I – Nos processos sujeitos a arbitragem necessária, por força do disposto no art. 2º, da Lei nº 62/2011, de 12 de dezembro, a reapreciação da decisão arbitral perante os tribunais estaduais cinge-se ao recurso perante a Relação, excluindo a recorribilidade para o STJ, salvo se for invocado algum dos fundamentos específicos previstos no art.º 629º, n.º 2, do CPC.
1. Merck Sharp & Dohme, Corp. instaurou a presente ação arbitral necessária, ao abrigo da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, contra ACTAVIS GROUP PTC EHF.
2. Constituído o Tribunal Arbitral, a ação seguiu a sua tramitação, tendo sido realizado o julgamento, após o que o Tribunal Arbitral proferiu acórdão a julgar a ação parcialmente procedente e provada e, consequentemente, decidiu:
a) Não declarar a invalidade do CCP n.° 189, sendo, por isso, oponível à demandada.
b) Condenar a demandada a abster-se, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, de importar, fabricar, armazenar, introduzir no mercado, vender ou oferecer medicamentos genéricos contendo a associação Ezetimiba + Sinvastatina, nomeadamente os mencionados no artigo 88.° da referida PI, enquanto o CCP n.° 189 se encontrar em vigor, nos termos do artigo 101.°, n.° 2 do CPI.
c) Absolver a demandada do pedido de proibição de transmissão das AIMs por ela requeridas e mencionadas no artigo 88.° da PI, sem prejuízo de se considerar a decisão oponível a eventuais adquirentes das mesmas.
d) Absolver a demandada do pedido de pagamento à Demandante de uma sanção pecuniária compulsória no valor de, pelo menos, € 42.000,00 (quarenta e dois mil euros), por cada dia de incumprimento da decisão proferida nos termos da alínea a).
e) Condenar a demandada a pagar 60% da totalidade dos encargos da presente arbitragem e a demandante a pagar 40%.
3. Não se conformando com a decisão proferida pelo Tribunal Arbitral quanto aos segmentos identificados nas alíneas a), b) e e), a demandada interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação proferido acórdão a confirmar, na totalidade, a decisão do Tribunal Arbitral.
4. De novo irresignada, a demandada veio interpor recurso de revista excecional, ao abrigo do disposto no art. 672º, nº 1, al. a), do CPC.
5. Nas contra-alegações, a recorrida pronunciou-se pela inadmissibilidade da revista excecional, e, caso assim não seja entendido, manifestou-se no sentido da sua improcedência.
6. Neste Supremo Tribunal, pela relatora, foi proferida decisão que não admitiu a revista.
7. Desta decisão veio a recorrente reclamar para a Conferência, pedindo que a revista seja admitida ao abrigo do disposto no art. 59º, nº 8, da LAV conjugada com o art. 3º, nº 8, da Lei nº 62/11, tanto mais que foi invocada a nulidade do acórdão recorrido, a qual deve ser apreciada pelo STJ.
8. A parte contrária respondeu, pugnando pelo indeferimento da reclamação.
10. Cumpre, pois, apreciar e decidir se estão verificados os pressupostos gerais de recorribilidade de que depende a admissão da revista excecional.
11. A decisão sob reclamação, assentou na seguinte argumentação:
O litígio a dirimir está sujeito a arbitragem necessária, por força do disposto no art. 2º, da Lei nº 62/2011, de 12 de dezembro, pelo que é a este diploma que deve recorrer-se em primeiro lugar para decidir sobre a admissibilidade deste recurso.
Sobre esta problemática já este Supremo Tribunal teve oportunidade de se pronunciar designadamente nos acs. de 2.2.2017, proc. n.º 393/15.5YRLSB.S1, de 25.5.2017, proc. 17/15.0YRLSB.S1, de 15.3.2018, proc. nº 1503/16.0YRLSB.S1 e, mais recentemente, no ac. de 12.9.2019, proc. 222/18.8YRLSB.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt[1], em termos que merecem a nossa inteira concordância.
Efetivamente, e reproduzindo a síntese discursiva do aresto proferido em 25.5.2017:
“(…) Importa ter em conta que estamos perante uma ação arbitral iniciada já no âmbito da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, que instituiu um regime de composição extrajudicial dos litígios emergentes de direitos de propriedade industrial em que estejam em causa medicamentos de referência e genéricos, visando também pôr termo ao denominado patent linkage.
Subjacente à criação desse regime esteve, como se sabe, a constatação das delongas e estrangulamentos verificados no ingresso de medicamentos genéricos no mercado, a preocupação com as inerentes repercussões financeira e, bem assim, com o avolumar de processos judiciais em que, com base na invocação de direitos de propriedade industrial a favor de outrem, se debatia a concessão da autorização de introdução no mercado desses medicamentos.
A solução encontrada passou pela submissão dos litígios em que se discuta a existência, ou não, de violação dos direitos de propriedade industrial à apreciação de um tribunal arbitral necessário, criando um regime processual pensado para ser dotado de celeridade, o que é concretizado nos artigos 2º e 3º daquele diploma. Aí, para além da expressa submissão dos diferendos que opõem os titulares de direitos de propriedade industrial relacionados com medicamentos de referência e os requerentes de autorização de introdução no mercado de medicamentos genéricos à arbitragem necessária (institucionalizada ou não institucionalizada), é notória a preocupação patenteada com a resolução célere desses conflitos no regime adjetivo que se fixa nos vários números que compõem o artigo 3º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro.
Nesse regime processual, destaca-se o disposto no n.º 7 do artigo 3º, no qual se estabelece que a decisão arbitral é, com efeito meramente devolutivo, recorrível perante o competente Tribunal da Relação, o que só pode significar, como resulta da exposição de motivos da proposta de Lei 13/XII, aprovada em Conselho de Ministros e que deu origem àquele diploma, que o legislador, no âmbito da arbitragem necessária, quis garantir o acesso a um único tribunal estadual, que expressamente determinou ser o da Relação.
Note-se, aliás, que, no processo legislativo e apesar das preocupações expressas pelo Conselho Superior do Ministério Público e pela Associação Portuguesa de Arbitragem acerca da impugnação judicial da decisão arbitral, o citado preceito reproduziu ipsis verbis a redação do n.º 7 do artigo 3º da Proposta de Lei n.º 13/XII, tudo a apontar, portanto, para a conclusão de que a possibilidade de solicitar a reapreciação da decisão arbitral aos tribunais estaduais se cinge ao recurso perante a Relação.
Esta interpretação colhe claro apoio, desde logo, no pensamento legislativo (artigo 9º do Código Civil), bem expresso na exposição de motivos, quando refere que se atribui aos litigantes «o direito a uma [sublinhado nosso] instância de recurso (…)», limitação essa que também se mostra consonante com a preocupação da rápida resolução deste tipo de litígios. E essa preocupação, que, como já se disse, norteia o aludido regime legislativo, encontra plena correspondência na letra da lei e nos elementos gramaticais nela vertidos, não cabendo, pois, desconsiderá-la (cfr. n.º 2 do artigo 9º do Código Civil).
Também a dimensão sistemática da interpretação parece apontar no sentido que preconizamos, na medida em que os preceitos que resolvem a questão da recorribilidade das decisões da Relação em matéria de propriedade industrial e, paralelamente, no domínio da arbitragem voluntária não vão no sentido da irrestrita irrecorribilidade das mesmas para o Supremo Tribunal e Justiça.
Com efeito, o n.º 3 do artigo 46.º do Código da Propriedade Industrial – em cujo regime substantivo se buscaria, em parte, a solução para o caso em apreço – prevê que «Do acórdão do Tribunal da Relação não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que este é sempre admissível», fixando, assim, a Relação como normal teto recursório para o recurso, de plena jurisdição, previsto no artigo 39º desse Código, tendo por objeto a impugnação das decisões que concedam ou recusem direitos de propriedade industrial.
Por outro lado, a alínea g) do n.º 1 do artigo 59º da Lei da Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro), define como tribunal judicial competente para conhecer das específicas questões ou decisões arbitrais aí referidas, relativas a litígios pertencentes à respetiva jurisdição, a Relação em cujo distrito se situe o lugar da arbitragem, atribuindo-lhe «o grosso das questões e decisões que devem ser sujeitas (em 1ª ou 2ª instância) aos tribunais judiciais» e o n.º 8 do mesmo preceito que estatui sobre o recurso dessas decisões salvaguarda, na parte final, sempre «que tal recurso seja admissível segundo as normas aplicáveis à recorribilidade das decisões em causa».
Atenta a quase contemporaneidade deste último diploma, não se descortina sequer necessidade de interpretação atualista do n.º 7 do artigo 3º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, que limita o recurso à Relação e logicamente exclui o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, interpretação que temos por mais acertada e conforme à celeridade que o legislador quis, de caso pensado, imprimir a esse regime.
(…)
Esta orientação (…) de vedar o acesso ao mais Alto Tribunal, cingindo a possibilidade de recurso da decisão arbitral à Relação, é aceite pela maioria da doutrina.
Assim, Dário Moura Vicente[2], escreve que «Importa, outrossim, ter presente que o alcance da referida imposição de arbitragem necessária pela lei n.º 62/2011 é consideravelmente mitigado por duas ordens de fatores. Em primeiro lugar, a circunstância, já aludida, de as decisões dos tribunais arbitrais previstos nesse diploma serem suscetíveis de recurso para os tribunais da relação: em última análise, sempre serão, por conseguinte, os tribunais estaduais a decidirem os litígios entre titulares de patentes e fabricantes de medicamentos genéricos. (…)»;
Por seu turno, Sofia Ribeiro Mendes[3] refere que «(…) Da decisão arbitral cabe recurso para o Tribunal da Relação competente (…)», no que é acompanhada por Pedro Caridade Freitas, Medicamentos genéricos e tutela dos direitos de propriedade intelectual – Estudos de Direito de Propriedade Intelectual em Homenagem ao Prof. Doutor José de Oliveira Ascensão 50 anos de vida académica, Almedina, pág. 1030, onde explana, a tal propósito, que «Em relação à possibilidade de recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tem sido posição deste Tribunal que a menção expressa de o legislador a admitir o recurso para o Tribunal da Relação, sem referência a qualquer outra instância de recurso, exclui a admissibilidade de recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo que a Lei n.º 62/2011 apenas contempla uma instância de recurso (…)».
Acresce ainda que tal orientação respeita inteiramente a garantia de acesso ao direito (n.º 1 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa – e, em particular, a dimensão que se traduz no direito a uma tutela jurisdicional efetiva), contemplando, ademais, como se infere da previsão de instância recursória, o direito de recurso (cfr. nºs 1 e4 do artigo 210º e n.º 2 do artigo 211º da Lei Fundamental), que não é suprimido, mas apenas limitado por razões racionalmente fundadas e não excessivas, tanto mais que a exigência constitucional de um duplo grau de jurisdição se acha confinada ao domínio do processo penal (n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa).
Aliás, no domínio da arbitragem necessária instituída pela Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, tem sido entendido, sob o prisma constitucional, que «o legislador instituiu um mecanismo de reexame da decisão arbitral perante um órgão judicial do Estado, permitindo ao particular discutir a decisão arbitral que se pronunciou sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer deste, pôs termo ao processo arbitral, junto do Tribunal da Relação competente, a quem caberá a última palavra na resolução dos litígios submetidos à jurisdição arbitral necessária. Assim sendo, em certa medida, o regime de arbitragem necessária em análise (decorrente da norma inserta no artigo 2.º da Lei n.º 62/2011) vai ao encontro das garantias assinaladas na jurisprudência citada (…)» pelo que «não se mostrará desconforme com a garantia decorrente do direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, na medida em que se encontra assegurada a intervenção de tribunal estadual na reapreciação das decisões proferidas quanto à questão de fundo na justiça arbitral. (…)».
Assim sendo e posto que a limitação do recurso da decisão arbitral para os tribunais estaduais em um só grau assenta numa razão suficientemente objetiva – a falada preocupação de celeridade na resolução dos litígios que envolvem a introdução no mercado de medicamentos genéricos –, não se divisa que a interpretação que sustentamos possa ser tida como inconstitucional.
Diga-se ainda que não evola da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, qualquer limitação quanto ao âmbito do recurso para a Relação, pelo que o mesmo pode envolver (como, de resto, sucedeu no caso) a impugnação da matéria de facto e a reapreciação das questões jurídicas, o que contribui para reforçar a conclusão extraída no antecedente parágrafo.”.
Sufragamos, sem reservas, este entendimento.
Importa, no entanto, recordar que a jurisprudência[4] e a doutrina[5] têm admitido que o regime de recorribilidade para o STJ, acabado de delinear, pode ser “temperado” se for invocado algum dos fundamentos específicos previstos no art.º 629º, n.º 2, do CPC, situação que, contudo, não se verifica no caso em apreço, nem tão pouco foi invocada pela recorrente.
Deste modo, é patente não ser admissível o recurso de revista nos termos gerais, por se encontrar vedado pela norma especial do mencionado nº7, do art. 3º, da Lei nº 62/2011.
Ora, não sendo a revista «normal» admissível, também não poderá ser admitida como revista «excecional», pois que o acesso à revista excecional não prescinde da verificação dos pressupostos gerais de admissibilidade do recurso, designadamente os relacionados com a natureza e conteúdo da decisão (art.º. 671º, CPC), sendo o único obstáculo à sua admissibilidade a verificação de «dupla conforme».[6]
Não é, porém, assim.
Efetivamente, como refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª Edição, 2018, págs. 404 e 405, em anotação ao art. 674.º, n.º 1, al. c), do CPC, a respeito da revista poder ter como fundamento as nulidades previstas nos arts. 615.º e 666.º, do CPC, importa distinguir consoante a nulidade apontada ao acórdão recorrido ocorra quando não se verifica a dupla conforme (caso em que nada obsta a que o objeto do recurso seja até unicamente preenchido unicamente pela arguição de nulidades) dos casos em que ocorre dupla conforme. Nesta última situação, o conhecimento das nulidades pelo STJ fica dependente da admissibilidade da revista normal (se ocorrerem as especificidades previstas no art. 629º, do CPC) ou da revista excecional (se se verificarem os requisitos do art. 672º, do mesmo Código). Se, porém, o recurso não for admitido, nem como revista normal, nem como revista excecional, a arguição de nulidades apenas pode ter lugar perante a Relação (cf. art. 615º, nº4, do CPC, ex vi do art. 679º, do mesmo Código).
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.
Lisboa, 3.3.2021
Relatora: Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado
1º Adjunto: Oliveira Abreu
2º Adjunto: Ilídio Sacarrão Martins
Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 15º-A, do Decreto-Lei nº 20/2020, atesto que, não obstante a falta de assinatura, os Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos deram o correspondente voto de conformidade.
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[1] V. ainda a decisão singular por nós proferida em 12.3.2018, no proc. nº 409/17.0YRLSB. L1
[2] O Regime Especial de Resolução de Conflitos em Matéria de Patentes (Lei N.º 62/2011), R.O.A., ano 72, vol. III, pág. 976.
[3] O Novo Regime da Arbitragem Necessária de Litígios Relativos a Medicamentos de Referência e Genéricos (Alguns Problemas) – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. II, pág. 1028.
[4] V. Acórdãos do STJ de 23.6.2016, proc. n.º 1248/14.6YRLSB.S115.3; de 2.2.2017., proc. nº 393/15.5YRLSB.S1, de 15.3.2018, proc. n.º 1503/16.0YRLSB.S1 e de 12.9.2019, proc. 222/18.8YRLSB.S1.
[5][5] V. Luís Couto Gonçalves, in, Cadernos de Direito Privado, página 56.
[6] Cf., neste sentido, entre muitos outros, os Acs. do STJ de 28.6.2018, revista excecional n.º 641/13.6TYVNG-B.P1.S2 e de 18.9.2018, Revista excecional n.º 149/16.8T80AZ-A.P1.S1, disponíveis em http://www.stj.pt/index.php/jurisprudencia-42213/revistaexcecional.