita da prática por um magistrado de actos susceptíveis de integrar infracção disciplinar não compreendidos naquilo que constitui o cerne da protecção dispensada pelo princípio da independência dos juízes, que é a função de julgar, como sucedeu no caso vertente, cabe o exercício do poder disciplinar pelo órgão ao qual está cometido, o CSM, não traduzindo o presente processo disciplinar e aplicação de sanção uma qualquer ingerência no exercício dessa função de julgar, nem constituindo qualquer afronta à independência dos tribunais e/ou dos respetivos magistrados.
Face ao exposto, deverá improceder, por infundada, a invocada violação do princípio da independência do juiz.
Não verificação de ilícito disciplinar e violação de lei
Alega ainda o autor, ao longo dos artigos 119º a 150º da petição inicial, que se verificou erro manifesto na apreciação dos pressupostos jurídico-factuais, por não verificação do tipo objectivo de ilícito e violação do princípio da legalidade.
Sustenta que, na sequência da entrada em vigor do novo EMJ, passou a constituir uma inovação face à anterior redacção do mesmo diploma a tipificação das infrações disciplinares e a sua recondução às penas nele previstas.
Por isso, prossegue o demandante, ou a conduta é subsumível a alguma das alíneas dos artigos 83.º-G, H ou I, e, por isso, constituirá infracção ou não o sendo, não constitui qualquer infracção. Ou seja, as infrações disciplinares são objectivas, pelo que deixaram de poder resultar de interpretações dos deveres funcionais (como sucedeu in casu).
No caso vertente, tendo em conta que o princípio da legalidade também vale para as infrações disciplinares, valendo, também aqui a proibição da analogia contra reum, a conduta assacada ao autor, mesmo com a errada imputação do elemento subjetivo como referido e demonstrado adrede, não é subsumível a nenhuma das alíneas dos artigos 83.º G, H ou I do EMJ.
Não obstante, a entidade demandada decidiu considerar que a lei mais favorável para o autor era o anterior EMJ e, desse modo, aplicou-lhe a mesma pena que lhe havia sido aplicada (20 dias de multa) em lugar da pena proposta no projecto inicial (4 dias de multa).
Contudo, sustenta o autor que a redação anterior do EMJ anterior é tudo menos mais favorável para o autor. Assim é porque, nos termos dos artigos 49.º da CDFUE, 7.º da CEDH, 29.º da CRP e 1.º, n.º 3, do Código Penal (aplicável ex vi artigo 83.º-E do EMJ), é proibido o recurso à analogia para qualificar um facto como infração disciplinar ou determinar a pena que lhe corresponde (proibição de analogia contra reum). Sendo certo que foi isso que sucedeu in casu, porquanto a conduta do autor, contrariamente ao sustentado pela entidade demandada, não se subsume na previsão do art. 83.º-H, n.º 1, alínea e), como se depreende do cotejo dessa previsão com a do art. 83.º-H, ambos do EMJ. Deste modo, conclui o autor, a entidade demandada, para tentar justificar a manutenção da pena aplicada na deliberação de 29-01-2019, entretanto anulada por este Tribunal, viola de forma grosseira a proibição da analogia contra reum.
Por outro lado, ainda que se admitisse que a conduta do autor constituiria uma infração disciplinar à luz do anterior EMJ, o que é certo é que, de modo algum o constitui à luz do novo EMJ (salvo, como se disse, com o recurso à analogia contra reum incorrida pela entidade demandada). E, como resulta dos artigos 29.º da CRP, 2.º, n.º 2, do Código Penal (aplicável ex vi art. 83.º-E do EMJ), 49.º da CDFUE e 7.º da CEDH que o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infrações, e que, se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos disciplinares, estaríamos confrontados in casu com uma situação análoga à da «despenalização», pelo que não poderia jamais o autor ser punido disciplinarmente.
Por outro lado ainda, o autor alega que a entidade demandada tenta credibilizar a errada aplicação da lei mais favorável construindo uma tão grande gravidade completamente desprovida de fundamento, invocando – para além de inexistente, infundada (por ausência de provas nesse sentido) e intenção imputada ao demandante –, os antecedentes disciplinares (recorde-se, uma advertência por factos ocorridos há 6 anos), o facto de o autor não ter admitido os elementos subjetivos da infração.
Aduz o demandante que, “[…] num cenário igualmente hipotético, mesmo que se admitisse que a conduta assacada ao A. integrava (que não integra) o artigo 83.º-H, n.º 1, alínea e), do EMJ, de modo algum teria uma gravidade como aquela que se quer fazer crer na douta deliberação impugnada, pelo que a aplicação de uma pena de transferência ou de suspensão sempre seriam inequivocamente excessivas, o que imporia a aplicação de uma pena de multa, que, nos termos do novo EMJ não poderia ir além dos 6 dias, o que sempre seria mais favorável do que os 20 dias de multa aplicados; daí que, nesse cenário hipotético, a douta deliberação impugnada, também, violaria o artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, pois teria aplicado (como aplicou) a lei menos favorável”.
Por último, ainda que assim não se entendesse, “afigura-se claro e inequívoco que não poderia o autor ter agido de modo distinto, uma vez que o mesmo estava até a cumprir o dever de pontualidade a que estava obrigado por virtude do preceituado no artigo 73.º, n.ºs 2, alínea j), e 11.º, da LTFP (cuja violação afectaria até o Senhor Escrivão Auxiliar CC, que, recorde-se, já estivera na sala de audiência e voltara para a mesma e ao qual não era exigível que fizesse uma terceira verificação da presença dos intervenientes processuais), pelo que, parece inegável que sempre haverá que concluir que se verificam até estas duas circunstâncias dirimentes da sua eventual responsabilidade disciplinar […] previstas no artigo 190.º, n.º 1, respectivamente alíneas d) e e), da LTFP, a saber: a não exigibilidade de conduta diversa e o cumprimento de um dever (o de pontualidade, sem cujo cumprimento até a organização do serviço do Senhor Escrivão Auxiliar poderia vir a resultar afetada negativamente), o que terá sido, julga-se, olvidado pelo réu. Ora, isto, também, não foi tido em consideração na douta deliberação impugnada, a qual padece até do vício de omissão de pronúncia (que ora também se invoca) sore a existência ou não de circunstâncias dirimentes da responsabilidade disciplinar, limitando-se a versar sobre as atenuantes desta (cfr. fls. 38 a 41), o que desde já se invoca também – o que acarreta a anulação da douta deliberação impugnada (cf. art. 163.º do CPA)”.
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Pretende o autor fazer valer a tese de que a deliberação impugnada é inválida por aplicar o regime do EMJ anterior à redacção atribuída pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto, e faz assentar o argumentário tendente a demonstrar a sua tese em quatro premissas fundamentais.
A primeira premissa de que parte o autor é a de que, face à tipificação das infracções disciplinares e a sua recondução às penas nele previstas que passou a consagrar-se nos artigos 83.º-G, H e I do EMJ após a redacção que entretanto lhe foi atribuída pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto, ou a conduta é subsumível a alguma das alíneas desses artigos - e, por isso, constituirá infração -, ou não o sendo, não constitui qualquer infracção.
Para o demandante, portanto, as infrações disciplinares são objectivas, pelo que deixaram de poder resultar de interpretações dos deveres funcionais (como sucedeu in casu).
Todavia, não lhe assiste razão nesta premissa. A asserção que ora efectuamos era particularmente válida à luz da redacção do EMJ anterior àquela que lhe foi atribuída pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto, assim como é pertinente e válida no âmbito genérico da LGTFP. Não se divisam argumentos para não lhe estender pertinência e validade mesmo à luz da actual redacção do EMJ.
A dilucidação desta questão postula que se clarifiquem as exigências atinentes à tipicidade de infracção, que se fazem sentir de forma muito diversa, e com intensidades igualmente distintas, em dois domínios sancionatórios autónomos: o penal e o disciplinar. Eis o escopo das linhas que se seguem, para o que efectuaremos preliminarmente um excurso pela doutrina da especialidade, primeiro, e pela jurisprudência entre nós mais autorizada nesta matéria, depois.
Para Ana Fernanda Neves “entre o procedimento disciplinar e o processo penal (e os processos de apuramento de outras formas de responsabilidade) não existe […] consumpção, por serem diferentes os fundamentos, o recorte da relação jurídica pertinente e os fins» («O Direito da Função Pública», in AA.VV., Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. IV, 2010, Almedina, p. 527).
A mesma autora, de resto, dedica considerável atenção às relações entre direito criminal e direito disciplinar de direito público, seja na vertente substantiva, seja na vertente adjectiva, identificando pontos de identidade mas denunciando os pontos de autonomia entre um e outro (O Direito Disciplinar…, volume II, cit., pp. 157 a 212). As principais ideias recolhidas pela autora na sua dissertação são pela própria enunciadas, em jeito de síntese conclusiva (idem, ibidem, pp. 241-243), nos seguintes termos:
O Direito disciplinar da função pública é qualitativamente diferente do Direito penal.
O Direito penal protege os valores correspondentes aos interesses comuns essenciais da comunidade estadual: bens jurídicos fundamentais para o livre desenvolvimento ético e social da pessoa e bens jurídicos organizativos, sociais e colectivos, que asseguram a convivência comunitária).
A um núcleo estável de punição penal junta-se a estabilidade de critério na delimitação do objeto da punição penal. Justifica-se pela dignidade penal dos bens jurídicos protegidos e pela necessidade e eficácia da tutela penal
A esfera de valores protegidos pelo Direito disciplinar respeita às relações jurídicas de emprego no seio de uma pessoa colectiva pública.
São refracções da capacidade funcional, prestativa e imparcial da Administração Pública.
O Direito penal visa fundamentalmente a prevenção da prática do crime, na perspectiva sobretudo da reinserção social do indivíduo que o praticou.
O Direito disciplinar da função pública apela a uma deverosidade funcional e organizacional, delimitada pela relação jurídica de emprego e pelos deveres e obrigações que a traduzem.
A intervenção disciplinar justifica-se pela necessidade de assegurar as obrigações e os deveres do trabalhador na relação jurídica de emprego público.
O Direito disciplinar é, como o Direito penal, direito sancionatório ou punitivo [mas, ao] contrário do Direito penal, não o é exclusivamente. Tem também uma dimensão regulativa e uma dimensão premial.
[…]
Os princípios da legalidade e da tipicidade são princípios do Direito disciplinar e do Direito penal, encontrando neste a sua expressão modelar e naquele uma menor densidade.
Também Raquel Carvalho denuncia essa diversidade, esclarecendo que, “as infracções disciplinares não são típicas. O legislador, e bem, apenas enuncia tipologias de factos (e não factos típicos) que podem guiar o superior hierárquico na densificação dos conceitos legais. Optou, portanto, e em consequência o legislador por conceder poderes discricionários ao órgão competente para este efeito. Trata-se de matéria em que os titulares dos órgãos administrativos é que estão melhor posicionados para avaliar do comportamento do trabalhador perante os deveres funcionais gerais e, em particular, perante os deveres funcionais especiais. Cria então o Legislador um domínio de reserva da Administração” (op. cit., pp. 72-73).
No mesmo sentido e mais desenvolvidamente até, Paulo Veiga e Moura / Cátia Arrimar (op. cit., pp. 541-544) esclarecem o seguinte:
“A infracção disciplinar assume-se, porém, como uma infracção atípica, sendo esta justamente uma das características que a distinguem do ilícito criminal.
Na verdade, por força do princípio da legalidade consagrado no art. 29.º da Constituição e no art. 1.º do Código Penal, só pode ser qualificado e punido como crime o comportamento que corresponda em todos os seus elementos ao que se encontra descrito na lei vigente à data da prática daquele comportamento. O direito criminal enumera tipos de crimes, o que pressupõe que haja uma predeterminação normativa das condutas ilícitas, efectuada através de preceitos legais que, sem qualquer margem para dúvidas, permitam aferir quais os comportamentos que podem ser qualificados como crimes e quais as penas aplicáveis a tais comportamentos. Isso implica a formulação de tipos legais de crime, onde se descrevem detalhadamente todos os elementos constitutivos do comportamento punido por lei, de tal forma que, se não houver uma total correspondência entre os factos praticados pelo agente e os tipificados na norma incriminadora, não ocorre crime nem há lugar à aplicação de qualquer pena.
Em sede disciplinar, não obstante funcionar igualmente, como adiante se verá, o princípio da legalidade, não é possível afirmar que as exigências da tipicidade valham com o mesmo rigor que em sede criminal (v., neste sentido, o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 229/2012), pelo que vem-se entendendo que a infração é atípica, […]
Significa isto que a infracção disciplinar decorre mais da violação de um dever e menos da adopção de uma conduta descrita na lei (descrição essa que pode nem sequer ser efectuada), pelo que a lei enumera os deveres que impendem sobre o trabalhador público e considera ilícito o comportamento que atente contra tais deveres, mesmo que a conduta adoptada não esteja descrita na previsão de qualquer preceito.
A inexistência de tipos rígidos ou definidos com densidade suficiente é regra geral em todo o direito comparado e encontra a sua justificação na incessante busca de eficácia por parte da Administração, seguramente incompatível com a previsão e enumeração de todas as potenciais formas de violação dos vários deveres por parte dos mais diversos trabalhadores públicos, pelo que a tipicidade plena em sede disciplinar conduziria a uma petrificação nada desejável, impedindo a punição das condutas lesivas do interesse público e comprometedoras da eficácia do aparelho administrativo.
[…]
Resultando a infracção disciplinar única e simplesmente da adopção de uma conduta desconforme a um dever enunciado na lei — o que denota que a tipicidade da infracção se limita à descrição genérica do dever que não pode deixar de ser respeitado - ,todos os comportamentos que atentem contra o conteúdo de tais deveres são ilícitos, o que significa que os diversos “tipos” enunciados nas diversas alíneas dos artigos 185.º, 186.º, 264.º, n.º 3 e 297.º são meramente exemplificativos, não passando de exemplos-padrão ou de arquétipos de condutas violadoras de deveres disciplinares.
Refira-se, aliás e em bom rigor, que a tipificação efectuada naquelas alíneas nada tem a ver com a enumeração dos possíveis ilícitos disciplinares - pelo que estes nunca se poderiam restringir aos comportamentos ali tipificados -, mas antes com os possíveis comportamentos a que podem ser aplicadas as diversas penas legalmente previstas, pelo que, em bom rigor, o que no máximo se poderia questionar não é se existem outras infrações para além das ali mencionadas mas, tão só, se as penas ali descritas apenas podem ser aplicadas a tais condutas”.
É, de resto, já longa “ a tradição legislativa […] de não tipicizar a ilicitude dos factos”, como o denunciaram as vozes da doutrina que se debruçaram sobre esta matéria. Hoc sensu, vide António Esteves Ferminano Rato, “Reflexões sobre o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local: o problema da tipicidade de certas faltas disciplinares: as sujeitas a aplicação de penas graves”, Direito Administrativo: revista de atualidade jurídica, n,º A.2 n.7, março-abril 1981, pp. 75 ss.; LEAL-HENRIQUES, op. cit., p. 35¸ Luís Vasconcelos Abreu, Para o Estudo do Procedimento Disciplinar no Direito Administrativo Português Vigente: As Relações com o Processo Penal, Almedina, 1993, pp. 27 a 32).
Já Vítor Faveiro afirmava que, “na maior parte dos casos, as leis não especificam os deveres, limitando-se a definir as funções e os fins do Serviço ou Organização, por forma a caber sempre no conceito de dever tudo aquilo que, sendo legítimo, se mostre necessário à realização dos respetivos fins” («A Infração Disciplinar», Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Separata do Boletim da DGCI n.os 32-33 e 34-35, 1962, p. 36). Daí que a infracção disciplinar seja toda aquela que resulte da “[…] violação ou ofensa de deveres reportados à função ou ao interesse do serviço, deveres que na sua maioria são inominados, sem individualização e sem predeterminação dos factos ilícitos, ou enumeração de elementos suficientes para um conceito de tipicidade […]» (idem, ibidem, p. 37). E concluía o mesmo autor, mais adiante, que «a infracção disciplinar não carece da formulação de uma tipologia de factos lícitos [sendo] constituída por toda e qualquer violação de deveres inominados» (idem, ibidem, p. 60).
E, como também ensinava Marcello Caetano (Manual …, vol. II, cit., p. 810), “[…] é disciplinarmente ilícita qualquer conduta do agente que transgrida a concepção dos deveres funcionais válida para as circunstâncias concretas da sua posição de actuação». E, mais adiante: “pode normalmente ser qualificada como infracção disciplinar qualquer conduta de um agente que caiba na definição legal: a infracção disciplinar é atípica”.
De tal sorte se sedimentou tal orientação normativa, com respectiva reverberação na dogmática lusa, que mesmo noutros ramos de direito (seja no Direito Penal, seja mesmo no Direito Constitucional) algumas sensibilidades doutrinárias deram conta das menores exigências de tipicidade no direito disciplinar.
Assim, como diz Américo Taipa de Carvalho (Direito Penal, Parte Geral, 2.ª ed., 2008, Almedina, p. 147), “diferentemente do direito penal, e até do direito de ordenação social, o direito disciplinar utiliza, na definição das infracções disciplinares, a técnica da cláusula geral com enumeração exemplificativa, excepto no caso da menos grave das infracções disciplinares em que há apenas a cláusula geral”.
Mesmo os tratadistas de Direito Constitucional reconhecem que “ a regra da tipicidade das infracções, corolário do princípio da legalidade, consagrado no n.º 1 do artigo 29.º (“nullum crimen, nulla poena, sine lege”), só vale, “qua tale”, no domínio do direito penal, pois, nos demais ramos do direito sancionatório (“maxime”, no domínio do direito disciplinar), as exigências da tipicidade fazem-se sentir em menor grau, não tendo as infracções que ser inteiramente tipificadas, […]» (Jorge MIRANDA / Rui Medeiros, «Artigo 47.º», Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I. Introdução geral. Preâmbulo. Artigos 1.º a 79.º, 2.ª edição, 2010, Coimbra Editora, pp. 968 e 969).
Essa abertura conceptual foi já abordada pelos órgãos de cúpula das diversas jurisdições nacionais.
Assim foi, desde logo, pelo Tribunal Constitucional, a propósito de uma suposta inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade na vertente da derrogação da tipicidade sancionatória, por apelo a um paralelismo com o princípio da tipicidade da lei penal. E se, num primeiro momento se pronunciou no sentido de que as normas de direito disciplinar que prevejam medidas expulsivas (maxime a pena de demissão) têm de conter um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos a que elas podem aplicar-se (Acórdão n.º 666/94, de 14-12-1994, processo n.º 307/91), o Tribunal Constitucional viria entretanto a mitigar o juízo de censura quanto à tipicidade disciplinar, nomeadamente reconhecendo que “a caracterização do ilícito disciplinar, de modo a desejavelmente poder abranger uma multiplicidade de condutas censuráveis, exige, por vezes, o uso de conceitos indeterminados na definição do tipo”, sendo importante que a norma contenha “critérios de decisão para a aplicação da sanção” (Acórdão n.º 384/2003, de 15-07-2003, processo n.º 40/03). E, mais recentemente até (Acórdão n.º 229/2012, de 12-05-2012, processo n.º 82/10), o mesmo Tribunal Constitucional, reconhecendo ser essa a característica do direito disciplinar, esclareceu não merecer nenhuma censura, à luz da CRP, a técnica legislativa vigente no Direito Disciplinar.
Fê-lo nos seguintes termos:
“Poderia, porventura, censurar-se a técnica de definição das infracções através do incumprimento de “deveres” em vez da indicação de “factos”. Mas é a primeira que é comum a todo o direito disciplinar. E isto porque ela permite maior amplitude na apreciação dos factos (que podem revelar-se mais ou menos complexos) em vista das exigências de adequação material da sanção disciplinar.
Não se pode afirmar que as exigências de tipicidade valham no domínio disciplinar com o mesmo rigor que no direito criminal. Aliás nem sequer existe no artigo 29.º da Constituição, que se refere às garantias substantivas do direito criminal, um preceito semelhante àquele que existe no artigo 32.º a respeito das garantias processuais, alargando-as, com as necessárias adaptações, a todos os outros processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10). Ainda assim, deve entender-se que, pelo menos no que respeita às infrações mais graves, devem evitar-se conceitos demasiado vagos na definição de tais infrações. […]. No domínio disciplinar mais não se pode exigir.
[…]
Na verdade, em matéria de punição criminal exige-se não só a tipicidade das infracções e das penas, como se exige também uma conexão clara entre ambas (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, p. 495). Uma pessoa só pode sofrer uma pena “cujos pressupostos estejam fixados em lei anterior” (artigo 29.º n.º 1, da Constituição). […].
Este facto torna-se mais notório pelo contraste com o novo Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro, o qual fixa uma ligação clara entre as infrações e as penas, ou, pelo menos, entre as penas mais graves e os respetivos pressupostos. Delimita, pois, os pressupostos específicos de cada um dos tipos de penas mais graves (artigos 16.º a 19.º).
É necessário sublinhar que aquilo que está aqui fundamentalmente em causa é a questão da existência ou não de um princípio de tipicidade em relação ao direito disciplinar que inclua a conexão directa entre as infrações e as penas.
Ora um tal princípio resulta, no que respeita ao direito criminal, do artigo 29.º, n.º 1, e do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, que exigem a ligação da “sentença criminal” e das “penas” a determinados “pressupostos” que lhes estejam referidos. Mas não existe apoio constitucional semelhante no que respeita ao direito disciplinar: desde logo, o teor da alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, ao contrário da mencionada alínea c), não aponta para a mesma exigência de conexão no que respeita a sanções disciplinares e seus pressupostos. E, como vimos, não há no artigo 29.º da Constituição, que se refere às garantias substantivas do direito criminal, um preceito semelhante ao artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, que alarga, com as necessárias adaptações, as garantias em processo penal a todos os outros processos sancionatórios.
Não é, pois, possível fazer uma simples transposição do princípio da tipicidade criminal, em todo o seu rigor garantístico, para o domínio meramente disciplinar e, em especial, para o domínio do direito público disciplinar.
[…]
É verdade que deve haver uma equiparação tendencial sob diversos aspectos, ou a respeito de diversos princípios. Neste sentido, dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., p. 498): “É problemático saber em que medida é que os princípios consagrados neste artigo são extensíveis a outros domínios sancionatórios. A epígrafe “aplicação da lei criminal” e o teor textual do preceito restringem a sua aplicação directa apenas ao direito criminal propriamente dito (crimes e respectivas sanções). Há-de, porém, entender-se que esses princípios devem, na parte pertinente, valer por analogia para os demais domínios sancionatórios, designadamente, o ilícito de mera ordenação social e o ilícito disciplinar.»
Contudo, logo de seguida, ao esclarecerem os princípios que são concretamente aplicáveis nos domínios sancionatórios fora do âmbito penal, Gomes Canotilho e Vital Moreira excluem o princípio da tipicidade (é, aliás, o único princípio que excluem). Dizem literalmente: «Será o caso do princípio da legalidade lato sensu (mas não o da tipicidade), da retroactividade, da aplicação retroactiva da lei mais favorável, da necessidade e proporcionalidade das sanções.» (Ob. cit., p. 498.)”.
Também o Supremo Tribunal Administrativo vem afirmando que o princípio da tipicidade, particularmente em relação às penas não expulsivas, não vale no direito disciplinar com intensidade idêntica à que é reclamada pelo princípio da legalidade na intervenção penal, não sendo, como tal, possível fazer uma simples transposição do princípio da tipicidade penal, em todo o seu rigor garantístico, para o domínio meramente disciplinar e, em especial, para o domínio do direito público disciplinar. Mais afirma aquele Tribunal que no direito disciplinar — por estar ligado à realização das específicas necessidades e interesse do serviço público, tutelando o vínculo específico de lealdade, diligência e eficácia no desempenho de funções no âmbito daquele serviço —, diversamente do que se passa no direito penal, utiliza-se, na definição das infracções disciplinares, a técnica da cláusula geral com enumeração exemplificativa, mediante a definição das infrações dos magistrados através do incumprimento de «deveres» em vez da indicação de “factos”, considerando-se ilícito o comportamento que atente contra tais deveres, e isso mesmo que a conduta adoptada não esteja descrita na previsão de qualquer preceito. Neste sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos de 11-11-2004 (proc. n.º 957/02), de 22-02-2006 (proc. n.º 0219/05), de 23-05-2006 (proc. n.º 0957/02 - Pleno), de 23-09-2010 (proc. n.º 058/10) e, mais recentemente, de 16-03-2017 e de 28-03-2019 (ambos proferidos no âmbito do proc. n.º 0343/15.9BALSB, sendo o primeiro da 1.ª secção de contencioso administrativo e o segundo do Pleno da mesma secção), todos acessíveis online in http://www.dgsi.pt/jsta.
E é também esse o sentido da orientação reiterada e firme da Secção de Contencioso deste Supremo Tribunal de Justiça, que vem reconhecendo que o direito disciplinar tem natureza e finalidades diversas do direito criminal e daí que naquele, contrariamente ao que sucede neste, se admita em qualquer ilícito o estabelecimento da culpabilidade do agente a título de mera negligência, bem como a existência de deveres inominados ou atípicos, para permitir à Administração atingir os fins que lhe competem e não deixar impunes condutas disciplinarmente relevantes, com o sacrifício da igualdade e da justiça, que a previsão de tipos legais fixos e concretos possibilitaria. É, assim, disciplinarmente ilícita qualquer conduta do agente que transgrida a concepção dos deveres funcionais válida para as circunstâncias concretas da sua posição de actuação.
De tal sorte que se deve reconhecer que “[…] a infracção disciplinar é caracterizável como sendo genérica e atípica – pois convoca uma série de potenciais comportamentos que têm como denominador comum a violação dos deveres funcionais aludidos […] –, justificando‑se a maior maleabilidade do conceito ali vertido pela multiplicidade de condutas que podem ser tidas como contrárias a esses deveres e pela impossibilidade de os abarcar num tipo disciplinar fechado ou de os descrever por outra forma que não a mera referência a um determinado dever». Neste sentido, vejam-se os Acórdãos de 31-03-2004 (processo n.º 03A1891), 26-02-2014 (proc. n.º 2/13.2YFLSB), 16-12-2014 (proc. n.º 49/14.6YFLSB), 04-05-2017 (proc. n.º 72/16.6YFLSB), 22-01-2019 (proc. n.º 77/18.2YFLSB) e de 21-03-2019 (proc. n.º 78/18.0YFLSB), todos acessíveis in http://www.dgsi.pt/jstj.
Esta concepção de uma menor exigência da tipicidade ao nível disciplinar não foi substancialmente alterada pela entrada em vigor da Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto. É certo que esta lei introduziu alterações de relevância não despicienda no EMJ, designadamente ao nível da regulação da responsabilidade disciplinar dos magistrados judiciais. Nomeadamente, não pode deixar de impressionar a inclusão de um número de condutas tipificadas nos artigos 83.º-G, 83.º-H e 83.º-I como exemplos de infrações muito graves, graves e leves.
Porém, sem que se possa negar pertinência a esta constatação, não podemos deixar de tomar como ponto de partida normativo para a definição de infracção disciplinar a própria noção que surge consagrada no art. 82.º do EMJ, na sua redacção vigente, nos termos do qual “constituem infracção disciplinar os actos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos princípios e deveres consagrados no presente Estatuto e os demais actos por si praticados que, pela sua natureza e repercussão, se mostrem incompatíveis com os requisitos de independência, imparcialidade e dignidade indispensáveis ao exercício das suas funções”.
Da definição legal consagrada resultam os seguintes elementos essenciais da infração disciplinar: (i) o facto/acto (acção ou omissão), praticado por magistrado judicial; (ii) a ilicitude da conduta, traduzida no cometimento de comportamento que viole princípios e deveres consagrados no Estatuto e os demais actos por si praticados que, pela sua natureza e repercussão, se mostrem incompatíveis com os requisitos de independência, imparcialidade e dignidade indispensáveis ao exercício da judicatura; e (iii) a culpa do agente.
Contrariamente ao sustentado pelo autor, portanto, continua a exigir-se como elemento indissociável da infracção disciplinar uma violação de um concreto dever funcional, ainda que não reportado a uma conduta especificamente tipificada. Nem poderia ser de outra forma, mesmo ao nível do EMJ, posto que, como adverte o Tribunal Constitucional, “o estatuto disciplinar dos magistrados judiciais […] não pode deixar de pressupor, por parte dos agentes, consciência aguda dos deveres profissionais cujo incumprimento determina a aplicação da sanção […]” (cf. Acs. nºs 351/2011 e 413/2011).
Assim, “as infrações disciplinares, antes de assumirem uma determinada tipologia [leve, grave ou muito grave], hão-de preencher o conceito que decorre do art. 82.º: têm de ser actos, mesmo que meramente culposos, imputados a (praticados por) magistrados judiciais, violadores dos princípios ou deveres estatutários ou outros actos que, pela sua natureza e repercussão, se revelem em concreto incompatíveis com os requisitos de independência, imparcialidade ou a dignidade que se considera indispensável ao exercício das suas funções” (Carlos Castelo Branco/José Eusébio Almeida, Estatuto dos Magistrados Judiciais Anotado e Comentado, Almedina, 2020, p. 604).
Aliás, a técnica exemplificativa prevista em cada um dos artigos 83.º-G, 83.º-H ou 83.º-I do EMJ decorre do próprio proémio de cada preceito, com a inclusão do advérbio de modo “nomeadamente” antes do arrolamento exemplificativo das diversas alíneas. É essa a técnica legislativa corrente entre nós, como é consabido.
Daqui decorre, em suma, o seguinte: (i) por um lado, as condutas enunciadas em cada uma das alíneas, por si só, não justificam a perseguição disciplinar, posto que só assim será se tal conduta também se subsumir igualmente, não só na previsão genérica do art. 82.º, como na previsão do corpo do n.º 1 de cada um daqueles preceitos, consoante o caso; e (ii) por outro lado, ainda que uma determinada conduta não encontre correspondência literal em nenhuma das alíneas arroladas nos artigos pertinentes, se se subsumir no corpo do n.º 1 de qualquer dos artigos e na previsão genérica do art. 82.º do EMJ, incorrerá o magistrado que a tiver adoptado em responsabilidade disciplinar.
Em bom rigor, portanto, as diversas alíneas enumeradas em cada um dos preceitos não traduzem tipos fechados e exaustivos, em si mesmos, de infracções disciplinares. O que traduzem, antes, são condutas susceptíveis de, dependendo da ponderação casuística do respectivo enquadramento e circunstancialismo, representar a violação de deveres funcionais, conquanto preencham as previsões do corpo do respectivo artigo.
Infração disciplinar é, por conseguinte, mesmo à luz da actual redação do EMJ, a violação de um dever; não a concreta adoção de uma conduta descrita na lei. O Estatuto continua, portanto, a seguir a técnica legislativa há muito prosseguida e reconhecida pela doutrina: previsão de uma cláusula geral (em que todos os comportamentos que atentem contra o conteúdo dos deveres são ilícitos), seguida de mera enumeração exemplificativa concretizadora, o que significa que os diversos “tipos” enunciados nas diversas alíneas dos artigos 83.º-G, 83.º-H e 83.º-I são meramente exemplificativos, não passando de exemplos-padrão ou de arquétipos de condutas violadoras de deveres disciplinares.
Dito por outras palavras: o que é tipificado no EMJ na sua actual redação, não são as infracções, em si mesmas, mas antes a gravidade associada a cada uma delas, indiciada por uma série de condutas arroladas num elenco exemplificativo, mas não exaustivo nem preclusivo no labor interpretativo e densificador do CSM, primeiro, e do STJ, depois (em caso de impugnação contenciosa da deliberação punitiva daquela autoridade administrativa).
Integra infracção disciplinar, pois, a violação de quaisquer dos “deveres gerais” dos magistrados judiciais (inclusive os novos deveres expressamente consagrados nos artigos 6.º-C a 8.º-A do EMJ, na sua redacção actual). Infringir disciplinarmente é, consequentemente, desrespeitar um dever geral ou especial decorrente da função da judicatura que se exerce. E este desrespeito é ilícito na medida em que consubstancia a negação de “valores” inerentes ao exercício dessa função, isto é, a negação de interesses superiormente protegidos com vista à boa e cabal realização da respectiva actividade pública, que, neste caso, é a de magistrado judicial.
Como se refere no Acórdão do STA de 17-03-2017 (proc. n.º 0343/15.9BALSB, supra citado), “os “deveres”, para fins disciplinares, colhem relevância e legitimidade sobretudo a nível da sua “causa final”, pois visam assegurar um bom e regular funcionamento dos respectivos serviços. E daí que o direito disciplinar encontre mais uma legitimidade teleológica do que ontológica, isto é, louva-se sobretudo na “proteção da capacidade funcional” dos respetivos serviços públicos e seu “correcto exercício”.
Em suma: infringir disciplinarmente não é mais do que desrespeitar um dever geral ou especial decorrente da função que se exerce. Doutrina e a jurisprudência, como vimos, são unânimes em considerar que pode normalmente ser qualificada como infração disciplinar qualquer conduta de um agente que caiba na definição legal, uma vez que a infração disciplinar é atípica. Isso mesmo se deixa desde já estabelecido.
A segunda grande premissa de que parte o demandante é a de que, ainda que se admitisse que a conduta do autor constituiria uma infracção disciplinar à luz do anterior EMJ, o que é certo é que de modo algum o constitui à luz do novo EMJ. E, porque assim, resultando dos artigos 29.º da CRP, 2.º, n.º 2, do Código Penal (aplicável ex vi art. 83.º-E do EMJ), 49.º da CDFUE e 7.º da CEDH que o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infrações - e inclusive que, se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos disciplinares -, estamos confrontados in casu com uma situação análoga à da “despenalização”, pelo que não poderia jamais o autor ser punido disciplinarmente.
De novo, não logra o autor fazer vingar a sua tese.
Tenhamos presente que na acusação e no relatório final imputavam-se ao ora autor duas infracções com a violação de dois deveres distintos: a violação do dever de correcção e a violação do dever de administração de justiça.
Entretanto, na deliberação impugnada deu-se como não procedente a imputação da alegada violação do dever de correcção, mantendo-se apenas a imputação de uma suposta violação do dever de administração de justiça.
Ora, tal dever estava consagrado no art. 3.º EMJ na redacção vigente à data da infracção, e assim se manteve à data da prolação da deliberação impugnada (já após a entrada em vigor da redacção atribuída pela Lei n.º 67/2019, de 24 de Agosto).
Vale isto por dizer, ao cabo e ao resto, que existia e manteve-se a previsão do dever supostamente infringido e violado, pelo que improcede a pretensão do autor no sentido de que estaríamos aqui confrontados com uma situação parecida com a “despenalização”.
A terceira tese propugnada pelo demandante é a de que o CSM, para tentar justificar a manutenção da pena aplicada na deliberação de 29-01-2019, entretanto anulada por este Supremo Tribunal, viola de forma grosseira a proibição da analogia contra reum. Para tanto, depois de aflorar a vexata quaestio da distinção entre analogia e interpretação extensiva (cuja admissibilidade também não é pacífica no que tange às normas sancionatórias), e alegando que o critério distintivo comummente aceite radica no mínimo de correspondência verbal ou, de acordo com a designação germânica, o sentido possível das palavras (pelo que, ultrapassado o mínimo de correspondência verbal ou o sentido possível das palavras, estamos perante uma situação de analogia, inequivocamente proibida em sede de normas sancionatórias positivas), o autor conclui que a entidade demandada, “para construir toda a argumentação do suposto tratamento “mais benévolo” para o A., afirma que, à luz do actual EMJ, a conduta caberia no artigo 83.º-H, n.º 1, alínea e), nos termos do qual constitui infracção grave “[o] incumprimento injustificado, reiterado ou revelador de grave falta de zelo profissional, dos horários estabelecidos para os actos públicos, bem como dos prazos estabelecidos para a prática de acto próprio do juiz, designadamente quando decorrerem seis meses desde o fim do prazo para a prática do acto”, quando, “[d]a mera leitura de tal norma, conclui-se sem dificuldade que a situação aí prevista é, apenas e só, a situação inversa da conduta assacada ao A., pelo que jamais em tempo algum, com um mínimo de objectividade, se pode subsumir a conduta de não aguardar pelos intervenientes que estavam atrasados e não comunicaram o seu atraso a uma norma que prevê a falta de cumprimento (pelo juiz e mais ninguém) dos horários estabelecidos para os actos públicos, bem como dos prazos estabelecidos para a prática de acto próprio do juiz».
Não o negamos: a redacção da alínea e) do n.º 1 do artigo 83.º-H do EMJ, à semelhança da alínea c) do art. 83.º-I, parece estar vocacionada para abranger situações diversas daquelas a que se reporta o caso dos autos. Uma leitura da parte final do preceito, nomeadamente quando aí se alude ao incumprimento injustificado “[…] dos horários estabelecidos para os actos públicos, bem como dos prazos estabelecidos para a prática de acto próprio do juiz, designadamente quando decorrerem seis meses desde o fim do prazo para a prática do acto”, permite-nos perspectivar que o que aí se pretende sancionar é o atraso ou o adiamento das diligências pelo próprio magistrado, bem como o incumprimento dos prazos previstos na lei processual para a prática dos demais actos pelo próprio juiz (prolação de despachos ou decisões).
Aliás, e como bem refere o autor, se dúvidas houvesse quanto ao facto de o artigo 83.º-H, nº 1, alínea e), se aplicar a situações de falta de pontualidade do juiz, o artigo 83.º-J dissipá-las-ia, ao estabelecer que “ a aferição do incumprimento injustificado previsto na alínea e) do artigo 83.º-H exige a ponderação concreta do volume e caraterísticas do serviço a cargo do juiz, incluindo o número de processo findos, as circunstâncias do exercício de funções, a percentagem de processos em que as decisões foram proferidas com atraso, bem como a ponderação, em concreto, sobre se, face a estas circunstâncias e às condições pessoais, teria sido razoável exigir ao magistrado comportamento diferente”.
Porém, nem por aqui logra o autor fazer vingar a sua tese.
É que, como vimos já, o que releva para o apuramento de uma infração disciplinar não é uma exacta conduta arrolada nas previsões exemplificativas de cada uma das alíneas dos artigos 83.º-G, H ou I, mas sim a previsão de violação, nos termos e condições previstas no n.º 1 de cada um desses artigos, de um concreto dever ou princípio estatutário.
Ora, como também tivemos oportunidade de deixar estabelecido, essa violação de um dever ou princípio foi expressa, especificada e concretamente enunciada na deliberação impugnada, reportando-se à violação do dever de administrar a justiça.
De referir que, tal como se depreende da leitura da deliberação impugnação, a censura disciplinar não se reporta à manifestação mais imediata ou típica dessa violação do dever de administrar a justiça — a saber, a reprovação por o aqui autor se ter abstido de julgar com fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da lei, ou em dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado (art. 3.º, n.º 3). Até porque, valha a verdade, se fosse esse o caso, a alínea invocada no acto sub judicio seria, não a do art. 83.º-H, n.º 1, alínea e), mas sim a do art. 83.º-G, n.º 1, alínea a), ambos do EMJ.
Ou seja, o que na deliberação impugnada se censura ao autor não é, pois, qualquer incapacidade, natural ou forjada, ou até premeditada, de decidir um dissídio. Pelo contrário, o que se censurou foi um alegado uso incorrecto da lei processual para, suprimindo a prova e assim contribuindo para «aligeirar» a fundamentação da decisão, lograr proferir sentença artificiosamente facilitada — ou, na formulação do relatório final de que se apropriou a deliberação em apreço, “por forma a evitar a realização de julgamento e o tempo e trabalho acrescido dele decorrente, tornando assim o mais simples possível o desfecho do caso, com decisões de facto e de direito assaz simplificadas”.
O que a deliberação impugnada censurou ao ora autor, por conseguinte, foi a conduta que consubstanciou, na prática, a postergação dos princípios e garantias associadas ao contraditório e à igualdade das partes.
Na verdade, a exigência de um processo equitativo e leal deve assegurar a cada uma das partes: (i) o poder de expor as suas razões de facto e de direito perante o tribunal antes que este tome a sua decisão; (ii) o exercício dessas faculdades em condições de igualdade, podendo cada uma das partes expor as suas razões perante o tribunal em condições que as não desfavoreçam em confronto com a parte contrária, pelo que deve não só observar-se um debate ou discussão entre os litigantes contrapostos, como também que seja garantido que cada um seja chamado a “dizer de sua justiça”, tanto nos processos declarativos, como nos executivos, maxime quando são deduzidas oposições à própria execução ou penhora (Ac. do TC n.º 335/95); (iii) a possibilidade de exercer “uma influência efetiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes de o tribunal decidir questões que lhes digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de umas e de doutras (cf,. Acs. [do Tribunal Constitucional] nºs 1185/96 e 1193/96) […]», não podendo as limitações à produção de prova ser arbitrárias ou desproporcionadas (cf. Acs. do TC n.os 209/95, 604/95 e 681/06) (Rui Medeiros, «Art. 20.º», Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I, cit., p. 443).
Como bem se vê, o que está em causa é a previsão do n.º 2 do art. 3.º do EMJ, segundo o qual “na administração da justiça, os magistrados judiciais asseguram a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimem a violação da legalidade democrática, dirimem os conflitos de interesses públicos e privados e garantem a igualdade processual dos interessados nas causas que lhes são submetidas”.
Basta portanto a invocação deste dever, conquanto subsumido igualmente na previsão do corpo do n.º 1 do art. 83.º-H (“acto praticado com dolo ou negligência grosseira que revele grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres funcionais”), para que se verifique a infração disciplinar, subsumindo-se ou não em qualquer das alíneas arroladas a título exemplificativo no mesmo preceito, nos termos estabelecidos.
E a entidade demandada considerou que a conduta do autor se subsumia naquela previsão porque “está em causa uma conduta dolosa, por motivos censuráveis – “com o propósito de não despender tempo com a diligência de julgamento e tomar assim o mais simples possível a decisão de mérito da causa” - e em relação a um processo em que as consequências da sua conduta se mostram particularmente gravosas - sabendo que os indicados autos de execução n.° 2226/14,0T8LSB-A “não tinham alçada para recurso”».
Por fim, e mais decisivamente, sustenta o autor que, seja como for, a aplicação da lei mais favorável sempre implicaria a aplicação do EMJ na sua redacção actual, e não aquela que vigorava à data dos factos.
Revisitemos o argumentário do autor: “Por fim, o R. tenta credibilizar a errada aplicação da lei mais favorável construindo uma tão grande gravidade completamente desprovida de fundamento, invocando - para além de inexistente, infundada (por ausência de provas nesse sentido) e intenção imputada ao A. - , os antecedentes disciplinares (recorde-se, uma advertência por factos ocorridos há 6 anos), facto de o A. não ter admitido os elementos subjectivos da infração. No que concerne à não admissão do elemento subjectivo da infração, além de o A., enquanto arguido, não estar obrigado a assumir o que quer que se lhe impute, mais não faltaria que tivesse de admitir um tal elemento subjectivo que, para além de inexistente, resulta de uma dualidade de critérios totalmente “criada” pelo Senhor Inspetor e secundada pelo R. e de conjecturas inequivocamente infundadas mas essenciais para “justificar” a narrativa dos factos acolhida pela douta deliberação impugnada. No fundo, não é porque o CSM, por si ou por via dos seus Senhores Inspetores, imputa uma intenção a um Juiz que este está automaticamente obrigado a aceitá-la e a confessá-la, de modo a receber uma punição – ainda que injustificada – mais branda, como parece inferir-se da douta deliberação impugnada. Ora, num cenário igualmente hipotético, mesmo que se admitisse que a conduta assacada ao A. integrava (que não integra) o artigo 83º-H, nº 1, alínea e), do EMJ, de modo algum teria uma gravidade como aquela que se quer fazer crer na douta deliberação impugnada, pelo que a aplicação de uma pena de transferência ou de suspensão sempre seriam inequivocamente excessivas, o que imporia a aplicação de uma pena de multa, que, nos termos do novo EMJ não poderia ir além dos 6 dias, o que sempre seria mais favorável do que os 20 dias de multa aplicados; daí que, nesse cenário hipotético, a douta deliberação impugnada, também, violaria o artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, pois teria aplicado (como aplicou) a lei menos favorável”.
Este é o ponto com que, com efeito, maiores perplexidades se deparou ao CSM, tanto que a deliberação esteve longe de ser unânime quanto à aplicação do regime vigente à data dos factos (aos oito votos desfavoráveis, que advogaram a aplicação do regime actual, contrapuseram-se 8 votos favoráveis à solução que obteve vencimento, tendo sido determinante o sentido de voto do Presidente da entidade demandada, por ter voto de qualidade). A fundamentação da deliberação, neste ponto, não é feliz, e revela inclusive dificuldades insanáveis.
É sabido que, “[…] embora o artigo 29.º [da CRP] se refira somente à lei criminal, deve considerar-se que parte destes princípios (nomeadamente o da proibição da aplicação da lei retroactiva desfavorável) se aplicam também aos outros dois ramos do chamado direito público sancionatório: o direito de mera ordenação social e o direito disciplinar […]. No sentido da aplicação do princípio criminal da lei mais favorável também ao […] ilícito disciplinar vai o artigo 282.º, n.º 3, da Constituição” (Américo Taipa de Carvalho, «Art. 29.º», Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I, cit., p. 676).
Princípio básico da aplicação da lei no tempo nestas matérias é aquele que se extrai do disposto no n.º 4 do art. 2.º do Código Penal: aplicação do regime mais favorável em bloco, ou seja, aplicando o conjunto de todas as regras do regime vigente na data da prática dos factos ou, alternativamente, todo o regime ulterior.
O EMJ introduziu inúmeros preceitos inéditos com relevância disciplinar, embora nem sempre consagrando soluções inovadoras. Destacam-se os artigos 7.º-A a 8.º-A (relativos a deveres que não estavam expressamente previstos estatutariamente na redacção anterior, embora alguns deles já resultassem mutatis mutandis da LGTFP, como a imparcialidade, diligência, urbanidade), 83.º-A (que enunciam as vicissitudes extintivas da responsabilidade disciplinar), 83.º-B a 83.º-D (que reproduzem, no essencial, as soluções constantes do art. 178.º da LGTFP em matéria de caducidade e prescrição, que já antes era aplicável aos procedimentos disciplinares de magistrados judiciais ex vi art. 131.º do EMJ), 83.º-E (que altera o regime subsidiário, deixando de se aplicar subsidiariamente a LGTFP e privilegiando-se antes o CPA, mantendo-se a remissão para o CP, o CPP e os princípios gerais de direito sancionatório), 83.º-F a 83.º-J (estes sim, verdadeiramente inovadores, classificando infrações em muito graves, graves e leves e enunciando condutas susceptíveis de se subsumirem naquelas previsões, como vimos já), os artigos 84.º-A, 85.º-A e 87.º-A (que correspondiam aos artigos 190.º, 191.º e 192.º da LGTFP, que antes era aplicável ex vi art. 131.º do EMJ), o art. 85.º-A (que correspondia ao art. 191.º da LGTFP), os artigos 110.º-A e 111.º-A (que reproduziam soluções, ao nível de tramitação, que já estavam consagradas na LGTFP e eram, pois, susceptíveis de aplicação na redacção anterior ao abrigo da remissão do art. 131.º), o art. 120.º-A (previsão de audiência pública para apresentação de defesa após elaboração e notificação de relatório final), o art. 121.º-A (impugnação contenciosa da decisão punitiva, que pode abranger também a matéria de facto), os artigos 123.º-A e 123.º-B (processo de averiguação, para apurar se uma dada queixa ou participação é, ela mesma, susceptível de fazer incorrer o apresentante em responsabilidade disciplinar), 123.º-D (prazo do procedimento especial de inquérito), 124.º e 125.º (correspondiam a soluções anteriores da LGTFP quanto à tramitação de inquérito e sindicância e possibilidade de conversão em processo disciplinar), 131.º a 133.º (processo de reabilitação, que já resultava da LGTFP), 134.º e 135.º (registo e cancelamento do registo das sanções).
Além disso, renumeraram-se alguns preceitos, com ligeiras alterações na redacção (mas sem alterações significativas de regime).
Outros preceitos, nomeadamente ao nível da tramitação, viram a sua redacção alterada e com soluções de relevância não despicienda. Alguns exemplos: o art. 115.º, na redacção atual, passou a prever um prazo de instrução de 30 dias (antes era de 15), podendo ser prorrogável por mais 30 dias, em razão da especial complexidade (anteriormente poderia haver extensões do prazo em casos devidamente justificados, sem que se estabelecesse limite para a prorrogação); o actual art. 119.º abandona a necessidade de o arguido apenas oferecer, em sede de defesa, um número limite de 3 testemunhas por cada facto, embora preveja um número máximo global de 20 testemunhas, das quais 5 serão necessariamente ouvidas pelo instrutor.
Dito isto, a actual redacção, em termos abstratos, consagra ou não um regime sancionatório mais favorável do que a anterior?
Em sede de prescrição não houve alterações, porquanto o EMJ se limitou a consagrar o que já decorria da LGTFP.
Por seu turno, o estabelecimento e consagração de novos deveres poderia indiciar um agravamento. Todavia, em contrapartida a supressão da LGTFP como diploma subsidiário a atender em matéria disciplinar, ex vi actual art. 83.º-E do EMJ (que prevalece, neste ponto, sobre o disposto no art. 188.º do mesmo diploma), indicia a “desoneração” dos magistrados de observância da panóplia de deveres gerais que estão consagrados no art. 73.º daquela LGTFP (Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho).
Por outro lado, embora se denote um alargamento do prazo de que dispõe o instrutor em sede de instrução, antes de dedução de acusação ou de proposta de arquivamento, há indícios de que na actual disciplina da tramitação se acautelam mais efetivamente as garantias de defesa do arguido — nomeadamente em sede de defesa e de meios probatórios, como a possibilidade de oferecer testemunhas, ou ainda a possibilidade inovadora de requerer audiência pública. Acresce a consagração normativa da garantia contenciosa de estender à matéria de facto a impugnação judicial da decisão procedimental punitiva.
Por último, mesmo a nova classificação de infrações em muito graves, graves e leves, além de não traduzir uma alteração decisiva no esquema tradicional de previsão de uma cláusula geral seguida de mera enumeração exemplificativa concretizadora, como vimos já, também não permite, por si só, asseverar um agravamento da posição dos arguidos, na medida em que as sanções associadas à punição da infracção são, no essencial, idênticas — embora mereça destaque a supressão da sanção de inactividade e o “desagravamento” da moldura sancionatória da sanção de multa.
Tudo visto e sopesado, fazendo uma ponderação integral dos regimes antes e depois da alteração ao EMJ pela Lei n.º 67/2019, de 17 de Agosto, há indícios que militam em sentido moderadamente favorável à consideração de que a alteração legislativa poderia ser menos prejudicial à situação do arguido, no caso concreto.
Mas podemos e devemos aprofundar a apreciação, indagando (não em abstracto, mas em concreto) se a posição do autor, face ao juízo disciplinar da entidade demandada, ficaria mais favorecida com a aplicação em bloco da redação do EMJ vigente à data da infração ou à data da aplicação da sanção.
Pois bem, o CSM considerou que o autor praticou “conduta dolosa, por motivos censuráveis – “com o propósito de não despender tempo com a diligência de julgamento e tomar assim o mais simples possível a decisão de mérito da causa” - e em relação a um processo em que as consequências da sua conduta se mostram particularmente gravosas - sabendo que os indicados autos de execução n.° 2226/14,0T8LSB-A “não tinham alçada para recurso”.
Este é o ponto de partida para apurar qual a sanção aplicável em ambos os regimes potencialmente convocáveis.
À luz do EMJ na sua redacção actual, a conduta do arguido, qualificada nestes termos, subsumia-se na previsão da infração grave, traduzindo acto “com dolo ou negligência grosseira que revela grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres funcionais” (cf. art. 83.º-H, n.º 1, do EMJ).
Como tal, tendo praticado infracção grave, seria aplicável, à partida, uma sanção de multa, caso não se mostrasse necessária ou adequada, face às circunstâncias do caso, a aplicação de outra sanção disciplinar mais grave (cf. art. 99.º, n.º 1).
Essa sanção mais grave não seria in casu a sanção de transferência porque a conduta do autor não pôs em crise “a sua manutenção no meio social em que desempenha o cargo...” (art. 100.°, n.° 1), como a própria entidade demandada reconhece.
No limite, seria aplicável ao autor, em abstracto, a sanção de suspensão de exercício, entre 20 e 240 dias (art. 95.º), por força do disposto no art. 101.°, n.° 1, do EMJ, segundo o qual tal sanção se aplica a “infrações graves ou muito graves que revelem a falta de interesse pelo exercício funcional e manifesto desprestígio para a função jurisdicional, ou quando o magistrado judicial for condenado em pena de prisão”.
É, no entanto, não só muitíssimo discutível em abstracto, como efectivamente debatido nos autos, que a actuação do autor, ainda que possa traduzir infracção grave pelos motivos considerados pela entidade demandada, revele falta de interesse pelo exercício funcional e manifesto desprestígio para a função jurisdicional. Como tal, e tendo em atenção também as exigências de proporcionalidade que devem nortear a dosimetria da pena (e que configuram limites jurídicos à discricionariedade que se há de reconhecer ao CSM nesta matéria), não se prefigura que a entidade demandada tenha logrado demonstrar que ao autor tivesse de ser aplicável (embora pudesse sê-lo), no âmbito do EMJ na sua redacção vigente, a sanção de suspensão de exercício de funções.
Ou, dito por outras palavras, a entidade demandada não demonstra que, no caso concreto, não pudesse ser aplicável a pena de multa, nos termos do art. 99.º do EMJ, que é fixada em quantia certa e tem como limite mínimo o valor correspondente a uma remuneração base diária e como limite máximo o valor correspondente a seis remunerações base diárias (art. 93.º, n.º 1).
Importa agora efetuar o mesmo percurso valorativo à luz da redacção do EMJ vigente à data da instauração do procedimento disciplinar. Mas, esclareçamos desde já: por uma questão de rigor metodológico, importa fazê-lo, ao contrário do que o CSM fez, partindo da mesma e exata qualificação da conduta do autor que a entidade demandada fez à luz da redação vigente — isto é, partindo do princípio de que estamos perante uma “conduta dolosa, por motivos censuráveis – “com o propósito de não despender tempo com a diligência de julgamento e tomar assim o mais simples possível a decisão de mérito da causa” - e em relação a um processo em que as consequências da sua conduta se mostram particularmente gravosas - sabendo que os indicados autos de execução n.° 2226/14,0T8LSB-A “não tinham alçada para recurso”.
Trata-se, pois, ainda aqui de acto com dolo ou negligência grosseira que revela grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres funcionais.
À luz do EMJ na redacção anterior àquela que lhe foi atribuída pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto, nos casos de negligência grave ou de grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais ou quando o magistrado for condenado em pena de prisão, são aplicáveis as penas de suspensão de exercício e de inactividade (art. 94.º, n.º 1). Ao invés, a pena de multa apenas é aplicável a casos de (mera) negligência ou desinteresse pelo cumprimento dos deveres do cargo (art. 92.º).
Eis aqui, portanto, uma dificuldade na construção ensaiada no segmento da deliberação impugnada que aprecia o regime aplicável: se a entidade demandada considera a conduta do autor dolosa e grave, tem de, em coerência com tal qualificação, subsumir tal conduta às exactas previsões normativas em ambas as redações. Mas não foi isso que sucedeu: face à conduta detetada e por si qualificada nos termos que qualificou, como dolosa (ou, no mínimo, grosseiramente negligente) e grave, a entidade demandada (i) teria de aplicar ao autor a pena de suspensão (ou inactividade) à luz do EMJ na redacção anterior e (ii) não teria de (embora pudesse) aplicar pena superior a multa na redacção actual.
Ao invés, o que entendeu foi que poderia aplicar pena de multa na redacção anterior e teria de aplicar pena de suspensão na redacção actual.
Ora, o CSM dispõe de margem de discricionariedade na dosimetria concreta da pena, mas tem de ser coerente com a asserção e a qualificação da conduta do autor.
Dito por outras palavras: o CSM pode escolher a pena ou sanção que entenda mais adequada face à gravidade da ilicitude e conduta e ao grau de culpa do arguido; o que não pode pretender é que essa escolha redunde, face a um regime, na aplicação de uma pena de multa, inferior àquela que nem sequer correspondia rigorosamente à moldura sancionatória em abstrato aplicável (suspensão ou inatividade), e face a outro regime, não ponderar sequer aplicar a pena “simétrica” de multa, que já cabia no espectro de sanções aplicáveis, mantendo a perspectiva de que teria de aplicar a sanção mais grave.
De todo o modo, e ultrapassando a denunciada dificuldade e contradição patenteada na deliberação impugnada, sempre se refira adicionalmente que nunca a versão atual seria mais onerosa ou ablativa da esfera jurídica do autor do que a anterior, quer a entidade demandada elegesse as penas mais graves que poderiam ser aplicadas num e noutro regimes, quer as penas menos ablativas.
Senão, vejamos.
Se a entidade demandada, por entender que a conduta do autor mereceria pena ou sanção situada no limite superior do intervalo sancionatório em abstrato aplicável, nunca a versão actual seria mais onerosa ou ablativa da esfera jurídica do autor do que a anterior.
Mesmo que a entidade demandada entendesse ser aplicável a sanção de suspensão, a moldura sancionatória seria idêntica, estando compreendida entre 20 e 240 dias (cf. art. 89.º, n.º 2, na redacção anterior, e art. 95.º na redação actual). Mas, sendo rigorosa, congruente e coerente com a asserção que postulou - no sentido de que a conduta do autor mereceria, dentro da panóplia sancionatória, a mais gravosa possível -, à entidade demandada seria ainda possível, na redacção vigente à data da instauração do procedimento disciplinar, lançar mão da pena de inactividade, que não pode ser inferior a 1 ano nem superior a 2 (cf. art. 89.º, n.º 3, do EMJ então vigente) - previsão que deixou de ter qualquer paralelo na actual redacção.
A idêntica conclusão chegaríamos mesmo que a entidade demandada, ao abrigo da discricionariedade de que dispõe, «temperada» por exigências de proporcionalidade, entendesse ser de aplicar o limiar inferior do intervalo sancionatório em abstracto aplicável. Nesse caso, a sanção aplicada, traduzida na aplicação da pena de multa de 20 dias, à luz do regime do EMJ na redacção anterior à que lhe foi entretanto atribuída pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto, foi mais gravosa do que aquela que poderia ser aplicada à luz do regime vigente, posto que a pena de multa apenas poderia ser compreendida entre 1 e 6 remunerações diárias.
Por conseguinte, seja de que perspectiva se queira partir (ponderação em abstracto, ou ponderação em concreto tendo por referência os limites máximo e mínimo do intervalo sancionatório em ambos os regimes), concluímos que à situação do autor seria mais favorável a aplicação do regime actual do EMJ.
Ao entender diversamente, aplicando um regime mais desfavorável - e, em concreto, aplicando uma pena (a que rigorosamente nem sequer se subsumia a conduta do autor) que se revelou mais severa do que aquela que resultaria da aplicação da sanção “simétrica” no regime actual (essa sim, aplicável à conduta do demandante) -, a entidade demandada derrogou o comando constitucional do art. 29.º, n.º 4, da CRP, padecendo o acto impugnado e a sanção aplicada do vício de violação de lei.
Importa agora esclarecer quais os corolários a extrair do vício detectado.
O vício de violação de lei corresponde ao “vício de que enferma o acto administrativo, cujo objecto, incluindo os respectivos pressupostos, contrarie as normas jurídicas com as quais se devia conformar” (Marcello Caetano, Manual…, vol. I, cit., p. 501) ou à “discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis” (Diogo FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 4.ª edição, 2018, Almedina, p. 390; entre outros, os acórdãos o Supremo Tribunal de Justiça de 27-10-2009, 19-09-2012 e 05-02-2020, proferidos respectivamente nos processos nºs 2472/08, 10/12.5YFLSB e 12/19.0YFLSB, que anulou a primeira deliberação do CSM no âmbito da presente relação material controvertida).
O n.° 1 do artigo 163.° do CPA prevê que são “anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção”.
Não estando prevista a nulidade para o vício de violação de lei ora detectado, será este o desvalor jurídico associado à invalidade declarada.
Conforme supra referido, o regime da anulabilidade dos actos está previsto no artigo 163.° do CPA, sob a epígrafe “Actos anuláveis e regime da anulabilidade”, aí se estabelecendo que o acto anulável produz efeitos jurídicos, que podem ser destruídos com eficácia retroactiva se o acto vier a ser anulado por decisão proferida pelos tribunais administrativos ou pela própria Administração (n.º 2), mas também que “não se produz o efeito anulatório quando: a) [o] conteúdo do acto anulável não possa ser outro, por o acto ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível; b) [o] fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via; c) [s]e comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o acto teria sido praticado com o mesmo conteúdo» (n.º 5).
O artigo 163.°, n.° 5 do CPA procede assim à consagração legal no ordenamento jurídico português do mecanismo do aproveitamento do acto administrativo anulável ou da “economia do acto administrativo”. Assim a regra é que perante a anulabilidade do acto, a mesma produz efeitos anulatórios. Porém, em situações excepcionais previstas no n.° 5 do artigo 163.° do CPA, o legislador permite que esses efeitos anulatórios não se produzam.
A premissa nuclear de que se parte para excepcionar uma anulação é a de que o acto a anular teria, posterior e subsequentemente, de ser praticado com o mesmo sentido (Luís Heleno Terrinha, «Procedimentalismo jurídico-administrativo e aproveitamento do acto - reflexões críticas sobre o art. 163.°, n.° 5 do CPA», in AA.VV., Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, volume II, 4.º edição, 2018, ........, AAFDL Editora, p. 350).
Partindo, pois, daquela premissa fundamental (a de que o acto teria de ser praticado com o mesmo conteúdo), o art. 163.º, n.º 5, estabelece três possibilidades para afastar a eficácia invalidante da anulação do acto administrativo.
Na alínea b), sobressai uma tónica finalista, para os casos em que, não obstante se verificar a inobservância de requisitos procedimentais-formais, o fim visado pelas normas procedimentais violadas foi ainda, de algum modo, acautelado e atingido. No caso, o vício que determinou a anulação não foi um vício procedimental, mas sim substantivo, de conteúdo, atinente à violação de lei. Por isso, a previsão da alínea b) do n.º 5 do art. 163.º do CPA não é aqui aplicável.
Por seu turno, na alínea a), a situação prevista é a da indisponibilidade jurídica de uma alternativa, ou seja, a decisão anulada não poderia ser juridicamente outra. Estamos confrontados, portanto, com os casos de atos de natureza estritamente vinculada ou de redução da discricionariedade a zero.
Na alínea c), ao invés, o que se exige é uma indisponibilidade fáctica de uma alternativa, “exigindo-se que o vício de que padece o ato administrativo não tenha influenciado o conteúdo decisório de que ele é portador (muito embora não fosse o único juridicamente admissível). Para chegar a esta conclusão, cumprirá ao tribunal realizar um juízo de prognose póstuma, indagando da aptidão […] do vício cometido para se projetar no sentido da decisão da Administração” (idem, ibidem, p. 353). Trata-se de uma previsão que, contrariamente à da alínea a), vai intencionalmente dirigida ao aproveitamento de actos praticados no exercício de uma competência discricionária.
Como já tivemos oportunidade de deixar estabelecido, doutrina e jurisprudência têm vindo a postular, de forma uniforme, o entendimento de que, na fixação da medida da pena, a Administração, embora tenha de respeitar os parâmetros legais, goza de certa margem de liberdade. Este entendimento decorre, desde logo, da constatação de que “a gravidade da pena a aplicar depende do grau de responsabilidade do agente. Ora a apreciação desta está entregue ao critério dos titulares do poder disciplinar que a avaliarão de acordo com os conhecimentos da personalidade do infractor e das circunstâncias em que agia. […] Por isso, ao contrário do que sucede no direito criminal, não se estabelece a correspondência rígida de certas sanções para cada tipo de infração, deixando-se a quem haja de decidir amplo poder discricionário para punir as infrações verificadas” (Marcello Caetano, Manual…, I, cit., pp. 818-820).
Note-se que o alargamento dos poderes de pronúncia do juiz que haja de mover-se nos meandros processuais do contencioso administrativo, decorrente da possibilidade de inclusive emitir pronúncias de condenação dirigidas às autoridades administrativas (cf. artigo 66.º do CPTA), não veio alterar o perfil de controlo da legalidade dos actos da Administração pelos tribunais, que continua a reger-se pelo princípio da separação de poderes. Fundamental, por isso, é que a pretensão do autor se reporte a um aspecto vinculado do acto administrativo a praticar - ou, pelo menos, que a apreciação do caso concreto permita ao tribunal identificar apenas uma solução como legalmente possível (“redução da discricionariedade a zero”).
Por isso, depois de consagrar, no seu artigo 2.º, o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos particulares perante a Administração, o próprio CPTA estabelece, no seu artigo 3.º, n.º 1, que “no respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais […] julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua actuação”.
Assim, importa desde logo reter a ideia, resultante do citado artigo 3.º, n.º 1, do CPTA de que o princípio da plena jurisdição dos tribunais, ali consagrado, não pode ser entendido de modo ilimitado. Na verdade, existem zonas de actuação da Administração em que os tribunais (administrativos e, ex vi artigos 168.º e 178.º do EMJ, também a Secção de Contencioso do STJ) não se podem intrometer. Existe aí, pois, uma reserva de liberdade ou discricionariedade da Administração.
Portanto, ou existem “[…] vínculos jurídicos a condicionar, de qualquer modo, a actuação da Administração no caso em apreço, e pede-se ao tribunal que averigue da sua existência e (em caso afirmativo) que os torne efectivos, ou não há vínculos desses e o tribunal só pode abster-se de julgar a conduta administrativa. Naqueles aspectos em que as decisões concretas da Administração relevam de uma qualquer opção discricionária ou de uma margem de apreciação ou valoração autónoma, os tribunais […] – não conseguindo formular sobre essa opção um juízo de desconformidade com o bloco legal que lhe é aplicável – ficam, por lei, proibidos de exercer um controlo sobre elas […]» (Mário Esteves de Oliveira/Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos – volume I e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Almedina, 2006, pág.123).
A própria jurisprudência, reiterada e constante, da Secção de Contencioso do STJ vem de há muito postulando precisamente a existência dessa margem de livre apreciação que assiste ao CSM no exercício do poder disciplinar, nomeadamente na emissão do juízo qualificativo dos tipos de infracção e na dosimetria concreta da pena.
Vejam-se os Acórdãos de:
i. 12-12-2002 (processo n.º 4269/01), 27-10-2009 (processos n.ºs 21/09.8YFLSB e 364/09.0YFLSB), 16-11-2010 (processo n.º 451/09.5YFLSB), 16-12-2010 (processo n.º 9/10.6YFLSB), 15-12-2011 (proc. n.º 87/11.0YFLSB), 05-06-2012 (processo n.º 127/11.3YFLSB), 19-09-2012 (processo n.º 10/12.5YFLSB), 18-10-2012 (proc. n.º 125/11.7YFLSB), 21-11-2012 (processo n.º 66/12.0YFLSB), 11-12-2012 (processo n.º 61/12.0YFLSB), 20-03-2013 (proc. n.º 96/13.5YFLSB), 21-03-2013 (processo n.º 15/12.6YFLSB), 26-06-2013 (processos nºs 132/12.2YFLSB e 149/11.4YFLSB), 15-10-2013 (processos nºs 30/13.2YFLSB e 44/13.2YFLSB) [todos acessíveis em “Sumários do Contencioso”, em www.stj.pt];
ii. 26-02-2014 (proc. n.º 2/13.2YFLSB), 09-07-2014 (proc. n.º 57/13.4YFLSB), 16-12-2014 (proc. n.º 49/14.6YFLSB), 24-02-2015 (proc. n.º 50/14.0YFLSB), 22-02-2017 (processo n.º 10/16.6YFLSB), 30-03-2017 (processo n.º 73/16.4YFLSB), de 22-01-2019 (processos n.os 65/18.9YFLSB e 77/18.2YFLSB) e 10-12-2019 (processo n.º 2/19.3YFLSB), disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj;
iii. 30-06-2020 (processos n.os 3/20.9YFLSB e 46/19.5YFLSB), 23-09-2020 (proc. n.º 44/19.1YFLSB, a que fora apensado o processo n.º 54/19.6YFLSB), acessíveis em https:// https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli;
iv. 16-12-2020 (proc. n.º 11/10.0YFLSB), votado na presente sessão, inédito ainda.
Como tal, podemos desde já afastar a previsão da alínea a) do n.º 5 do art. 163.º do CPA.
Resta, portanto, a previsão da alínea b). A propósito desta previsão normativa, recuperemos aqui os considerandos da doutrina da especialidade:
“Este segmento, que vai intencionalmente dirigido ao aproveitamento de actos praticados no exercício de uma competência discricionária (a entender “latos sensu”, resulte a margem de liberdade administrativa da previsão ou estatuição da norma jurídica), é aquele que suscita mais inquietações, ou não nos confrontasse a discricionariedade administrativa com uma multiplicidade de hipóteses decisórias juridicamente admissíveis ou com a reserva à Administração de um conjunto de apreciações, ponderações, valorações ou avaliações.
Desde logo, não é consensual que o raciocínio jurisdicional deva ir estritamente dirigido a apurar da existência ou inexistência de uma causalidade concreta entre o vício cometido e o sentido decisório adoptado (que é aquilo que parece favorecer ou induzir a al. c) […]: saber se a Administração, sem o vício, teria chegado à mesma decisão e se, por isso, o vício não foi determinante do conteúdo do acto). Aliás, em termos metodológicos, parece ser (muito) frágil o estabelecimento consistente, numa situação de discricionariedade administrativa, do aludido nexo de causalidade concreta. A não ser que se aceite um certo esoterismo jurídico de índole especulativa, não se vê como conseguir declarar que um trâmite procedimental que não foi observado, mas que devia ter sido, não teve - nem teria - influência no conteúdo do acto, precisamente quando é sabido que não havia uma única decisão juridicamente possível (como saber que o não-ocorrido não influenciou nem influenciaria o ocorrido, quando o ocorrido não tinha necessariamente de ocorrer da maneira que ocorreu?) […]
Não estranhará, por isso, que doutrina autorizada sustente que bastará aferir da possibilidade de o vício influenciar (ou não) o concreto sentido do acto administrativo, caso em que a «teoria da relação causal concreta […]» é substituída pela «teoria da relação possível entre vício e acto», dispensando inclusivamente que se averigue se a decisão viciada era legalmente permissível […]. Claro que o objectivo desta última tese é o de dificultar o aproveitamento de actos (discricionários) viciados, assumindo-se que a possibilidade de influência do vício […] é tanto maior quanto menor for a vinculação ou heterodeterminação legal da acção administrativa em causa.
Mesmo a interpretação do requisito «sem margem para dúvidas» (constante da al. c) do n.º 5 do art. 163.º) concorre para reforçar o que se tem escrito. O legislador, ao introduzir um tal qualificativo de comprovação de que o acto teria sido praticado do mesmo modo, convoca um padrão de evidência, evidência que será sempre mais difícil de demonstrar quando não se trate de indisponibilidade jurídica de uma solução alternativa: não estando juridicamente pré-determinado o sentido decisório a adoptar, é ao e no procedimento que cumpre ir formando a vontade administrativa, […]
Acresce que a doutrina é bastante rigorosa ao delinear aquele padrão: não só não se deve suscitar nenhuma dúvida razoável, como cabe à Administração o ónus de, com recurso ao processo administrativo […] demonstrar de forma objectivamente clara que o vício foi e seria irrelevante para a decisão final (posições que coloquem o ónus sobre o particular parecem desrazoáveis e, por isso, de afastar). Se não se gera a certeza, se não é evidentemente reconhecível por qualquer pessoa a inaptidão do vício para se projectar no conteúdo decisório ou se a Administração não demonstra objectivamente e documentalmente a respectiva irrelevância, não deve o acto ser aproveitado, mantendo-se plenamente a eficácia invalidatória […]
Não se esqueça, adicionalmente, que efectuando-se um juízo de prognose póstuma - um juízo de reconstrução do procedimento e do raciocínio decisório do órgão administrativo -, o aproveitamento de actos administrativos, em sede de discricionariedade administrativa e de acordo com o critério de indisponibilidade fáctica de uma alternativa, aproxima-se perigosamente de uma substituição da Administração pelo Tribunal, com todas as reservas quem isso levanta no plano da preservação do princípio da separação de poderes”
-(Luís Heleno TERRINHA, cit., pp. 353-356).
Todas as reservas supra enunciadas são pertinentes e são de subscrever.
A todas elas acrescem duas importantes adicionais de que damos conta de seguida.
Por um lado, no caso dos autos o vício que determinou a anulação da deliberação impugnada não foi um vício procedimental (preterição de audiência prévia, omissão de um parecer obrigatório, etc.) nem formal (falta de fundamentação), assim como também não foi um vício de legalidade externa ligado à realidade institucional e ontológica do órgão decisor (incompetência, impedimentos, etc.). Ao invés, foi um vício de violação de lei, que é um vício substantivo, de conteúdo.
Bem sabemos que o legislador do CPA não distingue a tipologia dos vícios que podem afastar a eficácia invalidante da anulação do acto administrativo. Tal ausência de distinção permite reconhecer, com grande dose de conforto jurídico, que, no caso da alínea a) do n.º 5 do art. 163.º, quando o acto seja estritamente vinculado e não pudesse ser praticado outro acto que não tivesse o exacto conteúdo que teve o acto anulado, por absoluta indisponibilidade jurídica de alternativa, mesmo os vícios de erro sobre os pressupostos de facto ou de direito ou de violação de lei possam (devam) ser afastados, permitindo que o acto subsista no ordenamento jurídico. É, no entanto, muito mais difícil vislumbrar tamanha irrelevância de vícios de legalidade interna no caso de actos discricionários.
A esta luz e de todo o modo, não será despiciendo “[…] restringir o âmbito objectivo do n.º 5 do art. 163.º, designadamente quanto à questão sensível da sua incidência sobre vícios decorrentes da violação de requisitos de legalidade que não sejam requisitos procedimentais ou formais” (Luís Heleno Terrinha, cit., p. 362).
De todo o modo, e prosseguindo a exposição da doutrina, “primeiro, terá que se refletir na distinção entre vícios absolutos e vícios relativos do acto administrativo. Os vícios absolutos serão aqueles que se entenda deverem ser incondicionalmente sancionados (independentemente de qualquer apuramento da sua relevância ou irrelevância causal para o conteúdo decisório do acto), desta forma excepcionando a aplicação da regra do aproveitamento do acto e concluindo sempre à anulação do acto administrativo. Já os vícios relativos, ao invés, ficarão sujeitos ao teste do aproveitamento e à potencial substração jurídica da sua eficácia invalidatória. […]” (idem, ibidem, pp. 360-361).
Como tal, um vício substancial como o dos autos, num contexto de discricionariedade, sempre poderia ser configurado como um vício absoluto, sem o qual o acto não pode subsistir.
Por outro lado, e recuperando novamente os contributos de Luís Heleno Terrinha (cit., p. 363), “convirá efectuar a problematização constitucional do art. 163.º, n.º 5. Pese embora se procurar derivar o aproveitamento do acto dos princípios da eficiência administrativa ou economia dos actos públicos, importa que não se proceda a uma sua desvalorização desproporcionada. Dessa forma, e assumindo que o aproveitamento do acto está longe de ter um carácter necessário, subsiste sempre a hipótese de o confrontar com princípios constitucionais (jurídico-administrativamente) estruturalmente fundantes, como sejam os da legalidade administrativa, do respeito pelos direitos subjectivos dos particulares, da tutela jurisdicional efectiva ou da democraticidade da actividade administrativa. Não surpreende que a doutrina pugne por uma “interpretação constitucionalmente conforme” (desde logo, com incidência no padrão da evidência da irrelevância do vício a utilizar), de modo a contrabalançar os perigos da desvinculação […] desrazoável da Administração. A argumentação de índole jurídico-constitucional poderá ajudar na equilibrada delimitação do âmbito objectivo do preceito, bem como na sustentação da existência de vícios absolutos”.
Pois bem, neste conspecto, importa não olvidar a natureza do procedimento no âmbito do qual foi praticado o acto impugnado. Estamos perante um procedimento disciplinar, visando a aplicação de uma sanção. Neste tipo de situações, a ilicitude reside na lesão directa da própria posição jurídica subjectiva material afectada pelo acto positivo (ablativo, impositivo ou sancionatório), uma vez que a posição de que o autor vinha usufruindo ter-lhe-á sido retirada por um acto de potestas do Estado inválido - logo, desprovido de título jurídico bastante.
Na verdade, o único motivo que poderia justificar uma interferência agressiva da Administração Pública na esfera jurídica do demandante, neste tipo de procedimentos, seria o facto de estar a exercer legitimamente um poder que lhe possibilitasse a prática de actos agressivos em nome do interesse público, com os quais o particular teria de se conformar. No entanto, tal poder advém sempre da lei, e não existe se não for exercido no cumprimento dos termos e na prossecução dos fins da lei que o concede. Todas as condições legais dessa validade devem, portanto, ser respeitadas. De tal sorte que, faltando uma delas, independentemente do eventual menor peso causal na determinação concreta do sentido decisório substancial do acto administrativo, inquinará de invalidade o aludido acto, sem possibilidade de degradação desse vício em termos de o dotar de eficácia não invalidante.
A este respeito, faz todo o sentido invocar formulações tradicionais do princípio da legalidade, nas quais radica a inadmissibilidade de a Administração lesar os particulares sem fundamento jurídico - leia-se, sem cumprimento dos (de todos os) pressupostos legalmente estabelecidos para o efeito. Estas concepções são tributárias, bem vistas as coisas, de uma visão clássica dos direitos subjetivos públicos (não só os fundamentais) - e, em geral, de todas as posições jurídicas subjectivas face à Administração -, como “direitos de defesa”, isto é, como direitos a acções negativas ou omissões do Estado. Nesta perspetiva, o poder, juridicamente regulado e atribuído ao Estado para interferir na esfera jurídica dos particulares, constitui, assim, “[…] como que uma causa justificativa de uma acção que, em princípio, seria ilícita, de acordo com o princípio “alterum non laedere”. Não estando reunidos os pressupostos da aplicação dessa causa justificativa, não pode, portanto, excluir-se a ilicitude que, por princípio, existe em qualquer interferência não consentida na esfera jurídica alheia […]” (Estêvão Nascimento da Cunha, Ilegalidade externa do ato administrativo e responsabilidade civil da administração, Coimbra, Wolters Kluwer e Coimbra Editora, 2010, pp. 278 e 279).
Daí que, ainda seguindo a mesma linha argumentativa, seja seguro asseverar que “uma intervenção autoritária deste género que enferme de uma [qualquer] ilegalidade carece, por isso mesmo, de título, é uma intervenção sem poder, e sem poder, a intervenção na esfera jurídica do particular não é mais do que uma violência, constituindo uma violação da posição jurídica concreta sobre a qual recaiu a intervenção […]” (idem, ibidem: 276).
Dito isto, a anulação determinará o regresso do procedimento à entidade demandada para, dentro do prazo de não prescrição do procedimento que retomará o seu cômputo desde a data do trânsito em julgado da decisão proferida nos presentes autos, reapreciar a sua decisão, seja arquivando o procedimento, seja reexercendo a sua competência de aplicar sanção disciplinar à luz do vigente EMJ.
Dir-se-á que mesmo tendo em conta o teor dos votos de vencido na deliberação impugnada, a posição unânime do CSM foi o de que a conduta do arguido merecia perseguição e punição disciplinar, o que indicia que a decisão administrativa será, desde que praticada dentro do prazo e com observância de todas as garantias que o EMJ na sua redacção vigente oferece ao arguido (incluindo as do art. 120.º-A, se disso for caso), a de aplicar nova sanção.
Certo é, de todo o modo, que, não só a sanção aplicada nunca poderá ser a sanção que foi concretamente aplicada ao autor, como não pode este Tribunal substituir-se à entidade demandada na valoração própria da dosimetria da pena (salvo se padecer a mesma de flagrante violação do princípio da proporcionalidade, a sindicar num eventual próximo processo), como nem sequer é seguro asseverar desde já que a entidade demandada não venha a inflectir a sua posição e mandar arquivar os autos de procedimento disciplinar.
Com base nessas premissas, entendemos que no caso em análise impõe-se o efeito anulatório da deliberação recorrida, sendo que não se encontra preenchida nenhuma das três situações previstas no n.° 5 do artigo 163.° do CPA.
Pelo exposto, impõe-se a anulação da deliberação impugnada.
O pedido de reenvio prejudicial
Face à anulação da deliberação impugnada, fica prejudicado o pedido de reenvio prejudicial formulado pelo demandante, por pretensa violação dos artigos 47.º da CDFUE e 19.º do TUE.
Sempre se refira a latere que o mesmo seria de rejeitar, posto que não estamos perante uma questão prejudicial que obrigue a reenvio prejudicial. Tem-se aqui em vista, além do mais, a jurisprudência que resulta do Acórdão Cilfit, de 06-10-1982 (Processo n.º 283/81) do TJUE, nos termos da qual a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação pode ser dispensada quando: (i) a questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal; (ii) o Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma; (iii) o Juiz Nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente (“teoria do acto claro”, cujos exigentes e cumulativos critérios de verificação foram igualmente definidos no mesmo acórdão).
Ora, como se viu supra na resposta à questão atinente à suposta violação da garantia de independência do juiz e jurisprudência do Tribunal Constitucional e deste STJ a este propósito, na situação em presença, não se afigura existirem dúvidas acerca do sentido das normas do CDFUE e do TUE, que no entender do autor teriam sido violadas.
III - DECISÃO
Por todo o exposto, julga-se improcedente a acção no que respeita: i) à prescrição do procedimento disciplinar; ii) à nulidade por falta de audiência prévia; iii) à violação do princípio ne bis in idem; iv) à incorrecta valoração de factos (falta de fundamentação ou erro nos pressupostos) e v) à violação do princípio da independência do juiz.
No restante, julga-se procedente a acção e, padecendo o acto impugnado e a sanção aplicada do vício de violação da lei, anula-se a deliberação recorrida, remetendo-se os autos ao Conselho Superior da Magistratura para que se proceda em conformidade com o presente acórdão.
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Custas pelo Conselho Superior da Magistratura, nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 527º do Código de Processo Civil.
Valor da acção: € 30.000.01 (artigo 34º nº 2 do CPTA), fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) UCs de acordo com o nº 1 do artigo 7º do Regulamento das Custas Processuais e respectiva Tabela I-A, anexa a este último diploma.
Lisboa, 24 de Fevereiro de 2021
Ilídio Sacarrão Martins (Relator) (Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15º-A do Decreto-Lei nº 20/20, de 01 de Maio, atesto que, não obstante a falta de assinatura, os Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos deram o correspondente voto de conformidade).
Fátima Gomes
Rosa Tching
Conceição Gomes
Paula Sá Fernandes
Clemente Lima
Henrique Araújo
Maria dos Prazeres Beleza (Presidente da Secção)
Sumário (art.º 663º n.º 7 do Código Processo Civil).