REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA POR DECLARAÇÕES DE PARTE
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PEDIDO
Sumário

I - Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual.
II - A prova por declarações de parte, nos termos enunciados no artigo 466º do Código de Processo Civil, é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, na certeza de que a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias e que, neste enquadramento, a declaração de parte que é favorável e que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente, será normalmente insuficiente à prova de um facto essencial que constitua a causa de pedir ou em que se baseie a exceção invocada.
III - Portanto, será num contexto de suficiência probatória e não propriamente de valoração negativa e condicionada da prova que as declarações de parte devem ser analisadas.
IV - Em efectiva e típica ação de reivindicação (ação real) o verdadeiro e específico pedido é o de condenação do réu a restituir a coisa reivindicada, funcionando o pedido de reconhecimento do direito de propriedade como preparatório ou premissa daquele, tanto assim que se tem considerado o mesmo como implícito, quando não expressamente formulado.
V - Reconhecido que seja o direito de propriedade do reivindicante, e surgindo a impetrada entrega/restituição como uma manifestação da sequela que caracteriza esse direito, deve o detentor da coisa ser condenado a restituí-la, salvo se - como previne o nº 2 do artigo 1311º do Código Civil - invocar e provar a titularidade de algum direito que o legitime a continuar a manter a coisa em seu poder.
VI - O direito constituído por acordo feito no processo de divórcio por mútuo consentimento entre a ré e o seu ex-marido, que teve por objecto a utilização da casa de morada de família (bem próprio do ex-marido), destinando-se esta à habitação da demandada tendo em conta (e por medida) as suas necessidades e da sua família ao tempo em que o divórcio foi decretado, é um verdadeiro e próprio direito (real) de habitação.
VII - Dadas as características de realidade que exornam esse direito, a simples modificação (subjectiva) do domínio da propriedade ou da intenção do proprietário não determinam ipso facto a extinção do mesmo, o que, na falta de previsão no seu título constitutivo, apenas ocorre nas situações típicas definidas no artigo 1476º ex vi do artigo 1490º, ambos do Código Civil.
VIII - O facto do direito de habitação não estar inscrito no registo predial não impede a sua oponibilidade aos autores reivindicantes que entretanto hajam adquirido o imóvel ao ex-cônjuge da beneficiária desse direito, visto que, relativamente a eles, não são terceiros entre si para os efeitos do disposto no nº 4 do artigo 5º do Código de Registo Predial, mas antes parte, no sentido visado pelo nº 1 do artigo 4º desse Corpo de Leis.

Texto Integral

Processo nº 5484/18.8T8VNG.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Vila Nova de Gaia, Juízo Central Cível - Juiz 1
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha

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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

B… e C… instauraram a presente acção declarativa com processo comum contra D… e E…, pedindo que as rés sejam condenadas a:
a) Procederem à entrega do imóvel identificado no art. 1º da petição inicial, quando a 2ª ré terminar o período escolar, com o respectivo aproveitamento (ou perfizer a idade de 25 anos, caso não tenha concluído os mesmos), livre de pessoas e bens;
b) Procederem solidariamente ao pagamento da compensação/contrapartida mensal no valor de 950,00 €, pela utilização do imóvel propriedade dos autores, a contar da citação até à respectiva entrega, livre e de pessoais e bens, tudo acrescido de juros vencidos a contar da citação e dos vincendos, até integral pagamento.
Para sustentarem as pretensões formuladas alegam, em resumo, que são proprietários do imóvel supra referenciado, o qual se encontra ocupado pelas rés de forma totalmente gratuita, através de um direito de uso conferido pelo anterior proprietário - facto que os autores desconheciam à data da aquisição -, encontrando-se, consequentemente, os ora demandantes privados de usar, usufruir e dispor do prédio em questão de acordo com os seus interesses.
A 1ª ré contestou, arguindo a ineptidão do articulado inicial e a excepção de caso julgado, mais impugnando, de forma motivada, parte da factualidade alegada pelos autores.
A 2ª ré também apresentou contestação, arguindo as excepções dilatórias de ilegitimidade passiva e de ineptidão da petição inicial, mais tendo impugnado, também de forma motivada, parte do acerco factual carreado para os autos por parte dos demandantes.
Os autores apresentaram réplica, pronunciando-se no sentido da improcedência das invocadas excepções dilatórias.
Teve lugar audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho a julgar improcedentes as arguidas excepções dilatórias, após o que se procedeu à identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Subsequentemente, foi realizada audiência final, com observância do formalismo legalmente prescrito, vindo a ser proferida sentença que julgou a ação procedente e, em consequência:
a) Condenou as rés a entregarem aos autores, livre de pessoas e bens, o prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com garagem, sito na …, nº …, União de Freguesias …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº1819 (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 5940;
b) Condenou as rés a pagarem mensalmente aos autores o valor mensal de 950,00 € (novecentos e cinquenta euros), a título de contrapartida pela utilização do imóvel propriedade dos autores, a contar da citação até à respectiva entrega, livre e de pessoais e bens, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde a citação até integral pagamento.
Não se conformando com o assim decidido cada uma das rés interpôs recurso, admitidos como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Com o requerimento de interposição do recurso a ré E… apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
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Por seu turno, a ré D… termina as suas alegações formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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Notificados os autores apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência dos recursos.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelas apelantes, são as seguintes as questões solvendas:
. determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas;
. saber se é, ou não, legítima a recusa de entrega, por parte das rés, aos autores do prédio urbano por estes reivindicado;
. da (in)existência de obrigação de pagamento pelas rés de uma contrapartida pecuniária mensal pela ocupação do ajuizado imóvel.
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2. Recurso da matéria de facto
2.1. Factualidade considerada provada na sentença

O tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1 – Por contrato de compra e venda outorgado em 15/4/2014, os autores adquiriram a F…, que por sua vez vendeu, o prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com garagem, sito na …, nº…, União de Freguesias …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº1819 (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 5940.
2 – Os autores procederam, no acto de outorga do referido contrato, ao pagamento da quantia de 150.000,00 €, ao referido F…. 3 – O anterior proprietário F… obrigou-se à entrega do imóvel livre de quaisquer ónus ou encargos, ficando assegurado o cancelamento da hipoteca registada a favor da G….
4 – De acordo com as informações prestadas por F… aos autores, e de acordo com as demais que constavam na certidão predial do imóvel adquirido, a referida hipoteca era o único ónus que recaía sobre tal imóvel.
5 – A seguir à compra, a 1ª ré contratou um serralheiro e mudou a fechadura da porta que dá acesso ao imóvel, nele permanecendo até à presente data.
6 – As rés encontram-se a habitar o imóvel supra identificado de forma totalmente gratuita.
7 – Quando os autores pretenderam tomar posse do imóvel, a ré D… recusou-se a abandoná-lo porque, segundo a mesma “teria esse direito desde a data do divórcio” com o seu ex-marido F….
8 – Quando os autores tentaram ocupar o imóvel de sua propriedade, foram exibidos pela 1ª ré os seguintes acordos celebrados com F…:
DESTINO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Ambos os requerentes do divórcio decidiram acordar o seguinte sobre a casa de morada de família:
1. A casa onde os requerentes residiam juntamente com a filha, situada na …, nº …, …, ….-… Vila Nova de Gaia, é bem próprio do cônjuge marido, tendo sido adquirida por este antes do matrimónio.
2. A casa, enquanto habitação da requerente mulher D… e da filha E…, fica destinada à utilização habitacional da requerente mulher, a título gratuito.
3. Será da responsabilidade da requerente mulher o pagamento de todas as despesas referentes aos consumos de água, luz e outras decorrentes do uso desse imóvel.
9 – A 1ª ré prescindiu, aquando do divórcio, de prestação de alimentos, alegando deles não carecer.
10 – O identificado F… nunca informou os autores da existência dos acordos referidos em 8.
11 – Até à presente data, os autores estão impedidos de livremente usar, conforme os seus interesses, o referido imóvel.
12 – Pretendiam os autores estar mais perto de um estabelecimento de restauração que detêm próximo do aludido imóvel, evitando deslocações à sua habitação sita na cidade do Porto.
13 – A 2ª ré já atingiu a maioridade.
14 – Não tendo, contudo, atingido o seu processo de formação educativa.
15 – O valor comercial do imóvel dos autos ronda actualmente 300.000,00 € (trezentos mil euros).
16 – São os autores quem procede ao pagamento mensal da prestação bancária devida pela aquisição do imóvel.
17 – As rés apenas procedem ao pagamento das despesas de manutenção do imóvel, como sejam as relativas ao saneamento, electricidade e gás.
18 – O arrendamento de um imóvel com características semelhantes ascende a um valor mensal não inferior a 950,00 € (novecentos e cinquenta euros).
19 – A 2ª ré nasceu em 17 de Julho de 1994.
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2.2. Apreciação da impugnação da matéria de facto

Nas conclusões recursivas vieram as apelantes requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados provados, com fundamento em erro na apreciação da prova.
Como é consabido, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e as apelantes impugnam a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar e decisão que sugerem, mostrando-se, assim – contrariamente ao que defendem os apelados -, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação dessa decisão.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “ […] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo a audiência final processou-se com gravação da prova pessoal prestada nesse ato processual.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[2], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil.
Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada.
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[4].
Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão às apelantes, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por elas preconizados.
Como emerge das respetivas conclusões recursivas, as recorrentes (que, na essência, impugnam a mesma materialidade, razão pela qual apreciaremos em conjunto as pretensões impugnatórias que apresentam) advogam ter sido erroneamente julgada a facticidade constante dos pontos nºs 4, 5, 9, 10 e 18 dos factos provados, sustentando que as afirmações de facto aí vertidas devem, antes, transitar para o elenco dos factos não provados.
Nos referidos pontos o decisor de 1ª instância considerou provado que:
. “De acordo com as informações prestadas por F… aos autores, e de acordo com as demais que constavam na certidão predial do imóvel adquirido, a referida hipoteca era o único ónus que recaía sobre tal imóvel” (ponto nº 4);
. “A seguir à compra, a 1ª ré contratou um serralheiro e mudou a fechadura da porta que dá acesso ao imóvel, nele permanecendo até à presente data” (ponto nº 5);
. “A 1ª ré prescindiu, aquando do divórcio, de prestação de alimentos, alegando deles não carecer” (ponto nº 9);
. “O identificado F… nunca informou os autores da existência dos acordos referidos em 8” (ponto nº 10);
. “O arrendamento de um imóvel com características semelhantes ascende a um valor mensal não inferior a 950,00 € (novecentos e cinquenta euros)” (ponto nº 18).
Questão que imediatamente se coloca é a de saber qual o efetivo relevo da impugnação relativa à materialidade plasmada nos pontos factuais nºs 5 e 9 para a decisão do presente pleito.
Como é consabido, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, visa, em primeira linha, alterar o sentido decisório sobre determinada factualidade que se considera incorretamente julgada. Mas este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal recorrido considerou provada ou não provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que, afinal, existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. O seu efetivo objetivo é, portanto, conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante.
Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer - conforme vem sendo recorrentemente entendido[5] -, que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.
Alinhando por igual visão das coisas, entendemos que a preconizada alteração do sentido decisório relativamente aos aludidos pontos factuais não assume, in concreto, relevância para a decisão do presente pleito, não se vislumbrando qual a efectiva utilidade para a presente ação reivindicatória em saber se foi, ou não, a ré D… a proceder à mudança da fechadura da porta que dá acesso ao imóvel, e bem assim se essa demandada prescindiu ou não, aquando do divórcio, de prestação de alimentos, alegando deles não carecer.
Consequentemente, não há, pois, que apreciar o referido segmento impugnatório, porquanto o seu conhecimento se revela espúrio e desnecessário para a decisão das concretas questões que consubstanciam o objecto do recurso.
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Relativamente aos pontos nºs 4 e 10 sustentam as apelantes que não foi produzida prova consistente que permita suportar um juízo positivo sobre a materialidade neles vertida, posto que apenas os autores depuseram sobre tal matéria, sendo que as suas declarações não foram confirmadas por qualquer outro meio probatório.
Vejamos.
Para justificar o sentido decisório acolhido relativamente às aludidas proposições factuais, o decisor de 1ª instância, na respetiva motivação de facto, discorreu nos seguintes termos: “[a prova desses factos] resulta das declarações prestadas pelos autores em sede de audiência, sem prejuízo do suporte documental de fls. 24 e 24vº, o qual é demonstrativo da inexistência de encargos sobre o imóvel para além do que foi constituído à data da aquisição referida no ponto 1 (hipoteca a favor do H…)”.
Portanto, na essência, o juiz a quo fundamentou o juízo positivo sobre a aludida materialidade tendo por base unicamente as declarações de parte prestadas pelos próprios autores, posto que, na economia da respectiva alegação, o que primordialmente se discute é se os autores, durante a fase negociatória que veio a culminar com a celebração do contrato de compra e venda que teve por objecto mediato o ajuizado imóvel, não foram informados pelo ex-marido da ré D… (proprietário desse imóvel) da existência do acordo a que se alude no ponto nº 8 dos factos provados[6].
Ora, como a este propósito tem sido recorrentemente sublinhado pela doutrina e jurisprudência pátrias[7], a valoração das declarações de parte há-de ser feita com parcimónia, já que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação.
Com efeito, seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e, tão só, por ela admitidos.
Não obstante, o certo é que são um meio de prova legalmente admissível e pertinentemente adequado à prova dos factos que sejam da natureza que ele mesmo pressupõe (ou seja, nos termos do art. 466º, nº 1 in fine, factos em que as partes tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto).
Todavia, tais declarações são apreciadas livremente pelo tribunal (art. 466º, nº 3, 1ª parte) e, nessa apreciação, engloba-se a sua suficiência à demonstração do facto a provar.
A afirmação, peremptória e inequívoca, de as declarações das partes não poderem fundar, de per si e só por si, um facto constitutivo do direito do depoente, não é correta, porquanto, apresentada sem qualquer outra explicação, não deixaria de violar, ela mesma, a liberdade valorativa que decorre do citado nº 3 do art. 466º.
Mas compreende-se que, tendencialmente, as declarações de parte, sem qualquer corroboração de outra prova, qualquer que ela seja, não apresentem, ainda assim, e sempre num juízo de liberdade de apreciação pelo tribunal, a suficiência bastante à demonstração positiva do facto pretendido provar. Portanto, será num contexto de suficiência probatória e não propriamente de valoração negativa e condicionada da prova que as declarações de parte devem ser analisadas.
Evidentemente que, perspectivando de modo inverso o problema, também a admissão da prova por declarações de parte num sentido interpretativo de onde decorresse, em qualquer circunstância, a prova dos factos favoráveis ao deferimento da sua pretensão (sejam eles factos constitutivos, modificativos, impedimentos ou extintivos, consoante a posição do declarante na lide) por mero efeito de declarações favoráveis nesse sentido, também não pode ser sufragada, na medida em que, num processo de partes como é o processo civil, deixaria sem possibilidade de defesa a parte contrária.
Como assim, a prova por declarações de parte, nos termos enunciados no art. 466º, é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, na certeza de que a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias e que, neste enquadramento, a declaração de parte que é favorável e que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie, será normalmente insuficiente à prova de um facto essencial que constitua a causa de pedir ou em que se baseie a exceção invocada.
Postas tais considerações, depois de se proceder à audição do registo fonográfico das declarações que foram prestadas pelos autores na audiência final, verifica-se que os mesmos, neste conspecto, se limitaram a confirmar as afirmações de facto que haviam alegado na petição inicial que apresentaram, adiantando que o ex-marido da autora, F…, jamais lhes deu notícia de que havia sido estabelecido com a ré D… um acordo que lhe permitia utilizar gratuitamente o ajuizado imóvel, declarações estas que, neste ponto, não foram corroboradas por qualquer elemento de prova, designadamente pelo depoimento do referido F….
Não estamos aqui a formular quaisquer juízos de valor sobre tais declarações – este Tribunal desconhece (rectius, não o percebe pela gravação) se os autores falaram ou não verdade. Estamos apenas a focar elementos abstractos de análise de declarações prestadas pela própria parte no sentido em que este meio de prova, na falta de fontes autónomas de corroboração das asserções afirmadas nessas declarações, é visto, normalmente, como uma fonte de prova pouco consistente e particularmente difícil de justificar.
Encontramo-nos, portanto, em presença de um problema de justificação racional da prova, justificação essa que se espera objectiva e não firmada em meras convicções subjectivas.
Como assim, na ausência de outros subsídios probatórios, as referidas proposições factuais não devem manter-se no rol dos factos provados, determinando-se consequentemente a sua eliminação desse elenco.
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Pretendem depois as recorrentes que, contrariamente ao sentido decisório sufragado pelo juiz a quo, a afirmação de facto que consta do ponto nº 18 dos factos provados deve antes ser dada como não provada, na medida em que, com exceção dos documentos que os autores juntaram de fls. 52 vº a 61 – que foram alvo de expressa impugnação -, nenhuma outra prova foi produzida que permita confirmar a aludida realidade.
Na sentença recorrida verifica-se, na verdade, que o decisor de 1ª instância deu como provada a aludida facticidade tendo unicamente por base “os suportes documentais de fls. 52vº a 61”.
Os referidos documentos consubstanciam meros anúncios publicitários emitidos por agências imobiliárias relativamente aos imóveis neles identificados, nos quais se publicita o preço de venda e/ou o montante da renda mensal devida pelo seu arrendamento.
Como é consabido, vários são os factores que, na prática, influenciam o valor de um imóvel, designadamente para efeito da sua rentabilização por recurso ao seu arrendamento. Entre esses factores contam-se, entre outros, a sua localização (se se encontra, ou não, próximo de infraestruturas como, por exemplo, escolas, redes de transportes públicos, farmácias, áreas de lazer), o seu estado de conservação (designadamente se precisa ou não de obras), as suas características (v.g. idade, tipologia, dimensões dos seus compartimentos), ser ou não dotado de garagem ou lugar de garagem.
Ora, nada nos autos permite afirmar – considerando a já apontada necessidade de justificação racional da prova – que haja uma identidade substancial entre os imóveis referidos nos ditos anúncios e o ajuizado imóvel, desde logo por falta de alegação de factualidade atinente aos mencionados factores.
Por conseguinte, tais suportes documentais não têm, quanto a nós, a virtualidade de, sem mais e desacompanhados de outros elementos de prova, dar como demonstrada a proposição factual constante do ponto nº 18 com a redacção que lhe foi dada na sentença recorrida.
Porque assim, por se mostrar mais consentânea com a prova adrede produzida no âmbito do presente processo, decide alterar-se a redação desse ponto factual, o qual passará a ter o seguinte teor: “O arrendamento de um imóvel com características semelhantes ao imóvel referido em 1 ascende a um valor mensal concretamente não apurado”.
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3. FUNDAMENTOS DE FACTO

Face à decisão que antecede, passa a ser a seguinte a factualidade relevante provada:
1 – Por contrato de compra e venda outorgado em 15/4/2014, os autores adquiriram a F…, que por sua vez vendeu, o prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com garagem, sito na …, nº…, União de Freguesias …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº1819 (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 5940.
2 – Os autores procederam, no acto de outorga do referido contrato, ao pagamento da quantia de 150.000,00 €, ao referido F…. 3 – O anterior proprietário F… obrigou-se à entrega do imóvel livre de quaisquer ónus ou encargos, ficando assegurado o cancelamento da hipoteca registada a favor da G….
4 – Eliminado
5 – A seguir à compra, a 1ª ré contratou um serralheiro e mudou a fechadura da porta que dá acesso ao imóvel, nele permanecendo até à presente data.
6 – As rés encontram-se a habitar o imóvel supra identificado de forma totalmente gratuita.
7 – Quando os autores pretenderam tomar posse do imóvel, a ré D… recusou-se a abandoná-lo porque, segundo a mesma “teria esse direito desde a data do divórcio” com o seu ex-marido F….
8 – Quando os autores tentaram ocupar o imóvel de sua propriedade, foram exibidos pela 1ª ré os seguintes acordos celebrados com F…:
DESTINO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Ambos os requerentes do divórcio decidiram acordar o seguinte sobre a casa de morada de família:
1. A casa onde os requerentes residiam juntamente com a filha, situada na …, nº …, …, ….-… Vila Nova de Gaia, é bem próprio do cônjuge marido, tendo sido adquirida por este antes do matrimónio.
2. A casa, enquanto habitação da requerente mulher D… e da filha E…, fica destinada à utilização habitacional da requerente mulher, a título gratuito.
3. Será da responsabilidade da requerente mulher o pagamento de todas as despesas referentes aos consumos de água, luz e outras decorrentes do uso desse imóvel.
9 – A 1ª ré prescindiu, aquando do divórcio, de prestação de alimentos, alegando deles não carecer.
10 – Eliminado
11 – Até à presente data, os autores estão impedidos de livremente usar, conforme os seus interesses, o referido imóvel.
12 – Pretendiam os autores estar mais perto de um estabelecimento de restauração que detêm próximo do aludido imóvel, evitando deslocações à sua habitação sita na cidade do Porto.
13 – A 2ª ré já atingiu a maioridade.
14 – Não tendo, contudo, atingido o seu processo de formação educativa.
15 – O valor comercial do imóvel dos autos ronda actualmente 300.000,00 € (trezentos mil euros).
16 – São os autores quem procede ao pagamento mensal da prestação bancária devida pela aquisição do imóvel.
17 – As rés apenas procedem ao pagamento das despesas de manutenção do imóvel, como sejam as relativas ao saneamento, electricidade e gás.
18 – O arrendamento de um imóvel com características semelhantes ao imóvel referido em 1 ascende a um valor mensal concretamente não apurado.
19 – A 2ª ré nasceu em 17 de Julho de 1994.
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4. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Os autores, arrogando-se proprietários do prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº1819 (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 5940, intentaram a presente ação contra as rés delas exigindo a restituição do imóvel por carecerem de título que legitime a ocupação que do mesmo vêm fazendo.
Estamos, assim, em presença de uma típica ação de reivindicação a qual, de acordo com o que postula o nº 1 do art. 1311º do Cód. Civil, se caracteriza pela faculdade conferida ao proprietário de poder “[e]xigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”.
A pretensão reivindicatória, conforme resulta do inciso transcrito, é integrada por dois pedidos entre si logicamente articulados: i) reconhecimento judicial do direito de propriedade do autor da acção sobre a coisa reivindicada; ii) condenação do detentor da coisa a restituí-la ao seu proprietário.
Deste modo, um dos requisitos necessários para a procedência da acção é a prova do direito de propriedade sobre a coisa reivindicada No entanto, o reconhecimento desse direito não goza de (efectiva) independência relativamente ao pedido de restituição, sendo um mero pressuposto deste. É que, em rigor, neste tipo de ação o verdadeiro e específico pedido é o de condenação a restituir a coisa, funcionando o primeiro pedido (o de reconhecimento do direito de propriedade) como preparatório ou premissa do segundo, tanto assim que se tem considerado o mesmo como implícito, quando não expressamente formulado[8].
Consequentemente, reconhecido que seja o direito de propriedade do reivindicante, e surgindo a impetrada entrega/restituição como uma manifestação da sequela que caracteriza esse direito, deve o detentor da coisa ser condenado a restituí-la, salvo se – como previne o nº 2 do citado normativo - invocar e provar a titularidade de algum direito que o legitime a continuar a manter a coisa em seu poder.
Em suma: sobre o autor de uma acção de reivindicação impende apenas o ónus de alegar e provar que é proprietário da coisa que reivindica e que esta se encontra em poder do réu. O réu, por sua vez, se quiser evitar a condenação terá de alegar e provar que a sua detenção é legítima e oponível ao autor.
Isto posto, revertendo ao caso sub judicio, verifica-se que as rés não puseram em crise o direito de propriedade dos autores sobre o identificado imóvel, sendo que, com o desiderato de neutralizar a pretensão reivindicatória que estes formulam, alegam ser a ré D… titular de um direito de habitação sobre o mesmo.
Pronunciando-se sobre essa matéria exceptiva, o decisor de 1ª instância, depois de afirmar que a referida ré é efectivamente titular de um direito (real) de habitação, considerou, todavia, que esse direito não é oponível aos autores em virtude de não ter sido efectuado o respectivo registo na competente Conservatória do Registo Predial, dando, em consequência, provimento à presente ação.
É precisamente em relação a esse segmento decisório que ora se rebelam as apelantes, argumentando que, ao invés do que se sentenciou, a oponibilidade do referido direito de habitação não está dependente da sua inscrição registral.
Que dizer?
Como emerge da materialidade apurada as rés mantêm residência no ajuizado imóvel contra a vontade dos autores, que adquiriram o respectivo direito de propriedade na sequência de contrato de compra e venda que celebraram com o anterior proprietário, F…, ex-cônjuge da demandada D….
Todavia, em contraponto, resultou igualmente demonstrado que, no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento (que correu seus termos pela Conservatória do Registo Civil de Matosinhos – processo nº 956/2013), foi atribuído à referida ré o direito de habitar, a título gratuito, o imóvel que constituía a casa de morada da família do casal, embora se tratasse de um bem próprio do seu ex-cônjuge.
É certo que, dissolvido o casamento por divórcio, o bem afeto à residência da família perde, naturalmente, a vocação de lugar de “habitação da família”; no entanto, tal facto não importa a perda de todo o lastro que sustentou o particular regime a que o mesmo se achava subordinado, posto que na lei se preservam os interesses dos ex-cônjuges e dos filhos, agora através da ponderação do destino da casa de morada da família e dos termos da sua atribuição a um dos cônjuges (cfr., v.g., arts. 1775º, 1778º e 1793º, do Cód. Civil).
Na modalidade de divórcio por mútuo consentimento (que foi o procedimento adotado pela ré D… e pelo referido F…), a protecção legal da casa de morada da família passa mesmo por colocar o acordo sobre o seu destino como pressuposto de que depende a rutura da relação matrimonial, de tal forma que se os cônjuges não reunirem consenso sobre a questão ou se o acordo comum não acautelar suficientemente os interesses dos próprios cônjuges e dos filhos, o pedido de divórcio pode ser indeferido (cfr. art. 1778º do Cód. Civil).
Trata-se, na verdade, de um acordo complementar do divórcio destinado a regular um aspeto das relações pós-matrimoniais entre os cônjuges mas que a lei, deliberadamente, não coloca na inteira disponibilidade das partes, atribuindo ao juiz ou ao conservador a aferição do seu conteúdo de molde a não permitir que se deixem desacautelados os interesses dos cônjuges e dos filhos.
Ainda assim, como sublinha ANTUNES VARELA[9], a existência deste conjunto de interesses ou desta “ordem pública da família”, embora condicionando o princípio da autonomia privada, não é de forma a prejudicar a essência negocial dos acordos e, por isso, poderá dizer-se que esses acordos, sendo, por um lado, “o fruto do cruzamento das vontades dos cônjuges, apoiadas em interesse de sinal oposto” e, por outro, o resultado de uma exigência legal em cujo conteúdo o juiz ou o conservador do registo civil pode interferir, não deixam de assentar “sobre a vontade real dos requerentes”, sendo que, as próprias alterações sugeridas pelo juiz ou pelo conservador “só valem se forem aceites por eles e não por força de uma decisão judicial, cuja eficácia não depende obviamente da aceitação das partes”.
No caso vertente, perante o substrato factual apurado (cfr. ponto nº 8 dos factos provados), afigura-se-nos que, em consonância com as regras da hermenêutica jurídica (cfr. arts. 236º a 238º, do Cód. Civil), a vontade que presidiu à celebração do acordo no processo de divórcio por mútuo consentimento entre a ré e o seu ex-marido foi no sentido de conferir àquela um direito de habitação gratuita da casa de morada de família, tendo em conta (e por medida) as suas necessidades e da sua filha (a ora apelante E…) que com ela coabita, sendo que nesse acordo nada se dispôs acerca do seu tempo de duração ou dos factos conducentes à respectiva extinção.
Como assim, mostra-se correta a qualificação jurídica operada na sentença recorrida (que, neste conspecto, não foi fundadamente posta em crise nesta instância recursiva) a respeito do direito que assiste à ré D… na utilização do ajuizado imóvel, qualificação essa que a jurisprudência pátria[10] vem igualmente acolhendo em situações análogas, defendendo-se que o direito constituído por acordo feito no processo de divórcio por mútuo consentimento, que tem por objecto a utilização da casa de morada de família, é um verdadeiro e próprio direito real de habitação.
A noção, a constituição, extinção e regime do direito de uso e habitação estão provisionadas pelos artigos 1484º e 1485º do Cód. Civil, sendo que é aplicável o regime legal do usufruto por via da remissão operada pelo artigo 1490º do mesmo diploma legal, quando conforme à natureza daqueles direitos.
Confrontando os direitos de uso e de habitação com o usufruto, a doutrina[11] vem considerando que os primeiros consubstanciam direitos reais de gozo muito semelhantes ao usufruto, com uma diferença essencial: a delimitação negativa dos conteúdos respectivos, para além de obedecer aos diversos factores que configuram o usufruto, deriva, também, das necessidades do titular do direito e da sua família. Razão porque se tem chamado a estes direitos “usufrutos limitados” ou “diminutivos do usufruto”.
Assim sendo, dada as características de realidade que exornam esse direito, a simples modificação (subjectiva) do domínio da propriedade ou da intenção do proprietário não determinam ipso facto a extinção do mesmo (o que, na falta de previsão no seu título constitutivo, apenas ocorre nas situações típicas definidas no art. 1476º ex vi do citado art. 1490º, ambos do Cód. Civil).
Ora, malgrado o decisor de 1ª instância tenha – como se referiu - afirmado que a ré D… é titular de um direito (real) de habitação, considerou, ainda assim, que a mesma não teria título legítimo que obstasse à procedência da pretensão reivindicatória, porquanto esse direito não seria oponível aos autores adquirentes do imóvel por não ter aquela procedido[12] à sua inscrição no registo predial.
Não se concorda com esse entendimento.
É facto que, por mor do disposto na al. a) do nº 1 do art. 2º do Cód. Registo Predial, o direito de habitação está sujeito a registo e que, de acordo com o nº 1 do art. 5º do mesmo diploma legal, “[o]s factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo”.
Haverá, no entanto, que atentar que, conforme postula o art. 4º, nº 1 “[o]s factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros”.
In casu tudo se resume, pois, em dilucidar se os autores são, ou não, terceiros para efeitos registrais, conceito esse que se mostra plasmado no nº 4 do citado art. 5º, segundo o qual “[t]erceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.
A situação concreta pressuposta na hipótese da norma transcrita não pode deixar de ser a de um “conflito” entre titulares de direitos ou de pretensões incompatíveis, sujeitos a registo sob pena de inoponibilidade. É necessária, pois, a identidade de regime entre o direito do terceiro e o direito que o terceiro pretende afastar[13].
Ora, relativamente ao direito que se discute na presente demanda os autores e a apelante D… não são terceiros entre si, por ausência desse “conflito”. Sê-lo-iam se após a homologação do acordo relativo à casa de morada da família o ex-marido da ré tivesse constituído a favor dos autores direito idêntico tendo por objecto mediato o mesmo imóvel, caso em que teria de conferir-se prevalência ao direito de habitação primeiramente registado.
Não é essa, contudo, a situação que se debate nestes autos. Daí que, contrariamente ao que decidiu em 1ª instância, nada impede que a referida ré e ora apelante oponha triunfantemente aos autores o seu direito de habitação, apesar de não o ter registado: é que, quanto a ele, a posição jurídica dos autores coincide totalmente com a do ex-marido da apelante, a quem sucederam na titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel já limitado pelo direito de habitação anteriormente constituído, pois não são terceiro, mas antes parte, no sentido visado pelo nº 1 do citado art. 4º do Cód. Registo Predial[14].
No seguimento deste entendimento resulta, de igual modo, inexistir fundamento para a condenação das rés no pagamento de qualquer contrapartida pecuniária pela ocupação que vêm fazendo do ajuizado imóvel, na justa medida em que a ré D… possui título (entendida a expressão no seu sentido civilístico, isto é, enquanto fundamento ou causa da titularidade de determinado direito) que legitima essa ocupação de forma gratuita.
Procedem, por conseguinte, as conclusões O) a X) do recurso da apelante E… e as conclusões B) a U) do recurso da apelante D….
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III. DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, e, em consequência, revogando a sentença recorrida, absolvem-se as rés do pedido.
Custas, em ambas as instâncias, pelos apelados.
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Porto, 22.3.2021
Miguel Baldaia Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in A ação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência.
[3] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272.
[4] Assim ABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1),ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Cfr., inter alia, acórdãos da Relação de Coimbra de 27.05.2014 (processo nº 1024/12) e de 24.04.2012 (processo nº 219/10), acórdão da Relação de Lisboa de 14.03.2013 (processo nº 933/11.9TVLSB-A.L1-2), acórdãos da Relação de Guimarães de 15.12.2016 (processo nº 86/14.0T8AMR.G1) e de 13.02.2014 (processo nº 3949/12.4TBGMR.G1) e acórdão desta Relação de 17.03.2014 (processo nº 7037/11.2TBMTS-A.P1), todos acessíveis em www.dgsi.pt. No mesmo sentido se pronuncia ABRANTES GERALDES, Recursos, pág. 297, onde escreve que “de acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objeto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados”.
[6] Daí que a referência ao “suporte documental de fls. 24 e 24vº” (ou seja, certidão extraída da competente Conservatória do Registo Predial contendo as inscrições em vigor referentes ao imóvel) nenhum contributo relevante aporta quanto a este concreto enunciado fáctico, já que não constitui objecto de controvérsia que o mesmo, à data da sua aquisição pelos autores, estivesse onerado por uma hipoteca constituída a favor de uma instituição de crédito.
[7] Cfr., por todos, na doutrina, FERNANDO PEREIRA RODRIGUES, in Os meios de prova em Processo Civil, 2ª ed., págs. 72 e seguintes, LEBRE DE FREITAS, in A ação declarativa comum – à luz do Código de Processo Civil de 2013, 2ª ed., pág. 278, REMÉDIO MARQUES, A aquisição e a valoração probatória de factos (des)favoráveis ao depoente ou à parte, in Julgar, nº 16, págs. 168 e seguintes e ELIZABETH FERNANDEZ, Nemo debet esse testis in propria causa ? Sobre a (in)coerência do sistema processual a este propósito, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, págs. 27 e seguintes; na jurisprudência, acórdão da Relação de Lisboa de 26.04.2017 (processo nº 18591/15.0T8SNT.l1-7) e acórdão desta Relação de 23.04.2018 (processo nº 482/17.1T8VNG.P1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[8] Cfr., por todos, na doutrina, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 113; na jurisprudência, acórdão do STJ de 8.02.2011 (processo nº 12/09.9T2STC.E1.S1), acessível em www.dgsi.pt.
[9] In Direito da Família, 5ª edição, págs. 514 e seguinte.
[10] Cfr., por todos, acórdão do STJ de 8.05.2013 (processo nº 1064/11.7TBSYM.P1.S1), acórdão da Relação de Lisboa de 21.06.2018 (processo nº 215/17.2T8AMD.L1-6), acórdão desta Relação de 19.12.2012 (processo nº 1064/11.7TBSJM.P1) e acórdãos da Relação de Évora de 18.03.2010 (processo nº 1281/13.5TBTMR.E1) e de 23.11.2017 (processo nº 1281/13.5TBTMR.E1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[11] Cfr., inter alia, MENEZES LEITÃO, in Direitos Reais, 5ª edição, Almedina, págs. 329, ALBERTO VIEIRA, in Direitos Reais, 2008, Coimbra Editora, págs. 773 e seguintes e CARVALHO FERNANDES, in Lições de Direitos Reais, 6ª edição, Quid Juris, págs. 425 e seguintes.
[12] Não se põe, naturalmente, em crise que o acordo sobre o destino da casa de morada da família, com homologação transitada em julgado, que traduza a vontade de constituir o direito de habitação a favor do cônjuge não proprietário constitui título suficiente para o registo de aquisição desse direito, nos termos dos arts. 1484º e seguintes do Cód. Civil e dos arts. 43º e 68º do Cód. de Registo Predial.
[13] Para maior desenvolvimento sobre a interpretação do polémico conceito de terceiro no registo predial, pode consultar-se, entre outros, MÓNICA JARDIM, O artigo 5º do Código de Registo Predial, in Escritos de Direito Notarial e Direito Registal, 2015, Almedina, págs. 263-366.
[14] Em idêntico sentido decidiu o acórdão do STJ de 8.05.2013 (processo nº 1064/11.7TBSYM.P1.S1), acessível em www.dgsi.pt.