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SEGREDO PROFISSIONAL
QUEBRA DE SIGILO
Sumário
I - O segredo profissional não é um segredo absoluto, sem qualquer possibilidade de afastamento, mas as razões da sua existência impõem que, só excepcionalmente, possa ter lugar a quebra de tal segredo. II - A imprescindibilidade do depoimento da testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial na decisão sobre a quebra do segredo. III - Estando em causa crimes de elevada gravidade (insolvência dolosa e falsificação de documento autêntico) e revelando-se o depoimento da Exma. advogada essencial para a descoberta da verdade material, deve ser reconhecido como preponderante o interesse da realização da justiça, que visa a protecção dos bens jurídicos e a descoberta da verdade material, interesse que deve assim ser acautelado, ficando secundarizados os interesses relativos à reserva profissional e que subjazem ao sigilo profissional. IV - Impõe-se, pois, e legitimamente, a quebra do segredo profissional, já que a testemunha se encontra em situação privilegiada para contribuir para o cabal esclarecimento dos factos e boa decisão da causa, justificando-se assim que cesse o dever de segredo profissional da Ilustre Advogada e se abra caminho à sua colaboração na realização da Justiça, mediante a prestação do depoimento pretendido. ( elaborado pela relatora)
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
1. 1. - No âmbito de processo comum colectivo a correr termos sob o n.º 761/13.7 TACVL no Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 7 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi designado dia para audição, como testemunha, de FCC, advogada, que, tendo apresentado junto da Ordem dos Advogados um pedido de dispensa do segredo profissional, juntou aos autos extracto da decisão proferida pelo Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados com o seguinte teor:
«Nestes termos, não se mostrando devidamente preenchidos os pressupostos inerentes ao regime excecional da dispensa, plasmados no artigo 92.º, n.º 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro, e no Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional – Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3.º, n.º 7 da lei preambular do Estatuto –, indefere-se o requerido e, por conseguinte, fica a Senhora Advogada Dra. FCC impedida de prestar depoimento, na qualidade de testemunha, no âmbito do processo pendente no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal - Juiz 7, sob o n.º 761/13 TACVL, em que são arguidos CG_ , JS_____ , JC____ , JL__ e Outros. A proposta de decisão que ora homologo e que faz parte integrante da presente decisão está, ela própria, sujeita a sigilo, pelo que não poderá o seu conteúdo ser divulgado a terceiros, nomeadamente, junto do Tribunal. Sendo necessário juntar ou exibir a decisão proferida, poderá apenas a Senhora Advogada requerente juntar ou exibir o extrato da decisão que se anexa”. Notifique-se.»
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1.2. - Por despacho de 22.01.2021, veio o Mmo. Juiz a proferir despacho no qual, reconhecendo a legitimidade da recusa de prestação de depoimento, ordenou que se solicitasse a este Tribunal da Relação, nos termos previstos no art.º 135.º, n.º 3, do C.P.P., fosse autorizada a quebra do sigilo profissional da testemunha FCCF, advogada, de forma a prestar depoimento no âmbito destes autos.
Tal despacho tem o seguinte teor:
«Cumpre, ao abrigo do disposto no art. 1352, n2s 2 a 4 do Código de Processo Civil, suscitar o presente incidente de incidente de quebra de sigilo profissional, com os fundamentos que seguem. Nos presentes autos, foram acusados e pronunciados CG_ , JS_____ , JC____ , JL__ , JV, TV, AVe JMV, sendo imputada a prática aos arguidos CG__ , JS_____ e João Coelho, na forma consumada e em concurso efectivo de dois crimes de insolvência dolosa, p. e p. nos termos do art. 227.°, n2 2 do Código Penal, em co-autoria e de seis crimes de falsificação de documento, p. e p. nos termos do art. 256.°, n2 1, alínea c) e n2 3 do Código Penal, em co-autoria, aos arguidos JL__ , JV e TV, na forma consumada e concurso efectivo de dois crimes de insolvência dolosa, p. e p. nos termos do art. 227.°, n2 1 do Código Penal, em co-autoria e de seis crimes de falsificação de documento, p. e p. nos termos do art. 256.°, n2 1, alínea c) e n2 3 todos do Código Penal, em co-autoria, aos arguidos AV e JMV, um crime de insolvência dolosa, p. e p. nos termos do art. 227.°, n2 1 do Código Penal, em co-autoria e de quatro crimes de falsificação de documento, p. e p. nos termos do art. 256.°, n2 1, alínea c) e n2 3 todos do Código Penal. Pelo arguido JV foi referido que a venda das quotas foi feita pela Dr.ª FCC, que fizeram a cedência das quotas pelo valor do passivo, que a Dr.ª Fcc disse que tinha um investidor, que era alguém que tinha um acordo com um grande grupo económico e que ia continuar a actividade. Acrescentou que a Dr.ª Fcc tinha uma avença com a empresa, há de 8 anos, que a Dr.ª Fcc pagou a alguns trabalhadores, que a Dr.ª Fcc que fez as actas todas das sociedades, que as acções foram levantadas por si do banco e entregues à Dr.ª Fcc, que foi ela a entrar em contacto com o arguido JS. Referiu ainda que a Dr.ª Fcc disse que ia falar com o arguido JS para a Selecção passar a posição para a Lopes e Filhos, que a Dr.ª Fcc dizia que o arguido JS era uma pessoa com dinheiro e que a Dr.ª Fcc disse que viria uma pessoa de França ficar à frente da empresa e seria o Intermarché. O arguido JMV referiu que a advogada, a Dr.ª Fcc é que tratou de tudo já trabalhava há vários anos e tinham total confiança, que como o negócio começou a correr mal, a advogada fez o contrato e disse que eles tinham que o respeitar, que a advogada tinha luz verde para fazer os contratos, que foi ela que fechou o negócio. Por seu turno, a arguida AV referiu que foi a advogada, a Dr. 2 Fcc que tratou de tudo, que ela pediu para ir assinar a escritura. O arguido JMV referiu que a família Vaz tinha plena confiança na advogada Fcc , que assistiu a chamadas telefónicas dela com o seu irmão JV. Por sua vez, o arguido TV referiu que o seu irmão JV é que tratava com a advogada das empresas, a Dr.ª Fcc . Em consequência de tais declarações, na acta de audiência de julgamento do passado dia 5 de Janeiro, foi determinada a inquirição da advogada das empresas Supermercados Selecção e Supermercados Europa, Dra. Fcc , mencionada nas declarações dos arguidos da família Vaz como tendo tratado da alienação das sociedades, ao abrigo do disposto no artigo 3402 n22 do Código de Processo Penal. Veio a ser convocada esta testemunha para inquirição para o dia 19 de Janeiro, pelas 14 horas, pelo oficio de 6 de Janeiro e ainda por mensagem de correio electrónico da mesma data Por mensagem de correio electrónico de 14 de Janeiro, a Dr.2 Fcc , veio solicitar, pelos motivos expostos no Atestado Médico que juntou que preste o seu depoimento, através de meios de comunicação à distância. Pela promoção de 14 de Janeiro, o Ministério Público nada teve a opor a tal modo de inquirição, o que o despacho de 15 de Janeiro veio deferir. Por mensagem de correio electrónico de 19 de Janeiro a Dr.ª Fcc veio extracto da decisão do Conselho Regional de Lisboa da Ordem do Advogados, quanto ao segredo profissional, que não dispensou tal segredo. Pela promoção de 19 de Janeiro, o Ministério Público considerou que carecerá de conteúdo/utilidade o depoimento da Dr.2 Fcc . Pelo despacho de 19 de Janeiro foi exarado que se mantinha a audiência de julgamento e determinada a criação do presente apenso. Como dispõe o art. 135º do Código de Processo Penal, "1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos. 2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. 4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável. 5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso". Por seu turno, dispõe o art. 92º do Estatuto da Ordem da Ordem do Advogados que "1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. 2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço. 3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo. 4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respectivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento. 5 - Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo. 6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.2 4, o advogado pode manter o segredo profissional. 7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.2 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional, com a cominação prevista no n.2 5. 8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infracção disciplinar a violação daquele dever". Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-05-2019, "De acordo com o n.º 4 do art. 135.º CPP, a decisão sobre o levantamento do sigilo é precedida da audição do organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa. Tratando-se da profissão de advogado, o regime do segredo profissional encontra-se disciplinado no Estatuto da Ordem dos Advogados, regulado pela Lei 145/2015, de 9.9. Sobre o sigilo profissional dispõe o art. 92.º daquele Estatuto, delimitando de forma rígida quer o seu âmbito, quer as condições de dispensa. Nestas últimas, a par de um apertado critério substancial (desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes), não deixa de se fazer alusão à competência da Ordem dos Advogados para conceder, ela mesma, aquela dispensa. Não faz qualquer fé em juízo o depoimento prestado sem salvaguarda dos requisitos materiais e formais da dispensa do segredo (n.2 5). Do iter proposto pelo legislador - quer no CPP quer no mencionado Estatuto - resulta que o incidente de quebra de sigilo, no caso de advogado, não dispensa a audição prévia da respectiva Ordem. Com efeito, por um lado, a Ordem dos Advogados poderá dispensar do sigilo profissional o advogado que lho solicite, se entender reunidas condições para tanto, mas, por outro, deverá também ser ouvida pelo Tribunal antes de se decidir pelo levantamento, em incidente processual, daquele sigilo. A obrigatoriedade de prévia audição da Ordem dos Advogado resulta da natureza pública do interesse prosseguido pelo sigilo do advogado o qual se relaciona com a conservação e desenvolvimento da sociedade política e da satisfação das suas necessidades[1] e não está condicionada à existência de dúvidas sobre a legitimidade da recusa. É isso que resulta da remessa do n.º 4 para as situações do n.º 3 do art. 135.º. A recolha da posição prévia da agremiação profissional da pessoa cujo depoimento se pretende é de primacial importância, não para aquilatar se é legítima ou ilegítima a recusa em depôr - já se disse nos autos que o é - mas para saber, da perspetiva de tal ordem profissional, qual a interpretação que ao caso faz do disposto no art. 92.º, n.º4, daquele Estatuto. Cabendo ao tribunal decidir se a violação do segredo profissional é, in casu, absolutamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, justifica-se a consulta prévia da instituição que, em primeira linha, não só tem por missão decidir estes temas, como se encontra em situação privilegiada para verificar os interesses daqueles que tem por função representar, concorrendo na definição concreta do princípio da prevalência do interesse preponderante[2], embora a sua posição não seja vinculativa[3]. Afastamos, assim, o entendimento plasmado no ac. RG, de 18.2.2016, Proc. 2068/10.2TJVNF-A.G1, segundo o qual se não impõe a audição prévia desta Ordem. Com efeito, são eloquentes e justificadas as razões apontadas pelo Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados quando crítica este aresto: »a pronúncia da Ordem dos Advogados ao abrigo do disposto no nº 4 do art. 135.º do C.P. Penal não pode ser reduzida à condição de um mero parecer, destinado a auxiliar o julgador na percepção e apreciação da realidade fáctica difícil de captar mediante os conhecimentos de que normalmente o juiz está apetrechado, como expressamente é declarado no acórdão em apreço. O segredo profissional é um dever imposto ao advogado por uma lei da república (Lei n.2 145/2015 de 9 de Setembro de 2015), sendo que o n.2 5 do art. 92.º dessa lei comina claramente que "os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo". Desse dever decorre o direito do advogado se remeter ao silêncio sempre que interpelado no sentido da revelação de factos advindos ao conhecimento por via do exercício da sua profissão. Subjacente à imposição legal desse dever está a garantia de um valor fundamental, transversal ao complexo das relações que o advogado estabelece no exercício da sua profissão: o valor da confiança! Confiança daquele que depositando no conhecimento do advogado determinado facto, o faz na legítima expectativa de o mesmo ser mantido sob sigilo, ressalvadas as hipóteses legais em que a sua quebra pode ocorrer. À Ordem dos Advogados, no âmbito das suas atribuições, compete (i) defender os direitos e as garantias dos cidadãos, (ii) promover o respeito pelos valores e princípios deontológicos, (iii) defender os interesses, direitos e prerrogativas dos seus membros - vd artº 32 do EOA. O incidente de quebra do segredo profissional, ao abrigo do disposto no art. 135.º do C.P. Penal, visa a obtenção de um meio de prova que contende, ou pode contender, com valores, deveres, direitos e garantias que, no âmbito das suas atribuições, compete à Ordem dos Advogados zelar e defender. Tem assim a Ordem dos Advogados uma legitimidade própria para se pronunciar quando em causa possam estar os deveres cujo cumprimento deve zelar, direitos e garantias cujo respeito deve defender. O legislador consignou-a obrigatoriamente no n2 4 do art. 135.º do C.P. Penal. Nesta pronúncia, marcará a Ordem dos Advogados a sua posição, não com considerações de ordem técnica, mas com considerações de ordem valorativa, com as quais dirá (i) se os valores, direitos e interesses que se pretendem defender com a quebra do sigilo justificam o sacrifício daqueles que se pretendem salvaguardar com a imposição legal do dever de o guardar; (ii) se o facto sigiloso é essencial para a descoberta da verdade material na defesa de interesses preponderantes, (iii) se o depoimento do advogado ou o documento em seu poder, é imprescindível para a comprovação do facto. Não sendo a Ordem dos Advogados chamada a pronunciar-se, é preterida uma formalidade legal que forçosamente inquina a validade do meio de prova que por via do incidente do levantamento de sigilo foi obtido. A Ordem dos Advogados tem interesse na preservação do segredo profissional do advogado, como interesse tem qualquer cidadão. Mas por ter esse interesse e um dever especial na sua preservação, não significa (nem é verdade) que, nas pronúncias que tem proferido ao abrigo da citada norma de direito processual, manifeste sempre a sua oposição no sentido da manutenção do sigilo. Mas, quando a manifesta, fá-lo com fundamento» [4]. Ora, como se viu sobre tal matéria já se pronunciou o Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados. Por seu turno, escreveu-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-10-2019 que "O acórdão do STJ, de 15.02.2018, www.dgsi.pt, pronunciou-se sobre o segredo profissional, nos seguintes termos sintetizados: Na generalidade, entende-se por segredo profissional a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é exigido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão. O segredo profissional de advogado está disciplinado no citado artigo 92.º do EOA, permitindo a cláusula geral do seu n.º 1, que se incluam no referido segredo, para além das elencadas, outras situações que conflituem com os interesses que ela visa proteger. O dever de guardar segredo profissional tem as suas raízes no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, mas também na dignidade da advocacia e na sua função de manifesto interesse público. Desse modo, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue. Tal entendimento já constava do Parecer do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, de 02.04.1981, em ROA, ano 41, páginas 900-901: Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue. O segredo profissional não é só, em rigor, um dever do advogado por pertencer a uma classe, mas é, e sobretudo, um dever de toda essa classe e, por isso, vinculativo e obrigatório para cada membro dela. Nas palavras de António Arnauld, in Iniciação à Advocacia, pág. 66, o fundamento ético-jurídico do sigilo profissional de advogado radica no princípio da confiança e na natureza social da função forense. A obrigação de segredo transcende, por consequência, a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral. No mesmo sentido, o afirmado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23.02.2017: "I - A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra - individual e institucional que, por razões de economia, poderemos reconduzir à confiança sobre que deve assentar o exercício de certas profissões. II - Presentemente, é clara a prevalência da tutela da privacidade, bem jurídico pessoal, face ao bem jurídico supra - individual institucional, perante a previsão do art. 195.º do CP, sem prejuízo de os valores supra - individuais, que se «identificam com o prestígio e confiança em determinadas profissões e serviços, como condição do seu eficaz desempenho», aparecerem sempre incindivelmente associados à punição da violação do sigilo profissional, embora «com o estatuto de interesses (apenas) reflexa e mediatamente protegidos». III - Estão abrangidos pelo segredo profissional do advogado os factos que resultem do desempenho desta actividade profissional, podendo advir da violação desse dever de reserva, para além de responsabilidade criminal e civil, também consequências no plano estatutário e no plano processual.". E no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 05.04.2017: "I - Por norma aquele que está sujeito ao dever de guardar segredo ou sigilo, obteve conhecimento de factos devido a uma especial relação de confiança com quem lhe presta a informação, justificando-se assim a não divulgação, sem consentimento ou causa justificativa.". Cumpre, por isso, aferir da imprescindibilidade da inquirição da ilustre causídica. Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/11/2012, "De acordo com o estipulado no nº 1 do artigo 135º do Código de Processo Penal, determinadas pessoas ou entidades a quem a lei permite ou impõe que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo. Entre elas, contam-se os advogados. Com efeito, o exercício de certas profissões exige, pela própria natureza das necessidades que visam satisfazer, que as pessoas que a elas tenham de recorrer revelem factos que interessam à sua esfera íntima (quer física ou psíquica, quer jurídica). Sempre que esteja em causa o exercício de profissões - como é o caso da advocacia de fundamental importância coletiva[1], designadamente porque um leque muito alargado de cidadãos carece de as utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu exercício constitui condição indispensável da confiança nessas imprescindíveis actividades e, nessa medida, reveste-se de um eminente interesse público. Por esse motivo, a violação da obrigação a que ficam adstritos certos profissionais - de não revelarem factos confidenciais conhecidos através da sua atividade - é punível não só disciplinarmente como até criminalmente [2]. Assim, bem se compreende que o âmbito do sigilo profissional do advogado seja entendido em termos amplos. Tendo dúvidas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual tenha sido suscitado o incidente procede às averiguações necessárias e, se concluir pela ilegitimidade da mesma, ordena [3] ou requer ao tribunal que ordene [4] a prestação do depoimento (nº 2 do citado artigo 135º). A ilegitimidade significa que, no caso concreto, aquele que invoca a escusa não tem o direito de o fazer porque a lei não lhe concede essa faculdade. Verificada a legitimidade formal da recusa e, ainda assim, tiver sido suscitada a quebra do segredo profissional, o nº 3 do artigo 135º do Código de Processo Penal prevê que o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado "pode decidir a prestação do testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos". Como se patenteia, conflituam aqui dois interesses, ambos de natureza pública [5]: um primeiro que tem que ver com a descoberta da verdade para a realização da Justiça e, um segundo, que se prende com o dever de segredo decorrente do exercício de certas profissões e que se destina a garantir o seu pleno exercício [6]. Tudo está em saber, portanto, qual desses interesses deve prevalecer no caso concreto, tendo em conta as pressupostas imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, gravidade do crime e necessidade de protecção dos bens jurídicos [7]. Não se deve, pois, perder de vista que a mera eficácia da justiça penal, não justifica, por si só, a revelação do segredo [8]. A este propósito, refere o Prof. Germano Marques da Silva: «Nestes casos, na perspectiva processual, as referidas pessoas podem escusar-se a depor e devem, aliás, escusar-se, se a quebra do segredo não resultar do cumprimento de um dever jurídico sensivelmente superior (art.º 34. do CP) ou visar afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro (art.º 35.º do CP)...» [9] O segredo é, assim, um dever de determinados profissionais que, por virtude das funções ou dos serviços que prestam aos cidadãos, tomam conhecimento de factos relativos à esfera privada dos clientes ou utilizadores desses serviços, não se pretendendo, com a sua instituição, proteger direitos desses profissionais, mas, outrossim e fundamentalmente, direitos daqueles cidadãos [10] [11]. No que toca aos advogados, o dever de segredo profissional vem consagrado no artigo 87.º do Estatuto da respetiva Ordem [12], estatuto esse cujo n.º 1 estabelece que «o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços». Este dever é exigência ditada pela relação típica estabelecida entre advogados e clientes que, como vimos atrás, se funda na confiança recíproca [13]. Pese embora isso, o segredo profissional dos advogados não tem caráter absoluto. Com efeito, a própria lei prevê casos em que o dever de segredo pode ou deve ceder perante outros direitos, excluindo, nessa medida, a ilicitude da conduta: • um deles permite ao advogado revelar factos daquela natureza, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes e desde que, para tal, tenha obtido a prévia autorização dos órgãos estatutários competentes para o efeito [14]; • o outro - correspondente ao já aludido mecanismo previsto, genericamente, na lei processual penal e com as especialidades do E.O.A. - verifica-se quando, não obstante se reconhecer a legitimidade da escusa, seja decidida a prestação de testemunho com quebra do segredo profissional, mas sempre depois de ouvida a Ordem dos Advogados [15]. De todo o modo, essa decisão compete ao tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado [16], que, não estando sujeito ao parecer emitido pela Ordem dos Advogados [17], avaliará se a prestação de testemunho com quebra do segredo profissional se mostra justificada, segundo o atrás referido princípio da prevalência do interesse preponderante, tendo em conta, como se disse, por um lado, a proteção da confiança na sigilosidade da relação entre os advogados e os cidadãos que aos mesmos necessitam de recorrer e, por outro, as legalmente exigidas "imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, gravidade do crime e necessidade de proteção de bens jurídicos por este tutelados". Este critério material do princípio da prevalência do interesse preponderante consagrado no nº 3 do artigo 135º do Código de Processo Penal, projeta-se, como salienta Manuel de Andrade [18] "( ) em quatro implicações normativas fundamentais: a) Em primeiro lugar e por mais óbvia, avulta a intencionalidade normativa de vincular o julgador a padrões objectivos e controláveis, não cometendo a decisão à sua livre apreciação; b) Em segundo lugar, resulta líquido o propósito de afastar qualquer uma de duas soluções extremadas: tanto a tese de que o dever de segredo prevalece invariavelmente sobre o dever de colaborar com a justiça penal (...) como a tese inversa, de que a prestação de testemunho perante o tribunal (penal) configura, só por si e sem mais, justificação bastante da violação do segredo profissional (_); c) Em terceiro lugar, o apelo ao princípio da ponderação de interesses significa o afastamento deliberado da justificação, neste contexto, a título de prossecução de interesses legítimos (_); d) Em quarto lugar, com o regime do artigo 135° do CPP, o legislador português reconheceu à dimensão repressiva da justiça penal a idoneidade para ser levada à balança da ponderação com a violação do segredo: tudo dependerá da gravidade dos crimes a perseguir". A resolução do conflito terá, pois, de passar pela avaliação, perante as particularidades de cada caso concreto, da diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados pelos deveres em confronto (dever de segredo e dever de cooperar com a justiça), segundo um critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, em observância do disposto no nº 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, de forma a determinar qual dos dois interesses conflituantes deve, no caso, prevalecer: se o da tutela da confidencialidade da relação entre o advogado e o cliente, se o da boa administração da justiça [19], aqui vista na vertente da realização da justiça penal". Aplicando tal doutrina ao caso "sub judice", cumpre verificar qual o interesse preponderante, com base nos índices a que a parte final do nº 3 do art. 135º do Código de Processo Penal manda, exemplificativamente, atender, à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante, isto é a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. Assim, no que respeita à imprescindibilidade do depoimento da causídica visada para a descoberta da verdade, como já se explicou, os arguidos da família Vaz relataram a participação da arguida nas negociações, que foi ela que descreveu que o investidor era alguém que tinha um acordo com um grande grupo económico e que ia continuar a actividade, que ela fez as actas todas das sociedades e que as acções foram levantadas do banco e entregues à Dr.ª Fcc. Ora, o tal investidor é o arguido JP, que, como resulta dos autos é quase indigente. A inquirição da Dr.ª Fcc permitirá, não só aferir da credibilidade do invocado pelos arguidos, mas sobretudo perceber os contornos dos negócios em causa nos autos, mais concretamente, as ligações com a arguida Cristina, como apareceu o arguido JP perante os arguidos da família Vaz, como surgiu esse pretenso investidor, permitindo descortinar a verdadeira actuação da família Vaz. Com efeito, o Tribunal ouviu todas as testemunhas e todos os arguidos que quiseram falar, faltando perceber com clareza tais actuações. Depois, quanto à necessidade da protecção de bens jurídicos e à gravidade dos crimes, estão em causa crimes graves como os crimes de insolvência dolosa, p. e p. nos termos do art. 227.°, nº 1 do Código Penal com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, e de falsificação de documento, p. e p. nos termos do art. 256.°, nº 1, alínea c) e nº 3 do Código Penal com pena de prisão de 6 meses a 5 anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias. Acresce que é perdida, em sede acusatória, a perda de vantagens no valor de 300.000€ quanto aos arguidos JL , JV e TV e de 30.490€ quanto aos arguidos JL , JV, TV, JMV e AV. Tudo visto e ponderado, apenas com a inquirição da testemunha Dr.ª Fcc pode o Tribunal perceber todo o alcance da actuação dos arguidos, revelando-se indispensável tal inquirição, que deve prevalecer sobre o interesse do segredo profissional de que a testemunha é depositária como advogada das sociedades Supermercados Selecção e Supermercados Europa, cujas insolvências, se imputa serem dolosas e que foram alienadas pelos arguidos da família Vaz ao arguido JP, mas que aqueles dizem que foi feita pela testemunha, tendo sido pela mesma tudo delineado. Por tudo o exposto, deve ser quebrado o sigilo profissional de advogada da Dr.ª Fcc Cautela, permitindo-se o seu depoimento. Instrua o presente incidente com certidão em papel e electrónica da acusação (de todo o despacho, incluindo arquivamentos) e da decisão instrutória, das actas de 5 e 19 de Janeiro, dos e-mails de 14 e 19 de Janeiro, das promoções e despachos de 14 e 19 de Janeiro, bem como de CD/DVD das sessões de julgamento.»
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1.3. - Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, chamado a pronunciar-se, emitiu parecer no sentido de ser deferida a requerida quebra de sigilo profissional.
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1.4. - Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos a conferência, de harmonia com o preceituado no art.º 419.°, n.° 3, do C.P.P..
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2. 1. – Compulsados os autos, com relevo para a decisão, são de elencar os seguintes factos:
1 - Nos presentes autos procede-se ao julgamento de:
- CD_ , pela prática, na forma consumada e concurso efectivo, de dois crimes de insolvência dolosa, p. e p. pelo art.º 227.º, n.º 2, do C. Penal, em co-autoria, de seis crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.ºs 1, alínea c), 3, do C. Penal, em co-autoria, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos art.ºs 86.º, n.º 1, alínea d), 2.º, n.º 1, alíneas m) e o), e 3.º, n.º7, alínea b), da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, em autoria material;
- CG__ , pela prática, forma consumada e em concurso efectivo, de dois crimes de insolvência dolosa, p. e p. pelo art.º 227.º, n.º 2, do Código Penal, em co-autoria, e de seis crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.ºs 1, c) e 3, do C. Penal, em co-autoria;
- JS_____ e JC__, pela prática, na forma consumada e em concurso efectivo, de dois crimes de insolvência dolosa, p. e p. pelo art.º 227.º, n.º 2, do C. Penal, em co-autoria, cada um deles, e de seis crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.ºs 1, alínea c), e 3, do C. Penal, em co-autoria, cada um deles;
- JL__ , JV____ e TV___ pela prática, na forma consumada e em concurso efectivo, de dois crimes de insolvência dolosa, p. e p. pelo art.º 227.º, n.º 1, do C. Penal, em co-autoria, cada um deles, e de seis crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.ºs 1, alínea c), e 3, do C. Penal, em co-autoria, cada um deles;
- AV___ e JV_____, pela prática, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo art.º 227.º, n.º 1, do C. Penal, em co-autoria, cada um deles, e de quatro crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.ºs 1, alínea c), e 3, do C. Penal, em co-autoria, cada um deles;
2 - A Sra. Dra. Fcc é advogada das sociedades “Supermercados Selecção, S.A.,” e “Supermercados Europa, Lda.,” cujas insolvências se imputa serem dolosas;
3 - Nas declarações que prestaram em julgamento, os arguidos JV___, AV____ afirmaram ter sido a advogada, Dra. Fcc , a tratar da alienação das sociedades, combinando os seus termos e os correspondentes documentos, razão pela qual, o Tribunal determinou a sua audição como testemunha, ao abrigo do disposto no art.º 340.º, n.º 2, do C.P.P., nos termos constantes da acta da audiência de julgamento de 05.01.2021;
4 - A referida advogada, Dra. Fcc , apresentou junto da Ordem dos Advogados um pedido de dispensa do segredo profissional, vindo a juntar aos autos extracto da decisão proferida pelo Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados que indeferiu tal pedido, com o seguinte teor:
«Nestes termos, não se mostrando devidamente preenchidos os pressupostos inerentes ao regime excecional da dispensa, plasmados no artigo 92.º, n.º 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro, e no Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional – Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3.º, n.º 7 da lei preambular do Estatuto –, indefere-se o requerido e, por conseguinte, fica a Senhora Advogada Dra. FCC impedida de prestar depoimento, na qualidade de testemunha, no âmbito do processo pendente no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal - Juiz 7, sob o n.º 761/13 TACVL, em que são arguidos CG_ , JS_____ , JC____ , JL__ e Outros. A proposta de decisão que ora homologo e que faz parte integrante da presente decisão está, ela própria, sujeita a sigilo, pelo que não poderá o seu conteúdo ser divulgado a terceiros, nomeadamente, junto do Tribunal. Sendo necessário juntar ou exibir a decisão proferida, poderá apenas a Senhora Advogada requerente juntar ou exibir o extrato da decisão que se anexa”. Notifique-se.»
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2. 2. – Apreciando e decidindo
Impõe-se decidir se deve conceder-se a quebra do sigilo profissional invocado pela Ilustre advogada, Dra. Fcc .
O segredo profissional abrange o conhecimento de factos ou informações obtido no exercício da profissão, no âmbito da qual normalmente existe uma especial relação de confiança que justifica, por um lado, a obtenção desse conhecimento, e que, por outro, proíbe a divulgação desse conhecimento, sem autorização ou causa que a justifique.
Os profissionais obrigados ao sigilo profissional estão assim impedidos de divulgarem as informações que obtiveram no exercício da sua actividade profissional, sobre eles impendendo um dever ético de não revelarem o que apreenderam por força de tal actividade.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3ª Edição, 2008, pág. 961, o segredo profissional abrange tudo quanto tenha chegado ao conhecimento de alguém através do exercício da sua actividade profissional e na base de uma relação de confiança.
Não basta assim o simples exercício da actividade sujeita a sigilo profissional para se verificar a obrigatoriedade de respeito pelo referido segredo, necessário sendo que os factos ou informações em causa se encontrem em conexão com o exercício dessa actividade profissional, isto é, tenham sido obtidos por força e no âmbito de tal actividade.
Não obstante, o segredo profissional não é um segredo absoluto, sem qualquer possibilidade de afastamento, mas as razões da sua existência impõem que, só excepcionalmente, possa ter lugar a quebra de tal segredo.
No caso, o sigilo profissional foi invocado por uma advogada, relativamente a factos de que teve conhecimento no âmbito da sua profissão.
A legitimidade de tal recusa foi reconhecida pelo Mmo. Juiz, nada existindo nos autos que permita pôr em causa tal conclusão.
Impendendo sobre a generalidade das testemunhas a obrigatoriedade de testemunharem, isto é, de revelarem os factos em investigação de que têm conhecimento (art.º 131.º do C.P.P.), situações existem em que a recusa em depor se afigura legítima, sendo uma dessas situações precisamente o caso do segredo profissional.
Sobre o mesmo segredo, determina-se no art.º 135.º do C.P.P.: 1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos. 2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. 4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável. 5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.»
(sublinhados nossos)
Quanto ao segredo profissional do advogado, determina-se no art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de Setembro, que: «1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. 2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço. 3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo. 4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respectivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento. 5 - Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo. 6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional. 7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5. 8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infracção disciplinar a violação daquele dever.
Assim, no que respeita ao sigilo profissional do advogado, verifica-se que este deixa de estar sujeito ao mesmo em duas situações distintas:
- quando é dispensado do segredo profissional pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo no seguimento de pedido formulado pelo próprio advogado, nos termos previstos no n.º 4 do citado art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados; e
- no âmbito do incidente processual de quebra do segredo profissional, regulado no art.º 135.º do C.P.P..
No âmbito deste incidente, subidos os autos ao Tribunal da Relação, impõe-se fazer uma análise ponderada e prudente dos interesses em jogo, por forma a determinar qual deles deve prevalecer, nos termos previstos no n.º 3 do art.º 135.º do C.P.P., atendendo nomeadamente à imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, à gravidade do crime e à necessidade de protecção de bens jurídicos.
No caso em apreço, os interesses conflituantes prendem-se, por um lado, com o interesse do Estado na realização da justiça penal e, por outro, com o interesse tutelado com o estabelecimento do segredo profissional na advocacia, havendo também que atentar que existe um terceiro interesse, o da defesa dos arguidos em processo penal, consagrado no art.º 32.º da C.R.P., já que, no caso, os titulares de tal direito, os arguidos, não são os obrigados ao segredo cujo levantamento é pretendido.
A imprescindibilidade do depoimento da testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial na decisão sobre a quebra do segredo.
De acordo com os dispositivos legais transcritos, o tribunal só pode determinar a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, daí resultando que o levantamento do sigilo só se justifica se se mostrar indispensável para o julgamento do crime e boa decisão da causa.
Conforme podemos ler no Ac. TRL de 24-09-2008, CJ, 2008, T4, pág.134:
«I. A quebra de sigilo profissional dos advogados impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, em ordem a determinar se a salvaguarda do sigilo profissional deve ceder ou não perante outros interesses, designadamente o da colaboração com a realização da justiça penal, ponderando-se a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime em causa e a necessidade de protecção dos bens jurídicos. II. Ouvida a Ordem dos Advogados, nos termos do artº 135º, nº4 do CPP, o parecer emitido por este organismo não é vinculativo para o tribunal a quem compete decidir o incidente de quebra de segredo profissional.»
Também no Ac. do TRC de 05.04.2017 se considerou:
«I - Por norma aquele que está sujeito ao dever de guardar segredo ou sigilo, obteve conhecimento de factos devido a uma especial relação de confiança com quem lhe presta a informação, justificando-se assim a não divulgação, sem consentimento ou causa justificativa. II - O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer. III - O interesse da investigação criminal é preponderante em relação ao interesse protegido pelo sigilo profissional, pelo que se justifica a sua quebra, mediante a prestação dos depoimentos pretendidos.»
No caso sub judice, ouvida a Ordem dos Advogados, emitiu aquele Organismo parecer no qual se conclui não ser caso de quebra de sigilo profissional.
No entanto, conforme decorre da factualidade acima elencada, os factos conhecidos pela testemunha e cobertos pelo segredo profissional de advogado, afiguram-se essenciais para a descoberta da verdade material quanto aos crimes de insolvência dolosa e de falsificação de documentos em causa nos autos, sendo certo que, conforme alegado por alguns dos arguidos, foi a referida testemunha quem tratou da alienação das empresas “Supermercados Selecção, S.A.,” e “Supermercados Europa, Lda.”, bem como da documentação necessária a tal alienação.
Por outro lado, os referidos crimes têm elevada gravidade, sendo punidos com pena de prisão até cinco anos ou multa até 600 dias (insolvência dolosa) e com pena de prisão de 6 meses a 5 anos ou multa até 600 dias (falsificação de documento).
Os valores envolvidos são também de valor elevado, ascendendo as dívidas ao Estado imputadas à sociedade “Supermercados Europa, Lda.”, a 30.514,58€ e à sociedade “Supermercados Selecção, S.A.,” a 71.597,73 €.
Vem ainda pedida a perda de vantagens económicas, no valor de 300.000€, quanto aos arguidos JL__ , JV___ e TV___, correspondente ao valor da venda dos imóveis de que era proprietária a sociedade “Supermercados Europa, Lda.”, e de 30.490€, quanto aos arguidos JL__ , JV_____, JV____, TV___ e AV___, relativo ao valor dos veículos por eles vendidos que eram propriedade da sociedade “Supermercados Selecção, S.A.”.
Neste enquadramento, estando em causa crimes de elevada gravidade e revelando-se o depoimento da Exma. advogada essencial para a descoberta da verdade material, entendemos que deve ser reconhecido como preponderante o interesse da realização da justiça, que visa a protecção dos bens jurídicos e a descoberta da verdade material, interesse que deve assim ser acautelado, ficando secundarizados os interesses relativos à reserva profissional e que subjazem ao sigilo profissional.
Assim, no conflito entre dois interesses legalmente atendíveis – o dever de colaboração com a justiça e a tutela dos segredos conhecidos na e pela profissão – o depoimento da testemunha revela-se fundamental para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa.
Impõe-se, pois, e legitimamente, a quebra do segredo profissional, já que a testemunha Dra. Fcc se encontra em situação privilegiada para contribuir para o cabal esclarecimento dos factos e descoberta da verdade material, justificando-se assim que cesse o dever de segredo profissional da Ilustre advogada e se abra caminho à sua colaboração na realização da Justiça, mediante a prestação do depoimento pretendido.
Consequentemente, na ponderação concreta dos interesses presentes, ao abrigo do que se dispõe no art.º 135.º, n.ºs 3 e 4, do C.P.P., impõe-se determinar a quebra do segredo profissional invocado.
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III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder a pretendida quebra de segredo profissional, e, consequentemente, em determinar que a Srª. Drª FCC preste depoimento como testemunha no âmbito destes autos.
Sem tributação.
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Elaborado em computador e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º, n.º 2, do C.P.P.)
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Lisboa, 03.03.2021
Maria Leonor Silveira Botelho
Ana Paula Grandvaux Barbosa
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira