DIVÓRCIO LITIGIOSO
FUNDAMENTOS
ÓNUS DA PROVA
CLÁUSULA GERAL
INTERPRETAÇÃO DA LEI
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
Sumário


I. O fundamento do divórcio litigioso previsto na alínea d) do artigo 1781.º do CC traduz-se num tipo de cláusula geral, em torno do conceito indeterminado de “rutura definitiva do casamento”, o qual poderá ser preenchido por “quaisquer factos” reveladores dessa rutura.
II. A rutura definitiva do vínculo matrimonial deve ser consubstanciada em factos objetivos que, pela sua gravidade ou reiteração, impliquem, em conformidade com as regras da experiência comum, uma situação consolidada de rompimento da vida conjugal, sem qualquer propósito de restabelecimento por parte dos cônjuges, independentemente das respetivas culpas, não se bastando com factos banais ou esporádicos nem tão pouco com razões ou sentimentos de índole meramente subjetiva de qualquer dos consortes.
III. Enquanto que a demonstração dos casos típicos previstos nas alíneas a), b) e c) do artigo 1781.º do CC faz presumir, iuris et de iure, a rutura definitiva do casamento, já o fundamento configurado na respetiva alínea d), sob a fórmula de uma cláusula geral objetiva, implica a prova efetiva dessa rutura, independentemente das circunstâncias específicas exigidas naquelas primeiras alíneas, nomeadamente o vetor de duração temporal mínima.
IV. Nessa medida, poderá, a demonstração da rutura definitiva do casamento resultar de um núcleo fáctico único ou mais singular, desde que dotado de intensidade suficientemente reveladora de uma situação e intencionalidade que, à luz do consenso social, se mostrem inequívocas no sentido da emergência dessa rutura definitiva.

Texto Integral


Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. CC (A.) intentou, em 06/09/2016, contra DD (R.), ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, alegando, no essencial, que: 

. Nos 20 anos anteriores à propositura da ação, A. e R., apesar de viverem na mesma casa, passaram a fazer vidas totalmente independentes como se não fossem marido e mulher, não partilhando o mesmo leito, não convivendo um com ou outro nem tomando refeições juntos;

. Além disso, ocorreram violações do dever de respeito, de coabitação e de assistência, por parte do R., que implicam rutura definitiva do casamento.

2. O R. contestou, impugnando, de forma motivada, os factos alegados pela A. e dizendo que requereu a interdição desta por se mostrar incapaz para reger a sua pessoa e bens.

3. Tendo, entretanto, a A. falecido em 02/12/2016, foram habilitados AA e BB para, em representação daquela, prosseguiram com a presente ação para efeitos patrimoniais.

4. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 339-355, de 19/06/ 2019, a julgar a ação improcedente, por não provada, com a consequente absolvição do R. do pedido.

5. Inconformados, os habilitados recorreram para o Tribunal da Relação …, em sede de impugnação de facto e de direito, tendo sido proferido o acórdão de fls. 412-435, de 05/12/2019, aprovado por unanimidade, em que, não obstante a alteração parcial da decisão de facto, se julgou a apelação improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

6. Desta feita, vêm os mesmos habilitados pedir revista, em primeira linha, em termos de revista normal por entenderem que o acórdão recorrido assentou em fundamentação essencialmente diferente da sentença da 1.ª instância e, subsidiariamente, em sede de revista excecional ao abrigo das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - O presente recurso de revista é admissível, nos termos do artigo 671º, n.º 1, do CPC, não tendo aplicação ao caso o disposto no respetivo n.º 3, porquanto a procedência parcial da impugnação da matéria de facto, com a alteração do facto 8.º da matéria provada e a consequente eliminação do facto i) do rol dos factos não provados, impôs ao tribunal recorrido que avançasse com uma nova fundamentação, essencialmente diferente da constante da sentença da 1.ª instância, designadamente apreciando a aplicabilidade cláusula geral prevista na alínea d) do artigo 1781.º do CC – rutura definitiva do casamento – à luz dos novos factos provados: a separação de facto desde 13/08/2016 e o firme propósito da A. de não restabelecimento da vida em comum com o R., conjugados com os demais factos provados.

2.ª – Com efeito, no acórdão recorrido, considerou-se, ao contrário da sentença de 1.ª instância, que a situação dos autos tinha enquadramento no conceito de separação de facto constante da alínea a) do artigo 1781.º do CC, embora se concluísse que, à data da entrada da ação e do falecimento da A., não estava decorrido o prazo de um ano aí previsto.

3.ª - Considerou-se, ainda, que a situação não tinha enquadramento na alínea d) do citado art.º 1781.º,  mas por razões essencialmente divergentes das avançadas pelo tribunal de 1.ª instância, ou seja, por se ter entendido que, nesta norma, se contemplam «necessariamente situações distintas da mera separação de facto, sob pena de inutilidade da previsão desse fundamento na alínea a) e da subversão do prazo nela fixado que é o período de tempo que o legislador reputou como necessário ao amadurecimento e consolidação da situação que, depois, permite presumir acerca da irreversibilidade do rompimento da comunhão conjugal.»

4.ª - Ou seja, o acórdão recorrido, embora mantendo a sentença de 1.ª instância, fê-lo com uma fundamentação essencialmente diferente da constante daquela, o que obsta à verificação da dupla conforme, nos termos do artigo 671.º, n.º 3 do CPC.

5.ª – Ainda assim, a revista é admissível a título excecional ao abrigo das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art.º 672.º do CPC, uma vez que a questão em apreço, no respeitante à rutura definitiva do casamento a que alude a alínea d) do art.º 1781.º do CC, pode ser demonstrada através da prova de quaisquer factos, incluindo os passíveis de preencher as previsões das alíneas a) a c) do mesmo preceito, sem que esteja decorrido o período temporal neles previsto, desde que se demonstre, atentas as circunstâncias do caso, que cessou de forma irreversível a comunhão conjugal, o que se traduz em questão jurídica e socialmente relevante, nos termos e para os efeitos de revista excecional, estando ainda a decisão em oposição com o acórdão convocado como acórdão fundamento; 

6.ª - Com efeito, no acórdão recorrido entendeu-se que a alínea d) do referido artigo 1781.º do CC contempla «necessariamente situações distintas da mera separação de facto, sob pena de inutilidade da previsão desse fundamento na alínea a) e da subversão do prazo nela fixado que é o período de tempo que o legislador reputou como necessário ao amadurecimento e consolidação da situação que, depois, permite presumir acerca da irreversibilidade do rompimento da comunhão conjugal”, ao passo que, no acórdão fundamento, se entendeu que «funcionando sendo a al. d) como uma “cláusula geral”;

7.ª – Porém, não se justifica uma interpretação que comporte essa exclusão, já que “não há fundamento legal que impeça que uma situação de separação de facto por período não apurado possa ser valorada, para se aferir se existe ou não uma rutura do casamento, o que é relevante é que os factos provados sejam graves e reiterados e demonstrativos que objetivamente e com carácter definitivo deixou de haver comunhão de vida entre os cônjuges.

8.ª – Quando essa separação tem a duração de 1 ano consecutivo, o legislador presume “iuris et de iure” que a rutura definitiva do casamento se consumou, não sendo necessário provar outros factos, mas da não prova do decurso desse prazo não se pode tirar a ilação oposta, ou seja, que não há rutura definitiva»;

9.ª – Ao contrário do entendimento do acórdão recorrido e como é hoje jurisprudência maioritária, a rutura definitiva do casamento a que alude a alínea d) do artigo 1781.º do CC pode ser demonstrada através da prova de quaisquer factos, incluindo os passíveis de preencher as previsões das alíneas a) a c) do mesmo preceito sem que esteja decorrido o período temporal neles previsto, desde que sejam graves, reiterados e demonstrativos de que, objetiva e definitivamente, deixou de haver comunhão de vida entre os cônjuges”;

10.ª - O preenchimento do conceito indeterminado previsto na alínea d) do artigo 1781.ºdo CC, de “ruptura definitiva do casamento” apenas exige que não estejamos perante factos banais e esporádicos, que estejamos perante situação reveladora do comprometimento definitivo da vida em comum»

11.ª - Como bem se refere no acórdão do TRL de 07/02/2019, com a alteração introduzida pela Lei n.º 61/2018, de 31/10, «mormente no que se reporta aos requisitos do divórcio, o legislador assumiu como princípio o de que ninguém deveria permanecer casado contra a sua vontade se considerar que houve quebra do laço afetivo, independentemente do requisito da culpa (violação culposa dos deveres conjugais cfr. se  previa na anterior redação do art.º 1779.º do CC), ou seja, para que o divórcio seja decretado com base na alínea d) do citado artigo 1781.º, necessário se torna apenas demonstrar que cessou de forma irreversível a comunhão conjugal».

12.ª- O próprio tribunal recorrido, quando aprecia a alteração da matéria provada, nomeadamente o propósito de a A. pretender romper com a relação conjugal, faz uma afirmação que, no caso em apreço, nos parece bastante relevante: «não é inusitado que perante a iminência da morte, a falecida autora tenha tido a “coragem” de se divorciar, coragem essa que, segundo a irmã EE, lhe faltou antes por “vergonha”. É que a perspetiva do decesso altera o foco das prioridades”»

13.ª - A A. sabe que vai morrer e não quer estar casada com o R. e essa vontade de romper com a relação conjugal, de cessar o vínculo com o R. de forma definitiva, não pode deixar de considerar-se irreversível atenta a matéria provada e as circunstâncias do caso em apreço.

14.ª – Com efeito, num prazo de um mês, sabendo que a morte se aproxima, a A., de avançada idade, que não tem filhos, desencadeia todos os mecanismos ao seu dispor para afastar o R. da sua vida afetiva e até patrimonial.

15.ª - É certo que, à data da morte, a separação do R. ocorria há apenas três meses e meio, mas a verdade é que, estando perante um casamento celebrado há mais de 55 anos, sem filhos à data da separação de facto, na idade avançada da A. e na iminência da morte, é legitimo concluir que, à data da entrada da ação de divórcio e da morte da A., se encontrava definitivamente comprometida e sem esperança de retorno a possibilidade de vida em comum entre a A. e o R..

16.ª - Atentos os factos provados, é legítimo concluir que, se a A. não tivesse falecido, continuaria separada do R.

17.ª - A vontade irreversível da A. de se divorciar não pode ser obstada pelo facto de ter ocorrido o seu decesso apenas três meses e meio da ocorrência da separação de facto, sob pena de se ver violado o seu direito ao divórcio.

18.ª - Sendo certo que, no período que mediou entre o abandono da casa de morada de família e o falecimento da A., foram violados os deveres de coabitação, cooperação e, até, o dever de respeito.

19.ª – É seguro concluir que o casamento deixou de “constituir o centro de realização pessoal da autora”, “deixou de haver afeto entre os cônjuges, que têm de ser recíprocos. Assim, apesar de a A. não ter logrado provar que a causa remota da falência do casamento tenha sido o comportamento do R, certo é que, como se viu, o legislador deixou de preservar o casamento enquanto instituição, dando prevalência à liberdade dos cônjuges e quando se constate uma situação objetiva e socialmente aceite como de rutura do casamento, independentemente das causas, o tribunal deve decretar o divórcio.»

20.ª - Decidindo, como decidiu, o acórdão recorrido violou, designadamente, o disposto na alínea d) do artigo 1781.º do CC.

Pedem os Recorrentes que se revogue o acórdão recorrido e se substitua por decisão que decrete o divórcio entre a A. e o R. com efeitos retroativos à data da cessão da coabitação em 13/08/2016.

7. O Recorrido apresentou contra-alegações a sustentar a inadmissibilidade da revista, seja em termos normais seja a título excecional, pugnando, no mais, pela confirmação do julgado.


II – Da questão prévia sobre a admissibilidade da revista

Em primeira linha, a questão que neste capítulo se coloca consiste em saber se, tendo o acórdão recorrido convergido com a sentença da 1.ª instância no sentido de julgar a ação improcedente, o fez estribado em fundamentação essencialmente diferente de modo a descaracterizar a dupla conformidade decisória nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do CPC.

O indicado normativo preceitua que:

Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

Sobre o alcance da locução fundamentação essencialmente diferente tem vindo a ser entendimento constante do STJ não bastar que a decisão da 1.ª instância e o acórdão da Relação confirmativo daquela, sem vencimento, apresentem fundamentação diferente, exigindo-se que tal diferença se mostre essencial.

Segundo, entre outros, o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 28/05/2015, proferido no processo n.º 1340/08.6TBFIG.C1.S1[1]:

«Só pode considerar-se existente – no âmbito da apreciação da figura da dupla conforme no NCPC (2013 – uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância.»

No caso dos autos, a 1.ª instância julgou a ação totalmente improcedente por considerar, em face da factualidade provada e não provada, não verificada a separação de facto a que se refere a alínea a) do 1781.º do CC nem, bem assim, qualquer outro dos fundamentos do divórcio previstos na alínea d) do mesmo normativo.

Sucede que a Relação, em sede de apreciação da impugnação da decisão de facto, alterou o teor do facto dado como provado em 8 e eliminou a alínea i) dos factos dados como não provados, donde constava, respetivamente, o seguinte:

Ponto 8 (provado)Em data não concretamente apurada, mas posterior ao seu internamento e alta supra, a A. passou a viver em casa da sua sobrinha AA.

Alínea i (facto não provado) Que face a tal a A. tenha passado a viver em casa da sobrinha com o firme propósito de não restabelecer vida em comum como o réu.  

Assim, do ponto 8 passou a constar como provado que:

No dia 13 de agosto de 2016, a A. passou a viver em casa da sua sobrinha AA com o firme propósito de não restabelecer vida em comum com o réu.

Apesar desta alteração, o Tribunal da Relação, em sede de análise jurídica, considerou o seguinte:

«Como vimos, nesta acção, proposta em 6 de Setembro de 2016, pelo cônjuge mulher, que entretanto faleceu, contra o cônjuge marido, os fundamentos invocados conexionavam-se com as situações previstas nas alíneas a) e d) do n° l do art.° 1781.º, ou seja, “a separação de facto por um ano consecutivo” e “quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento”.

Dos alegados, provou-se apenas, com relevância, que: “No dia 13 de Agosto de 2016, a Autora passou a viver em casa da sua sobrinha AA com o firme propósito de não restabelecer vida em comum com o réu.”

Evidencia-se, assim, a inexistência da comunhão de vida conjugal desde essa data e propósito sério por parte da falecida autora de não a retomar ou restabelecer, ou seja, uma separação de facto (art.° 1782°, n.º l).

Porém, como vimos, o nascimento deste concreto direito potestativo extintivo na esfera jurídica dos cônjuges pressupõe que a separação de facto decorra, pelo menos, por um período de um ano.

A questão que por vezes se coloca é se tal prazo pode não estar completado aquando da propositura da acção podendo vir a sê-lo na pendência da mesma.

No caso, tal discussão é inútil pois a Autora faleceu volvidos escassos três meses sobre a data da separação de facto.

Ora, uma vez que a falecida autora e o Réu não chegaram a completar sequer um ano de separação de facto, o juízo de improcedência da sentença, por não verificação do disposto na alínea a) do n.º l do art.° 1781.º do Cód. Civil, não pode deixar de se manter.

Não se provaram outros fundamentos desencadeantes do direito ao divórcio por parte da Autora, mais concretamente outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento (alínea d) do n.º l do art.º 1781.º do Cód. Civil).

Afigura-se-nos que nessa norma se contemplam necessariamente situações distintas da mera separação de facto, sob pena da inutilidade da previsão desse fundamento na alínea a) e da subversão do prazo nela fixado que é o período de tempo que o legislador reputou como necessário ao amadurecimento e consolidação da situação que, depois, permite presumir acerca da irreversibilidade do rompimento da comunhão conjugal.

E, também por esta razão, a pretensão de decretação do divórcio não pode proceder.»

Perante isto, afigura-se inquestionável que o fundamento assim adotado pela Relação quanto à não verificação da rutura definitiva do casamento assume agora um novo alcance, qualitativamente distinto ou diferenciado do que, nessa vertente, foi entendido pela 1.ª instância em virtude do que então ali fora dado como não provado.

É quanto basta para se concluir que o acórdão recorrido, muito embora confirmando a improcedência da ação de divórcio, se estriba para tal, na vertente decisiva aqui em causa, respeitante ao preenchimento da alínea d) do art.º 1781.º do CC, em fundamentação essencialmente diferente da adotada na sentença da 1.ª instância, o que torna a revista admissível em termos normais.


III – Fundamentação   

1. Factualidade dada como provada

Vêm dados como provados pelas instâncias os seguintes factos:

1.1. A A e R. casaram em … de janeiro de 1961, sem convenção antenupcial, tendo tal dado origem ao assento de casamento n.º “… do ano de 2013”.

1.2. Na pendência desse casamento nasceu FF, que veio a falecer em …. de 1994, com 29 anos de idade e no estado do solteiro.

1.3. A A. ficou muito abalada com a morte do filho.

1.4. AA é filha de GG e EE, sendo a segunda irmã da A., por ser filha de HH e II.

1.5. AA casou catolicamente com BB, tendo o mesmo casamento sido dissolvido por divórcio em 1 de março de 1996.

1.6. No dia … de agosto de 1998, a A. e réu outorgaram testamento onde instituíram-se, mutuamente, herdeiros da quota disponível resultante do decesso de cada um.

1.7. Durante o verão de 2016, a A., esteve internada em Pneumologia no Hospital de ..., em virtude de lhe ter sido diagnosticado um tumor na pleura, tendo tido alta em junho de 2016.

1.8. No dia … de agosto de 2016, a A. passou a viver em casa da sua sobrinha AA com o firme propósito de não restabelecer vida em comum com o réu – conforme alteração introduzida pela Relação.

1.9. Em data não concretamente apurada, mas posterior ao seu internamento e alta supra, a A. passou a viver em casa da sua sobrinha AA.

1.10. Naquele mesmo período AA vivia em união de facto com BB.

1.11. Por requerimento que deu entrada em juízo de … de setembro de 2016 a A. instaurou a presente ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge contra o réu.

1.12. No dia … de setembro de 2016 a A. outorgou novo testamento, tendo agora instituído herdeiros da sua quota disponível, AA e BB, sendo os mesmos em partes iguais.

1.13. A A. faleceu no dia … de dezembro de 2016, sem ascendentes ou descendentes vivos.

1.14. Por despacho prolatado em 20/03/2017, no processo de natureza criminal que pendia sob o n.° …— D1AP de ..., foi arquivada a denúncia efetuada pelo aqui habilitado BB, contra o réu, sendo a mesma pelos factos constantes nos pontos d) a g) da matéria de facto não provada nestes autos.


2. Factos dados como não provados

Vem dado como não provado que:

a) - Fruto da morte do filho, a A. tenha deixado de trabalhar e ter necessidade de ser acompanhada medicamente.

b) - Durante os dois anos que se seguiram à morte do filho, a vida sexual da A., com o R. transformou-se num verdadeiro calvário, porque o R., após o ato sexual, começava a ofender a A., dizendo-lhe ou que "as outras mulheres com quem ele tinha relações eram muito melhores do que a A." ou apelidando-a de "puta" e "acusando-a de ter amantes".

c) - Não suportando mais as humilhações a que o R. a sujeitava sempre que tinham relações sexuais, a A, em 1996, decidiu pôr termo à relação com o R., passando este a dormir na sala e, mais tarde, no sótão e passando a A a usar o quarto de casal em exclusividade.

d) - No dia … de junho, o R., num ataque de fúria, de empurrou a A., fazendo-a estatelar-se no chão o que lhe causou muitas dores.

e) - No dia … ou … de junho de 2016, a A., tendo consciência do seu estado de saúde, disse ao R, que estava na altura de efetuarem as partilhas porque queria deixar a sua meação à sua família.

f) - O R. perdeu, então, a cabeça e agrediu a A. com dois murros na cabeça: o primeiro na rua e o segundo já dentro de casa onde a A. se procurou refugiar.

g) - No dia … de agosto de 2016, após o R, se passear diante da janela da A. com uma caçadeira, esta, receosa, ligou ao sobrinho BB e foi precisamente, quando se encontrava ao telefone com este, que o R. se aproximou do local onde se encontrava a A. e lhe disse que ia matar e que se suicidava em seguida.

h) – Os factos acima descritos muito humilharam a A, comprometendo irremedia-velmente a possibilidade da vida em comum.

i) – Face a tal a autora tenha passado a viver em casa da sobrinha com o firme propósito de não restabelecer vida em comum com o autor – eliminado pela Relação.

j) - Nos 20 anos anteriores a interposição em juízo da presente ação A. e K, apesar de viverem na mesma casa, passaram a fazer vidas totalmente independentes como se marido e mulher não fossem, não partilhando a mesma cama, não convivendo um com o outro, nem tomando juntos as refeições.


3. Do mérito do recurso

A única questão aqui em apreço consiste em saber se o facto dado como provado pela Relação e constante do ponto 1.8 é suficiente com o demais contexto da presente ação para se ter por verificada uma situação de rutura definitiva do casamento celebrado entre a A. e o R.. em …/01/1961.

No caso vertente, estamos perante a facti species configurada, como fundamento de divórcio litigioso, na alínea d) do artigo 1781.º do CC, na redação dada pela Lei n.º 61/ 2008, de 31-10, em vigor desde 30/11/2008 e aplicável aos processos instaurados desde esta data (artigo 9.º, a contrario sensu, da citada Lei).

Segundo aquele normativo, sob a epígrafe rutura do casamento:

  São fundamentos do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges: 

  d) – Quaisquer outros factos [além dos previstos nas alíneas a) a c)] que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casa-mento.

Por via desta disposição introduziu-se, na nossa ordem jurídica, o designado modelo de “divórcio-constatação da rutura conjugal”, inspirado na “conceção do divórcio unilateral e potestativo, em que qualquer um dos cônjuges pode pôr termo ao casamento, com fundamento mínimo na existência de factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do matrimónio”[2].

Tal previsão normativa configura uma facti species modelada sob o tipo de cláu-sula geral em torno do conceito indeterminado de “rutura definitiva do casamento”, o qual poderá ser preenchido por “quaisquer factos” reveladores dessa rutura.

Assim, a aferição do factualismo relevante requer a determinação do alcance do sobredito conceito indeterminado, de modo a delinear, ainda que por contornos flexíveis, os seus parâmetros, à luz da ratio legis que lhe está subjacente.

Nesta linha, tem vindo a ser entendido que a rutura definitiva do vínculo matri-monial deve ser consubstanciada em factos objetivos que, pela sua gravidade ou reiteração, impliquem, em conformidade com as regras da experiência comum, uma situação consolidada de rompimento da vida conjugal, sem qualquer propósito de restabelecimento por parte dos cônjuges, independentemente das respetivas culpas, não se bastando com factos banais ou esporádicos nem tão pouco com razões ou sentimentos de índole meramente subjetiva de qualquer dos consortes[3]. Tem-se mesmo acentuado a necessidade de um padrão de exigência nivelado, em termos de sistemática hermenêutica, com as situações previstas nas alíneas a) a c) do citado artigo 1781.º, afora as suas especificidades, de forma a prevenir os riscos de algum voluntarismo[4].

Com efeito, na larga maioria dos casos, a situação de rutura do casamento mani-festa-se através de práticas reiteradas que se prolongam no tempo, indiciadoras do rompi-mento da sociedade conjugal sem qualquer propósito de a restabelecer, importando assim que se demonstrem os traços fundamentais dessa reiteração, diferentemente do que dantes se exigia no modelo de divórcio-sanção baseado em violação culposa dos deveres conjugais.

Todavia, como muito bem se explicita no acórdão do STJ, de 03/10/2013, proferi-do no processo n.º 2610/10.9TMPRT.P1.S1[5], citada pelos Recorrentes, enquanto que a demonstração dos casos típicos previstos nas alíneas a), b) e c) do artigo 1781.º do CC faz presumir, iuris et de iure, a rutura definitiva do casamento, já o fundamento configurado na respetiva alínea d), sob a fórmula de cláusula geral objetiva, implica a prova efetiva dessa rutura, independentemente das circunstâncias específicas exigidas naquelas primeiras alíneas, nomeadamente o vetor de duração temporal mínima.

Nessa medida, poderá, a demonstração da rutura definitiva do casamento resultar de um núcleo fáctico único ou mais singular, desde que dotado de intensidade suficientemente reveladora de uma situação e intencionalidade que, à luz do consenso social, se mostrem inequívocas no sentido da emergência dessa rutura definitiva.

É certo que, no caso dos autos, não se provaram os factos alegados pela A. e imputados ao R. que estariam da génese da invocada impossibilidade da vida conjugal.

No entanto, provou-se que, durante o verão de 2016, a A. esteve internada em Pneumologia no Hospital ….., em virtude de lhe ter sido diagnosticado um tumor na pleura, tendo tido alta em junho de 2016 (ponto 1.7) e que, no dia … de agosto de 2016, passou a viver em casa da sua sobrinha AA com o firme propósito de não restabelecer vida em comum com o réu (ponto 1.8). Seguidamente, em …/09/2016, a A. instaurou a presente ação de divórcio, acabando por falecer em …/12/2016, na pendência desta ação.

Acresce que, tendo a A. outorgado com o R., em …/08/1998, testamento onde se instituíram, mutuamente, herdeiros da quota disponível resultante do decesso de cada um, aquela A., no dia …/09/2016, outorgou novo testamento, instituindo agora como herdeiros da sua quota disponível, AA e BB.

Neste quadro, como bem se refere no acórdão recorrido, o facto constante do ponto 1.8, na redação introduzida pela Relação, evidencia que, desde … de agosto de 2016, deixou de existir comunhão de vida conjugal entre a A. e o R., bem como o propósito sério daquela de não reatar ou restabelecer tal comunhão de vida.

E, nesse sentido, afigura-se significativo que a A., numa situação fragilizada de doença, não só tenha optado, de forma tão perentória, por não regressar à casa de morada de família, como ainda tenha tomado, subsequente e complementarmente, a iniciativa de instau-rar a presente ação de divórcio contra o seu marido e até de “desfazer” o anterior testamento com ele outorgado em 1998.

Todo este contexto milita como reforço do provado propósito de não restabelecimento da vida conjugal, por parte da A., traduzindo, em tais circunstâncias, uma situação, a um tempo, objetiva e intencional que não pode ser considerada como manifestação banal ou esporádica de um sentimento meramente ocasional ou fortuito, mas sim como ocorrência da rutura da vida conjugal até então existente com sustentação em firme propósito de definitividade.

Neste conspecto, impõe-se concluir que os factos assim provados se mostram, por si só, suficientes para preencher o fundamento de divórcio por rutura definitiva do casamento nos termos previstos na alínea d) do artigo 1781.º do CC, de molde a determinar a procedência da ação para os efeitos meramente patrimoniais pretendidos pelos Recorrentes, seguramente a partir da data da respetiva propositura, em 06/09/2016.


IV - Decisão


Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e, em sua substituição, julga-se procedente a ação e decreta-se o divórcio, para efeitos meramente patrimoniais, do casamento celebrado em … de janeiro de 1961 entre a falecida A. CC e o R. DD, a partir da data da proposição da ação, em 06/09/2016.

As custas da ação e dos recursos são da responsabilidade do R., sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Comunique-se, oportunamente, a presente decisão nos termos e para os efeitos do artigo 78.º, n.º 1 e 2, do Código do Registo Civil.


Lisboa, 25 de fevereiro de 2021

Manuel Tomé Soares Gomes

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

 

Nos termos do artigo 15.º-A do Dec.-Lei n.º 10-A/2020, de 13-03, aditado pelo Dec.-Lei n.º 20/20, de 01-05, para os efeitos do disposto no artigo 153.º, n.º 1, do CPC, atesto que o presente acórdão foi aprovado com o voto de conformidade das Exm.ªs Juízas-Adjuntas Maria da Graça Trigo e Maria Rosa Tching, que não assinam pelo facto de a sessão de julgamento (virtual) ter decorrido mediante teleconferência. 

                                              

Lisboa, 25 de fevereiro de 2021


O Juiz Relator

Manuel Tomé Soares Gomes                                   

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[1] Relatado por Lopes do Rego, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj
[2] A este propósito, veja.se, entre outros, o acórdão do STJ de 09-02-2012, relatado pelo Juiz Cons. Hélder Roque, no processo 819/09.7TMPRT.P1.S1, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[3] A este propósito, vide o acórdão da Relação de Lisboa, de 23-11-2011, relatado pela Juíza Desembargadora Maria José Mouro, no âmbito do processo n.º 88/10.6TMFUN.L1-2, com as abundantes citações doutrinárias aí citadas, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jjtrl.
[4] Vide as considerações feitas a este propósito no acórdão indicado na nota precedente.
[5] Relatado pela Juíza Cons. Maria dos Prazeres Beleza, acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.