EXECUÇÃO DE SENTENÇA
DIREITO DE SERVIDÃO
EXTINÇÃO PELO NÃO USO
Sumário

I - A extinção das servidões pelo não uso tem por causa apenas a inércia do proprietário do prédio dominante.
II - Essa inércia tanto se verifica se o proprietário, pura e simplesmente, deixa de passar, circular pelo caminho da servidão por acto voluntário, como também quando é impedido e não lança mão da tutela jurídica para repor a utilidade que a servidão lhe proporciona, designadamente da execução da sentença que reconheceu o direito de servidão.

Texto Integral

Proc. nº 26033/19.5T8PRT-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução do Porto - Juiz 3

Acordam no Tribunal da Relação do Porto.

I. Relatório
B…, C… e D…, executadas nos autos principais de execução para a prestação de facto e com os demais sinais nos autos, vieram apresentar os presentes embargos de executado, peticionando a sua procedência e, em consequência, a extinção da execução.
Para o efeito, em síntese, alegaram que não existe título executivo válido que possa servir de base à predita execução, porquanto a instância declarativa em apreço foi suspensa, após prolação do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, na sequência da comunicação do óbito da ali autora, sem que tenha havido habilitação de herdeiros, o que importou a sua deserção por falta de impulso processual, automaticamente, decorridos 6 meses a contar da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o Código de Processo Civil vigente, obstando ao trânsito em julgado da sentença proferida.
Subsidiariamente, vêm as embargantes arguir a prescrição extintiva de preclusão do eventual direito de passagem e serventia do caminho em apreço atento ao seu não uso há mais de 20 anos, ininterruptamente.
Na hipótese de considerar existente a obrigação exequenda, alegam as embargantes que o prazo indicado pelos embargados para a prestação de facto é desadequado, sendo necessário um prazo não inferior a seis meses, sendo igualmente excessiva a sanção pecuniária compulsória peticionada.

Notificados para esse efeito, os embargados ofereceram contestação, pugnando pela improcedência dos presentes embargos de executado.
Para tanto, em suma, alegam que nos autos declarativos apenas foram declarados nulos os actos de fls. 216 a 221, o que não contendeu com o trânsito em julgado da sentença proferida, pelo que a mesma constitui título executivo, nos termos legais. Ademais, referem os embargados que o processo declarativo foi à conta no ano de 2003, muito antes da entrada em vigor do actual Código de Processo Civil, pelo que deve improceder a correspectiva excepção alegada, prosseguindo os autos executivos os seus ulteriores termos.
No mais, alegam que foram impedidos, eles próprios e os seus antecessores, pelas embargantes e antecessores de aceder ao caminho em apreço, onde, apesar cientes do teor da sentença proferida, não se coibiram de plantar árvores e colocar meia cancela.
Por fim, invocam que as embargantes atuam com manifesto abuso de direito e má-fé, na modalidade de venire contra factum proprium, uma vez que a conduta dos proprietários do prédio onerado com a servidão, ao obstaculizarem ao exercício do respectivo direito, tem como consequência a paralisação da faculdade de invocar a respectiva extinção.

Foi proferida sentença a julgar totalmente procedentes, por provados, os presentes embargos de executado e, em consequência, determinar a extinção da execução de que estes autos constituem um apenso.

Os exequentes, E… e esposa F…, vieram interpor recurso, concluindo:
1. Os exequentes, ora recorrentes, instauraram a presente execução de sentença para prestação de facto, sentença que foi proferida no âmbito do proc. 1545 – antigo 3º Juízo do Tribunal Judicial de V. N. de Gaia:
2. Na sentença, que é título executivo na presente, foram os aí demandados, condenados a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio daqueles;
3. No requerimento inicial da execução, os exequentes juntaram ainda prova documental da sua legitimidade, bem como da das executadas, ora recorridas;
4. Estas deduziram oposição, por embargos de executado, invocando a excepção de falta de título e deduzindo impugnação e subsidiariamente, arguíram o não uso, invocando o disposto no art. 1569, nº 1, al. b), do citado Código Civil, como causa de extinção do pretenso direito;
5. Os ora recorrentes contestaram os embargos e invocaram o abuso de direito nos termos do artigo 334 do C.C., uma vez que os executados não só não cumpriram o determinado na sentença dada à execução (art. 12 e 13 da contestação) como obstaculizaram e impediram o acesso, não tendo entregue as chaves do portão de acesso, nem libertado o acesso;
6. Foi proferida sentença que decretou a procedência dos embargos e determinou a extinção da execução e com a qual os recorrentes não se conformam;
7. Na mesma sentença recorrida, foi considerado “que é irrelevante a causa que deu origem ao não uso” mesmo que esse não uso decorra de actos impeditivos perpetrados pelos proprietários do prédio serviente que obstaculizaram o exercício da servidão;
8. Entendem os recorrentes que não é irrelevante a causa que deu origem ao não uso, pois que, à data da propositura da acção judicial (proc. 1545 – ant. 3º Juízo Cível) não havia decorrido o prazo de não uso de 20 anos;
9. Desde a propositura (13/04/1993) até 14/12/2001, estiveram os recorrentes impedidos de usar a servidão, por razões processuais, nomeadamente não existir decisão com trânsito em julgado que lho permitisse, conforme consta dos autos (proc. 1545 – antigo 3º Cível – actual 10024/19.9T8VNG), não tendo decorrido, em virtude da interrupção do prazo de 20 anos por força da instauração da acção;
10. E, considerando-se o disposto no artigo 1571º do Código Civil, verifica-se que a impossibilidade de exercer a servidão não derivou da inércia dos recorrentes ou dos antepossuidores, mas da falta de decisão judicial que lhes permitisse esse exercício, porquanto, nesse período, estavam impedidos de recorrer à defesa do seu direito, através de acção directa (artº 336º do Cód. Civil) por estar pendente a acção judicial onde pretendiam esse efeito;
11. E, não tendo os demandados ou os sucessores do falecido G… cumprido a sentença, os recorrentes não tinham outro meio disponível para tornar efectivo o seu direito que não fosse através da execução da sentença, transitada, mas não cumprida por parte dos recorridos;
12. Decorre do atrás exposto que, com a prolação da sentença dada à execução e transitada em julgado fica prejudicado todo o período de tempo do não exercício da servidão anterior à data da propositura;
13. Tanto mais que os então demandados e os sucessores do falecido G… sempre defenderam naquele processo declarativo de condenação que não existia a servidão invocada e, por isso, deduziram reconvenção,
SEM PRESCINDIR
14. O prazo de 20 anos para a extinção da servidão pelo não uso não deve contar-se desde o início (antes da propositura da acção), nem enquanto a dita acção judicial esteve pendente, mas apenas após o trânsito da sentença nela proferida e dada à execução na presente, ou seja somente após o trânsito da mesma e o consequente reconhecimento da servidão por parte dos recorridos é que se inicia a contagem do prazo de 20 anos de não uso que acarretaria a extinção da dita servidão;
15. O trânsito em julgado da sentença que serve de base à execução ocorreu em 14/12/2001 (facto 4 da decisão recorrida) pelo que a presente execução de sentença é tempestiva, nos termos do disposto no art. 309º do Código Civil, não tendo ocorrido ainda o período de 20 anos de não uso;
16. Aliás, em consonância com tal sentido e interpretação cita-se o sumário do acórdão que anteriormente se transcreveu;
17. As partilhas entre os herdeiros dos primitivos AA. não foi pacífica, antes se revestiu de dificuldades, incerteza e litigiosidade, só se concretizando, por escritura junta aos autos, em 27/03/2019;
18. Já antes houve contactos com os executados com vista a viabilizar o cumprimento das suas obrigações decorrentes da sentença, e depois da partilha, os recorrentes fizeram ainda outras diligências no mesmo sentido, tendo endereçado carta registada com A/R, não tendo obtido quaisquer resultados pelo que se viram forçados a intentar a presente execução;
19. São fundamentos para a dedução de oposição à execução baseada em sentença transitada em julgado, os que constam do artigo 729º do C.P.C., e só esses, os quais são inaplicáveis ao caso concreto subjudice;
20. Nomeadamente não se verifica, conforme ficou alegado anteriormente que tenha existido qualquer facto extinctivo ou modificativo da obrigação, provada por documento; ou que tenha ocorrido prescrição do direito ou obrigação; e na oposição que deduziram os embargantes, ora recorridos, não demonstraram ter cumprido, ainda que posteriormente, as obrigações que lhes incumbiam, nos termos da sentença dada à execução (artº 868º, nº 2 do C.P.C.);
Sobre o abuso de direito
21. A sentença recorrida não considera ter havido da parte dos proprietários conduta que integre o abuso de direito (art. 334 do CC.) invocado pelos recorrentes, considerando para tal essa conduta não poderia, como é evidente, ser suscetível de basear uma situação objetiva de confiança de que não iriam invocar o seu direito e que o que sobressai é a passividade dos proprietários do prédio dominante;
22. Os recorrentes entendem que os recorridos actuaram com abuso de direito, pois que sempre pretenderam e interpelaram para uma solução consensual que não foi conseguida, apesar dos esforços dos primeiros;
23. Com efeito os recorridos estavam condenados por sentença a dar servidão, franquear o acesso e entregar as chaves, tendo consciência plena dos direitos que assistiam aos recorrentes e das obrigações que sobre si impendiam, tudo fazendo crer aos recorrentes que iriam cumprir a sentença e que não iriam invocar o direito a extinção pelo não uso;
24. E se, na mesma sentença, se lança mão do argumento da passividade dos recorrentes em lançar mão dos meios legais, maior e mais grave passividade é a dos demandados iniciais e dos sucessores do falecido G… em dar cumprimento às decisões constantes da sentença dada à execução;
25. O exercício do direito invocado pelos recorrentes excede os limites da boa fé e de uma conduta conscienciosa pois que as mesmas ao actuarem da forma como actuaram, negando um direito legítimo dos recorrentes, estavam a incumprir uma decisão judicial transitada em julgado, tendo consciência do sentido e alcance da mesma e que, actuando como actuaram, prejudicaram os interesses legítimos dos recorrentes que acreditaram e acreditam que as sentenças são para cumprir e não para ser esquecidas e escamoteadas;
26. Assim se outras razões não existissem para a procedência do presente recurso – e já foi alegado que existem – entendem os recorrentes que também pela procedência da excepção de abuso de direito, deve o presente recurso ser procedente, revogada a decisão recorrida e ordenado o prosseguimento da execução.
Nestes termos e nos melhores que doutamente forem supridos, deve ser julgado procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, deve ser revogada a sentença recorrida, mais devendo ser decretado o prosseguimento da execução, com as demais consequências legais, com o que será feita boa e sã Justiça!

As embargantes, B… e OUTRAS, apresentaram contra-alegações e requereram a AMPLIAÇÃO DO RECURSO (artigo 636, nºs. 1 e 2, do C.P.Civil), concluindo:
1. As Recorridas louvam-se com o acerto do sentido do dispositivo julgado, pugnando pela sua manutenção, ao declarar extinto, por não uso há muito mais de 20 anos o exercício da servidão, causal de extinção – artigo 1569, nº 1, al. a) do C. Civil;
2. Essa falta de direito, por incontornável não uso nesse iterim temporal, é causal da extinção, como decidido, ainda que houvesse título válido e exigível, no alcance do disposto nos artigos 703, nº 1, al. a) e nº 5 do artigo 10 do C.P. Civil, - no que as Recorridas não concedem e deixam à superior reapreciação e veredito - e, sempre, a fortiori, não havendo título válido e exequível, como nesta sede deixam sustentado.
DA AMPLIAÇÃO DO RECURSO (Artigo 636, nºs. 1 e 2, do C.P.Civil)
3. Só que as Recorridas sempre arguiram e se prevaleceram intraprocesso da falta de título válido e exequível, à míngua de trânsito em julgado da sentença de 7/1/97, tendo sido levado ao probatório no item 4 o segmento: “ e transitou em julgado em 14/12/2001”, cuja questão de facto pretendem que seja reapreciada, em ampliação do recurso nos termos e alcance do artigo 634, do Código de Processo Civil.
4. Outrossim, e dirimentemente, a questão decidida pela validade e exequibilidade desse título, no que as Recorridas não se conformam, face ao não trânsito, questão que se revela pertinente e justifica a ampliação do recurso nesse âmbito, para prevenir risco de decisão em recurso.
Desta feita,
5. O segmento do probatório que no ponto 4 deu como provado e transitou em julgado em 14 de Janeiro de 2001, deverá ser retirado e inconsiderado por não estar vinculado ao processo declarativo “a quo”, pese a impugnada certidão oficiosa, que evidencia não ser integral, como arguido: A morte da primitiva A. documentada e os despachos de suspensão adrede prolatados, infirmam o trânsito dessa decisão.
6. Os autos ostentam que a primitiva A., H… faleceu em 13/5/2000, documentado a fls. 207 e ss. no iterim de recurso, o que foi causal da suspensão da instância, conforme despachos de fls. 207 e ss. e de 1/3/2004, sem a devida habilitação, desde então.
7. Deverá, pois, ser considerado dado como provado no item 4, do probatório a seguinte asserção fáctico-jurídica, que os autos evidenciam:
“A predita sentença é datada de 7/1/1997, e o processo declarativo respeitante ficou com suspensão da instância por morte da primitiva A., H…, nunca habilitada intraprocesso - fls. 207 e ss., e despachos de 234 verso e de 1/3/2004.”
8. Essa alteração à matéria de facto, que resulta do processo declarativo cujos elementos foram reportados ao processo ora “a quo”, importa decisão em conformidade, de sentido diferente, pela inexistência de título válido, exequível e exigível, ao invés do sentenciado que nessa parte deverá ser alterado.
9. Acresce que a incontornável e resistente situação de suspensão dessa instância declarativa, inclusive nos 6 meses seguintes à entrada em vigor do atual Código de Processo Civil (D/L 41/2013 de 26 de Junho) é causal da verificação e conhecimento da deserção, de conhecimento e pronúncia “ex officio” – artigos 281, nº 1 e 277, al. c), do C. P. Civil.
Sem embargo,
A não se entender assim,
A título subsidiário, e sempre,
10. A sentença recorrida ao não conhecer oficiosamente da questão da deserção cujos elementos constitutivos resultam do processado, que a certidão ordenada oficiosamente e carreada não encerra na íntegra, como reclamado é nula nessa parte, pois substancia(va) questão de que devia tomar conhecimento.
11. Outrossim, ao decidir pela repartição do ónus da prova às Embargantes (artigo 342 nº 2, do C. Civil), sabido que é o Exequente que tem esse ónus (nº 1 desse preceito), ademais tratando-se de sentença judicial não documentada “ab initio” como o requerimento executivo inculca, também causal de nulidade – al. d), do nº 1, do artigo 668 do C.P.Civil.
Desta feita,
12. Na parte de recurso, ora ampliada, que decidiu pela existência de título válido, exequível e exigível e não se pronunciou pela deserção da instância declarativa, atribuindo o ónus às Embargantes/Recorridas, outrossim, ao deixar de providenciar oficiosamente pela junção aos autos da certidão integral do processo declarativo, impondo esse ónus às Embargantes, violou os respeitantes e referidos preceitos, fazendo também padecer a sentença de nulidade, arguida a título subsidiário – artigo 615, nº 1, al. b) do C.P. Civil.
13. Foram violados os sobreditos preceitos, como propugnado.
Deve manter-se o sentido do dispositivo do thema decidendum, pela extinção da servidão pelo não uso e consequente extinção da execução, e, sempre, procedente o recurso na parte ora ampliada, reconhecendo e decidindo- se pela falta de título válido, exequível e exigível, como de Direito, à míngua de trânsito em julgado dessa sentença de 7/1/97, assim se fazendo acostumada
Justiça

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, as questões a resolver consistem em saber se:
- A servidão de passagem se extinguiu pelo não uso;
- as recorridas actuaram com abuso de direito

II Fundamentação de facto
O tribunal recorrido considerou:
a) Factos Provados
1. À execução que corre termos nos autos principais foi dada a sentença proferida no processo n.º 10024/19.9T8VNG (antigo n.º 1545/1993, do 3.º Juízo Cível), que correu termos no Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia (extinto), na qual se decidiu, além do mais, condenar os réus G… e B… a reconhecerem o direito de propriedade dos autores I… e H… sobre o prédio rústico, composto por terreno a mato e pinheiros, sito no …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 2944, e inscrito na matriz predial sob o artigo 3535 da União de Freguesias … (anterior artigo 2617 da freguesia …), Concelho de Vila Nova de Gaia e Distrito do Porto; a reconhecerem o direito de servidão dos autores sobre o prédio dos réus, por um caminho que se estende ao longo da extrema do lado poente desse seu prédio, e com uma largura de cerca de três metros; e condenar os réus a permitir aos autores o exercício dessa servidão, quer entregando-lhes uma chave do portão que dá acesso a esse caminho, quer abstendo-se de o fechar.
2. Na sentença referida em 1) foi julgado demonstrado que Os AA e antepassados, há mais de 30 anos, dispõem do dito prédio, sem oposição seja de quem for (facto provado n.º 4) e, bem assim, que desde sempre que os AA e os seus antepossuidores tiveram acesso ao seu prédio passando pelo prédio dos RR (facto provado n.º 14), O que faziam há mais de 5 anos, dez, vinte e trinta anos (factos provados n.ºs 21 e 22).
3. Também ali se julgou demonstrado que Há cerca de meio ano os RR substituíram o portão anterior por um novo (facto provado n.º 36) e que Estão assim os AA impedidos de terem acesso ao seu prédio (facto provado n.º 38 – erroneamente numerado como 36).
4. A predita sentença é datada de 07-01-1997 e transitou em julgado em 14-12-2001.
5. Até à presente data, nem os embargantes nem os antecessores entregaram aos embargados ou antecessores as chaves do portão nos termos e para os efeitos do referido em 1).
6. A execução que corre termos nos autos principais deu entrada em juízo em 04-12-2019.

III – Fundamentação de direito
Os presentes embargos de executado têm como título executivo uma sentença judicial que, no que aqui importa, reconheceu o direito de servidão do prédio dos ali autores, aqui exequentes, sobre o prédio ali dos réus, aqui embargantes, por um caminho que se estende ao longo da extrema do lado Poente desse seu prédio, e com uma largura de cerca de três metros, e condenando os ali réus, aqui embargantes, a permitir aos ali autores, aqui exequentes, o exercício dessa servidão, quer entregando-lhes uma chave do portão que dá acesso a esse caminho, quer abstendo-se de o fechar.
As embargantes vieram, além do mais, invocar a extinção da servidão pelo não uso, fundamento de oposição à execução que foi acolhido na sentença recorrida e sobre a qual recai o presente recurso dos exequentes, embargados.
Atentemos.
Nos termos do disposto no artigo 1543.º do CC, a servidão predial é o encargo imposto num prédio, dito prédio serviente, em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, designado por prédio dominante.
É um direito real de gozo limitado de coisa imóvel que, embora incidindo sobre um objecto materialmente definido no prédio serviente, possibilita um desfrute de tipo aberto em proveito (objectivo) do prédio dominante, compreendendo, nos termos do artigo 1544.º do mesmo Código, quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor. E, salvo as excepções previstas na lei, as servidões são inseparáveis dos prédios a que, activa ou passivamente, dizem respeito (art.º 1545.º, n.º 1, CC), excluindo, assim, as chamadas servidões pessoais.- Vide Oliveira Ascensão, in Direito Civil, Reais, Coimbra Editora, 5.ª Edição, 2000, pág. 489.
A servidão deve satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, as quais devem ser satisfeitas com o menor prejuízo para o prédio serviente.
Não há servidão sem a verificação de uma utilidade susceptível de gozo por intermédio de um determinado prédio e a existência de um outro que, pertencente a um diferente dono, tipicamente a suporta.
A servidão justifica-se tanto mais que se reconhece uma função social do direito de propriedade, sendo imperioso o critério da proporcionalidade, que põe em balanço o encargo provocado pela servidão no prédio e a utilidade que proporcionalidade ao prédio dominante.
Bem se compreende, portanto, que as servidões se extingam pelo não uso e pela desnecessidade que, diga-se desde já, são duas realidades distintas.
O não uso prolongado de uma servidão predial é o melhor índice de desnecessidade dessa servidão, mas existem situações em que se usa sem que seja necessário, tal como existem situações em que não se usa e mesmo assim a servidão é necessária.
O que aqui importa é a extinção da servidão pelo não uso.
Dispõe o artigo 1569º nº 1 al. b) do CC que as servidões se extinguem pelo não uso durante vinte anos, qualquer que seja o motivo.
Assim, costuma dizer-se recorrentemente que o limite para a passividade do possuidor da servidão de passagem é o seu não uso por 20 anos, qualquer que seja o motivo.
O uso de uma servidão de passagem consiste na utilização dessa passagem, isto é, no passar ou transitar pela mesma pelo que, para se aferir de uma situação de uso ou não uso, importa apenas averiguar se se verifica, ou não, o facto material, objectivo, de se passar ou transitar pela mesma, independentemente do motivo ou finalidade subjacente a tal conduta.
Concluindo-se pelo não exercido do direito de passagem por largo tempo é porque se revela desnecessário para o respectivo titular e, por isso, socialmente injustificado o encargo correspondente sobre o prédio serviente.
O normativo acima citado liga-se ao artigo 298 nº 3 do CC que comanda: “os direitos de (…) servidão não prescrevem, mas podem extinguir-se pelo não uso nos casos especialmente previstos na lei, sendo aplicáveis nesses casos, na falta de disposição em contrário, as regras da caducidade”.
E na caducidade regem os artigos 328º do CC “o prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe senão nos casos previstos na lei” e 331º nº 1 “só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua esse efeito impeditivo”.
No caso, e como se refere na sentença:
“- Desde meados de 1996 que os proprietários do prédio dominante estavam impedidos de exercer a servidão, de que beneficiavam há mais de 30 anos;
- Para a extinção da servidão por não uso não releva o motivo subjetivo subjacente àquele, mas tão-só a sua observância objetiva;
- O prazo de 20 anos a que se refere o artigo 1569.º, n.º 1, al. b), do Código Civil conta-se a partir do momento em que a servidão deixou de ser exercida;
- Mesmo a impossibilidade de exercer a servidão importa a sua extinção uma vez decorrido o prazo aquele prazo;”
Neste último segmento importa reflectir no que explicam Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª edição, págs. 680 e 681:
“Suponhamos que seca a nascente de água que servia de objecto à servidão, ou que é dado outro destino ao edifício onde estava a igreja ou a fábrica, às quais tinha acesso o dono do prédio dominante.
Se os factos forem temporários, seria manifesto desacerto considerar extinta a servidão, prejudicando definitivamente os interesses do proprietário dominante.
Mesmo, porém, que a impossibilidade seja considerada permanente e irremediável, se nenhum interesse reveste a afirmação (platónica) de que a servidão se mantém, também se afigura manifestamente inútil a declaração formal da sua extinção.
A solução deste artigo 1571.º, remetendo para o prazo aplicável ao não uso (art.º 1569.º, 1, alínea b)), tem, entre outras, a vantagem não despicienda de, imprimindo maior certeza ao direito, evitar que os tribunais se vejam envolvidos em indagações, nem sempre fáceis de levar a bom termo, sobre o carácter temporário ou permanente da impossibilidade.
Os termos amplos em que o artigo 1571.º se refere à impossibilidade de exercício são de molde a abranger todos os casos de verdadeira impossibilidade, onde quer que radique a sua causa: no prédio dominante, no prédio serviente ou fora deles…. E pouco importa também à aplicação da norma que a causa da impossibilidade provenha de factos naturais, ou de facto imputável ao titular da servidão, ao dono do prédio serviente ou a terceiro.”
A extinção das servidões pelo não uso tem por causa apenas a inércia do proprietário do prédio dominante.
E essa inércia tanto se verifica se esse proprietário, pura e simplesmente, deixa de passar, circular pelo caminho da servidão por acto voluntário, como também quando é impedido não lança mão da tutela jurídica para repor a utilidade que a servidão lhe proporciona.
Um comportamento do proprietário do prédio dominante que traduza qualquer tipo de inactividade durante o prazo de 20 anos leva à conclusão de que já não precisa dessa utilidade, não se justificando a continuação do encargo sobre o prédio serviente.
Com efeito o ordenamento jurídico pressupõe uma lógica integrada dos seus institutos.
Assim, se o proprietário do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão (artigo 1568º, nº 1 do CC), também o dono do prédio dominante, se for estorvado, pode defender a sua posse utilizando os meios de defesa da posse, sendo que mesmo estas acções de defesa da posse têm um prazo de caducidade, conforme se estatui no artigo 1282.º: “A acção de manutenção, bem como as de restituição da posse, caducam, se não forem intentadas dentro do ano subsequente ao facto da turbação ou do esbulho, ou ao conhecimento dele quando tenha sido praticado a ocultas.”
Tal patenteia que as utilidades e a função social em que se alicerçam os direitos reais de gozo ficam desvirtuadas pela passividade dos seus titulares em relação ao gozo, uso e fruição, dos mesmos. É esta noção que funda a usucapião ou prescrição aquisitiva: Quem usa ganha quem não usa perde
Deste modo, temos de assentar, como na sentença recorrida, pela extinção da servidão de passagem pelo não uso e, consequentemente, pela procedência do fundamento de oposição à execução.
Invocam também os recorrentes que as recorridas actuaram com abuso de direito, pois estavam condenados por sentença a dar servidão, franquear o acesso e entregar as chaves, tendo consciência plena dos direitos que assistiam aos recorrentes e das obrigações que sobre si impendiam, tudo fazendo crer aos recorrentes que iriam cumprir a sentença e que não iriam invocar o direito à extinção pelo não uso;
Atentemos.
Parece que os recorrentes aludem ao abuso direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
Para tal é necessário que exista uma situação (objectiva) de confiança; que essa a situação (objectiva) de confiança seja justificada; que a situação (objectiva) de confiança justificada seja imputável àquele em que se confia.
Da factualidade apreendida nos autos manifestamente se não pode considerar que as recorridas tenham criado qualquer situação objectiva de confiança nos recorrentes de não se oporem ao exercício da servidão, antes pelo contrário.
É consabido que o princípio da proibição do abuso do direito não se esgota no conjunto dos grupos ou tipos de casos considerados na doutrina e na jurisprudência, existindo outros e variados casos em que se pode alcançar um ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
De todo modo, importa aqui aludir à vertente da proibição do tu quoque, ou seja, que a ninguém é dado alegar a própria torpeza em seu próprio benefício. Alguém que contrarie uma norma jurídica não pode, posteriormente, e sem que seja considerado abuso, prevalecer-se da situação daí decorrente e exercer a posição jurídica violada ou exigir que outra pessoa respeite a situação violada.
Porém, a actuação das recorridas tem de equacionar-se num quadro de disputa jurídica em que as partes discutem os direitos no processo cada qual no convencimento de que o direito lhe assiste, podendo socorrer-se das acções e providências judiciais adequadas.
Pelo exposto, delibera-se jugar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

Porto, 23 de Março de 2021
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues
Atesta-se que o presente acórdão tem voto de concordância do Exmº Desembargador Adjunto José Carvalho, nos termos do disposto no artigo 15º-A do DL 10-A/2020, de 13/3, na redacção introduzida pelo artigo 3º do DL 20/2020, de 1/5.

(A relatora escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria).