MINISTÉRIO PÚBLICO
TAXA DE JUSTIÇA
Sumário


SUMÁRIO (da responsabilidade da Relatora - art. 663.º, n.º 7 do CPC)

I. O Ministério Público, enquanto representante do Estado-Colectividade (defesa da legalidade), não pode recorrer de sentença de graduação de créditos proferida em processo de insolvência por apenas discordar da concreta interpretação da lei feita pelo Tribunal a quo (isto é, quando não se verifique qualquer uma das situações em que a lei lhe impõe o recurso obrigatório, face à extrema gravidade de vícios que afectem a decisão final de mérito, ou de inadmissível instrumentalização do processo pelas partes); e também não pode contra-alegar, naquela qualidade, em recurso interposto da mesma sentença de graduação de créditos, por credor reclamante por ela afectado.

II. O Ministério Público, enquanto representante do Estado-Administração (v.g. da credora reclamante Autoridade Tributária), pode recorrer de sentença de graduação de créditos proferida em processo de insolvência por discordar da concreta interpretação da lei feita pelo Tribunal a quo, tal como pode contra-alegar em recurso dela interposto por outro credor reclamante; mas terá então de pagar a taxa de justiça devida pela prática de tais actos, por nem ele próprio, nem aqueles actos, beneficiarem da respectiva isenção.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

1. Decisão impugnada

1.1.1. No processo de insolvência pertinente a X - Comércio e Gestão de Parcerias Comerciais, Limitada, foi proferida sentença de graduação de créditos, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Com relação à verba n.º 1 constante do auto de apreensão:
1º. As dívidas da massa insolvente saem precípuas;
2º. Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos privilegiados reclamados pela Segurança Social;
3º. Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito garantido por penhor reconhecido ao credor Y - Sociedade de Garantia Mútua, S.A.;
4º. Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito enumerado na lista dos credores reconhecidos como privilegiado por força da qualificação como crédito laboral;
5º. Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos privilegiados reclamados pela Fazenda Nacional;
6º. Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos enumerados na lista dos credores como comuns procedendo-se, se necessário, a rateio.
(…)»

1.1.2. Inconformada com esta decisão, a credora Y - Sociedade de Garantia Mútua, S.A. interpôs recurso de apelação, pedindo nomeadamente que se alterasse a graduação de créditos feita, por forma a que pelo produto da venda do objecto do seu penhor mercantil se desse primeiro pagamento ao crédito por si reclamado, e só depois aos demais (nomeadamente, ao crédito reclamado pela Segurança Social, garantido por privilégio mobiliário geral).

1.1.3. O Ministério Público apresentou resposta às alegações de recurso da credora Y - Sociedade de Garantia Mútua, S.A., afirmando fazê-lo enquanto «representante do Estado-Comunidade (defesa da legalidade) e nos termos previstos no artº 3º nº 1 al. a), f) e l) o EMP»; e defendendo a sua isenção de custas para o efeito, lendo-se no final das suas contra-alegações:
«(…)
Nota: Entende o MºPº, actuando em defesa de interesses da Colectividade e não no interesse da Administração do Estado que está isento de pagamento de taxa de justiça, devendo tal circunstância ser ponderada desde já e previamente a eventual admissão da presente resposta ao recurso.
(…)»

1.1.4. Foi proferido despacho, ordenando a notificação do Ministério Público para proceder ao pagamento de taxa de justiça, que se entendeu devida pela apresentação das suas contra-alegações, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Resposta a recurso de 05.03.2021:---
Não obstante o Ministério Público arguir que a apresentação da respectiva resposta ao recurso entretanto interposto se prende com a sua “qualidade de representante do Estado-Comunidade (defesa da legalidade) e nos termos previstos no artº 3º nº 1 al. a), f) e l) do EMP”, o certo é que, nos presentes autos, teve intervenção em representação do credor Autoridade Tributária e, como tal, foi notificado.---
Ora, em anotação ao CIRE, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda referem que “se houver impugnações, abre-se um incidente no processo de insolvência, regulado nos art. 131º a 140º (…)» (in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, edição de 2009, pág. 456). Por outro lado, o Regulamento das Custas Processuais não consagra nenhuma isenção objectiva de custas relativamente a esse incidente, sendo certo que, ainda que a intervenção do Ministério Público em representação da autoridade tributária não está abrangida por alguma das isenções subjectivas contempladas no art. 4º desse diploma.---
Pelo exposto, entende-se que o Ministério Público não está isento de pagamento de taxa de justiça pela apresentação da resposta ao recurso em sujeito, devendo, portanto, ser notificado para proceder ao respetivo pagamento em conformidade.
(…)»

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1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos

Inconformado com esta decisão, o Ministério Público interpôs recurso de apelação, pedindo que fosse revogado o despacho recorrido e se autorizasse a subida da respectiva resposta ao recurso de apelação interposto pela credora Y - Sociedade de Garantia Mútua, S.A..

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis):

1. O despacho que determina a obrigatoriedade de o MºPº proceder ao pagamento de taxa de justiça pela resposta a alegações de recurso interposto por um credor não se conforma com a legalidade.

2. O MºPº, neste caso, enquanto titular de interesses colectivos e da Comunidade, deverá assim ser entendido como interventor na acção e na respectiva peça processual, em defesa da estrita legalidade e não apenas dos interesses difusos de uma Administração Tributária.

3. O MºPº na qualidade de representante de tais interesses colectivos age em nome da Comunidade, em nome próprio e por isso não está sujeito a pagamento de taxa de justiça, no caso concreto- artº 4º nº 1 al. a) RCP.
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1.2.2. Contra-alegações

Não foram apresentadas contra-alegações.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, e do recurso de apelação interposto pelo Ministério Público, uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal:

· Questão Única - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação do direito (nomeadamente, por não existir fundamento legal para exigir do Ministério Público o pagamento de taxa de justiça pela apresentação de contra-alegações em recurso de apelação interposto de sentença de graduação de créditos por um credor da insolvência), impondo-se a alteração da decisão proferida (nomeadamente, determinando a subida das contra-alegações do Ministério Público, sem o pagamento de qualquer taxa de justiça)?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação da segunda questão enunciada, encontram-se assentes nos autos os factos elencados em «I - RELATÓRIO» (relativos ao seu processamento), que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Taxa de justiça devida pelo Ministério Público - Processo de insolvência

4.1.1. Taxa de justiça - Em geral

Lê-se no art. 529.º do CPC que as «custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte» (n.º 1); e precisa-se ainda que a «taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente e é fixado em função do valor e complexidade da causa, nos termos do Regulamento das Custas Processuais» (n.º 2), enquanto que os «encargos do processo» são «todas as despesas resultantes da condução do mesmo, requeridas pelas partes ou ordenadas pelo juiz da causa» (n.º 3), e as «custas de parte compreendem o que cada parte haja despendido com o processo e tenha direito a ser compensada em virtude da condenação da parte contrária, nos termos do Regulamento das Custas Processuais» (n.º 4).
Com efeito, está pacificamente aceite que a garantia constitucional do acesso ao Direito (art. 20.º da CRP) não postula a gratuidade no acesso à justiça: a actividade jurisdicional não é exercida gratuitamente, impendendo sobre os litigantes o ónus de pagar determinadas taxas para que possam pôr em marcha a máquina da justiça (conforme José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra Editora, 1981, pág. 199).
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Precisando, e no que à taxa de justiça diz respeito, reitera-se no art. 6.º, n.º 1 do RCP que a «taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor e complexidade da causa de acordo com o presente Regulamento, aplicando-se, na falta de disposição especial, os valores constantes da tabela I-A, que faz parte integrante do presente Regulamento».
O dito «impulso processual» «é, grosso modo, a prática do ato de processo que dá origem a núcleos relevantes de dinâmicas processuais, designadamente, a ação, a execução, o incidente, o procedimento, incluindo o cautelar, e o recurso» (Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais Anotado e Comentado, 2012, 4.ª edição, Almedina, pág. 73).
Mais se lê, no art. 530.º, n.º 1, do CPC, que a «taxa de justiça é paga apenas pela parte que demande na qualidade autor ou réu, exequente ou executado, requerente ou requerido, recorrente e recorrido, nos termos do disposto no Regulamento das Custas processuais»
Logo, a taxa de justiça é suportada exclusivamente pelo requerente (para promoção de acções e recursos, bem como de determinados incidentes, ou para os contraditar), enquanto impulsionador do processo (isto é, quer do lado activo, quer do lado passivo) e à medida que o faz: «como regra geral, (…) os interessados directos no objeto do processo, quer quando impulsionem o seu início, quer quando formulem em relação a ele um impulso de sentido contrário, são responsáveis pelo pagamento da taxa de justiça» (Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais Anotado e Comentado, 2012, 4.ª edição, Almedina, pág. 229).

Ora, se o critério do vencimento não relva, em regra, para efeito de pagamento de taxa de justiça (1), encontra-se aqui necessariamente subjacente a noção (há muito aceite na jurisprudência - nomeadamente constitucional - e na doutrina) que a taxa de justiça consubstancia uma verdadeira taxa e não um imposto: é contrapartida da prestação individualizada de um serviço, neste caso por parte do Estado que o detém monopolisticamente (vide, por todos, Acórdão n.º 227/2007, do Tribunal Constitucional, in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos).

A omissão do pagamento da taxa de justiça dá lugar à aplicação das sanções previstas na lei de processo, nomeadamente: a recusa da petição inicial pela secretaria (art. 558.º, n.º 1, al. f), do CPC); o desentranhamento da contestação (no circunstancialismo previsto no art. 570.º do CPC); e, em matéria de recursos, o desentranhamento da alegação, do requerimento ou da resposta apresentado pela parte em falta (art. 642.º do CPC).
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4.1.2. Taxa de justiça - Em particular

4.1.2.1. Isenção do Ministério - Pressuposto

Lê-se no art. 4.º, n.º 1, al. a), do RCP, e no que ora nos interessa, que estão «isentos de custas» o «Ministério Público nos processos em que age em nome próprio na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei, mesmo quando intervenha como parte acessória».
Logo, a isenção subjectiva aqui em causa limita-se à intervenção do Ministério Público quando aja em nome próprio, face ao excepcional relevo dos direitos e interesses cuja defesa lhe é então confiada (isto é, para a qual lhe foi concedida legitimidade).
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4.1.2.2. Actuação do Ministério Público

4.1.2.2.1. Em representação de parte principal

Com efeito, lê-se no art. 219.º, n.º 1 da CRP que ao «Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar». Logo, é o mesmo aí definido por referência às competências que lhe estão cometidas (inserindo-se o art. 219.º citado no capítulo dedicado aos Tribunais, e tendo como epígrafe «Funções e estatuto»).

A norma constitucional é densificada no Estatuto do Ministério Público (aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto), que determina a competência deste órgão do Estado; e, consequentemente, define os interesses que lhe estão legalmente confiados. Lê-se, assim, no seu art. 2.º que o «Ministério Público representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar».
Mais se lê, no art. 4.º, n.º 1 do mesmo Estatuto do Ministério Público, que compete, «especialmente, ao Ministério Público: (…) b) Representar o Estado, as regiões autónomas, as autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta; (…) g) Exercer o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de carácter social».
Logo, ao Ministério Público compete, designadamente, a defesa dos interesses do Estado, dos incapazes, dos incertos, dos ausentes e dos trabalhadores (no que se reporta aos seus direitos de carácter social),
O art. 9.º, n.º 1, seguinte adjectiva a intervenção (substantiva prevista no art. 4.º), lendo-se no mesmo que o «Ministério tem intervenção principal nos processos: a) Quando representa o Estado; b) Quando representa as regiões autónomas e as autarquias locais; c) Quando representa incapazes, incertos ou ausentes em parte incerta; e) Quando exerce o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de carácter social».

Dir-se-á ainda que, no que diz respeito ao Estado-Administração, a legislação processual civil comum contém também uma outra norma complementar, o art. 24.º, n.º 1.º do CPC (que reafirma o princípio da representação do Estado pelo Ministério Público em sede cível).

Por fim, harmonizando-se com o preceito constitucional e com as normas estatutárias, o art. 6.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), estabelece, no seu art. 3.º, n.º 1, que o «Ministério Público representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar, participa na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exerce a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defende a legalidade democrática, nos termos da Constituição, do respetivo estatuto e da lei».

Ora, quando o Ministério Público actue em representação das entidades referidas antes, a título de intervenção principal, actuará processualmente em posição idêntica à das suas outras partes; e só assim não sucederá quando, expressa e excepcionalmente, a lei o disser, pela ponderação pontual de outros valores (v.g. arts. 569.º, n.º 4 e 574.º, n.º 4, ambos do CPC).
A «verdade é que o M.º P.º em juízo cível, defende sempre interesses - públicos ou privados - actua sempre em posição de parte, submetido em regra, à respectiva disciplina processual de actuação e independente de qualquer poder. Só que (…) não é uma parte (…) mas representa uma parte. Representação que, conforme os casos, se faz por uma das formas atrás indicadas - orgânica, voluntária ou forçadamente», sendo que, neste última hipótese, os poderes representativos derivam da lei e nunca da vontade do representado (António da Costa Neves Ribeiro, O Estado Nos Tribunais, Coimbra Editora, 1985, pág. 33, com bold apócrifo) (2).
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Particularizando agora o entendimento exposto, no que ao processo de insolvência diz respeito, lê-se no art. 20.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), que a «declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados».
Defende-se, assim, que a «redacção do preceito legal afasta, de forma inequívoca, a legitimidade oficiosa do Ministério Público para instaurar as acções de insolvência, ao determinar expressamente que a sua intervenção é assegurada apenas em representação das entidades cujos interesses lhes estão cometidos por Lei» (Jaime Olivença, «A intervenção do Ministério Público no processo de insolvência: instauração da ação e reclamação de créditos», Processo de Insolvência e Ações Conexas, E-book do CEJ, Dezembro de 2014, consultado em Abril de 2021, in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Processo_insolvencia_acoes_conexas.pdf) (3).

Mais se lê, no art. 128.º, n.º 1 do CIRE, que, dentro «do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham».
Logo, e mais uma vez, na reclamação de créditos actua o Ministério Público em representação de uma parte (no caso, credor), de forma processualmente equiparável a de qualquer outra; e só assim não sucederá quando, expressa e excepcionalmente, a lei o disser, pela ponderação pontual de outros valores.
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4.1.2.2.2. No exercício de um poder próprio e exclusivo

Mas o Ministério Público actua ainda, nomeadamente em sede cível, a título de parte acessória, isto é, já não lhe cabendo o impulso processual do processo (seja de acção, seja de contestação), em representação de quem a lei defina para o efeito, cabe-lhe a assessoria oficiosa a uma das suas partes (v.g. Regiões Autónomas, Autarquias Locais, incapazes), mercê de um interesse colectivo que justifica essa sua actuação.
Ora, aqui já não actua como parte, mas sim no exercício de um poder próprio e exclusivo, sem paralelo com qualquer outro interveniente processual.

Da mesma forma, de resto, actuará oficiosamente em defesa do ordenamento jurídico como um todo, atribuindo-lhe igualmente a lei, e de forma expressa, essa legitimidade.
Com efeito, lê-se no art. 219.º, n.º 1, da CRP, que compete ao Ministério Público «defender a legalidade democrática».
Mais se lê, no art. 4.º, n.º 1, als. a), j) e q), do Estatuto do Ministério Público, e respectivamente, que compete, especialmente, ao Ministério Público defender «a legalidade democrática», defender «a independência dos tribunais, na área das suas atribuições, e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis», e recorrer «sempre que a decisão seja efeito de conluio das partes no sentido de fraudar a lei ou tenha sido proferida com violação de lei expressa» (4).
Compreende-se que, para cumprimento das competências previstas nas als. j) e q), do n.º 1, do art. 4.º citado, «deve o Ministério Público ser notificado das decisões finais proferidas por todos os tribunais» (n.º 3 do mesmo preceito) (5).
São, assim, exemplos desta outra actuação, em nome próprio: os recursos obrigatórios que deva interpor, para o Tribunal Constitucional (art. 72.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional) e para outros Tribunais; os conflitos de jurisdição e de competência que deva suscitar (art. 111.º, n.º 2, do CPC); ou a intervenção no processo especial de revisão de sentença estrangeira (art. 982.º e 985.º, n. º 2, do CPC).

Quando o Ministério Público aja deste modo, não existem dúvidas de que a sua actuação em nada se confunde com a de qualquer parte, pronunciando-se nomeadamente nos processos cíveis, não por meio de articulados ou requerimentos (à semelhança daquelas), mas sim por meio de promoções, em vistas abertas para o efeito.
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Particularizando novamente o entendimento exposto, no que ao processo de insolvência diz respeito, lê-se no art. 4.º, n.º 1, al. m), do Estatuto do Ministério Público que o mesmo tem o direito de «intervir nos processos de insolvência e afins, bem como em todos os que envolvam interesse público de intervir». Logo, se tem esse direito de intervenção, não fica o mesmo dependente da iniciativa de quem a solicite, sendo exercida em nome próprio, na defesa do que se reconhece ser um interesse público.

Surge, assim, consagrada, em processo de insolvência, a sua actuação em nome próprio, consubstanciando o cumprimento de um dever de tutela de interesses públicos, ligados ao crédito e ao bom funcionamento da economia em geral.
O CIRE tem, porém, a preocupação de concretizar esta actuação do Ministério Público (enquanto garante da legalidade no curso do processo de insolvência), mas reportando-a a concretas fases e actos do mesmo (6). Pode e deve, assim, ter intervenção quanto: à legalidade e regularidade das contas apresentadas pelo administrador da insolvência, conforme art. 64.º do CIRE; à condenação do afectado pela qualificação da insolvência como culposa (de onde vai resultar a sua obrigação de ressarcir pessoalmente os credores que não sejam satisfeitos no rateio, além das sanções civis dali derivadas, com reflexos obrigatórios em termos registais), conforme art. 188.º do CIRE; e à fiscalização das decisões tomadas em assembleia de credores que com aqueles interesses possam contender, por isso sendo facultada a sua participação na mesma, conforme art. 72.º, n.º 6 do CIRE. É ainda notificado da sentença declaratória da insolvência, mesmo quando não representa o respectivo requerente, conforme art. 37.º, n.º 2, do CIRE.
Quando assim o faça, dúvidas não existem de que a sua actuação em nada se confunde com qualquer parte, pronunciando-se nomeadamente, não por meio de articulados ou requerimentos (à semelhança daquelas), mas por meio de promoções, em vistas abertas para o efeito (conforme expressa e taxativamente se impõe no n.º 2, do art. 64.º, e no n.º 4, do art. 188.º, ambos do CIRE).
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4.2. Subsunção do caso concreto (ao Direito aplicável)

4.2.1. Concretizando, verifica-se que, actuando o Ministério Público nos autos de graduação de créditos em representação do credor Autoridade Tributária, foi nessa qualidade notificado da sentença de graduação de créditos.
Podendo recorrer da mesma (como representante de parte por ela afectada), se decidisse fazê-lo teria que proceder ao pagamento da pertinente taxa de justiça, por actuar então como representante do Estado-Administração (e não do Estado- Colectividade); e não estar prevista qualquer outra isenção para o incidente em causa (isenção objectiva, isto é, consagrada face à natureza dos autos).
Não usou, porém e aparentemente, o Ministério Público dessa faculdade de recurso, parecendo que a credora reclamante Autoridade Tributária se conformou com o teor da sentença de graduação de créditos proferida.
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4.2.2. Concretizando novamente, vindo contudo a credora reclamante Y - Sociedade de Garantia Mútua, S.A. recorrer da dita sentença de graduação de créditos (por entender que, mercê do penhor mercantil de que dispunha, o crédito por si reclamado deveria ser pago em primeiro lugar pelo produto da venda do bem assim onerado, e não apenas após o pagamento do crédito reclamado pela Segurança Social, patrocinada por mandatário próprio), contra-alegou o Ministério Público, dizendo fazê-lo na sua veste de «representante do Estado-Comunidade», em «defesa da legalidade».
Contudo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, no caso dos autos não lhe assistia legitimidade para essa pretendida actuação (naquela precisa qualidade).

Com efeito, estando-se perante um direito de contra-alegação, encontra-se o mesmo consagrado a favor da contraparte no recurso interposto, isto é, do recorrido, que pela sua procedência poderá ficar negativamente afectado (art. 638.º, n.º 5, do CPC). Ora, e manifestamente, o Ministério Público quando age em defesa da legalidade (em que, recorda-se, não é parte, nem contraparte) não é subsumível a um tal conceito.

Dir-se-á ainda que, não se estando perante um daqueles casos de recurso obrigatoriamente a interpor por si, face à extrema gravidade dos alegados vícios que afectariam a decisão a impugnar (como aplicação de lei reconhecidamente inconstitucional, ou violação de lei expressa), ou de inadmissível instrumentalização do processo (por conluio das partes, no sentido de fraudar a lei), também não poderia o Ministério Público recorrer aqui da sentença de graduação de créditos, enquanto representante do Estado-Colectividade, por apenas discordar da concreta interpretação da lei feita pelo Tribunal a quo.
Ora, não podendo o mais (recorrer), também não pode o menos (contra-alegar, em recurso interposto por terceiro).

Por fim, dir-se-á que, sendo indiscutível a sua actuação fiscalizadora, em nome próprio, da legalidade no curso dos autos em sede de processo de insolvência, a mesma está reservada por lei a determinadas fases e/ou actos processuais respectivos; e, no seu elenco, não se contém o recurso, por direito e em nome próprio, da sentença de graduação de créditos, para além daquelas outras e gerais situações já referidas (vícios graves e taxativos, e instrumentalização dos autos).

Ora, não podendo recorrer no caso dos autos em nome do Estado-Colectividade (único pressuposto em que, como ele próprio reconhece, estaria isento de custas), considerou o Tribunal a quo estar a contra-alegar em nome da credora reclamante Autoridade Tributária, isto é, enquanto representante do Estado-Administração; e, nessa medida, será efectivamente devida taxa de justiça pelas contra-alegações apresentadas.

Improcede assim totalmente o recurso de apelação apresentado pelo Ministério Público.
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V – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelo Ministério Público e, em consequência, em:

· Confirmar o despacho recorrido, quando limita a legitimidade do Ministério Público para contra-alegar (no recurso de apelação interposto pela credora reclamante Y - Sociedade de Garantia Mútua, S.A.) à sua qualidade de representante da credora reclamante Autoridade Tributária, e lhe exige para o efeito o pagamento da legal taxa de justiça devida por essas contra-alegações.
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Sem custas, por o Recorrente delas estar aqui isento (art. 527.º, n.º 1 do CPC, e art. 4.º, n.º 1, al. a), do RCP).
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Guimarães, 08 de Abril de 2021.
O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;

1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;

2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.




1. Contudo, se no regime actual das custas processuais existe uma clara e intencional autonomização entre a responsabilidade pelo pagamento da taxa de justiça e a responsabilidade pelo pagamento de encargos e de custas de parte, a lei não deixou de introduzir mecanismos correctores e de reequilíbrio da relação tributária processual. Assim, se a conta final do processo discrimina, não o que as partes devem pagar em função do respectivo vencimento, mas sim o que cada uma delas deveria ter pago ao longo do mesmo para o impulsionar (em função do dito vencimento), o saldo dessa relação pode, porém e então, ser reclamado da contraparte, em sede de custas de parte (conforme arts. 529.º, n.º 2 e 530.º, n.º 1, ambos do CPC, e arts. 6.º, n.º 1, 13.º, n.º 1, 25.º, n.º 2, al. b), todos do RCP).
2. Este mesmo entendimento, e o respectivo texto, viriam a ser expressamente reproduzidos na Ficha Documentos da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, «Respondendo às duas questões colocadas à PGDL - PATROCÍNIO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DOS TRABALHADORES NO ÂMBITO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA; II. VALOR DAS CUSTAS QUE JUSTIFICAM A PROMOÇÃO DA EXECUÇÃO CORRESPONDENTE», cujas conclusões mereceram a concordância da Procuradora-Geral Distrital, devendo ser observadas pelo MP no Distrito, consultada em Outubro de 2020, in http://www.pgdlisboa.pt/docpgd/doc_mostra_doc.php?nid=168&doc=files/doc_0168.html; e seriam depois consagrados na Circular nº 5/2011, de 10 de Outubro de 2011, da Procuradoria-Geral da República. Posteriormente, a Circular n.º 16/2004, de 6 de Dezembro de 2004, da Procuradoria-Geral da República (emitida na sequência do Ac. do STJ de 4 de Fevereiro de 2003), relativa à «Representação do Estado pelo Ministério Público», veio consagrar idêntico entendimento, ao definir os termos em que a representação deve ser assegurada pelo Ministério Público nas diferentes jurisdições, incluindo no foro das insolvências, determinando a seguinte orientação obrigatória: «Os Magistrados do Ministério Público, quando intervenham em representação do Estado ou de outras entidades públicas nos termos do artigoº 20 do Código de Proc. Civil, não devam instaurar quaisquer acções sem que uma pretensão concreta de intervenção lhes seja previamente formulada pelo departamento competente da administração».
3. No mesmo sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3.ª edição, pág. 126. Contudo, em sentido contrário, defendendo a legitimidade do Ministério Público para requerer insolvências em nome próprio, nomeadamente em defesa do crédito e da economia, Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora, 2009, págs. 303 e seguintes, onde nomeadamente se lê: «Quem são, realmente, as entidades cujos interesses estão legalmente confiados ao Ministério Público: apenas as entidades públicas titulares de créditos, as entidades públicas mesmo que não titulares de créditos ou também outros sujeitos? Quais são, afinal, os interesses legalmente confiados ao Ministério Público: apenas os interesses relacionados com os direitos de crédito das entidades públicas (enquanto interesses específicos das entidades subjectivamente entendidas) ou também outros interesses seus (enquanto interesses gerais do ordenamento jurídico) e os interesses de sujeitos diversos?». Dir-se-á que «é impossível não ver que o poder de iniciativa do Ministério Público continua a ter, no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, um fundamento normativo próprio, autónomo e independente daquele que respeita, indiscriminadamente, aos credores»; e «se a intenção do legislador fosse a de restringir a acção do Ministério Público à representação de certos credores (e à prossecução dos respectivos interesses patrimoniais), qual a necessidade de uma disposição conferindo-lhe expressamente legitimidade para agir ?». Ainda, da mesma Autora, Lições de Direito de Insolvência, Almedina, 2018, pág. 119, onde nomeadamente se lê que, «além do poder de acção que lhe é atribuído para defesa dos interesses de carácter patrimonial do Estado e de outros credores públicos e deve ser exercido em representação destes últimos, o Ministério Público é titular de um poder de acção próprio, orientado para a defesa de interesses públicos de tipo diverso, associados, designadamente, aos valores do crédito e da economia».
4. Procurando igualmente obstar à verificação de tais vícios, mas então a montante, lê-se: no art. 612.º do CPC que, quando «a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objetivo anormal prosseguido pelas partes»; e no art. 616.º, n.º 2, al. a), do CPC que, não «cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos».
5. De forma conforme, lê-se no art. 252.º, n.º 1 do CPC que, para «além das decisões finais proferidas em quaisquer causas, são sempre oficiosamente notificadas ao Ministério Público quaisquer decisões, ainda que interlocutórias, que possam suscitar a interposição de recursos obrigatórios por força da lei». Está aqui em causa a notificação de decisões finais proferidas em processos em que o Ministério Público nem é parte principal, nem é parte acessória, já que estas ser-lhe-ão notificadas nos termos do art. 220.º, n.º 1 do CPC (onde se lê que devem ser notificadas às partes, «sem necessidade de ordem expressa, as sentenças e os despachos que a lei mande notificar e todos os que possam causar prejuízo às partes».
6. Defende-se hoje que a «antiga orientação do Estatuto Judiciário que cometia ao Ministério Público, na qualidade de síndico da falência, a tarefa de “orientar e fiscalizar os actos do administrador e providenciar para que este proceda com a devida diligência no exercício do cargo” (artº 73º als. c) e i) E.J.), foi expressamente revogada pelo artº 9º do Decreto Preambular do CPEREF e de modo algum poderá ser repristinada para a actualidade do CIRE» (Ac. da RG, de 05.11.2020, Jorge Santos, Processo n.º 105/19.4T8VNF-G.G1). Compreende-se que assim seja, já que «o paradigma estruturante do regime do processo de insolvência radica na consideração de que o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores, traduzindo-se a afirmação da supremacia dos credores no processo na intensificação da sua desjudicialização, sendo inúmeros os sinais do intuito do reforço da tutela dos credores no CIRE (na decorrência da privatização progressiva do regime da insolvência), entregando-se-lhe poderes decisivos e (quase) exclusivos no que toca à continuação e ao encerramento do processo» (Ac. da RG, de 03.12.2020, Ramos Lopes, Processo n.º 2429/20.9T8VNF.B.G1, com desenvolvida resenha histórica).