RECURSO PENAL
ABSOLVIÇÃO CRIME
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
CONDENAÇÃO
PROVA PERICIAL
VALOR PROBATÓRIO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
REENVIO DO PROCESSO
Sumário


I - Em recurso, os poderes de cognição do STJ circunscrevem-se ao reexame de questões de direito.
II - Detetando na decisão recorrida, enquanto peça processual autónoma, vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, pode e deve conhecê-los, oficiosamente.
III - Vícios que têm de apresentar-se evidentes e ser intrínsecos, resultando do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum ou, quando for o caso, com as leis da ciência.
IV - Se o tribunal considerou indispensável recorrer ao juízo percetivo ou valorativo de cientistas de determina área do saber, o relatório e as conclusões da perícia gozam de uma presunção, solidamente fundada, de certeza científica.
V - Por isso que o juízo técnico ou científico só pode ser desconsiderado pelo juiz
a. ou afastando a autenticidade das premissas sobre que incidiu e se formou o juízo pericial;
b.  ou rebatendo-o, com fundamentação de idêntica valia, assente em conhecimentos reconhecidamente semelhantes e argumentos de equivalente densidade técnica e científica.
VI - Não resultaram afastados os pressupostos de facto em que assentou o juízo da perícia médico legal que, no caso não teve nem era possível que tivesse outra finalidade que a de apreciar os factos e os elementos de prova indicados pela autoridade judiciária e responder cientificamente aos quesitos ou perguntas formuladas.
VII - Não pode, a prova pericial, ser degradada ao conceito de mera “informação”, não podendo ser afastada pelo simples confronto com depoimentos prestados na audiência.
VIII - A violação da norma adjetiva que confere valor reforçado à prova pericial configura vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP.

Texto Integral


O Supremo Tribunal de Justiça, em conferência, acorda:


1. RELATÓRIO:

No Juízo central cível e criminal ...., no processo em epígrafe. mediante despacho de pronúncia e pedido de indemnização civil deduzidos pelos demandantes AA e BB, procedeu-se a julgamento de:

- CC, de ... anos e os demais sinais dos autos.

O tribunal júri, por acórdão de 14-05-2019, decidiu condenar a arguida pela prática, em autoria material, na forma consumada, por omissão, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, com referência ao art. 144.º, al. d), do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 100,00 (cem euros), no valor global de € 20.000,00 (vinte mil euros);

Decidiu também julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido cível formulado pelos Demandantes e, em conformidade, condenar, solidariamente, as Demandada CC e Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira, EPER:

1.1. no pagamento, em conjunto, aos Demandantes, da quantia de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal civil, contados da data da decisão até integral pagamento;

1.2. no pagamento, em conjunto, aos Demandantes da quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal civil, contados da decisão até integral pagamento;

1.3. no pagamento à Demandante AA da quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal civil, contados da decisão até integral pagamento;

1.4. no pagamento ao Demandante BB da quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal civil, contados da decisão até integral pagamento;

1.5. absolver as Demandadas CC e Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira, EPER, do demais peticionado.

A arguida, o Ministério Publico, a assistente AA e o demandado Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira EPER, inconformados, recorreram para a 2ª instância.

O Tribunal da Relação .... por acórdão de 14.05.2020, alterando a decisão em matéria de facto decidiu:

- julgar não provados os factos que vinham dados como provados nos n.ºs 16, 18, 19, 22, 23, 24, 35, 37, 39, 40, 41, 42, 43, 44;

— revogar a condenação e decretar a absolvição da arguida da prática do crime imputado;

— decretar a absolvição do pedido cível, dando procedência ao recurso da arguida e do demandado cível;

— julgar improcedentes os recursos da Assistente e do M°.P°.

2. o recurso:

A Assistente AA, inconformada recorreu, agora perante o Supremo Tribunal de Justiça.

No Tribunal recorrido não foi admitido o recurso na parte penal.

Decisão confirmada pela Ex.mª Vice-Presidente do STJ, que indeferiu reclamação apresentada pela recorrente.

O recurso foi admitido na parte que visa o acórdão da Relação na parte relativa à absolvição dos demandados do pedido de indemnização civil.

A recorrente resumiu a alegação nas seguintes conclusões (em síntese):

d) O recurso tem ainda por objeto a mesma decisão, na parte em que absolve o demandado Hospital do Santo Espírito da Ilha Terceira EPER (HSEIT), sendo que em matéria de pedido de indemnização civil o recurso não se cinge apenas aos elencados vícios, atenta a sucumbência total do pedido e por esta via o preenchimento do disposto no artigo 400.º ns. 2 e 3 do CPP.

e) Porque o apuramento dos referidos vícios, resulta da sua verificação no texto da decisão e conjugação com as regras da experiência comum, impõe-se um sumário da tramitação do processo, para que se perceba essa mesma insuficiência.

f) O presente processo esteve 7 anos em fase de inquérito, tendo sido produzidos nesta fase 4 relatórios periciais pelo Instituto de Medicina Legal e mais dois na fase de julgamento, dois dos quais pedidos pela defesa no uso do seu direito ao contraditório.

j) O tribunal ad quo no espaço de um mês, numa decisão invulgar no que toca à celeridade e à alteração da matéria de facto, deu como não provados os factos que conduziam à condenação da arguida e, solidariamente, do demandado civil.

k) Mais concretamente os factos provados sob os n.ºs 16, 18, 19, 22, 23, 24, 35, 37, 39, 40, 41, 42, 43 e 44.

l) Para a alteração da prova dos factos, o tribunal a quo afastou integralmente a perícia médico legal – promovida e constituída nos termos formais previstos no CPP – como tal tendo o valor absoluto de prova pericial.

m) É hoje pacífico entre a doutrina e jurisprudência (citada na motivação do recurso) que a prova pericial, por ser conhecimento subtraído ao julgador, tem um valor reforçado.

n) Valor esse que comprime o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do CPP.

o) Sendo certo que tal compressão não é absoluta, conforme jurisprudência igualmente citada na motivação do recurso, o afastamento da prova pericial impõe um especial dever de fundamentação.

p) O qual é manifestamente inexistente no texto da decisão revidenda. Senão vejamos,

q) Para afastar as conclusões da prova pericial, concatenada com os depoimentos que fundamentam a motivação da prova dos factos (e que igualmente transcrevemos na motivação de recurso) impunha-se provas irrefutáveis, ou que,

r) Pela razão de ciência ou pelas regras da experiência comum se demonstrasse que não podia ser como foi dado como provado pelo tribunal da primeira instância;

s) Ao invés, a prova pericial e os demais depoimentos, entre os quais os dos pais, são afastados pela valoração dos depoimentos da arguida, da médica DD (que aos costumes, instada, declarou ser familiar da arguida), da enfermeira parteira (que mantem com a arguida uma longa relação profissional, de resto patente na forma esquiva com que depôs) e de uma médica obstetra, EE, (contactada pela para depor e contrapor a perícia, sem que tivesse o estatuto formal de perita).

t) Ou seja, a prova pericial, constante de um relatório inicial, que a decisão em escrutínio, levianamente critica por não ser formalmente um relatório (?), complementado por mais 6 em que não altera o sentido de responsabilizar a médica pela ausência de vigilância num período longo e por estar tudo bem até às 0:53, hora em que é interrompida a vigilância, o episódio de hipoxia só pode ter ocorrido posteriormente (cfr, também depoimento da Dra. FF – ficheiro identificado na motivação), é afastada, pelo tribunal ad quo, sem a referida fundamentação especial, pelos depoimentos de pessoas diretamente interessadas na absolvição.

u) Aliás, dessas testemunhas que serviram para, sem mais, alterar a prova produzida ao abrigo do princípio da imediação e oralidade, apenas uma delas (além da arguida) tinha conhecimento directo dos factos e estava na sala de partos.

v) Ora, é manifesto que do texto do douto acórdão, sobretudo tratando-se de uma decisão de segundo nível (decisão de recurso), a necessidade que houvesse mais prova, que tinham sido esgotados todos os meios de prova para que se alcançasse a decisão – neste caso absolutória.

w) O tribunal ad quo limitou-se a usar o princípio da livre apreciação da prova, para substituir a valoração de uma prova pela outra – o que lhe estava de todo vedado.

x) Quer porque estamos em sede de recurso, é ao tribunal de primeira instância que ouviu e viu as testemunhas e analisou criticamente a prova - recorde-se que estamos perante um tribunal de júri - que compete essa livre apreciação, só podendo a mesma ser sindicada se se demonstrasse que a mesma não poderia ter sido dada como provada, em função da razão da ciência ou de outros meios irrefutáveis e fundamentados, o que está longe de ser o caso.

y) Do mesmo passo, foi afastada, prova pericial sem prova equivalente ou demonstração de que a prova que levou ao seu afastamento era irrefutável e punha em crise a prova de valor reforçado.

z) Há por isso, manifestamente insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

aa) Estando verificado o vicio da al. a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.

bb) Do mesmo passo, a jurisprudência (citada na motivação de recurso) entende que o erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.

cc) Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

dd) Ora, ao dar-se como provado que existiu vigilância alternativa ao CTG, no caso concreto, contraria as regras da experiência comum.

ee) Em primeiro lugar porque só após a acusação, e nunca ao longo dos 7 anos de inquérito essa versão foi levantada pelas duas pessoas que estavam na sala de partos, a arguida e a enfermeira parteira GG.

ff) Trata-se de um facto essencial para o que estava em causa nos autos, pelo que não iria passar despercebido nos seus depoimentos em sede de inquérito.

gg) Esta versão, de vigilância alternativa por SONICAID, só apareceu em fase de instrução, sendo certo que esta seria a única forma possível de quebrar a responsabilidade da arguida para o longo período sem vigilância.

hh) Ora, aqui o conhecimento técnico que a decisão recorrida reconhece à arguida e demais médicas, funciona ao contrário, no sentido de que podem valer-se desse conhecimento para se defenderem – como de resto o fizeram.

ii) Aliás, essa disparidade de conhecimento entre as vítimas (leigos) e os técnicos, é frequentemente utilizada pela jurisprudência para justificar a inversão do ónus da prova em matéria de responsabilidade civil.

jj) Isto aliado ao facto de não terem sido registados os resultados de tal vigilância alternativa, o que, à luz das regras da experiência comum, parece-nos uma versão “fabricada”, e que, inacreditavelmente colheu perante o tribunal ad quo.

kk) E mais importante de que tudo isto, então se tudo estava bem como se produz este resultado? Como é que um feto que estava bem até às 0:53, num parto normal na sequência de uma gravidez normal, nasce 44 minutos depois com APGAR 2?

ll) Até para um leigo, a vigilância dos batimentos cardíacos visa justamente monitorizar o estado do feto para que eventos como o que veio a ocorrer não aconteçam.

mm) Pelas regras da experiência comum é inverosímil que o nascimento do feto com APGAR 2, num parto e gravidez normal, tenha ocorrido por factos externos, ainda por cima quando houve – comprovadamente - ausência de vigilância cardio-fetal.

nn) O acórdão recorrido, está enferma de nulidade por verificação – também – de erro na apreciação da prova, nos termos da al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.

oo) Sem prescindir do que já se referiu, e por mero dever de patrocínio, também sempre se dirá que subsiste responsabilidade civil extracontratual autónoma do demandado HSEIT, por funcionamento anormal do serviço.

pp) Ao dar-se como provados os factos sob os nºs. 51, 52 e 53, aliados aos depoimentos das médicas FF e HH (com gravação identificada na motivação), a não reanimação atempada, por ausência de especialista em neonatologia em presença física no Hospital, causaram as lesões descritas.

qq) Mais concretamente poderia ter eliminado ou pelo menos atenuado os efeitos da hipoxia e as consequentes lesões cerebrais que vieram a ser a causa da morte do KK.

rr) Essa omissão traduz-se numa violação do dever de vigilância que incumbia ao HSEIT, o que corresponde, por esse motivo, a um funcionamento anormal do serviço.

ss) Sendo que, o funcionamento anormal do serviço é fundamento de ilicitude nos termos do artigo 9.º, n.º 2 da Lei 67/2007, de 31 de dezembro.

tt) Funcionamento anormal esse que, de acordo com os factos dados como provados e com a prova produzida, permite estabelecer o nexo de causalidade com o dano, dado que essa circunstância concorreu para a morte do KK, sendo uma causa adequada, cumprindo as exigências da jurisprudência, designadamente o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20/06/2006 no processo n.º 0367/06.

uu) Estando, também, reunido o requisito da culpa, porquanto a culpa leve, nas situações de violação do dever de vigilância, presume-se nos termos do artigo 10.º, n.º 3 da Lei 67/2007.

vv) Não tendo sido produzida qualquer prova no julgamento que demonstrasse que a omissão verificada (ilícita) não tivesse concorrido para a morte do KK, em consequência da inversão do ónus da prova, em contradição, aliás, com os factos 51 a 53, dados como provados, com os depoimentos, e com as próprias declarações da arguida.

ww) Estão por isso reunidos os elementos necessários à fixação da responsabilidade civil extracontratual do Estado, por faute du service: Facto ilícito (funcionamento anormal do serviço, traduzido numa omissão de vigilância), a culpa leve (presumida), o dano (morte do KK), e o nexo de causalidade.

xx) Está por isso preenchida a responsabilidade do HSEIT nos termos do n.º 3 do artigo 7.º da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, independentemente da atuação da arguida.

yy) Não obstante o pedido de indemnização civil não ter sido formulado nestes termos, não o poderia ter sido pois estes factos só vêm ao conhecimento dos demandantes em momento posterior, em sede de contestação da arguida.

zz) Em todo caso, nas alegações finais orais, os demandantes alertaram o tribunal para a existência desta responsabilidade, citando inclusivamente jurisprudência que a fundamentava.

aaa) Foram violadas as seguintes normas jurídicas: artigo 410.º n.º 2 als. a) e c) do CPP, Artigos 163.º do CPP (conjugado com os artigos 127.º do CPP e 151.º ) e artigo 7.º nº 3 da Lei 67/2007 de 31 de Dezembro, conjugado com o artigo 9.º, n.º 2 e artigo 10.º, n.º 3 do mesmo diploma legal.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exa. muito doutamente suprirá deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e por via dele:

a) Ser anulado o acórdão da Relação ...., por existência dos vícios previstos no artigo 410.º n.º 2 als. a) e c) do CPP, com remessa àquele tribunal, com diferente composição, para prolação de nova decisão.

b) Caso assim, não se entenda, o que por mera hipótese se coloca, deverá ser julgado procedente o pedido de indemnização cível contra o demandado HSEIT, nos termos constantes das conclusões de recurso.


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Dispensados os vistos, o processo foi à conferência.

Cumpre decidir.

B. OBJETO DO RECURSO:

A decisão recorrida funda-se na livre apreciação da prova pericial produzida nos autos, que degradou em mera informação.

Impõe-se, assim, apreciar se o Tribunal recorrido incorreu – ou não – em erro notório na apreciação de prova de valor reforçado, conforme estabelece o disposto no art. 163º do CPP.

C. FUNDAMENTAÇÃO:

1. os factos:

O Tribunal de 1ª instância (Tribunal do júri) julgou provados decidiu julgar do modo que segue a seguinte matéria de facto (marcando-se com sombreado os factos que o Tribunal da Relação julgou não provados):

1. FACTOS PROVADOS:

1.1. FACTOS CONSTANTES DA ACUSAÇÃO E PRONÚNCIA OU NÃO SUBSTANCIALMENTE ALTERADOS:

1. No dia 22 de Julho de 2010, pelas 08:00 horas, AA, grávida de 40 semanas de KK, por indicação da sua médica obstetra, deu entrada no hospital do Santo Espírito de Angra do Heroísmo, sito na …, nesta cidade, a fim de proceder à indução do trabalho de parto.

2. A assistente vivia uma gravidez normal e sem registo de intercorrências.

3. Pelas 09:05 horas (22.07.10), foi iniciada a indução do trabalho de parto com prostaglandinas ("propess").

4. Até às 16:30 horas (22.07.10), a assistente foi observada regularmente e realizou registos cardiotocográficos normais e com actividade contráctil uterina irregular.

5. Pelas 16:50 horas (22.07.10) apresentava à observação, "colo grosso com 1,5 cm" e foi-lhe administrada analgesia por via inlra-muscular, que foi repetida por via intravenosa, na dose de 25mg, às 18:30 horas, 22:00 horas e 22:30 horas.

6. As 18:30 horas (22.07.10), foi feita rutura artificial de membranas, observando-se líquido amniótico de características normais.

7. Entre as 20:30 horas e as 21:00 horas, do dia 22 de Julho de 2010, a arguida, médica especialista de ginecologia-obstetrícia que se encontrava de serviço naquele Hospital, recebeu a assistente da colega do turno anterior, verificando que a mesma se encontrava a ser monitorizada com C. T. G. (vigilância fetal cardiotocográfica).

8. A evolução posterior do trabalho de parto da assistente, até ao nascimento do seu filho, decorreu sempre sob as ordens directas e supervisão da arguida, na qualidade de médica especialista obstetra.

9. As 22:30 horas foi retirado à assistente o "propess".

10. pelas 22:40 horas (22.07.10), a assistente apresentou "colo grosso com 3-4 cm de dilação".

11. Foi iniciada perfusão intravenosa com ocitocina às 23:00 horas.

12. A dilatação evoluiu para 5 cm, às 00:00 do dia 23 de Julho de 2010, para 7 cm às 00:20 horas (23.07.10), para 8 cm às 00:40 horas (23.07.10) e, para dilatação completa às 00:55 horas (23.07.10).

13. Durante o trabalho de parto da assistente, os registos da vigilância fetal cardiotocográficos (CTG) foram os seguintes:

13.1. Das 10:00 horas até às 10:45 horas do dia 22.07.10: registo normal;

13.2. Das 11:40 horas até às 12:30 horas do dia 22.07.10: registo normal;

13.3. Das 14:55 horas do dia 22 de julho de 2010 até às 00:55 horas do dia 23 de Julho de 2010: registo normal.

14. O período expulsivo decorreu das 00:55 horas até às 01:50 horas, do dia 23 de Julho de 2010.

15. Entre as 00:55 horas e as 01:30 horas, o CTG foi suspenso durante período que incluiu a deslocação da parturiente para a sala de partos (sala expulsiva) e a preparação da mesma parturiente.

16. Entre as 00:55 horas e as 1:30 horas a arguida não exerceu vigilância fetal alternativa ao CTG por meio de auscultação fetal directa.

17. No período das 1:30 horas às 1:50 horas (23.07.10), o CTG acusava um episódio de desaceleração, seguido de um curto período de aparente recuperação, de 6-7 minutos.

18. O período omisso de vigilância referido em 15. e 16., não permitia avaliar o estado do feto durante o período expulsivo nem interpretar adequadamente os 20 minutos finais de CTG.

19. Entre a 1:30 horas e a 1:50 horas, o registo de CTG voltou a estar suspenso durante 6 minutos, devido a papel encravado, momento em que o CGT emitiu um aviso automático de "verificar papel".

20. Para extrair o recém-nascido, a arguida fez uso de uma ventosa, quando cabeça se tornou visível.

21. A arguida fez três tentativas para retirar o feto, tendo-se a ventosa soltado em todas elas.

22. Perante isto, a arguida exclamou "Ah, tu não queres... então fico aqui à tua espera, interrompendo o trabalho de parto e sentando-se num banco em frente à assistente.

23. Seguidamente, a arguida disse para a assistente "Ah... tu não queres... então, vai aqui a minha colega que é mais bruta".

24. Após, a enfermeira parteira avançou e efectuou um corte na zona do períneo (episiotomia), permitindo a saída da cabeça do bebé.

25. O nascimento ocorreu às 1:50 horas, do dia 23 de Julho de 2010, por parto vaginal não instrumentado.

26. O recém-nascido trazia duas circulares cervicais muito apertadas.

27. A pele estava cianosa e pálida, não chorava e não foi pesado devido ao seu estado.

28. Foi-lhe atribuído o índice de 2-2 na escala de Apgar, aos 1° e 5.° minutos, correspondente a asfixia grave.

29. Após, foi chamada a médica pediatra que estava de prevenção, e o recém- nascido foi reanimado de forma superficial pela arguida e pela equipa de enfermagem, tendo-lhe feito massagem cardíaca e aspiração do nariz e boca.

30. Pelas 1:52 horas foi-lhe administrada naloxona e, pelas 1:54 horas, adrenalina intramuscular.

31. Entre 15 a 20 minutos depois chegou a médica pediatra que havia sido chamada, a qual utilizou o ambu no recém-nascido e, em face do insucesso deste, procedeu a entubação endotraqueal, administrou adrenalina às 2:15 horas e bicarbonato às 2:20 horas.

32. KK foi, depois, transferido para os cuidados de neonatologia daquele hospital (02:40 horas), onde permaneceu com ventilação mecânica até ao dia de Julho de 2010, tendo tido alta a 11/09/2010.

33. Foi-lhe diagnosticada asfixia grave com disfunção multiorgânica, EH1 grau III, insuficiência renal aguda, anemia multifactorial, trombocitopenia, sepsis agente etiológico não identificado e encefalopatia neonatal de grau III, paralisia cerebral do tipo tetraplégica espástica.

34. Nos lermos da ressonância magnética crânio-encefálica n° ......78, efectuada a KK, a 23 de Setembro de 2010: "Há aspetos de uma extensa e acentuada situação sequelar a lesão hipóxico-isquémica perinatal, num padrão de leucoencefalopatia multiocular quística atual. Os contornos ependimários dos ventrículos estão difusamente alargados num padrão passivo retrátil, bilateral, e os espaços sulco-cisternais à direita estão alargados e à esquerda verifica-se a presença de uma coleção subdural muito extensa e atingindo uma espessura máxima de quase 2 cm na região parieto-occipital. Apesar da extensão e volume desta coleção e dada a  situação atrófica global, não resulta desvio da linha média nem colapso do ventrículo lateral esquerdo que no entanto fica um pouco menor que o direito. Há algumas faixas de substancia branca persistentes, nomeadamente na topografia provável das radiações óticas e eventualmente em parte da extensão das vias longas, sobretudo à esquerda. Contudo, conjuntamente com os aspetos lesionais que afetam a substancia branca, há também extensão periférica com provável envolvimento cortical generalizado, com desaparecimento da expressão da fita cortical, reduzida ao contorno piai das circunvoluções. O cerebelo é pequeno, com um vérmis particularmente reduzido de volume e com volumoso quisto reto-cerebeloso, numa situação que provavelmente não tem relação com a lesão hipóxico-isquémica supratentorial referida e o tronco cerebral não mostra lesões embora pareça ter um volume pouco reduzido. Não detetamos sinais óbvios de componentes hemorrágicos intraparenquimatosos, nomeadamente pela presença de depósitos de hemossiderina nem de fases mais recentes de evolução de degradação da hemogobina. Salienta-se que o mapa lesional atinge também os cor estriados e aparentemente também os tálamos.

Conclusão: encefalopatia multiocular quística por extensa lesão hipóxico-isquémica supratentorial("hidranencefalia') "

35. As lesões supra referidas, foram causa directa e necessária da morte do KK, ocorrida às 18:00 horas do dia 25 de Dezembro de 2010, no hospital de Angra do Heroísmo.

36. Nos termos do certificado de óbito n° ........, a causa de morte de KK deveu-se a "pneumonia de aspiração" e "paralisia cerebral".

37. Qualquer médico obstetra, colocado nas circunstâncias concretas do caso em apreço, tinha a obrigação de ter consciência que a falta de vigilância fetal durante 35 minutos, podia levar a que não identificasse episódio de hipoxia intra-parto e a não reagir ao mesmo.

38.

39. A arguida actuou nos termos referidos em 15. e 16., sabendo o que estava a fazer.

40. Enquanto médica especialista, a arguida tinha conhecimento que o registo de recuperação de uma desaceleração, entre as 1:30 às 1:50 horas, não era garantia do seu bem-estar, nem excluía uma hipóxia cerebral anterior.

41. Sabia a arguida que o período de GTG normal (de 6-7 minutos, entre as 1:30 horas e as 1:50 horas), por ser demasiado curto, não podia demonstrar nem excluir a hipótese de lesões cerebrais no feto.

42. Enquanto médica, a arguida estava em condições de saber que violava os cuidados que ao caso eram exigíveis, bem como as regras da sua profissão, não actuando conforme lhe era exigido pelos conhecimentos médicos que possuía, bem como, sabia que uma tal vigilância podia diminuir substancialmenle - senão mesmo anular - os perigos de uma asfixia grave - pelo menos, com a extensão assumida - e, teria evitado, pelo menos, que caso surgisse uma falta de oxigenação do feto, a mesma não viesse a ter as proporções que teve.

43. A arguida não podia deixar de configurar como bastante provável, que a sua não vigilância no período referido em 16. era apta a não identificar e reagir a episódio de hipoxia intra-parto, o qual poderia provocar lesões cerebrais no feto, como ocorreu, não se conformando com tal perigo.

44. Mais sabia que tal conduta era proibida e punida por lei.

1.2. FACTOS CONSTANTES DA CONTESTAÇÃO

45. Na operação de mudança referida em 15. é sempre desligado o CTG, uma vez que é impossível no transporte da parturiente fazer o registo por CTG.

46. Tal operação poderá demorar em média 15 a 20 minutos, dependendo da colaboração da própria parturiente.

47. Compete ao pessoal de enfermagem a realização da vigilância fetal através do aparelho sonicaid.

48. A presença de circulares junto ao pescoço pode não provocar qualquer alteração na frequência cardio fetal, durante o trabalho de parto.

49. A aplicação de ventosa referida em 20. e 21. foi para abreviar o período expulsivo.

50. Os primeiros dez minutos após o nascimento são fundamentais na reanimação do recém-nascido.

51. A reanimação em causa não foi feita por médico especialista em neonatologia, uma vez que não existe no Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira neonatologista, em presença física ou não.

52. O Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira não tem equipa de urgência em presença física, mas em regime de prevenção, para a realização de cesarianas.

53. Estava estipulado que deslocação da equipa de urgência em causa para o Hospital poderia durar até 30 minutos.

54. Após o início do momento referido em 14. não havia opção para a arguida de determinar a realização de parto por cesariana, por a cabeça do feto se encontrar descaída e encaixada no canal vaginal.

55. A Arguida é uma profissional tida no meio profissional como competente zelosa, cuidadosa, diligente e dedicada.

1.3. FACTOS CONSTANTES DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL:

56. Os assistentes/demandantes são pais do menor KK.

57. A arguida/demandada exerce funções de obstetra, com vínculo de relação laboral com o Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira EPER.

58. As lesões supra descritas e o seu grau de extensão causaram ao KK dor e sofrimento físico.

59. Os demandantes tinham planeado ter o seu primeiro filho.

60. O nascimento do KK resultou de uma gravidez planeada e desejada.

61. Os demandantes perceberam o circunstancialismo referido em 26. e 27.

62. E assistiram às manobras de reanimação referidas em 29. e 31. e à transferência referida em 32.

63. O que fizeram com grande apreensão, ansiedade e preocupação, temendo mesmo pela vida do seu recém-nascido filho.

64. Tendo vivenciado sofrimento e angústia.

65. Que se perpetuaram pela semana seguinte devido ao internamento.

66. A dor, angústia e ansiedade em causa, aumentaram com a constatação das lesões que se seguiram e supra elencadas.

67. O casal desde cedo percebeu que não tinha um filho saudável e que a esperança de vida do KK seria curta.

68. O que se veio a comprovar com o resultado da ressonância magnética referida em 34.

69. Os demandantes sempre cuidaram do KK com todo o amor e carinho, e sempre lhe dispensaram toda a atenção e cuidados para que pudesse ter o melhor e aliviar o sofrimento.

70. Foi um período de sofrimento, angústia e preocupação permanente.

1.4. FACTOS RELATIVOS ÀS CONDIÇÕES ECONÓMICAS, P ESSOAIS, SOCIAIS E PROFISSIONAIS DA ARGUIDA 

71. A arguida nasceu na ..... , sendo a mais velha de ... filhos de pai .....  e mãe ..... .

72. Pese embora a modesta situação socioeconómica da família, beneficiou de condições materiais, afectivas e educativas compatíveis com a adequada estruturação da sua personalidade e inserção social.

73. E oriunda de família convencional, cuja dinâmica se caracterizava por sentimentos de pertença e adequado suporte socio afetivo, tendo sobretudo boas recordações da infância.

74. Teve um percurso escolar regular, caracterizado pelo compromisso com as actividades curriculares e adequada adaptação à escola — sem registo de dificuldades de relacionamento quer com colegas quer com professores e outros agentes educativos tendo desde cedo o projecto de ser médica.

75. Em consonância com as regras familiares, não frequentou, até se autonomizar, locais de convívio nocturno ou socio recreativo, mantendo relacionamentos interpessoais sobretudo em contexto escolar ou desportivo, tendo praticado ..... e .... ..

76. Por volta dos ... anos de idade ingressou na Faculdade de Medicina e, em simultâneo, no Instituto Português d....., tendo realizado todo o curso como trabalhadora estudante.

77. Licenciou-se em 1980, trabalhou cerca de ... anos no Hospital ......, vindo, posterior mente, a ingressar na especialidade de obstetrícia e ginecologia, contexto em que veio trabalhar para o Hospital de Angra do Heroísmo.

78. Quer por motivos profissionais, quer familiares, tendo estabelecido uma relação do tipo conjugal com .... de quem tem uma filha com ... anos de idade, a arguida fixou residência nesta ilha, onde se mantém desde então.

79. Teve adequada adaptação a este contexto comunitário e um percurso de vida marcado pela dedicação à família e à profissão, mantendo, há alguns anos, o exercício da medicina em contexto hospitalar e em consultório privado.

80. Enquanto Assistente .... de Ginecologia/Obstétrica no Hospital da Ilha Terceira, aufere um vencimento médio mensal líquido da ordem dos € 5.000,00 a €6.000,00.

81. Dispõe de situação económica estável, conseguindo fazer face aos compromissos financeiros assumidos e às suas despesas mensais.

82. Na sequência do falecimento do companheiro há cerca de ... anos e posterior autonomização da filha do casal, a arguida vive sozinha, em habitação própria.

83. A filha da arguida reside com o marido e a filha do casal em ...., mantendo um relacionamento estreito com este agregado e partilha de actividades diárias.

84. E sobretudo em família que convive.

85. Tem capacidades adaptativas, particularmente a situações difíceis, mantendo a calma e a objetividade necessária à tomada de decisão, não se revendo na imagem dada pelo teor da acusação, de pessoa "mal-educada”.

86. Pontualmente e em situações de maior cansaço, poderá ser menos comunicativa e apresentar um semblante carregado, mas sem ser ofensiva.

87. É em termos emocionais / pessoais que identifica maiores constrangimentos decorrentes do facto de ter sido constituída arguida nos presentes autos, ainda que se refira tranquila, não identificando consequências em termos profissionais ou sociais em geral.

88. Tem um adequado relacionamento com colegas e outros profissionais, sentindo-se bem-aceite, nunca tendo sofrido sanções disciplinares.

89. Não se revê no teor da acusação e avalia de forma autocentrada a emergência do presente processo, para o qual não vê qualquer justificação, tendo dificuldade em compreender a razão da queixa e atitude da assistente.

1.5. ANTECEDENTES CRIMINAIS DA ARGUIDA

90. A Arguida não tem quaisquer antecedentes criminais.

2. FACTOS NÃO PROVADOS:

91. Nos 6 minutos de papel encravado referido em 19. inexistiu vigilância fetal.

92. A mais do dado como provado em 22. que a arguida tenha dito, a justificar a sua demora, que " nem a mãe nem o bebé morrem...".

93. Cerca de dois a três minutos depois, a arguida levantou-se e retomou o trabalho de parto, puxando com as mãos pela cabeça do recém-nascido, embora sem sucesso.

94. A mais do dado como provado em 37. que a falta de vigilância em causa tenha ocorrido por 40 minutos.

95. A mais do dado como provado em 37. que os 35 minutos em causa tenha sido seguidos de 20 minutos de vigilância desadequada.

96. A mais do dado como provado em 41. que a lesões previstas fossem concretamente as que foram evidenciadas pelo nascituro no pós-parto.

97. No período em que foi desligado o CTG, desde as 00.56,5 horas, do dia 23 de Julho, às 01.28 horas, de 23 de Julho de 2010, foi realizada auscultação cardíaca fetal intermitente com o aparelho próprio denominado "sonicaid”, pela enfermeira JJ, de cinco em cinco minutos, durante cerca de cinco vezes.

98. Através da auscultação efectuada pela enfermeira referida, a frequência cardio fetal estava em cerca de 140 a 150 pulsações por minuto.

99. A vigilância fetal direta não, é, normalmente, registada no Hospital do Santo Espírito da Ilha Terceira se os respectivos resultados são normais, como era o caso dos presentes autos.

100. Com vigilância fetal continua (CTG), é frequente a ocorrência de br adiçar dias no período expulsivo sem que isso implique outro tipo de condutas médicas para além daquelas que foram realizadas

101. Em mais de 30 anos de actividade, nunca a Arguida teve comportamentos como os referidos em 22., 23. e b), ou actuou com qualquer tipo de agressividade com parturientes, grávidas, doentes em geral ou com colegas de serviço.

102. A Arguida tem mais de 30 anos de actividade como ginecologista-obstetra sem qualquer tipo de ocorrência originada por qualquer acto seu em violação das legis artis a que está obrigada.

103. Não se fixam quaisquer outros factos, por irrelevantes, jurídicos ou meramente conclusivos.

 

2. o direito:

a) âmbito do recurso:

Duas breves notas sobre o âmbito e efeitos do recurso em epigrafe:

i. definitividade da absolvição criminal:

A primeira nota para realçar que, sem prejuízo do disposto no art.º 402º n.º 1 do CPP, a responsabilidade criminal da arguida nestes autos está definitivamente afastada pela absolvição decretada pelo Tribunal da Relação. A decisão absolutória na parte criminal não é recorrível. O recurso interposto pela Assistente não foi admitido.

A decisão impugnada, que reverteu condenação em absolvição, é recorrível, - em revista -, na parte relativa à indemnização civil, em razão do valor (a demandante e aqui recorrente ficou vencida em €110.000,00), em conformidade com o estabelecido nos arts. 400º n.ºs 2 e 3, 432º n.º 1 al.ª b) do CPP e 44º da LOSJ. E também em conformidade com o disposto nos arts. 629º n.º 1, 671º e 674º n.º 1 al.ª c) do CPC, porque ao recurso na parte cível aplica-se, sempre que não exista norma própria no diploma adjetivo processual penal, o regime do recurso de revista (normal) constante lei do processo civil.

ii. questão nova:

A segunda nota para salientar que o recurso não é o meio processual para colocar novas questões, porque, não tendo sido suscitadas perante as instâncias recorridas, não puderam aprecia-las e sobre elas tomar decisão.  O que é especialmente patente no que respeita ao pedido de indemnização civil apresentado no processo penal, como é entendimento uniforme na jurisprudência deste Supremo Tribunal. Neste sentido, no Ac. STJ de 21/01/2020 (desta secção), sustenta-se que “o recurso interposto de uma determinada decisão não pode abranger questões que não constam dessa mesma decisão. Assim, reafirma-se a jurisprudência do STJ no sentido de que os recursos se destinam a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior e não obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições”[1].

Ou, com outra formulação,: “O recurso, tem por escopo reexaminar, reapreciar, sindicar as questões que já foram objeto de análise e de decisão por parte do tribunal recorrido ou que, podendo e devendo ter sido por ele conhecidas, não foram com vista à deteção e correção de vícios, omissões ou à escolha da solução jurídica mais adequada ao caso concreto[2].

É, assim, pacífico o entendimento que os recursos são “meios processuais de impugnação de anteriores decisões judiciais e não ocasião para julgar questões novas. O seu âmbito é delimitado pelas questões conhecidas ou que deveria ter apreciado a sentença ou acórdão de que se recorre.

Por definição, o reexame de uma questão pressupõe que já anteriormente foi apreciada pelo tribunal recorrido. Não pode o recurso servir para criar decisões sobre matéria nova.

Assim, a questão que a recorrente não colocou no recurso que interpôs para a Relação, não poderia fundamentar a interposição de recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça.

No entanto, vindo a considerar-se provados os pontos de facto que especificadamente se vão apreciar – por erro notório na apreciação da prova pericial -, haveria que decidir do mérito do recurso por se revelaram essenciais para a procedência do pedido civil de indemnização apresentado pela recorrente.

b) vícios “lógicos” da decisão:

i. argumentação da recorrente:

A recorrente impugna o acórdão recorrido alegando padecer do vício da “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” previsto na “al. a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP” que, em síntese, situa no afastamento da “prova pericial sem prova equivalente”, sem a “fundamentação especial” legalmente exigida.

Alegando enfermar também de erro notório na apreciação da prova, “nos termos da al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP”, ao “dar-se como provado que existiu vigilância alternativa ao CTG”, através do aparelho Sonicaid, “aliado ao facto de não terem sido registados os resultados de tal vigilância alternativa”.

ii. cognição oficiosa pelo STJ:

O legislador processual penal, estabeleceu, como regra geral, a limitação dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça ao reexame das questões de direito que possa suscitar a decisão recorrida. Podendo e devendo conhecer, oficiosamente, dos vícios lógicos da decisão e das nulidades enunciados no art. 410.º n.ºs 2 e 3 do CPP, quando se confronte com uma decisão emmatéria de facto ostensivamente divorciada da realidade das coisas, quer por ser insuficiente, quer por ser contraditória, quer por se revelar a priori – e pelas simples leitura da decisão impugnada – uma matéria de facto erroneamente apreciada[3].

Não podendo ser chamado a verificá-los, todavia, o STJ detetando na decisão em matéria de facto, os vícios previstos no art. 410º, n.º 2 ou nulidades a que alude o n.º 3, do CPP, emergentes da simples leitura do texto daquela, por si só ou em conjugação ou em confronto com as regras da experiencia comum ou também com as regras da ciência do ramo especifico de conhecimento que seja convocado e aplicável no caso concreto, não só pode como deve conhecer, oficiosamente, dos referidos vícios quando impeçam ou inquinariam um decisão processualmente escorreita.

Assim mesmo se fixou no AUJ n.º 7/95: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.

Os vícios aludidos naquela norma legal, reportam-se exclusivamente à decisão em matéria de facto, mas tão-somente enquanto peça processual autónoma, tendo o vício de ser lógico, evidente e intrínseco, resultar do próprio texto por si só ou conjugado com as regras da experiência comum ou as leis da ciência. Não podendo confundir-se nem com a errada aplicação do direito aos factos, nem com o erro na apreciação e valoração das provas ou erro de julgamento, nem com a escassez da prova para suportar o julgado.

Assim, a revista alargada à matéria de facto não legitima a interposição de recurso perante a mais alta instância judicial em processo penal. A circunstância de não poderem fundamentar recurso perante o Tribunal da cúspide da hierarquia dos tribunais da jurisdição comum, não obsta a que o STJ, alertado ou não, verifique, oficiosamente, se a decisão em reexame, nos seus próprios termos, enferma de vício previsto no art. 410º n.º 2 do CPP ou de nulidade não sanada.

Vejamos se o acórdão recorrido padece de algum daqueles vícios.

a) motivação do acórdão recorrido:

O Tribunal da Relação, apreciou livremente toda a prova produzida na audiência de julgamento em 1ª instância e, valorando-a de maneira diferentemente, formou a sua própria convicção socorrendo-se das declarações da arguida, do depoimento da testemunha presencial enfermeira GG e do depoimento da testemunha DD, médica do serviço em causa, em detrimento das demais provas, incluindo os relatórios e as conclusões da perícia médico-legal e os esclarecimentos prestados pelo  perito perante o Tribunal do júri.

Se, evidentemente, a livre e, no caso, diferente valoração das provas pessoais e da prova documental (no caso não há provas reais) não suscita qualquer objeção, incluída como está de pleno, nos poderes de cognição do Tribunal da Relação – art. 428º do CPP. Já não assim a desconsideração da prova pericial que, para o tribunal do júri, foi essencial para se decidir por julgar provados factos importantes, nucleares mesmo para o resultado da pronúncia e, no que ora importa, a sorte do pedido de indemnização civil, como sucede, inequivocamente, com os vertidos nos pontos 16, 18, 19 e 35, com o conteúdo fáctico seguinte:

16. Entre as 00:55 horas e as 1:30 horas a arguida não exerceu vigilância fetal alternativa ao CTG por meio de auscultação fetal directa.

18. O período omisso de vigilância referido em 15. e 16., não permitia avaliar o estado do feto durante o período expulsivo nem interpretar adequadamente os 20 minutos finais de CTG.

19. Entre a 1:30 horas e a 1:50 horas, o registo de CTG voltou a estar suspenso durante 6 minutos, devido a papel encravado, momento em que o CGT emitiu um aviso automático de "verificar papel".

35. As lesões supra referidas, foram causa directa e necessária da morte do KK, ocorrida às 18:00 horas do dia 25 de Dezembro de 2010, no hospital de Angra do Heroísmo.

No acórdão ora sob reexame, motivando a decisão de julgar não provados, - além de outros - também aqueles factos, expende-se (sublinhamos alguns segmentos apenas para realçar):

Começamos pelo acto da monitorização do feto durante o trabalho de parto que se apresenta como o cerne de toda a actividade clínica em causa.

No teor do relatório pericial de fls. 846 dos autos, lemos no ponto 5: “ (...) a vigilância fetal, no caso de transferência de local poderá ser suspensa se não for exequível a sua manutenção, mas apenas pelo muito curto período de tempo que tal mudança possa implicar. Note-se que, se por qualquer motivo essa interrupção se prolongar (...) a vigilância pode e deve ser garantida por auscultação fetal directa”.

Ainda em nota de rodapé, podemos ler: “Note-se que 40 minutos para esse tipo de transferência é manifestamente exagerado e que, de acordo com os princípios de objectividade de análise deste Conselho tal como inicialmente expostos, não havendo registo no processo clínico de vigilância por auscultação fetal directa naquele intervalo de tempo do nosso ponto de vista não existiu

Ainda em relatório do Conselho Médico-Legal- fls. 845, podemos ver que se concluiu o seguinte:

Em conclusão, decorrendo das citações acima extraídas e dos pareceres anteriores:

a) Podem atribuir-se a encefalopatia neonatal e as lesões neurológicas do recém nascido/criança a um episódio de hipoxia intra-parto;

b) O registo cardiotocográfico não contém nenhuma anomalia até às 00. h 53;

c) A vigilância fetal a partir desse momento é inexistente até às 0lh 30 e inadequada daí em diante, o que constitui uma violação das leges artis;

d) Se o episódio hipóxico não ocorreu antes das 00h 53, só pode ter sido depois;

e) não nos é possível identificar o momento, nem identificar responsabilidades (individuais, colectivas ou organizacionais) pela falha de monitorização fetal no período expulsivo.

Neste relatório pericial, que foi efectuado com base em dados e informações fornecidos pelo Tribunal, que formulou perguntas às quais o CML foi respondendo (não existe um relatório no sentido próprio e habitual) e, sempre com a ressalva de que se não conhecia (e os conhecidos eram insuficientes)[4] outros dados de relevo para as respostas médicas solicitadas, há que atentar e conjugar esta informação com os depoimentos prestados por médicos da especialidade, ouvidos em julgamento, a saber: a testemunha DD que declarou, (…), ao examinar o documento de CTG: “tem registo até às 00.56 e, depois, volta a ter registo por volta das 01.28”, e que o CTG esteve interrompido “entre as 00.56 e a 01.28".Estas declarações resultam da análise efectuada pela médica sobre as folhas dos registos. Ora, no confronto com as informações enviadas ao Conselho Médico Legal existe uma divergência temporal, manifesta e da qual o próprio Tribunal se apercebeu, mas não valorou. E, no ponto 16 da matéria fixada decidiu-se: “Entre as 00:55 horas e as 1:30 horas a arguida não exerceu vigilância fetal alternativa ao CTG por meio de auscultação fetal directa”.

Tal facto, contendo alguma contradição com o facto dado como provado em “47 - Compete ao pessoal de enfermagem a realização da vigilância fetal através do aparelho sonicaid” (…)”.

Prosseguindo na desconsideração e afastamento da prova pericial expende:

No parecer do CML de fls. 846, conclui-se que “podem atribuir-se a encefalopatia neonatal e as lesões neurológicas do recém nascido/criança a um episódio de hipóxia intra-parto ”, inclui nesta conclusão a possibilidade da causa da asfixia ter sido a presença das ‘‘circulares cervicais muito apertadas”. No parecer de fls.785, em resposta ao quesito formulado, é respondido que a compressão do cordão umbilical em torno da zona cervical pode provocar hipóxia.

Ora, entre os principais mecanismos que levam à asfixia durante o trabalho de parto, nascimento e período pós-parto imediato, podemos citar: interrupção da circulação umbilical (compressão de cordão umbilical), troca gasosa placentária alterada (placenta prévia, insuficiência placentária), perfusão inadequada do lado placentário materno (hipotensão ou hipertensão materna, contrações uterinas anormais) e falha do recém-nascido em sua expansão pulmonar durante a transição da circulação fetal para a neonatal.[5]

O risco de asfixia durante o trabalho de parto, parto e primeiros minutos de vida é muito elevado, pois o recém-nascido deve adaptar-se à vida extrauterina, com alteração das vias circulatórias. Se nos instantes após o parto não ocorrer a expansão dos pulmões do recém-nascido e o início da respiração, a P02 e o pH arteriais caem e a PC02 sobe, determinando a constrição das arteríolas pulmonares, com a persistência da resistência vascular pulmonar e um grande shunt da direita para a esquerda, através do duto arterioso.

Ora, da prova produzida, nomeadamente pericial não é possível concluir com segurança qual o evento causador da hipóxia e a origem das lesões verificadas mais tarde na criança. E, não é demais salientar que a prova pericial que consta dos autos é muito deficitária. Não existem relatórios fundamentados em elementos directos, não foi efectuada autópsia à criança (pelo menos não há relatório médico-legal) e a atestar estas constatações vemos que existem vários pareceres do CML juntos aos autos, todos com respostas a perguntas formuladas e com o fornecimento de parcos elementos, expressos nas respostas dos respectivos pareceres.

Continuando, mais adiante expende:

É que, não podemos reduzir a questão em análise ao simples facto de que durante um período de tempo do trabalho de parto, não foi efectuada a monitorização do feto, (como foi dado por assente pelo Tribunal) e foi esse acto que desencadeou e causou uma hipoxia no bébé, ou mesmo que essa omissão não deixou detectar sinais anómalos, que motivaram sequelas graves, na integridade física do bébé e que lhe causaram a morte cinco meses após o parto. Para além de entendermos que esta falta de monitorização não foi comprovada (há dados sobre a monitorização alternativa no período da mudança de local da parturiente durante o trabalho de parto- é dito não só pela arguida como pela Enf1.) não conseguimos vislumbrar o nexo causal adequado à produção dos eventos ocorridos no nascimento- o que realmente causou a hipoxia no bébé ficou por apurar. Nada aponta no sentido de que a monitorização por CTG indicasse que o feto estava em hipoxia ou que apresentava as duas circulares à volta do pescoço. Desconhece-se se existiam malformações prévias[6] e, se perante os resultados e as práticas usuais era exigido um outro comportamento ou prática médica. E, sobretudo, desconhece-se se a falta de monitorização (que não é seguro que tenha acontecido a não ser no período da mudança de sala da parturiente e pelo aparelho CTG) foi a causa directa da hipoxia verificada; se esta poderia ter sido evitada com a monitorização pelo CTG que monitoriza os batimentos cardíacos. Qual o procedimento clínico que foi omitido e que foi causa directa e adequada às lesões verificadas na criança, bem como quais foram os procedimentos adequados e não realizados, que evitariam essas lesões, não resulta sequer claro dos elementos dos autos ou então quais os procedimentos realizados e indevidos que levaram à hipoxia do feto.

Terminando, motivou: “(…) concluímos da incorrecta valoração da prova produzida, mormente dos depoimentos dos médicos especialistas, da Enf. e arguida, bem como dos pareceres médicos do CML, que o Tribunal interpretou de forma errada e em violação do princípio da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127 do C.P.P. (critérios que explicamos acima e agora nos abstemos de repetir). Assim, e, valorando os depoimentos dos médicos ouvidos, cuja idoneidade e conhecimentos profissionais não foram colocados em causa, decidimos alterar a matéria de facto fixada, passando os pontos 16,18,19,22,23,24,35, 37, 39, 40, 41, 42,43,44, a ser considerados como não provados.

Finalmente, adverte: “ainda que se comprovasse a falta de monitorização durante cerca de 20 m ou mesmo mais, não existe nos autos a adequada prova de que essa omissão foi a causa directa e adequada à não detecção da hipoxia verificada no feto e ainda que as lesões foram resultado dessa conduta”.

Verifica-se assim que o Tribunal da Relação para julgar não provados aqueles factos – e, no que aqui releva a facticidade vertida nos pontos 16, 18, 19 e 35 -, afastou e rebateu com os próprios conhecimentos, - aparentemente adquiridos em citações de publicações que, identificando, todavia não indica o local onde podem ser consultadas (será de páginas web?) -, a prova pericial produzida,  com esclarecimentos prestados pelo perito médico-legal na audiência de julgamento e, fazendo fé na motivação do acórdão do tribunal do júri, também corroborada por depoimento prestado pela testemunha arrolada pela defesa EE (médica obstetra, diretora de uma das maternidades do Hospital ....).

Resulta, claramente, do texto do acórdão recorrido que o Tribunal a quo começou por recusar que exista “um relatório no sentido próprio e habitual”, para, na continuação, degradar os relatórios, incluindo as respetivas conclusões – que trata indiferenciadamente -, em mera “informação”, para depois concluir, em evidente contradição dos termos, que o tribunal do júri “interpretou os pareceres médicos do CML de forma errada e em violação do princípio da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127 do C.P.P.” e, finalmente, para, na formação da própria convicção, sobrepor à prova pericial, as declarações da arguida e os depoimentos da enfermeira que a assistiu naquela parto e a médica, colega de trabalho da primeira no Hospital demandado.

Sendo aqueles os termos da parte mais relevante da motivação do acórdão absolutório aqui em reexame, haverá de confrontar-se desde logo na sua própria coerência lógica e por outro lado ajuizar se a prova pericial pode ser assim desgraduada e submetida à livre apreciação do tribunal.

a) prova pericial

Começando pela última questão, rememora-se que o legislador processual penal estatui que “a prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos” – art. 151º do CPP -, que estão fora do alcance do julgador.

Resulta da norma citada que a perícia tanto pode visar a perceção de factos relevantes para a existência, ou não, de um crime, como a apreciação de determinados factos ou os dois objetivos.

Destinando-se a perícia a apreciar factos –a sua vertente mais essencial - , a emitir juízos de valor  técnico, cientifico ou artístico sobre determinados factos – maxime: se podem ter acontecido de certo modo, se podem ter causado certo resultado, etc. -, a autoridade judiciária deve transmitir aos peritos, ao serviço quando for o caso, “toda a informação relevante à realização da perícia, bem como a sua atualização superveniente, sempre que eventuais alterações processuais modifiquem a pertinência do pedido ou o objeto da perícia” e formular as perguntas – quesitos – que entender úteis e necessárias ao esclarecimento e apreciação dos factos sub judicio.

Segundo J. Alberto dos Reis, a função característica da testemunha é narrar o facto e a do perito é avaliar ou valorar o facto, emitir quanto a ele juízo de valor, utilizando a sua cultura e experiência[7].

Também não pode confundir-se a perícia com o exame das pessoas, dos lugares, dos animais e das coisas, que o legislador consagrou como um meio de obtenção da prova.

Aos peritos compete, na segunda situação prevista na norma, valorar os factos tal como resultam da informação fornecida pela autoridade judiciária. Para M. Cavaleiro de Ferreira a contribuição no processo dos peritos consiste precisamente na formulação dum parecer ou opinião técnica ou cientifica sobre o significado ou valor de determinados meios de prova[8].

Nessa valoração, os peritos não estão impedidos de aplicar raciocínios dedutivos ou indutivos relativamente aos factos, sua dinâmica e ao resultado cientificamente aceite, levando a informação correspondente ao relatório da perícia.

O legislador processual penal, visando garantir a isenção e a imparcialidade daqueles a quem deva ser confiada a produção da prova pericial e, por outro lado, a sua competência no ramo específico do saber que esteja em causa, impõe que a perícia seja “realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial”, sempre que exista e possa realiza-la.

Entre nós, compete ao instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses realizar as perícias médico-legais e as perícias forenses que se insiram nas suas atribuições.

A perícia culmina com um relatório, que menciona os quesitos, descreve as respostas e justifica as conclusões dos peritos. Podendo os sujeitos processuais indicar consultor técnico para assistir à realização da perícia. A autoridade judiciária pode, oficiosamente ou a requerimento, em qualquer altura, convocar os peritos para prestarem esclarecimentos complementares, e, determinar a realização de nova perícia ou renovada a anterior, que se efetuará igualmente pelos serviços oficiais, mas a cargo de outro ou outros peritos.

O legislador atribui à prova pericial valor reforçado, o que bem se compreende: se é indispensável recorrer ao juízo percetivo ou valorativo de técnicos ou de cientistas de determina área do saber, o relatório e as conclusões não podem deixar de gozar de “uma presunção solidamente fundada de certeza técnica, cientifica ou artística”. Por isso que o legislador processual penal estabeleceu que o juízo técnico, científico ou artístico da perícia só pode ser afastado pelo juiz com fundamentação de idêntica valia cientifica, técnica ou artística. De outro modo, se o juízo técnico e científico estivesse submetido à livre apreciação do julgador ao mesmo nível de qualquer prova comum, a perícia, - e doravante temos em mente apenas as perícias médico-legais -, necessária quando a perceção ou a avaliação de factos que exigem conhecimentos especializados de um determinado ramo da técnica e/ou de um campo da ciência, não seria mais que um inútil desperdício de meios e de tempo. Estar-se-ia perante um inexplicável absurdo legislativo e probatório consistente em, por um lado, reconhecer que para a perceção e avaliação de determinados factos são indispensáveis conhecimentos especializados, que o juiz não tem, e, pelo outro lado, colocar a prova pericial sob a livre apreciação do juiz, exatamente ao mesmo nível de qualquer outra. Em registo com expressão em alguns setores da sociedade atual, embora reconhecendo a necessidade da técnica e da ciência para compreender determinados factos ou alguns resultados, contudo negava-se valor especial à perceção ou avaliação dos técnicos ou dos cientistas.

A lei confere à prova pericial valor reforçado só admitindo que seja afastada por juízo de igual valia, com conhecimentos reconhecidamente semelhantes e argumentos de equivalente densidade técnica ou cientifica. Assim mesmo coincidem jurisprudência e doutrina.

No Ac. STJ de 16/10/2013 (desta secção) expende-se: “III - Fixa-se, assim, o valor da prova pericial, estabelecendo uma presunção juris tantum de validade do parecer técnico apresentado pelo perito o qual obriga o julgador. Significa o exposto que a conclusão a que chegou o perito só pode ser afastada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científicos (n.º 2 do art. 165.º do CPP).

IV . A prova pericial é valorada pelo julgador em três níveis distintos: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão. Quanto à validade formal, deve apreciar se a prova foi produzida de acordo com a lei ou se não colide com proibições legais. Assim, é necessário verificar sobre a regularidade dos procedimentos como é o caso da notificação do despacho que ordenou a prova (n.º 3 do art. 154.º do CPP, ou, ainda, da prestação do devido compromisso (n.º 1 do art. 156.º do CPP).

V - No que concerne aos factos estamos em face de uma premissa em relação à qual o julgador, dentro da sua liberdade de apreciação pode divergir do facto, ou factos, de que arranca a perícia pois que, a seu respeito, tem entendimento diferente.

VI - A presunção a que alude o n.º 1 do art. 163.º do CPP apenas se refere ao juízo técnico-científico e não, propriamente, aos factos em que o mesmo se apoia. Assim, a necessidade de fundamentar a divergência só se dará quando esta incida sobre o juízo pericial”[9].

No Ac. STJ de 21/01/2016 sustenta-se: II - A prova pericial traduz um meio de prova pré-definida; previamente à sua produção e apreciação, a lei estabelece qual o seu alcance e limites, por isso ela é, com outros meios, denominada da prova vinculada, tarifada, préconstituida, sofrendo o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art. 127.º, do CPP, derrogação, embora não absoluta, porque o juiz pode divergir do juízo científico, fundamentando devidamente, divergência em que, quanto à matéria de facto em que se funda tal juízo, o julgador" guarda inteira liberdade ".

III - Por o juízo científico estar subtraído à sua livre convicção, o juiz há-de fundamentar a divergência, mediante recurso, também, a considerações de índole científica, técnica ou artística, de outro modo estaria descoberto um caminho ínvio de contornar a imposição legal, que se apresenta como corolário de que o julgador, contra o pensamento positivista, não é portador de um saber enciclopédico e universalista.

No Ac. STJ de 15/12/2011, expende-se, expressivamente VII - O juízo de valor científico resultante de perícia integra prova vinculada; a esse juízo de valor científico, nos termos do art. 163.º, n.º 2, do CPP, o juiz só pode dissentir opondo um juízo, contrário ou divergente, igualmente científico; o juiz tem que jogar, então, no mesmo plano e no mesmo campo do perito. Terá que deixar claro as razões do porquê do seu afastamento do perito, sem que lhe seja conforme à lei argumentar com razões de ciência pessoal, como conhecedor enciclopédico, que não é”[10].

IV - O fundamento da divergência não tem que ascender à contraprova desse juízo, bastando um juízo crítico que se funde não na sua pessoa, mas em juízos emanados de técnicos, cientistas ou artistas, que enfraqueçam ou anulem o primeiramente emanado”[11].

Na doutrina, J. Figueiredo Dias, quando ainda não conhecera assumira letra de lei a regra consagrada no art.º 163º do CPP, ensinava que “à peritagem há-de por sua própria natureza pertencer (…) valor probatório diferente do de outros meio de prova (máxime: da prova testemunhal), que faça dela, antes que um mero meio de prova, um verdadeiro «auxiliar» ou «colaborador» do juiz.

Daí precisamente que, se os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz – que, contrariando-os pode furtar validade ao parecer – já o juízo cientifico ou parecer propriamente dito só é susceptível de uma crítica igualmente material e cientifica. Quer dizer: perante um certo juízo cientificamente provado, e de acordo com as exigências legais , o tribunal guarda a sua inteira liberdade no que toca à apreciação da base de facto pressuposta; quanto, porém, quanto ao juízo cientifico, a apreciação há-de ser cientifica também e estará, por conseguinte subtraída em princípio à competência do tribunal – salvo casos inequívocos de erro, mas, nos quais o juiz terá então de motivar a sua divergência.[12]”  

Segundo G. Marques da Silvaa presunção que o art. 163.º, n.º 1, consagra não é uma verdadeira presunção, no sentido de ilação, o que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido; o que a lei verdadeiramente dispõe é que salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é, científica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador. Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial”[13].

a) erro notório na apreciação da prova:

No caso, ao invés do que, contraditoriamente, começa por afirmar-se no acórdão recorrido, foi efetuada perícia médico-legal pelo INMLCF, com a elaboração de relatórios e conclusões, confirmadas pelo Conselho Médico-Legal. Ademais, o perito prestou os esclarecimentos que o tribunal e os sujeitos processuais entenderam convenientes.

Contrariamente ao que se termina concluindo no acórdão recorrido, o tribunal do júri não apreciou segundo a sua livre convicção a prova pericial produzida nos autos. Apreciou-a, como a motivação respetiva documenta, nos termos dos respetivos relatórios e das correspondentes conclusões, com os esclarecimentos prestados pelo perito na audiência, aceitando-a com o valor probatório “tarifado” que lhe é atribuído pelo legislador no art. 163º do CPP. Tanto assim que transpôs as quatro primeiras conclusões para a facticidade provada, ainda que com redação necessariamente concordante com os factos em que assentou a avaliação do perito médico.   Não se compreende, por isso, de onde (em que passagens da fundamentação) e como (que partes dos relatórios ou que concretas conclusões) conseguiu o Tribunal da Relação concluir que o tribunal da 1ª instância “interpretou os pareceres médicos do CML de forma errada e em violação o princípio da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127 do C.P.P.

O Tribunal ora recorrido é que não podia ter submetido a prova pericial à sua livre apreciação sem que previamente afastasse, fundamentada e convincentemente, desde logo, a existência e/ou a autenticidade dos dados de facto fornecidos pelas autoridades judiciárias ao INMLCF -, dados sobre os quais incidiu a avaliação do perito -, ou então sem que tivesse arredado cada uma e todas as conclusões daquela perícia médico-legal efetuada pelo INMLCF, bem como os esclarecimentos que o perito médico prestou na audiência., mas então já somente com argumentação de equivalente valia técnica e científica,

Parecendo querer enveredar pelo afastamento da prova pericial através da autenticidade das premissas sobre que incidiu e se formou o juízo cientifico do perito, começa por apontar uma divergência temporal consistente no seguinte (sic) no confronto com as informações enviadas ao Conselho Médico Legal existe uma divergência temporal, manifesta e da qual o próprio Tribunal se apercebeu, mas não valorou. E, no ponto 16 da matéria fixada decidiu-se: “Entre as 00:55 horas e as 1:30 horas a arguida não exerceu vigilância fetal alternativa ao CTG por meio de auscultação fetal directa. Quando vem de fé que a testemunha DD declarou “ao examinar o documento de CTG: «tem registo até às 00.56 e, depois, volta a ter registo por volta das 01.28”, e que o CTG esteve interrompido “entre as 00.56 e a 01.28».

Parecendo surpreender-se no texto do acórdão sob reexame que considerou essa divergência de tal modo relevante que “desfundou” a prova pericial.  Só pode ter adjetivado e concluído assim por patente erro de apreciação da prova. A divergência temporal apontada – a ter existido nos termos pouco precisos indicados pela testemunha - é tão mínima (relativamente ao período vertido no facto em referência – ponto 16.), que se cifra em 1 (um) minuto no termo inicial e em dois (2) minutos no termo final da interrupção da monitorização pelo aparelho CTG. Do que resulta que em vez de 35 minutos que o feto esteve sem monitorização pelo CTG, terão sido 32 minutos ou melhor dito, em vez dos 41 minutos sem registo cardiotocográfico, esteve 38 minutos. Seguramente que uma divergência desse jaez, num período de tempo daquela ordem de grandeza, não pode ter influído minimamente na valoração efetuada pelo perito médico-legal, validada pelo CML. Não é, seguramente, essa “milimétrica” divergência no inicio e o no termo da ausência de controlo pelo cardiotocógrafo que, – a ter existido realmente (o que a leitura do próprio registo mais validamente poderá ter comprovado) – poderia provocado hipoxia grave no feto (como resulta claramente dos esclarecimentos do perito médico) e, desvirtuar relevantemente o juízo que sobre os factos foi demandado ao científico e, consequentemente, afastar o valor reforçado da prova pericial e a força probatória legalmente conferida ao laudo vertido nas conclusões da perícia médico-legal.

Ainda ao nível dos pressupostos de facto, na motivação do acórdão sob reexame afirma-se que “não existem relatórios fundamentados em elementos directos, não foi efectuada autópsia à criança (pelo menos não há relatório médico-legal) e a atestar estas constatações vemos que existem vários pareceres do CML juntos aos autos, todos com respostas a perguntas formuladas e com o fornecimento de parcos elementos, expressos nas respostas dos respectivos pareceres”.

Com muito respeito, o início do antecedente trecho parece não distinguir com nitidez a avaliação pericial que constitui uma prova, especificamente um meio de prova, e o exame direto de pessoas (mesmo que mortas), objetos ou coisas, que constituem um meio de obtenção de prova, como é o caso da autópsia ao cadáver de pessoas. De qualquer modo não pode passar sem se assinalar – porque consta da decisão da 1ª instância (com especial enfase no voto de vencido ali exarado) que existe nos autos - por certo, terá sido um dos dados facultados ao perito médico -, um relatório de ressonância magnética efetuado ao recém-nascido KK, certamente que em vida. Ressonância magnética que é hodiernamente, (facto de conhecimento geral), um dos mais avançados meios técnicos de diagnóstico e, se cabe dize-lo sem risco de grande heresia cientifica, de valia para detetar lesões internas, designadamente para o mapeamento cerebral (naturalmente em vida), não muito inferior ao do exame direto post-mortem.

Por outro lado, havendo como há exames como o indicado e, seguramente, vários registos clínicos da observação e dos exames clínicos a que o KK foi submetido desde que nasceu até que faleceu – portanto ainda em vida -, não se alcança que melhor resultado poderia obter-se com a realização de autópsia ao respetivo cadáver (até porque se está a apreciar não somente a sua morte, como também e de modo absolutamente relevante, o seu nascimento e a evolução posterior) . A morte ou a sobrevivência projeta-se, sem dúvidas, tão tão-somente no desvalor do resultado da ação, mas já não no desvalor da ilicitude conduta. Dito de outro modo para que possa ser facilmente compreendido pelos destinatários comuns, a ter havido deficiente assistência no parto, causante da hipoxia do feto, ainda que o KK continuasse vivo, não deixaria de haver, a provar-se culpa de alguém, responsabilidade criminal – que em vez da morte seria pelas lesões físicas graves – e também responsabilidade civil aquilina, verificados que fossem (ou sejam) os respetivos pressupostos.

Conclui-se assim que não resultaram afastados os pressupostos de facto em que assentou o juízo da perícia médico legal. Que, repete-se, no caso não teve nem era possível que tivesse outra finalidade que a de apreciar os factos e os elementos de prova indicados pela autoridade judiciária e responder aos quesitos ou perguntas formuladas, concluindo a perícia com a apresentação de conclusões suportadas em relatórios.

Ao invés do que se conclui na motivação do acórdão recorrido, verifica-se – como a decisão recorrida faz notar - que existem nos autos relatórios e conclusões da perícia médico-legal determinada e realizada nos autos. Conteúdo dos relatórios, ou em outro registo, da prova pericial que não é juridicamente degradável nem ao sentido etimológico nem ao conceito normativo de mera “informação”. Valor reforçado da prova pericial que se sobrepõe à livre apreciação do juiz, enquanto não se demonstrar, com juízo de igual valia e reconhecimento, que é cientificamente inverídica. A prova pericial não pode ser afastada ou acabar irrelevante tão-somente pelo simples confronto “com os depoimentos prestados por médicos da especialidade, ouvidos em julgamento” (que, no caso, a final, ademais da arguida, foi apenas uma médica, por sinal, colega de trabalho daquela).

Para que pudesse considerar-se legalmente conforme o afastamento da presunção legal de verdade técnica e cientifica do laudo da perícia médico-legal, exigia que o tribunal tivesse rebatido, tecnicamente e cientificamente, cada uma e todas as conclusões que culminam os relatórios da perícia médico-legal. Relatórios e conclusões que, - resulta da motivação da decisão recorrida -, foram esclarecidas na audiência de julgamento pelo perito médico e terão sido corroboradas pelo depoimento da testemunha da defesa EE, médica obstetra e diretora clínica de uma das maternidades do Hospital .... . Os juízos científicos apenas são rebatíveis por crítica igualmente científica. Por isso que a prova pericial só podia ter sido degrada ao nível da prova comum com fundamentação de equivalente valia técnica e cientifica, necessariamente à luz das regras e dos conhecimentos da mesma ciência médica.

O tribunal não estando dotado de tais conhecimentos especializados, não podia, por tais razões, afastar o valor reforçado da prova pericial. Menos ainda com a objeção de situações mais ou menos hiperbólicas, porque desamparadas de factos que tenha julgado assentes. Ao contrário das conclusões dos relatórios da perícia médico legal, que assentam em factos que o acórdão sob reexame até acaba expressamente reconhecendo, apenas com a divergência “milimétrica” e irrelevante que assinala.

Conclui-se deste modo, que só por patente erro notório na apreciação da prova o Tribunal a quo pode, no acórdão recorrido, ter desvalorizado a prova pericial produzida nos autos e, submetendo-a funcionamento da sua livre apreciação, sobrepor-lhe a superior credibilidade que entendeu conferir às declarações da arguida e ao depoimento de duas testemunhas referidas.

Por outro lado, mais que mera incoerência expositiva, constitui patente contradição que não se vê como possa remediar-se, afirmar, no acórdão recorrido, que foi analisada a prova pericial em conjunto com as demais provas, dizer que (“não existe um relatório no sentido próprio e habitual”), dar fé de constar do processo “relatório pericial, que foi efectuado com base em dados e informações fornecidos pelo Tribunal, que formulou perguntas às quais o CML foi respondendo”, transcrever as conclusões da perícia e concluir que o tribunal do júri “interpretou os pareceres médicos do CML de forma errada e em violação o princípio da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127 do C.P.P.

As conclusões da perícia médico-legal contêm prova “tarifada”, que o acórdão recorrido não rebateu, ponto por ponto, argumento por argumento, especificada e cientificamente, com justificações de equivalente densidade e reconhecimento. Não é minimamente suficiente degradar a relatório pericial em mera informação. Se assim se admitisse – o que não aceitamos -, estava encontrada a via para, por um lado tornar supérflua a realização de perícias e pelo outro, para submeter o laudo pericial à livre apreciação da prova, afastando a sua valia, simplesmente através do mero confronto com quaisquer outros elementos de prova, designadamente as provas pessoais, que são precisamente as mais falíveis de todos os meios de prova.

O Tribunal recorrido deveria ter valorado a prova pericial nos termos firmados pelo legislador. Ao ter convertido a prova pericial em mera informação, submetendo-a à livre apreciação do tribunal, violou o estatuído no art.º 163º do CPP.

Alguma jurisprudência decidiu-se por enquadrar a violação do disposto no art. 163º do CPP no regime das invalidades, maioritariamente entende tratar-se de nulidade. Ressalta do que vem de expor-se que este Supremo Tribunal entende que a violação da norma adjetiva em apreço configura o vício “lógico” do erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410º n.º 2 al.ª c) do CPP. Também no Ac. STJ de 19.07.2006, se sustentou que “o vício do erro notório na apreciação da prova consubstancia-se na incorrecção evidente da valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova (…)”[14].

Para concluir importa dar nota que a perícia médico-legal em apreço, avaliando os factos indicados pela autoridade judiciária e pelo tribunal, extraiu as seguintes “conclusões:

a) podem atribuir-se a encefalopatia neonatal e as lesões neurológicas do recém nascido/criança a um episódio de hipoxia intra-parto”.

b) O registo cardiotocográfico não contém nenhuma anomalia até às 00h 53;

c) a vigilância fetal a partir desse momento é inexistente até às O1h 30 e inadequada daí em diante, o que constitui uma violação das leges artis;

d) se o episódio hipóxico não ocorreu antes das 00h 53, só pode ter sido depois”.

Conclusões que, na facticidade provada, com a redação dado nos pontos 16, 18, 19 e 35 -, podem revelar-se de capital importância para a revogação, manutenção ou correção da condenação dos demandados no pedido de indemnização civil apresentado pela demandante, ora recorrente.

Como é jurisprudência deste Tribunal (e secção) ao Supremo é possível conhecer, mas não é possível suprir os vícios lógicos da decisão quando contendam com a determinação da matéria de facto, que é da exclusiva competência das instâncias.

Detetado o apontado vício de erro notório na apreciação da prova e, consagrado no art.º 410 n.º 2 al.ª c) do CPP e não podendo este Supremo Tribunal de Justiça entrar na alteração da decisão em matéria de facto, resta determinar a anulação do douto acórdão recorrido com a devolução dos autos ao Tribunal da Relação para, em novo acórdão, observar, integralmente, o estatuído no art. 163º do CPP.

Sem suprimento de tal vício não é possível decidir a causa na parte recorrida, obrigando, por isso, ao reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo, o que se determina nos termos dos arts. 426º e 426º-A do CPP.

D -   DECISÃO:

Assim e de conformidade com o exposto o Supremo Tribunal de Justiça – 3ª secção – decide:

a) decretar o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do objeto do processo, nos termos dos artºs 426º, nºs 1 e 2, e sem prejuízo do disposto no art. 426º-A, ambos do CPP;

b) fica, por isso, prejudicado o conhecimento do mérito da pretensão vertida no recurso.


*


Sem custas (artigo 523.º, n.º 1, do CPP).

*


Lisboa 24 de fevereiro de 2021


Nuno Gonçalves (relator)

(Atesto o voto de conformidade do Ex.mº Sr. Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[15] .

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)  

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[1] Proc. 1551/19.9T9PRT.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[2] Ac. STJ de 13/12/2018, proc. 293/17.4JACBR.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[3] Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, p. 1273
[4] Saliente-se que são pelo menos 4 os pareceres solicitados ao CML.
[5] Estudo publicado, proveniente de especialistas da Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais Hospital de Dona Estefânia, CHLC EPE
[6]   Por hipótese configurando uma situação de wrongful life (vida indevida) ou wrongful birth (nascimento indevido); situações em que se verificam erros de diagnóstico pré-natal, cuja consequência mais frequente é a de a criança nascer com malformações.
[7] Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, pág. 161
[8] Curso de processo penal II, Reimpressão, pag. 345.
[9] Proc. 36/11.6PJOER.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[10] Proc. 549/08.7PVLSB.S1, in www.dgsi.pt.
[11] Proc. 1008/08.3GCSTS.P1 . S1, in www.dgsi.pt.
[12] Direito Processual Penal 1ª vol, Coimbra Editora, 1974 pag. 209/2010
[13] Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 1999, vol. II, pág. 178
[14] Proc. 06P1932 in www.dgsi.pt.
[15]   Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.