RECURSO DE REVISÃO
PRESSUPOSTOS
NOVOS FACTOS
NOVOS MEIOS DE PROVA
PROVA DOCUMENTAL
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CRIME
CONTRAORDENAÇÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
LICENÇA DE CONDUÇÃO
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I - O instituto do caso julgado é orientado pela ideia de conseguir maior segurança e paz nas relações jurídicas, bem como maior prestígio e rendimento da atividade dos tribunais, evitando a contradição de decisões.
II - Embora o princípio da intangibilidade do caso julgado não esteja previsto, expressis verbis, na Constituição, ele decorre de vários preceitos (arts. 29.º, n.º 4 e 282.º, n.º 3) e é considerado um subprincípio inerente ao princípio do Estado de direito na sua dimensão de princípio garantidor de certeza jurídica.
III - As exceções ao caso julgado deverão ter, por isso, um fundamento material inequívoco.
IV - Traço marcante do recurso de revisão é, desde logo, a sua excecionalidade, ínsita na qualificação como extraordinário. Regime normativo excecional que admitindo interpretação extensiva não comporta aplicação analógica.
V - A expressão “descobrirem novos” pressupõe que os factos ou elementos de prova foram conhecidos depois da sentença e, por isso, não podiam ter sido aportados ao processo até ao julgamento, seja porque antes não existiam, seja porque, embora existindo, somente foram descobertos depois.
VI - A novidade dos factos e meios de prova afere-se pelo conhecimento do condenado. Omitindo o dever de contribuir, ativa e lealmente para a sua defesa não pode, depois de condenado por sentença firme, servir-se do recurso extraordinário de revisão para corrigir deficiências ou estratégias inconsequentes.
VII - No recurso de revisão com fundamento em novos factos ou meios de prova deve estar em causa, fundamentalmente, a antinomia entre condenação e absolvição. Grave e intoleravelmente injusta é a decisão que condenou o arguido quando deveria ter sido absolvido.
VIII - O recurso de revisão não pode servir para buscar ou fazer prevalecer, simplesmente, “uma decisão mais justa”. De outro modo, o valor do caso julgado passava a constituir a exceção e a revisão da sentença condenatória convertia-se em regra.
IX - No caso, não vem questionada a ilicitude ou ilegalidade dos factos materiais, nem negada a autoria do arguido. O recorrente não contesta que sendo responsável pelos factos assim cometidos deva ser sancionado. Questiona a qualificação jurídica dos factos. Deveria ser absolvido do crime e responsabilizado pela contraordenação.

Texto Integral


O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, em conferência, acorda:


A - RELATÓRIO:

a) a condenação:

No Juízo de Média Instância Criminal ..., da extinta comarca ...., no processo comum com intervenção do tribunal singular supra identificado, mediante acusação do Ministério Público, foi julgado o arguido:

- AA, de … anos de idade, e os demais sinais dos autos

e, por sentença de 22 de janeiro de 2013, condenado pela prática, em autoria material de um crime de condução ilegal, p. e p. pelo artigo 3.º nº 2 do DL n.º 2/98 de 3 de janeiro, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, com execução suspensa pelo período de 1 (um) ano, mediante sujeição a regime de prova.

Foi condenado nas custas do processo, com a taxa de justiça fixada em 1 UC.

b) o recurso:

Por requerimento apresentado nos autos, apresentou o vertente recurso extraordinário de revisão, invocando o disposto no artigo 449º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Penal.

Motiva os vários requerimentos apresentados, - com argumentação repetitiva -, alegando (em síntese compreensiva), que foi “condenado por um crime de condução sem habilitação legal na pena 5 meses de prisão, suspensa por 1 ano por decisão de 2013/01/22, transitada em julgado 2013/02/12”.

Que “não podia ser condenado pelo crime de condução sem habilitação legal porque sou titular de carta de condução de categoria AM desde o ano 1997-09-02 valida até 22-09-2031.

Que “sofreu penas suspensas, penas de prisão efetiva, que cumpriu na

Que “pagou custas, a Advogados de defesa.

O Código da Estrada, no artigo 123º, (Carta de condução) dispõe:

Quem, sendo apenas titular de carta de condução categorias AM ou A1, conduzir veículo de qualquer outra categoria para a qual respetiva carta de condução não confira habilitação é sancionado com coima €700 a €3500

A redação do nº 4 do artigo 123º resultou de alteração ao Código da Estrada operada pelo Decreto-Lei nº 138/2012, de 5 de Julho, diploma este que aprovou o novo regulamento da habilitação legal para conduzir e que entrou em vigor em 02-11-2012.

Este diploma legal transpôs parcialmente para o ordenamento jurídico a Directiva nº 2006/126/CE, do parlamento europeu e do conselho, de 20 de Dezembro, introduziu diversas alterações ao Código da Estrada, entre as quais, eliminou como titulo de condução a licença de condução, introduziu a categoria AM para ciclomotores e motociclos ate 50cm, em substituição daquela, visando desta forma, uniformizar os títulos de condução em todo o espaço europeu e permitir o seu reconhecimento mútuo.

Sendo titular de carta de condução de categoria AM valida [de] 02-09-1997 até 22-09-2031

Tendo eu que ser sancionado com coima de 700€ a 3500€ operada pelo Decreto-Lei nº 138/2012, de 5 de Julho, que aprovou o novo regulamento da habilitação legal para conduzir e que entrou em vigor em 02-12-2012.

Coima esta sendo paga à Autoridade Nacional Rodoviária.

Sendo este o motivo em qual me refiro em toda esta carta que escrevo de pedir o Recurso Extraordinário (Revisão)

Exp[u]s o meu caso (…) ao Tribunal Supremo da Justiça o qual me informou ser eventualmente fundamento para uma hipotética interposição de recurso de revisão (…) a deduzir nos processos e apresentar nos Tribunais onde se tenha proferido as decisões a rever.

Peço a revisão do processo 95/12.4GAILH no qual fui condenado por um crime de condução sem habilitação legal que não cometi.

Nos termos do Artigo 449º alínea d) nº 1 Código Processo Penal

“ A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo suscitem graves dúvidas sobre a justiça de condenação”

A interposição de recurso de revisão em apreço, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 449 do Código Processo Penal, da sentença condenatória proferida em 2013-01-22 transitada em julgado 2013-02-12 que me condenou pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, nº 1 e 2 Decreto-lei n 2/98, de 3 de Janeiro e artigo 121º do Código da Estrada na pena de 5 meses de prisão suspensa por 1 ano.

Venho mais uma vez pedir a este tribunal que me reabrisse todos os processos nos quais eu foi condenado por crimes de condução sem habilitação legal e que me enviasse os contactos dos Advogados de defesa nos processos que foi condenado, para recurso de revisão para ser absolvido. E em cada um deles só ter que pagar uma coima de 700€ a 3500€ e este tribunal me devolver o respetivo dinheiro que paguei das custas dos processos e pedir uma indemnização civil por danos morais por o tempo que estive detido.

Junto fotocopia da carta de condução

Junto fotocopia de declaração do IMTT como a minha carta de condução de categoria AM consta como valida desde 1997

c) resposta do M.º P.º:

O Ministério Público na 1ª instância respondeu, defendendo que se autorize a revisão, argumentando (em síntese): 4. o recorrente junta um novo elemento de prova que, aquando do julgamento não foi conhecido, a saber, a licença de condução emitida pela Câmara Municipal ...., explicando ainda que, em sede de julgamento entendeu que ser titular de tal habilitação em nada influiria na causa, por se tratar de título de condução de outra categoria, que não a do veículo em que havia sido fiscalizado.

5. conjugados os artigos 62º, nº 1 e 2 do DL nº 138/2012, de 05-07 (Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir), com o disposto no art. 123º, nº 4 do Código da Estrada, na redação dada pelo citado diploma, conclui-se que, caso fosse conhecido que o recorrente era titular de licença para conduzir veículos da categoria AM, não incorreria em crime de condução sem habilitação legal, mas sim, na prática da contraordenação prevista no 123º, nº 4 do Código da Estrada.

6. o documento que posteriormente ao trânsito em julgado da decisão condenatória, chegou ao processo, comprovando que o arguido, à data da prática dos factos era, afinal, titular de documento que o habilitava a conduzir veículos de outra categoria, constitui tanto para o tribunal como para o requerente da revisão, «meio de prova novo» de um facto desconhecido e, nesse sentido, «novo», com a virtualidade de pôr em causa a justiça da sua condenação.

d) informação do tribunal:

O Tribunal da condenação, observando o disposto no artigo 454.º do CPP, exarou a seguinte informação:

AA foi condenado nos presentes autos, por decisão proferida em 22 de Janeiro de 2013, transitada em julgado em 12 de Fevereiro de 2013, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, suspensa na execução pelo período de um ano, sujeita a regime de prova.

Analisado o requerimento de interposição de recurso, constata-se que aí foi alegado que o condenado é titular de uma carta de condução, válida para a categoria “AM” (veículos motociclos até à cilindrada de 50cm3), desde 02-09-1997 até 22-09-2031, o que não foi considerado pelo Tribunal da condenação. Mais alega que deveria ter sido absolvido da prática desse ilícito.

Atendo-nos às alegações do Ministério Público, teremos prima facie que balizar esta informação sobre o mérito na reunião dos fundamentos e admissibilidade da revisão da sentença.

Assim:

Se percorrermos a sentença proferida nos autos, verificamos que a fundamentação da matéria de facto dada como provada assentou na valoração da confissão livre, integral e sem reservas apresentada pelo arguido. Refere mesmo a fundamentação que “quando confrontado com a carta junta aos autos que podia por em causa a sua confissão agora efectuada, o arguido manteve a confissão, não havendo razão para a por em causa, razão pela qual não foi produzida qualquer outra prova. (…) A caducidade definitiva da carta está documentada. (…)” Nessa linha de pensamento, pode entender-se que tal vem de significar que o documento junto aos autos, ainda na fase preliminar do processo sumário, e que atesta que o arguido à data da prática dos factos era titular de uma licença de condução, em sede decisória “perde” a sua força face à confissão.

Também se poderá entender que tal não ocorre, pois que o julgador ao aplicar o Direito tem sempre de proceder ao enquadramento jurídico penal dos factos (…)

No caso concreto, existia nos autos um documento (pesquisa efetuada na base de dados do IMT) que sustenta que o arguido era titular de uma licença de condução referente a motociclos de cilindrada inferior a 50cm3 – por conseguinte, era um facto conhecido do Ministério Público quando deduziu acusação, era um facto suscetível de ser atendido pelo Juiz de julgamento e era um facto conhecido do próprio arguido.

Concluindo: pela vertente mais formalista, não existe qualquer novidade no meio de prova em que o arguido se sustenta para beneficiar da revisão da sentença (alínea d) do nº 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal).

Noutro prisma menos formalista, visando os fundamentos do recurso extraordinário de revisão de sentença o compromisso entre o respeito pelo caso julgado (e, com ele, a segurança e estabilidade das decisões) e a justiça material do caso concreto, resulta que este meio de prova tem a força e a segurança suficiente para abalar o caso julgado da sentença proferida nos autos principais.

Contrabalançando os direitos e interesses em contraposição, a signatária tenderia a aceitar a novidade do documento, sob pena de se cair na violação de direitos fundamentais (a justiça material da condenação e credibilidade da Justiça está gravemente posta em causa).

O que acima se expendeu sustenta-se na análise, não só da eventual novidade do documento/meio de prova, mas igualmente da análise das normas legais aplicáveis ao caso concreto. Vejamos:

A atual redação do artigo 123 º do Código da Estrada (em vigor à data da prática dos factos) estatui que: “1. A carta de condução habilita o seu titular a conduzir uma ou mais das categorias de veículos fixadas no RLHC, sem prejuízo do estabelecido nas disposições relativas à homologação de veículos. (…) 4. Quem, sendo apenas titular de carta das categorias AM ou A1, conduzir veículo de qualquer outra categoria para a qual a respectiva carta de condução não confira habilitação, é sancionado com coima de €700 a €3500”.

Em 14 de Junho de 2018, o condenado era titular de carta de condução da categoria AM (que correspondia à antiga licença de condução com o n.º ....00, emitida pela Câmara Municipal .... em 22-11-1999, que o habilitava a conduzir veículos ciclomotores e motociclos de cilindrada não superior a 50cm3, regulada pela norma ínsita nos artigos 122º e 124º do Código da Estrada - na redação dada pelo Decreto-lei n.º114/94, de 3 de Maio e pelo Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro – sendo que esta mesma licença já decorria da troca da licença camarária com o n.º ....6, emitida em 02-09-1997).

Isto considerando que o condenado, em 05-01-2016, requereu junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P. a troca da supra referida licença pela carta de condução com o n.º A.......0, emitida em 22-06-2019.

Consequentemente, à data da prática dos factos e à data da prolação da sentença, o arguido era titular de uma carta de condução que não o legitimava nem habilitava a conduzir veículos automóveis e, nessa medida, terá praticado uma contra-ordenação.

Assim sendo, de tudo o que acima se expendeu resulta que, salvo melhor e mais avisada opinião em contrário, assiste razão ao recorrente.

Caso os Senhores Juízes Conselheiros entendam que inexiste qualquer novidade no meio de prova que serve de fundamento ao recurso, terá, necessariamente de se concluir em sentido contrário.

Nestes termos, em face de tudo quanto acima se consignou e salvo a sempre melhor e avisada posição dos Senhores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, considero que o pedido em evidência deverá proceder e, em consequência, deverá conceder-se a revisão da decisão condenatória proferida nos autos principais.

e) parecer do M.º P.º no STJ:

A Digna Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal na vista a que alude o artigo 455.º n.º 1 do CPP, emitiu douto parecer. Entendendo resultar preenchida a alínea d) do nº1 do art. 449º do CPP, pronuncia-se pela autorização da revisão da sentença condenatória do recorrente, com a argumentação seguinte (em síntese):

2. 1. No âmbito da referida sentença o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º nº 2 do DL 2/98 de 03.01, na pena de 5  meses de prisão, suspensa na execução pelo período de um ano, sujeita a regime de prova. Os factos ocorreram em 06.02.2012, tendo sido dado como provado:

“O arguido conduzia na via pública o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-CE. O arguido não é titular de carta de condução ou outro documento que o habilite a conduzir veículos automóveis em virtude da declaração de caducidade (definitiva) de tal documento ocorrida em 16.08.2005.

O arguido sabia que não sendo detentor de carta de condução em virtude de ter sido declarada a caducidade (definitiva) da mesma a condução de veículo, na via pública, nessas condições se traduzia num facto proibido e punido pela lei como crime. Apesar disso decidiu conduzir o veículo automóvel ligeiro com a matrículam..-..-CE, na ocasião referida.

Fundamenta-se, designadamente: A convicção do Tribunal baseou-se nas declarações do arguido que confessou os factos de forma integral e sem reservas. Quando confrontado com a carta junta aos autos que podia pôr em questão a confissão agora efetuada, o arguido manteve a confissão, não havendo razão para a pôr em causa, razão pela qual não foi produzida qualquer outra prova.

Portanto, não ficaram dúvidas de que o arguido conduziu no tempo e local constantes da acusação, um veículo automóvel, com a consciência de ser criminalmente punida a sua conduta.

A caducidade definitiva da carta está documentada o mesmo acontecendo com os antecedentes criminais, os quais resultam do CRC junto a folhas 101 e seguintes.

2.2.Na sequência de esclarecimentos solicitados pelo tribunal ,em sede de processo de revisão,  o IMTT prestou a seguinte informação:

“AA, titular do documento de identificação n.º ......, em 05-01-2016, requereu junto desta Delegação, a troca da licença de condução de ciclomotores .....00, emitida pela Câmara Municipal, tendo entregue para o efeito, Certidão emitida pela Câmara Municipal ....., onde consta que realizou exame de condução na Câmara Municipal..... a 02-09-1997, o que deu origem à emissão da carta de condução n.º A....0 para a categoria AM, conforme documento que se junta.

2. Mais se informa V.ª Ex.ª, AA é igualmente detentor das categorias B e B1 desde 21-06-2019, categorias às quais se habilitou em 23-04-2018, termos em que, o condutor atualmente é titular da carta de condução n.º A....0, com data de emissão de 29-06-2019, que se encontra válida para as seguintes categorias:

• AM desde 02-09-1997 até 22-09-2031; e

• B e B1 desde 21-06-2019 até 29-06-2034.

3. Face ao exposto, em 06-02-2012, AA era titular da licença de condução de ciclomotores n.º .....00, emitida pela Câmara Municipal ...., para a categoria anteriormente denominada de X1, que atualmente corresponde à categoria AM.”

2.3. tomadas declarações ao arguido, em 02.06.2020, “informado o mesmo de que neste processo há uma informação do IMT de 15-06-2012 que informa que tinha tido licença de categoria B e B1 desde 2004 mas estaria caducada desde 2012, sem qualquer referência a licenças camarárias, referiu que, quando foi julgado, não fez referência a tal licença porque só lhe perguntaram pela carta de condução e relativamente a essa disse sempre que a mesma estava caducada”.

Cotejado o histórico do processo principal, não se descortina a existência de qualquer informação do IMTT aludindo a que o arguido era titular de uma licença de condução referente a motociclos de cilindrada inferior a 50cm3.

A única informação disponível, antes da audiência de julgamento (a fazer fé nos elementos constantes do citius) é a informação do IMTT, em 19.06.2012, que informa que o arguido era titular da carta de condução nº A- ....90 que titula habilitação legal para a condução de veículos das categorias B e B1 desde 19.04.2004, válida até 22.09.2031, a qual se encontra no estado informático de “Caducada definitivamente

Saliente-se ainda, que em data anterior à audiência de julgamento, no processo principal, o arguido entregou requerimento nos autos, em 28.12.2012, em que afirmava não ser ele o condutor do veículo ......, matrícula ..-..-CE (mas sim o proprietário do mesmo), no dia em causa, 06.02.2012.

Vindo o arguido, na audiência de julgamento, a confessar os factos constantes da acusação, tal mudança de posição terá levado à necessidade de o tribunal fundamentar na sentença condenatória que “Quando confrontado com a carta junta aos autos que podia pôr em questão a confissão agora efetuada, o arguido manteve a confissão, não havendo razão para a pôr em causa, razão pela qual não foi produzida qualquer outra prova”.

Portanto, não ficaram dúvidas de que o arguido conduziu no tempo e local constantes da acusação, um veículo automóvel, com a consciência de ser criminalmente punida a sua conduta face às declarações confessórias do arguido, não ficaram dúvidas de que o arguido conduziu no tempo e local constantes da acusação, um veículo automóvel, com a consciência de ser criminalmente punida a sua conduta.

A caducidade definitiva da carta está documentada, o mesmo acontecendo com os antecedentes criminais, os quais resultam do CRC junto a folhas 101 e seguintes.

 4 Em face do exposto, e dos elementos probatórios  que foi possível obter, subscrevem-se os fundamentos aduzidos na resposta apresentada pela Magistrada do MºPº (que transcreve).


*


O recorrente (arguido nos autos) tem legitimidade para requerer a revisão da sua condenação por decisão judicial transitada em julgado (artigo 450.º, n.º 1, al. c), do CPP). O recurso encontra-se minimamente motivado e está instruído (artigos 451.º, n.º 3, e 454.º do CPP). Este Supremo Tribunal é o competente (artigos 11.º, n.º 4, al. d), e 454.º do CPP) para apreciar o pedido de autorização da rescisão de sentença condenatória. Nada obstando, pois, ao conhecimento do recurso.

Em razão do atual estado de emergência dispensaram-se os vistos.

Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO:

1. a decisão revidenda:

A condenação do recorrente fundou-se na seguinte matéria de facto provada (na parte que aqui releva):

No dia 06.02.2012, cerca das 16h40m, o arguido conduzia o veículo

automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-CE, na rua ....., ..... .

O arguido não é titular de carta de condução ou outro documento que o habilite a conduzir veículos automóveis em virtude da declaração de caducidade (definitiva) de tal documento ocorrida em 16.08.2005.

O arguido sabia que não sendo detentor de carta de condução em virtude de ter sido declarada a caducidade (definitiva) da mesma a condução de veículo, na via pública, nessas condições se traduzia num facto proibido e punido pela lei como crime.

Apesar disso decidiu conduzir o veículo automóvel ligeiro com a matrícula ..-..-CE, na ocasião referida.

O arguido tem diversas condenações por condução ilegal reportadas aos anos de 2001 a 2003 tendo sido condenado em penas de multa e prisão suspensa, já todas julgadas extintas.

Em 03.05.2004 obteve carta de condução.

Após a obtenção da carta foi condenado por condução em estado de embriaguez em pena de multa, que pagou e por ofensa à integridade física, tendo sido dispensado da pena.

A carta de condução do arguido foi declarada caducada definitivamente no âmbito de um processo de contraordenação que sofreu.

Após, o arguido voltou a ser condenado por condução ilegal por factos de

2011 tendo sido condenado em penas de prisão efetiva de 420 (quatrocentos e vinte) dias e 8 (oito) meses, que cumpre desde 08.02.2012 (…)

Confessou integralmente e sem reservas os factos.

A decisão em matéria de facto fundamentada nos termos seguintes:

A convicção do Tribunal baseou-se nas declarações do arguido que confessou os factos de forma integral e sem reservas. Quando confrontado com a carta junta aos autos que podia pôr em questão a confissão agora efetuada, o arguido manteve a confissão, não havendo razão para a pôr em causa, razão pela qual não foi produzida qualquer outra prova.

Portanto, não ficaram dúvidas de que o arguido conduziu no tempo e local constantes da acusação, um veículo automóvel, com a consciência de ser criminalmente punida a sua conduta.

A caducidade definitiva da carta está documentada (…).

O Tribunal motivando a subsunção jurídica dos factos, expendeu:

O crime de condução ilegal previsto e punido pelo artigo 3º, nº 2 do DL 2/98 de 3.1 é punido com pena de prisão até 2 (dois) anos ou multa até 240 (duzentos e quarenta) dias, sendo que o bem jurídico protegido é a segurança rodoviária. A conduta proibida é, pois, a condução sem título que o permita, na via pública, sendo que a condução após a caducidade do título corresponde a condução sem título (artigo 130º nº 5 do Código da Estrada).

O tipo subjetivo é doloso.

Provou-se que o arguido, que deixou de ser possuidor de carta de condução, conduziu um veículo automóvel na via pública sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.

Tanto basta para que se mostrem preenchidos os elementos objetivo e

subjetivo do tipo de crime por que vem acusado.

2. a revisão extraordinária de decisões condenatórias:

a) o caso julgado penal:

A decisão judicial[1], a partir do momento em que não pode ser contestada ou impugnada através dos procedimentos ordinários legalmente previstos, torna-se firme, regulando definitivamente o caso concreto na ordem jurídica. Na expressão de Manuel de Andrade, a sentença constitutiva (que julga procedente uma ação) transitada em julgado (caso julgado material) traz o direito para a evidência[2].

Sem caso julgado nenhuma decisão judicial seria exequível, nunca o processo atingiria o seu fim.

Embora o princípio da intangibilidade do caso julgado não esteja previsto, expressis verbis, na Constituição, ele decorre de vários preceitos do texto constitucional (Constituição da República português, artigos 29, n-º 4 e 282, n.º 3) e é considerado como subprincípio inerente ao princípio do Estado de direito na sua dimensão de princípio garantidor de certeza jurídica. As exceções ao caso julgado deverão ter, por isso, um fundamento material inequívoco[3].

O Código de Processo Penal não contém qualquer normativo do qual possa extrair-se, diretamente, a definição do trânsito em julgado das sentenças penais. Remete-nos – art. 4º - para o direito adjetivo subsidiário, para o Código de Processo Civil. Neste diploma, o art. 628º estabelece: “A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”.

Nas palavras de Eduardo Correia, “o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto”[4].

No entender de J. Figueiredo Dias também a segurança é um dos fins prosseguidos pelo processo penal, “O que não impede que institutos como o do recurso de revisão contenham na sua própria razão de ser um atentado frontal àquele valor, em nome das exigências da justiça. Acresce que só dificilmente se poderia erigir a segurança em fim ideal único, ou mesmo prevalente, do processo penal. Ele entraria então constantemente em conflitos frontais e inescapáveis com a justiça; e, prevalecendo sempre ou sistematicamente sobre esta, pôr-nos-ia face a uma segurança do injusto que, hoje, mesmo os mais cépticos têm de reconhecer não passar de uma segurança aparente e ser, só, no fundo, a força da tirania[5].

Para J. Alberto dos Reis, “o recurso de revisão pressupõe que o caso julgado se formou em condições anormais, que ocorreram circunstâncias patológicas susceptíveis de produzir injustiça clamorosa. Visa eliminar o escândalo dessa injustiça. Quer dizer, ao interesse da segurança e da certeza sobrepõe-se o interesse da justiça”[6].

O instituto do caso julgado é orientado pela ideia de conseguir maior segurança e paz nas relações jurídicas, bem como maior prestígio e rendimento da atividade dos tribunais[7], evitando a contradição prática de decisões.

A favor do caso julgado em processo penal, invoca-se também o efeito nefasto da reabertura em relação ao coarguido e às vítimas, que seria potenciado pelas circunstâncias emergentes do distanciamento em relação ao material probatório derivado da passagem do tempo.

b) o recurso de revisão:

Na expressão de M. Cavaleiro de FerreiraA irrecorribilidade das decisões judiciais irrevogáveis tem por efeito a sua definitividade e a sua exequibilidade. Quer dizer, esgotou-se no respectivo processo quanto à matéria da decisão o poder jurisdicional, e ficou autorizada a execução da decisão[8]”.

Contudo o princípio res judicata pro veritate habetur não confere ao caso julgado, ainda que erga omnes, uma presunção juris et de jure, de que a decisão consagra justiça absoluta, perenemente irreparável, e por isso irrevogável”.

A revisão, qualquer que seja a sua génese, será sempre uma violação da segurança do caso julgado que é justificada em razões de justiça[9].

Todavia, socorrendo-nos das justificações do Tribunal Supremo de Espanha: “o problema político-social que se produz pelo facto de que sendo as decisões judiciais um ato humano não se deve cerrar o passo definitivamente à consideração de que possam estar equivocadas. O intérprete do sistema legal tem que sopesar se num momento determinado o valor da segurança jurídica deve sobrepor-se ao valor da justiça. Um Estado democrático deve buscar saídas e soluções para resolver os problemas que afetam a liberdade e os direitos individuais[10].

O recurso extraordinário de revisão, assenta na ideia de que as sentenças judiciais condenatórias firmes, embora esmagadoramente correspondam à verdade prático-jurídica, todavia podem não ser infalíveis, mas também não podem estar permanentemente abertas a qualquer reapreciação. É, na essência, um remédio que, atentando contra o efeito preclusivo do caso julgado e a inerente segurança e paz, cuida de manter o equilibro necessário entre o valor da certeza jurídica que lhe é imanente e a justiça material.

Por isso que, somente se admite a revisão quando o Supremo Tribunal se depara com um caso de condenação notoriamente equivocada, enquadrável em algumas das situações que o legislador taxativamente erigiu como podendo justificar a revogação da sentença condenatória transitada em julgado.

O recurso ordinário da sentença eleva a tramitação a outra etapa do processo penal, a fase destinada ao reexame da decisão.

O recurso extraordinário de revisão não tem por objeto a reapreciação da decisão judicial transitada. Não é uma fase normal de impugnação da sentença penal. É um procedimento autónomo especialmente dirigido a obter novo julgamento e, por essa via, rescindir una sentença condenatória firme.

No entendimento seguido no Ac. n.º 376/2000 do Tribunal Constitucional, “no novo processo não se procura a correção de erros eventualmente cometidos no anterior e que culminou com a decisão revidenda, porque para a correção desses vícios terão bastado e servido as instâncias de recurso ordinário”, “os factos novos do ponto de vista processual e as novas provas, aquelas que não puderam ser apresentadas e apreciadas antes, na decisão que transitou em julgado, são indício indispensável à admissibilidade de um erro judiciário carecido de correção. Por isso, se for autorizada a revisão com base em novos factos ou meios de prova, haverá lugar a novo julgamento[11].

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), Protocolo 7, no artigo 3º (direito a indemnização em caso de erro judiciário) alude a “condenação penal definitiva” “ulteriormente anulada” “porque um facto novo ou recentemente revelado prova que se produziu um erro” de julgamento. E no artigo 4º estatui-se que a sentença definitiva não impede “a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afetar o resultado do julgamento”.

Nesta linha, a Constituição da República, no artigo 29º, (n.º 5), “obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto[12] e (n.º 6) atribui à pessoa injustamente condenada o direito à revisão da sentença, nos termos que a lei prescrever

A violação do caso julgado, permitida pela Constituição da República, e pela CEDH, visa a salvaguarda do elementar direito à liberdade e o direito a uma condenação justa de acordo com as regras constitucionais e do processo penal.

Traço marcante do recurso de revisão é, desde logo, a sua excecionalidade, ínsita na qualificação como extraordinário[13] e no regime, substantivo e procedimental, especial. Por isso, somente os fundamentos firmados pelo legislador podem legitimar a admissão da revisão da condenação transitada em julgado. Regime normativo excecional que admitindo interpretação extensiva não comporta aplicação analógica –art.11º do Código Civil.

Como se sustenta no Ac. de 26-09-2018, deste Supremo Tribunal, “do carácter excecional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um grau de exigência na apreciação da respetiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários”.

c) regime legal:

Em execução daquele comando constitucional (e do referido preceito da CEDH), o Código de Processo Penal, consagra, e regula o recurso extraordinário de revisão, estabelecendo no artigo 449º (fundamentos e admissibilidade da revisão) n.º 1 do CPP:

1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.

Por sua vez, o art. 451º (“formulação do pedido), n.º 2 exige que do requerimento conste a exposição circunstanciada dos fundamentos da revisão e a indicação dos meios de prova em que se possa amparar.

Exige-se também que o requerimento venha instruído com cópia autenticada da decisão revidenda e a certificação do seu trânsito em julgado (n.º 3)

Não se admitindo testemunhas que não tenham sido inquiridas no processo, a não ser justificando que se ignorava a sua existência à data da condenação ou que estiveram impossibilitadas de depor – art. 453º n.º 2 do CPP.

Com o requerimento, apresentado no tribunal da condenação, inicia-se o procedimento destinado à verificação dos requisitos formais e dos pressupostos substantivos para poder ser formulado um juízo rescindente, da competência exclusiva do STJ.

O juízo rescindente só pode ser formulado e, consequentemente, autorizado novo julgamento, se proceder algum dos fundamentos constitucional ou legalmente previstos para que o caso julgado tenha de ceder perante a grave injustiça da condenação.

Não estando presente todos os requisitos ou não existindo ou não se demonstrando os fundamentos invocados, ou se, alicerçando-se em novos factos ou novos elementos de prova, visa corrigir a medida da pena, a revisão deve ser negada – art. 456º.

Sendo autorizada, inicia-se a fase do juízo rescisório a processar na 1ª instância territorialmente competente.

d) antinomia condenação-absolvição:

O fundamento previsto na al.ª d) do n.º 1 do art. 449º do CPP (invocado pelo requerente e, por conseguinte, único que importa ao vertente recurso), exige desde logo a descoberta de “novos factos ou meios de prova”.

E exige ainda que os novos factos ou meios de prova, por si sós ou combinados com os que foram apreciados no processo, “suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.

Norma cuja redação provem e se mantem inalterada desde o texto original, inspirada no artigo 673.º, n.º 4, do Código de Processo Penal de 1929, que tinha a seguinte redação:

“4. Se, no caso de condenação, se descobrirem novos factos ou elementos de prova que, de per si ou combinados com os factos ou provas apreciadas no processo, constituam graves presunções da inocência do acusado”.

Entendia-se então que “a suspeita grave de injustiça da decisão, no sentido da violação da lei substantiva, não podia fundamentar a revisão”.

Sustenta-se na doutrina e tem sido adotado na jurisprudência o entendimento de que a alínea d) “tem um campo de aplicação bastante divergente deste seu antecedente, muito mais amplo, pois enquanto aquele n.º 4 exigia que os novos factos ou elementos de prova constituíssem graves presunção de inocência do condenado, basta agora que eles suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. A disposição atual tem, é certo, a limitação do n.º 3, determinante da inadmissibilidade do pedido de revisão com o único fim de corrigir a medida da pena. Mesmo assim, ficam agora a caber no âmbito legal casos que a lei anterior não comportava, como o de posteriormente à condenação se descobrir que o arguido era inimputável ou tinha imputabilidade diminuída à data da condenação (…) e o de diferente enquadramento dos factos”[14].

Entendimento seguido também por G. Marques da Silva, que aponta os mesmos exemplos[15].

Alguma jurisprudência tem ido no sentido de que naquele fundamento não está apenas em causa a presunção de inocência do arguido, bastando que os novos factos ou documentos suscitem grave dúvida sobre a justiça da condenação.

Mas há também quem entenda que, no essencial, o fundamento em apreço traduz a ideia ventilada pelos autores espanhóis Emílio Orbaneja e Vicente Quemada, citados por Simas Santos e Leal Henriques[16] no sentido de que a revisão só deve caber quando esteja em causa a relação condenação-absolvição.

Interpretação adotada por este Supremo Tribunal, nomeadamente no Ac. de 13/03/2003[17] e no Ac. de 20/11/2003[18]. Para ser admitida a revisão não é suficiente a descoberta de novos factos ou elementos de prova. Exige-se que, por si sós ou conjugados com os factos apurados no julgamento ou as provas aí apreciadas, demonstrem ou indiciem fortemente a inocência do condenado. Interpretação reafirmada no Ac. STJ de 24/01/2018, onde se sustentou: “não releva o facto e/ou meio de prova capaz de lançar alguma dúvida sobre a justiça da condenação. A lei exige que a dúvida tenha tal consistência que aponte seriamente para a absolvição do recorrente como a decisão mais provável[19].

No direito comparado, o código de processo penal de alguns países que nos são próximos, enunciando também como um dos fundamentos da revisão, a descoberta de novos factos ou meios de prova, exige-se que evidenciem que o condenado devia ter sido absolvido.

Exigência que não implica a subversão do sistema de carga probatória. Na fase do juízo rescindente, não se discute a acusação, existe já uma sentença condenatória firme que fixou os factos, transpondo-os da realidade histórica para o domínio da juridicidade. No processo penal, o arguido, para alcançar a revisão da sentença, não tem que demonstrar perante o Tribunal de recurso que não cometeu os factos por que foi condenado ou de que por eles não é responsável. Mas também não é bastante que indique quaisquer novos factos ou novas provas. Pretendendo eliminar ou reverter uma situação judicialmente estabelecida e juridicamente estabilizada no domínio do direito (visando a desconstituição da condenação decretada[20], na feliz expressão da jurisprudência dos supremos tribunais brasileiros), enquanto requerente da revisão de uma condenação firme, exige-se-lhe que apresente novos factos ou provas que, por si sós ou conjugadas com outras provas produzidas no julgamento, sejam de molde a infirmar objetivamente os factos provados, a desvaloriza-los completamente ou que tornem manifestamente insuficientes as provas em que se fundou a condenação. A presunção de inocência cessa com o trânsito em julgado da condenação – art. 32º n.º 2 da Constituição da República. Para readquirir essa presunção, a Constituição e o processual penal, no compromisso imanente com a verdade material das decisões judiciais, não impõem que o condenado prove que os factos não aconteceram ou de que por eles não culpável. Demandam, isso sim, que o condenado apresente novos dados de facto ou meios de prova que demonstram grave insuficiência cognitiva da decisão em matéria de facto. Tal sucederá quando são levados ao conhecimento do tribunal factos anteriores suficientemente acreditados, que interessando ao objeto da causa e podendo influir no sentido da decisão em matéria de facto, não podia ter conhecido ou meios de prova cuja existência se ignorava e que se revelam com força probatória adequada a infirmar os factos provados que sustentam a condenação. 

Não se admitindo, no nosso regime, a revisão com fundamento na injustiça da medida da pena, resta campo limitado para outros substratos factuais ou probatórios que não venham a traduzir-se, in fine, na absolvição do condenado com notório equívoco ou erro palmar e patente ou, ao menos, no regresso à situação jurídica anterior à decisão transitada em julgado (a revogação da suspensão da execução da pena de prisão tem suscitado divergências[21]).

O nosso legislador também não prevê a revisão da decisão judicial com fundamento no erro de julgamento[22]. Nem, fora dos casos expressamente previstos, em vícios do procedimento devido[23].

Seja como for, inscrevendo-se o direito à revisão extraordinária da condenação no elenco dos direitos fundamentais dos cidadãos injustamente condenados, a segurança e a paz jurídicas devem ceder, excecionalmente, perante a necessidade de, em situações de patente e grave injustiça legalmente catalogadas, reafirmar o valor da justiça de modo a que a sentença transporte para os autos e traduza no processo a realidade da vida. Nas palavras de M. Cavaleiro de Ferreira, no processo penal, “a justiça prima e sobressai acima de todas as demais considerações. O direito não pode querer e não quer a manutenção de uma condenação, em homenagem à estabilidade das decisões judiciais, a garantia dum mal invocando prestígio ou infalibilidade do juízo humano, à custa da postergação de direitos fundamentais do cidadão, transformados cruelmente em vítimas ou mártires duma ideia mais do que errada … da lei e do direito”[24]. Contudo, a relativização do caso julgado, não pode postergar completamente o valor da segurança e a paz jurídica, constitucionalmente garantidos através do instituto do caso julgado.

No entendimento do Tribunal Constitucional exposto no Ac. 376/00 de 13/07/2000:

O recurso de revisão é estruturado na lei processual penal em termos que não fazem dele uma nova instância, surgida no prolongamento da ou das anteriores. O núcleo essencial da ideia que preside à instituição do recurso de revisão, precipitada na alínea d) do nº 1 do artigo 449º do CPP, reside na necessidade de apreciação de novos factos ou de novos meios de prova que não foram trazidos ao julgamento anterior.

Trata-se aí de uma exigência de justiça que se sobrepõe ao valor de certeza do direito consubstanciado no caso julgado. Este é preterido em favor da verdade material, porque essa é condição para a obtenção de sentença que se funde na verdade material, e nessa medida seja justa. O julgamento anterior, em que se procurou, com escrúpulo e com o respeito das garantias de defesa do arguido, obter uma decisão na correspondência da verdade material disponível no momento em que se condenou o arguido, ganha autonomia relativamente ao processo de revisão para dele se separar.

Compreende-se a esta luz que a lei não seja permissiva, ao ponto de banalizar e consequentemente desvalorizar a revisão, transformando-a na prática em recurso ordinário, endo-processual neste sentido – a revisão não pode ter como fim único a correção da medida concreta da pena (nº 3 do artigo 449º) e tem de se fundar em graves dúvidas lançadas sobre a justiça da condenação. É nesta ordem de considerações que a Constituição consagra no nº 6 do artigo 29º o direito dos cidadãos injustamente condenados, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença". Esta é a norma constitucional que mais próxima e diretamente disciplina a matéria, (…).

Deste modo, como se assinalou, a abertura e amplitude da revisão da sentença condenatória não pode deixar de ser informada pela ideia de excecionalidade, aplicável apenas a casos de injustiça intolerável ou por gravidade excessiva, Só assim se poderá manter, na medida do possível, o necessário equilíbrio entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança jurídica.

e) novos factos ou meios de prova:

Salientou-se que, com o fundamento em apreço – invocação da al.ª d) - podem sustentar a rescisão da sentença condenatória novos factos ou meios de prova que, necessariamente, infirmem ou modifiquem os factos que motivam a condenação.

Não satisfaz aquele requisito a invocação de quaisquer factos ou de outras provas nem a mera invocação de novos factos, ou tampouco basta a sua hipotética verosimilhança. Ademais da novidade, têm de estar suficientemente acreditados, isto é, resultarem convincentemente demonstrados. No processo penal, os factos adquirem-se através das provas. Aqui, a alegação de factos sem provas, diretas ou indiretas que os demonstrem, - por si só (autonomamente) ou combinados com outros que hajam sido apreciados no processo - não tem a potencialidade de elevar ao nível da crise grave (qualificada) a força da res judicata.

Do mesmo modo, não basta a apresentação de quaisquer novas provas. Somente fundamentam a rescisão da sentença firme, provas que, ademais da novidade, aportem dados que infirmem os factos que nesta se julgaram provados e que legitimam a condenação.

Para além de os factos ou meios de prova deverem ser novos é ainda necessário que eles, por si ou em conjugação com os já apreciados no processo, sejam de molde a criar graves e fundadas dúvidas sobre a justiça da condenação. A dúvida relevante para a revisão tem de ser qualificada; terá de elevar-se do patamar da mera existência, para atingir a vertente da “gravidade”, tendo os novos factos e/ou provas de assumir qualificativo correlativo da “gravidade” da dúvida.

Descobrirem”, do verbo descobrir, tem o significado de por a descoberto, destapar, encontrar, tanto para o que é verdadeiramente novo como também o que já existia e de que só agora se adquiriu conhecimento.

Novos” são os factos ou elementos de prova vistos pela primeira vez, que eram inéditos, desconhecidos.

A expressão “descobrirem novos” pressupõe que os factos ou elementos de prova foram conhecidos depois da sentença e, por isso, não podiam ter sido aportados ao processo até ao julgamento, seja porque antes não existiam, seja porque, embora existindo, somente foram descobertos depois.

Como se sustenta no citado Ac. STJ de 26/09/2018:

I - Quanto à novidade dos factos e/ou dos meios de prova, o STJ entendeu, durante anos e de forma pacífica que os factos ou meios de prova deviam ter-se por novos quando não tivessem sido apreciados no processo, ainda que não fossem ignorados pelo arguido no momento em que foi julgado.

II - Porém, nos últimos tempos essa jurisprudência foi sendo abandonada e hoje em dia pode considerar-se solidificada ou, pelo menos, maioritária, uma interpretação mais restritiva do preceito, mais adequada, do nosso ponto de vista, à natureza extraordinária do recurso de revisão e, ao fim e ao cabo, à busca da verdade material e ao consequente dever de lealdade processual que impende sobre todos os sujeitos processuais. Assim, “novos” são tão só os factos e/ou os meios de prova que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e, porque aí não apresentados, não puderam ser considerados pelo tribunal.

Por sua vez, no Ac. de 12/5/2005 do Tribunal Constitucional expende-se:

Há‑de, pois, tratar-se de “novas provas” ou “novos factos” que, no concreto quadro de ato em causa, se revelem tão seguros e (ou) relevantes – seja pela patente oportunidade e originalidade na invocação, seja pela isenção, verosimilhança e credibilidade das provas, seja pelo significado inequívoco dos novos factos, seja por outros motivos aceitáveis – que o juízo rescindente que neles se venha a apoiar não corra facilmente o risco de se apresentar como superficial, precipitado ou insensato, tudo a reclamar do requerente a invocação e prova de um quadro de facto “novo” ou a exibição de “novas” provas que, sem serem necessariamente isentos de toda a dúvida, a comportem, pelo menos, em bastante menor grau, do que aquela que conseguiram infundir à justiça da decisão revidenda.

Não se trata, portanto, de elementos probatórios que permitam novas argumentações a favor da inocência do condenado, mas de autênticas novas provas que desvirtuando totalmente as provas que motivaram a condenação, fazem duvidar gravemente da sua justiça material. Tampouco se trata de uma nova oportunidade para reapreciar os elementos probatórios que o tribunal de instância e/ou de recurso já tiveram em conta.

Como se sustenta-se no Ac. de 3/12/2014, deste Supremo (e secção), exigem-se “novas provas” que, no concreto quadro factual, se revelem tão seguras que o juízo rescindente que neles se venha a apoiar, não corra facilmente o risco de se apresentar como superficial, precipitado ou insensato, tudo a reclamar do requerente a prova de um quadro de facto novo ou a exibição de novas provas que, sem serem necessariamente isentos de toda a dúvida, a comportem, pelo menos, em bastante menor grau, do que aquela que conseguiram infundir à justiça da decisão[25].

Em síntese, são, dois e cumulativos os parâmetros da admissibilidade da revisão com fundamento na al.ª d) do n.º 1 do art. 449º do CPP:

-que os factos ou provas apresentados não existiam ou se desconheciam e, portanto, não puderam apresentar-se e, consequentemente, ser tidos em conta na sentença, ainda que preexistentes;

-que por si sós ou conjugados e confrontados com provas produzidas na audiência evidenciem, acima de qualquer dúvida razoável, a grave injustiça da condenação.

Discutida tem sido a aferição da novidade dos factos e dos meios de prova. Na jurisprudência deste Supremo Tribunal a corrente maioritária, - seguida entre outros, no recente Ac. de 10/02/2021 desta 3ª secção – sustenta (com sublinhado de realce): Louvando-nos, brevitatis causa, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, processo 41/05.1 GAVLP-C.S1, de 12.03.2014,  factos novos serão «os factos e os meios de prova desconhecidos pelo recorrente ao tempo do julgamento e que não tenham podido ser apresentados e apreciados na decisão”. Cremos que se pode estender a situação ao Tribunal: se o Tribunal os desconhecia e não puderam ser apresentados e apreciados”. Interpretação adotada com a matização adiante assinalada.

f) no caso:

Vejamos se o vertente recurso satisfaz os parâmetros da pretendida revisão da sentença condenatória que, transitada em julgado, firmou na ordem jurídica e judiciária a narrativa dos acontecimentos sobre que versou a decisão e, consequentemente, a condenação do arguido em pena suspensa pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, - em vez da condenação numa coima -, aplicável por conduzir um veículo ligeiro sem que para tanto estivesse legalmente habilitado.

Resumidamente, o recorrente, ampara a pretensão rescindente alegando e comprovando que, quando foi proferida a sentença condenatória, era titular de licença de condução da “categoria AM desde o ano 1997-09-02 valida até 22-09-2031” que, não lhe permitindo tripular licitamente automóveis ligeiros de passageiros, todavia, qualificava, já então, como contraordenação a condução que dessa classe de veículos efetivamente fez nas circunstâncias de lugar e tempo enunciadas na sentença visada, sancionando-a com coima. Por conseguinte, entende que não podia ter sido punido pelo crime de condução sem habilitação legal.

Implícita na invocação do disposto no art. 449º n.º 1 al.ª d) do CPP, está a alegação de ser um facto novo a existência daquela sua licença de condução de ciclomotores e motociclos de cilindrada até 50cm3, que somente teria conhecido depois - em 2019 quando obteve a carta de condução. Comprovando-se agora, documentalmente, a existência e validade daquela sua licença para conduzir.

Termina peticionando a revisão da sentença condenatória, para que possa ser decretada a absolvição pela prática daquele crime e se condene na coima pela contraordenação que confessa ter efetivamente cometido.

A apreciação da pretensão do recorrente carece dos seguintes dados, que se expõem cronologicamente:

Os factos pelos quais está condenado nos autos foram perpetrados em 6 de fevereiro de 2012.

Nessa data era titular da licença de condução[26] ....00, emitida pela câmara municipal .... em 22-11-1999, que o habilitava a conduzir ciclomotores e motociclos de cilindrada não superior a 50cm3. Licença que obteve por troca da licença camarária com o n.º ....6, emitida em 02-09-1997 pela mesma autarquia, que o habilitava a conduzir ciclomotores.

O DL n.º 2/98 de 3 de janeiro veio criminalizar a condução automóvel sem habilitação legal, dispondo no art. 3º:

1 - Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 - Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.

O Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 209/98, de 15 de julho, estabeleceu, no art. 49º n.º 2: “Os titulares de licença de condução de ciclomotores, cuja habilitação tenha sido obtida até 30 de Março de 1998, consideram-se habilitados para a condução de motociclos de cilindrada não superior a 50 c. c.”.

O modelo de licença de condução aprovado pelo Despacho n.º 17784/98 (2.ª série), “o modelo da licença de condução de ciclomotores, de motociclos de cilindrada não superior a 50 cc e de veículos agrícolas”, continha três linhas diferenciadas para averbamento obrigatório da classe dos veículos que o seu titular estava licenciado a tripular na via pública.

O recorrente obteve e foi-lhe atribuída a carta de condução nº A- ....90 que o habilitava legalmente para a condução de veículos das categorias B e B1 desde 19.04.2004.

Carta de condução que caducou definitivamente em 16.08.2005.

O DL n.º 313/2009 de 5 de julho não produziu alterações relevantes para a situação.

Entre a data dos factos e a decisão foi publicado e entrou em vigor o Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 138/2012, de 5 de julho.

Entre as alterações na identificação das cartas de condução criou uma categoria com a designação AM – cfr art. 3º n.º 2 al.ª a) -, habilitando o titular a conduzir “veículos a motor de duas ou três rodas, com exceção dos velocípedes a motor, e quadriciclos ligeiros, dotados de velocidade máxima limitada, por construção, a 45 km/h e caracterizados por:

i) Sendo de duas rodas, por um motor de combustão interna de cilindrada não superior a 50 cm3, ou cuja potência nominal máxima contínua não seja superior a 4 kW, se o motor for elétrico;

ii) Sendo de três rodas, por um motor de ignição comandada, de cilindrada não superior a 50 cm3, ou por motor de combustão interna cuja potência útil máxima não seja superior a 4 kW, ou ainda cuja potência nominal máxima contínua não seja superior a 4 kW, se o motor for elétrico;

iii) Sendo quadriciclos, por motor de ignição comandada, de cilindrada não superior a 50 cm3 ou ainda cuja potência nominal máxima contínua não seja superior a 4 kW, se o motor for elétrico ou de combustão interna, cuja massa sem carga não exceda 350 kg;

Nas disposições finais – no art. 62º n.º 1 -, estabeleceu que “As licenças de condução de ciclomotores, motociclos de cilindrada não superior a 50 cm3 e de veículos agrícolas, do modelo aprovado pelo despacho n.º 17 784/98, de 15 de outubro, emitidas por câmaras municipais, mantêm-se em vigor, devendo ser trocadas por novos títulos, a emitir pelo IMT, I. P., a requerimento dos interessados, no termo da sua validade”.

Alterou também o art. 123º n.º 4 do Código da Estrada que passou a estatuir: “4 - Quem, sendo apenas titular de carta das categorias AM ou A1, conduzir veículo de qualquer outra categoria para a qual a respetiva carta de condução não confira habilitação é sancionado com coima de (euro) 700 a (euro) 3500”.

O DL n.º 138/2012 de 5 de julho entrou em vigor 120 dias após a publicação e algumas normas em 2 de janeiro de 2013. Entre outras inovações, criou novas categorias como a AM que habilita, legalmente, o seu titular a conduzir ciclomotores, motociclos de cilindrada não superior a 50cm3, motocultivadores com reboque ou retrotrem, tratocarros e máquinas industriais, com massa máxima não superior a 2500kg e quadriciclos ligeiros.

A decisão condenatória foi proferida em 22/01/2013. Transitou em julgado em 22/01/2013.

A facticidade provada assentou na confissão integral e sem reservas do arguido. Nem em escrito atravessado no processo, nem na contestação, nem na audiência de julgamento referiu que fosse titular de licença que o habilitava a conduzir veículos a motor na via pública, designadamente, ciclomotores e motociclos até 50cm3.

Também não impugnou a sentença condenatória, não questionando, pois, nem a matéria de facto provada nem a qualificação jurídica efetuada pelo tribunal nem a pena aplicada.

Em 5.01.2016 requereu a troca da licença de condução para ciclomotores ....00, tendo-lhe sido concedida a carta de condução A.....0 para a categoria AM.

Desde 21.6.2019 é detentor de carta de condução das categorias B e B1, à qual se candidatou em 23.04.2018.

Neste circunstancialismo é inegável que o recorrente, à data dos factos, sabia bem que era titular da licença .....00. Note-se que tinha trocado a licença inicial por outra com o novo modelo aprovado pelo DL n.º 209/98.

Conclui-se, pois, que a licença de condução de ciclomotores de que o recorrente era titular há mais de 15 anos (por referência à data do julgamento), não é um documento que possa ter qualquer novidade para o arguido.  Nem, de resto e da mesma perspetiva, pode considerar-se facto novo a habilitação legal do recorrente para conduzir ciclomotores. Por conseguinte, para o recorrente, não se verifica, circunstancialismo que possa subsumir-se ao conceito normativo de novos factos ou meios de prova.

Sem dúvida que tanto a existência e titularidade da referida licença de condução, como o facto que podia provar – a habilitação do arguido para conduzir ciclomotores e motociclos até 50 cm3 - não chegaram ao conhecimento do tribunal da condenação e, por isso, surgem agora (com o recurso de revisão) como novidade para o tribunal.  O tribunal não teve conhecimento daquele documento e o facto que provaria porque o arguido não observou o dever de contribuir, ativa e lealmente, para a sua defesa, habilitando o tribunal (a Juíza) com toda a informação que tinha sobre a sua própria habilitação legal para conduzir ciclomotores à data dos factos. Omitindo, deslealmente, essa importante informação, aceitou assumir as inerentes consequências. “Num processo penal de tipo acusatório completado por um princípio de investigação, a que corresponde o modelo instituído pelo Código de Processo Penal, cumpre aos sujeitos processuais, como direito e obrigação, produzir perante o tribunal os elementos de prova dos factos que possam interessar à sentença, com todas as possibilidades de serem discutidos e contrariados em audiência de julgamento”Ac. STJ de 11/10/2017[27]. Não o tendo feito, nem lançado mão do recurso ordinário, não pode o condenado servir-se do recurso extraordinário de revisão com vista a obter uma condenação simplesmente mais justa, transformando-o num procedimento destinado a corrigir deficiências ou erros ou meras estratégias da defesa.

Como se sublinhou, entende este Supremo Tribunal que a novidade dos factos e das provas se reporta ao conhecimento do arguido aliás, em linha com o sustentado no Ac. STJ de 26/09/2018, citado, “novos são tão só os factos e/ou os meios de prova que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e, porque aí não apresentados, não puderam ser considerados pelo tribunal”.

Ao requisito da novidade dos factos ou dos meios de prova, o legislador cumulou outro, consistente na grave injustiça da condenação. Como se vincou, no recurso de revisão deve estar em causa, fundamentalmente, a antinomia entre condenação e absolvição. Grave e intoleravelmente injusta é a decisão que condenou o arguido quando deveria ter sido absolvido.

Conforme se expões e em consonância com o sustentado no recente Ac. STJ de 19/02/2021, desta secção (acima referido): no mesmo aresto se esclarece o que sejam graves dúvidas sobre a justiça da condenação, nos seguintes termos: «são todas aquelas que são de molde a por em causa, de forma séria, a condenação de determinada pessoa, que não a simples medida da pena imposta. As dúvidas têm de incidir sobre a condenação enquanto tal, a ponto de colocar fundadamente o problema de o arguido dever ter sido absolvido».

O recurso de revisão não pode servir para buscar ou fazer prevalecer, simplesmente, “uma decisão mais justa”. De outro modo, o valor do caso julgado passava a constituir a exceção e a revisão da sentença condenatória convertia-se em regra. Seria incomportável que, na sua concreta atuação, “se transformasse e em um grau de recurso ordinário encapotado», «abrindo a porta a um processo penal interminável, permitindo uma "verdadeira eternização da discussão de uma mesma causa». Na expressão de alguns autores, “somente em circunstâncias substantivas e imperiosas (substantial and compelling)” apenas em situações excepcionais e justificadas pode relativizar-se a sentença penal transitada em julgado para que não se converta o recurso de revisão em “apelação de apelação disfarçada (appeal in disguise)”.

Não será excessivo repetir que este é um procedimento excecional que pode desembocar na quebra do caso julgado, com a consequente postergação da segurança jurídica inerente ao Estado de Direito e que, por isso, só clamorosas injustiças o podem legitimar. Não pode destinar-se a que o STJ conheça e autorize a reparação de erros de julgamento da decisão condenatória, tanto em matéria de facto como na aplicação do direito. Destarte, a postergação do caso julgado, constitucionalmente reconhecido, só é admissível em situações excecionalmente graves e de intolerável repercussão negativa.

No caso, o recorrente não alega que deveria ter sido absolvido. Entendendo que foi indevidamente condenado pelo crime de condução sem habilitação legal em pena suspensa, reconhece que cometeu uma contraordenação pela qual deveria ter sido punida com coima. Resulta, assim claro que pretende a correção da decisão condenatória e não, direta e exclusivamente, a sua absolvição. Argumenta que em vez do processo penal deveria ter sido perseguido num processo de contraordenação, pelos mesmo factos cometidos (a condução do automóvel nas circunstâncias de lugar e tempo constante dos factos provados) e aí sancionado com coima. Visa, assim, operar a convolação de crime para contraordenação, com alteração de matéria de facto, face a meio de prova preexistente e que bem conhecia, mas que não levou ao conhecimento e apreciação do tribunal da condenação. Neste conspecto, também não resulta verificado o segundo e cumulativo requisito exigido pela norma legal invocada pelo recorrente para fundamentar a pretensão rescisória.  

Deve dar-se nota que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos/TEDH, interpretando o art. 61º da Convenção Europeia de Direitos Humanos/CEDH, tem adotado um conceito de procedimento penal de caráter substantivo e não meramente terminológico ou formal, englobando qualquer procedimento, sentença dos tribunais ou decisão de outras autoridades que imponha sanções independentemente da sua qualificação jurídica no direito interno dos Estados membro.

No caso, não vem questionada a ilicitude ou ilegalidade dos factos materiais, nem negada a autoria do arguido. O recorrente não contesta que sendo responsável pelos factos ilícitos assim cometidos deva ser sancionado. Questiona a qualificação jurídica dos factos. Entende que os factos materiais perpetrados – que reafirma - em vez do crime por que foi punido com pena suspensa acompanhada de regime de prova, constituem contraordenação, sancionada com coima de €700,00 a €1.500,00.

Diferentemente do caso julgado no Ac. de 10/02/2021 deste Supremo Tribunal e secção, em que dos factos cometidos não poderia resultar qualquer responsabilidade para o condenado, aqui o recorrente embora fosse absolvido do crime, teria de ser responsabilizado pela contraordenação.

Conclui-se assim, que inexistem novos factos e novos meios de prova que combinados com os que foram apreciados no processo não são de molde a suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação do arguido – que em vez da pena criminal com execução suspensa e regime de prova, deveria ter sido em coima -, não se verificam os pressupostos exigidos pelo art. 449.º do CPP para poder ser admitida a revisão, designadamente com o fundamento previsto na alínea d) do mesmo normativo, expressamente invocado pelo recorrente.

Falta assim fundamento bastante para invalidar a sentença decisão revidenda.

Improcede, assim, o vertente recurso extraordinário de revisão.

C. DECISÃO:

Termos em que o Supremo Tribunal de Justiça, em conferência da Secção Criminal, acorda em:

a) Negar a revisão da sentença que nos autos condenou o recorrente AA.

b) Condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs.


*


Lisboa, 24 de fevereiro de 2021


Nuno A. Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

(Atesto o voto de conformidade do Ex.mº Sr. Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[28] .

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)

António Pires da Graça (Juiz Conselheiro presidente da secção)

_________

[1] Nos termos do art. 449º do CPP, para efeitos de revisão “à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo”.
[2] Noções Elementares de Processo Civil, pag. 335.
[3] J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed., 2ª reimpressão. Coimbra, 3003, Edições Almedina, pag, 265.
[4] A Teoria do Concurso em Direito Criminal (reimpressão), Almedina, 1983, pág. 302.
[5] Direito Processual Penal, 1º vol. pag 44.
[6] Código de Processo Civil Anotado, 1984 (reedição), volume V, pág. 158.
[7] Eduardo Correia, ob citada, pag. 403.
[8] Curso de Processo Penal, III, edição da AAFDL, 1963, págs. 35.
[9] J. H. Santos Cabral, “A relação entre as decisões dos tribunais internacionais e as decisões dos tribunais
supremos-efeito directo e reabertura do processo”, pag. 9 e pag. 17.
[10] Sentencia de 22/11/1996.
[11] DRE II série de 13/12/2000.
[12] J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4º ed., pag. 497.
[13] Extraordinário é o que é fora do comum, raro, que sucede em circunstancias excecionais.
[14] M. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado e comentado, 12ª ed., pag. 845.
[15] Curso de Processo Penal, III, pag. 388.
[16] Recursos em Processo Penal, p. 215
[17] Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano 2003, tomo I, p. 231.
[18] em www.dgsi.pt
[19] proc. n.º 3/12.2GAVVC-B.S1, 3ª sec , www.dgsi.pt/jstj.
[20] Através do recurso de «revisão», também denominada “ação de revisão criminal”.
[21] No Ac. STJ de 25/05/2016, proc. 459/08.8POLSB-A.S1 (in www. dgsi.pt) decidiu-se: “O despacho que revoga a suspensão da execução da pena de prisão, que o recorrente pretende que seja revisto, não põe fim ao processo, limitando-se a dar sequência à condenação antes proferida, pelo que é insuscetível de revisão”.
[22] Na decisão da matéria de facto – por ex., o tribunal fixa um acontecimento que não existiu – ou na resolução da questão de direito – maxim:, errada subsunção jurídica dos factos provados, ou, em geral,  erro na aplicação do direito ao caso concreto.
[23] Por ex.: nulidades da sentença.
[24] Scientia Iuridica, tomo XIV, n.ºs 75/76, pag. 520/521.
[25] Proc. 798/12.3GCBNV-B.S1 in www.dgsi.pt
[26] Nos termos do art. 132º (“Licença de condução”) do Código da Estrada:
1 - O documento que titula a habilitação para condução de ciclomotores e motociclos de cilindrada não superior a 50 cm3 designa-se 'licença de condução' e será emitido pelas entidades competentes.
[27] Proc. 1459/05.5GCALM-B, in www.dgsi.pt.
[28]   Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.