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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
NAMORO
INIMPUTABILIDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL CONEXA COM A CRIMINAL
Sumário
- As relações de namoro, tal como moderna e socialmente se mostram desenvolvidas, abrangem uma multiplicidade de comportamentos e graus de interacção entre os namorados que fogem dos cânones a que estamos habituados a presenciar, não sendo hoje de exigir para qualificar esse tipo de relacionamento a existência de elementos como notoriedade, exclusividade, partilha de cama mesa e habitação e projecto de vida futura em comum. - A situação do arguido, padecendo de anomalia psíquica que não controla, e a sucessão dos factos, revelam que a suspensão da execução do internamento não será suficiente para realizar as aludidas finalidades (preventivas) da medida de segurança imposta. - O inimputável pode ser responsabilizado pelos danos que causar, quando os factos objectivos sejam integradores de um tipo de ilícito, justificando a sua responsabilidade como medida de protecção do lesado e não na culpa do agente - Há que ponderar razões de protecção da vítima pela gravidade dos factos cometidos e pelas consequências danosas que provocaram na mesma, sem que seja afectada a subsistência do inimputável para o que releva a situação económica do recorrente, enquanto responsabilizado pelos danos não patrimoniais que estão subjacentes á indemnização fixada. - O facto de não possuir bens ou rendimentos não é obstáculo á fixação de indemnização, quando muito constituirá obstáculo à execução da quantia indemnizatória, já que isso não significa que o arguido não venha a obter bens ou rendimentos que permitam satisfazer o pagamento da indemnização fixada a favor da assistente.
Texto Parcial
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I.
No processo comum n.º 670/19.6SFLSB do Juízo Local Criminal de Lisboa, Comarca de Lisboa, foi submetido a julgamento o arguido P. depois de ser pronunciado, como inimputável, pela prática de factos que integram a tipicidade objectiva de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152°, n.º l, al. b), n.º 2 e n.°3, al. a) do Código Penal em articulação com o disposto nos n.ºs 4 a 6.
O Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, E.P.E. (CHLO) deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando a condenação do arguido/demandado no pagamento da quantia de €1.809,95 (mil oitocentos e nove euros e noventa e cinco cêntimos) acrescida de juros vencidos e vincendos até integral pagamento a título de danos patrimoniais com tratamentos hospitalares prestados a SS .
A assistente SS veio requerer que lhe fosse arbitrada indemnização nos termos dos artigos 82°-A, n.º l do Código de Processo Penal e 21°, n.º l e n.º 2 da Lei n.º l 12/2009, de 16.09 - fls. 672.
Realizada a audiência, com documentação da prova produzida, foi decidido, na parte agora relevante:
“a) Declarar o arguido P. autor de factos ilícitos e típicos p. e p. pelo artigo 152°, n°l, al. b), n°2 e n°3, al. a) do Código Penal; b) Declarar o arguido P. inimputável nos termos do artigo 20°, n°l do Código Penal; c) Aplicar ao arguido P. a medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento/segurança por um período máximo de 5 (cinco) anos e até cessar o estado de perigosidade criminal, artigos 91°, n.º l e 92°, ambos do Código Penal; … e) Julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente SS e, consequentemente, condenar o arguido/demandado no pagamento de uma indemnização no valor de €3.000 (três mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros desde a presente data até integral pagamento à taxa de 4% dos juros civis; … g) Julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante CHLO - Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, E.P.E. e, consequentemente, absolver arguido/demandado do pagamento de uma indemnização no valor de €1.809,95 (mil, oitocentos e nove euros e noventa e cinco cêntimos) acrescida de juros vencidos e vincendos até integral pagamento título de danos patrimoniais …”.
Desta decisão condenatória veio recorrer o arguido, com os fundamentos constantes da respectiva motivação que aqui se dá por reproduzida e as seguintes conclusões:
“I - Vem o Arguido P. interpor recurso da Sentença, quer quanto à matéria de facto, quer quanto a matéria de direito.
Matéria de facto
- § Impugnação a decisão proferida sobre matéria de facto dada como provada nos Arts. 1. 11.12 e 14.
II - A expressão "relação e relação amorosa" constantes dos Arts l. ll, 12 e 14 da matéria de facto dada como provada deverá ser dada como não provada.
III - O Arguido e a Assistente têm versões contraditórias entre si.
IV - O Arguido nega a existência de uma relação amorosa com a Assistente e afirma a existência de uma relação exclusiva com a Assistente baseada, apenas e tão só, para consumir de produtos estupefacientes e de álcool.
V - A Assistente afirma a existência de uma relação amorosa entre ela e o Arguido.
VI - O Tribunal a quo deu como provado a existência de uma relação amorosa atentos os depoimentos da Assistente e das testemunhas MS , EO e RL .
VII- A Assistente confirma que nunca partilharam casa, nem despesas, não partilhavam passeios e que era usual os seus encontros para consumos, conforme consta das declarações na sessão de audiência de julgamento de 08-09-2020, entre as 15.59h e as 16.45h, aos minutos 6m.35s, 42m.22s, e 40m.17s.
VIII - A testemunha MS desconhecia a vida sentimental e amorosa da filha, ora Assistente, conforme consta das declarações na sessão de audiência de julgamento de 08-092020, entre as 17.10h e as 17.31h, aos minutos 2m.35s, 6m.50s e 20m.07s.
IX - A testemunha EO confirmou que só ouvia da boca do Arguido e da Assistente que eram namorados quando os mesmos estavam alcoolizados, conforme consta das declarações na sessão de audiência de julgamento de 08-09-2020, entre as 17.33h e as 17.49h, aos minutos 1m.10s, 1.47s e 2m.07s.
X - A testemunha RL confirmou que catalogou os presentes autos como violência doméstica depois da Mãe da Ofendida ter dito que o Arguido e a Ofendida eram namorados (fls. 19 da sentença).
XI - Face à incoerência da prova testemunhal carreada a expressão "relação e relação amorosa" constantes dos Arts 1. 11, 12 e 14 da matéria de facto dada como provada deverá ser dada como não provada.
XII - Por conseguinte, não estará preenchido o tipo de crime de violência doméstica, mas sim o crime de ofensa à integridade física simples, o que se requer.
§ Matéria de direito - A não aplicação da suspensão da execução da medida de segurança
XIII - Ao contrário do que consta na Douta Sentença (fls. 29 e 30), o Tribunal a quo quando decidiu a aplicação de medida de segurança de internamento em estabelecimento não teve em consideração o relatório pericial (fls. 423 a 428) e informação clínica (fls. 742 a 744).
XIV - O Tribunal a quo justifica a aplicação da medida de segurança de internamento pela existência de receio (fundado) da prática de outros factos semelhantes, no que concerne à elevada perigosidade.
XV - O Tribunal a quo afirma que o Arguido padece de anomalia psíquica que não controla e de natureza permanente (fls. 54 da sentença).
XVI - E, por conseguinte, que se justifica o internamento em instituição (fls. 54).
XVII - Contudo, existe prova documental e pericial junta aos autos que vai em sentido contrário: na perícia forense no seu último parágrafo (a fls. 422) é dito textualmente o seguinte: «o adequado tratamento poderá vir a ser realizado em regime ambulatório compulsivo».
XVIII - Por sua vez, foi junto aos autos informação clinica de 16-04-2020 prestada pelo médico do Estabelecimento Prisional de Caxias, Dr. SMS (fls. 742 a 744) onde é dito que existe a anuência total do Arguido na toma da medicação necessária, a remissão sintomática do Arguido e a ausência total de estados psicóticos do Arguido.
XIX - Ou seja, o Arguido controla a sua anomalia, tem anuído na totalidade e sem reservas à medicação prescrita e não tem sofrido estados psicóticos.
XX- Atenta a prova pericial e documental carreada nos autos importaria dar como provado que existe ab initio a anuência total do Arguido na toma da medicação necessária, a remissão sintomática do Arguido e a ausência total de estados psicóticos do Arguido e o adequado tratamento poderá vir a ser realizado em regime ambulatório compulsivo, de acordo com fls. 422 (relatório pericial) e fls. 742 a 744 (informação clinica).
XXI - Sem prescindir, as exigências constitucionais de proporcionalidade e a subordinação ao princípio da subsidiariedade, o Tribunal a quo deveria ter optado pela suspensão da execução da medida de segurança.
XXII - Ao não fazer, a Douta Sentença violou os Arts. 52.º, 53, 54 e 98, n.º 3, todos do Código Penal, pelo que, deverá ser suspensa a execução da medida de segurança, mediante regime ambulatório compulsivo conjugado com a aplicação de regras de conduta.
XXIII - In casu a suspensão prevista no citado artigo 98.º é susceptível de oferecer uma possibilidade, ainda que mínima, mas necessariamente sustentável, de surtir efeito e, por conseguinte, constitui poder-dever do julgador determinar a sua aplicação.
§ - Violação do disposto nos artigos 488º n.º 1 e 489º n.º 1 e n.º 2 do C. Civil. - fixação do valor da indemnização com recurso à equidade.
XXIV - No caso dos autos foi requerida a indemnização arbitrada oficiosamente ao abrigo do disposto no artigo 82º-A do C.P.P. e artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
XXV - A primeira regra da dupla sucumbência contida no artigo 400º, nº 2 do C.P.P. não é aplicável por ausência de pedido cível, estando essa admissibilidade do recurso dependente do montante arbitrado.
XXVI - Desta forma, utilizando apenas o segundo critério - o quantum desfavorável - por impossibilidade de uso do primeiro, só é admissível recurso se o mesmo for superior a metade da alçada do tribunal recorrido, isto é, superior a 2.500 €, o que sucedeu in casu.
XXVII - Por conseguinte, deverá ser admitido o recurso na parte da decisão civil, que condenou o Arguido ao pagamento à Assistente do valor de €: 3.000,00, a título de danos não patrimoniais.
XXVIII - Com recurso à equidade, a indemnização concedida à Assistente foi justificada perante a necessidade do lesado e a possibilidade do inimputável.
XXIX - Por um lado, o Arguido auferia valores incertos mensais a título de "biscaites".
XXX - O Arguido não tinha à data dos factos, não tem emprego actualmente, nem o terá, previsivelmente num futuro próximo, uma vez que, está internado em consequência da medida de segurança aplicada.
XXXI - O Arguido não tem possibilidade de liquidar qualquer valor à Ofendida.
XXXII - Por outro lado, a Assistente é uma pessoa jovem, dinâmica, ainda na flor da idade, que certamente conseguirá obter rendimento proveniente do seu trabalho e certamente mais rapidamente que o Arguido.
XXXIII - Por conseguinte, deverá o Arguido ser absolvido do pedido de indemnização civil ou reduzido em conformidade e de valor meramente simbólico.
XXXIV - Considera-se assim, que a Douta Sentença violou o disposto nos artigos 488º n.ºl e 489º n.º 1 e n.º 2 do C. Civil.”
A este recurso vieram responder, por ordem de entrada nos autos, com as seguintes conclusões:
1. - A assistente SS :
“… deve, pois, o recurso interposto da douta sentença recorrida ser julgado improcedente e a douta sentença recorrida ser mantida, com todas as devidas e legais consequências.”
2. - O M.º P.º:
“1. Vem o recurso em causa interposto da sentença proferida nos autos que declarou o arguido autor de factos ilícitos e típicos previstos e punidos pelo artigo 152°, n° 1, al. b), n° 2 e n° 3, al. a) do Código Penal; declarou-o inimputável nos termos do artigo 20°, n° 1 do Código Penal e aplicou-lhe a medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento/segurança por um período máximo de 5 (cinco) anos e até cessar o estado de perigosidade criminal, artigos 91°, n° 1 e 92°, ambos do Código Penal.
Foi ainda julgado procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente SS e o arguido/demandado condenado no pagamento de uma indemnização aquela no valor de €3.000 (três mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros até integral pagamento à taxa de 4% dos juros civis.
2. Não se conformando com esta sentença, entendeu por bem o arguido levá-la à censura de Vas. Exas., desde logo, por considerar que o Tribunal a quo deu erradamente por provado que entre si e a assistente existia um relacionamento amoroso, quando tal deveria ter sido dado como não provado (pontos 1, 11, 12 e 14 da matéria de facto dada como provada) e, caso assim fosse, não poderia ter sido condenado pelo crime de violência doméstica, como foi, mas tão só e eventualmente por crime de ofensa à integridade física.
3. O recorrente considera que tal facto foi erradamente dado como provado, pois que negou qualquer relacionamento amoroso com a assistente, sendo que eram só amigos e que o relacionamento entre ambos se limitava ao consumo de produtos estupefacientes e de álcool.
4. Da fundamentação da sentença consta que para formar a convicção do Tribunal quanto à matéria dada por provada e aqui em crise - relacionamento amoroso entre o arguido e assistente no lapso temporal indicado na acusação - o Tribunal teve em conta o depoimento da assistente SS e das testemunhas MS, EO e RL, que considerou credíveis, contrariamente à versão do arguido e testemunhas por si arroladas.
5. Da prova produzida em julgamento resulta que tanto a assistente como as testemunhas que conviviam regularmente com ela e com o arguido confirmaram que aqueles tinham um relacionamento amoroso, andavam juntos e comportavam-se como um casal.
6. Já as testemunhas apresentadas pelo arguido ou afirmam não saber que tipo de relacionamento era o deles ou então negaram o envolvimento amoroso, mas tais testemunhas não conviviam com ambos com regularidade, algumas delas tão pouco conheciam a assistente, como seja a testemunha MS e JG .
7. A única testemunha arrolada pelo arguido que é taxativa em afirmar que não tinham um relacionamento amoroso é a mãe do arguido - AMN , mas ainda assim afirmou que a assistente durante 5 anos andou sempre com o seu filho.
8. Da análise da sentença em crise não se encontram razões para censurar a convicção formada pelo tribunal a quo, tendo a Mma Juiz na fundamentação da decisão da matéria de facto explicado as razões da credibilização ou não dos depoimentos prestados, sendo bem explícito e claro o processo de formação da sua convicção.
9. A decisão sobre esta matéria encontra-se devidamente motivada, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal a quo, nenhuma delas proibidas por lei e todas de livre apreciação do julgador, segundo as regras da experiência comum e a sua convicção, operando a sua análise crítica, sendo evidente que a convicção alcançada se mostra suficientemente objectivada e motivada, sendo manifesto que as razões que presidiram à motivação da prova provada se apresentam lógicas, racionais e coerentes com o conjunto da prova produzida.
10. Face ao exposto, bem andou o Tribunal em dar como provado que a assistente e o arguido tiveram um relacionamento amoroso no lapso temporal indicado na acusação.
11. O Tribunal declarou o aqui recorrente inimputável, nos termos do artigo 20°, n°1 do Código Penal e aplicou-lhe a medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento/segurança por um período máximo de 5 (cinco) anos e até cessar o estado de perigosidade criminal, artigos 91°, n°1 e 92°, ambos do Código Penal.
12. Considera o recorrente que deve ser suspensa a medida de segurança de internamento que lhe foi aplicada.
13. Nos termos do n° 1 do artigo 98° do Código Penal, a suspensão do internamento pode ser aplicada se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcance a finalidade dessa medida.
14. A aplicação da suspensão de internamento envolve um juízo de prognose norteado pela prossecução das finalidades comuns às penas e às medidas de segurança, ou seja, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
15. Os factos típicos e ilícitos praticados pelo arguido são de extrema/ máxima gravidade e atenta a natureza permanente da anomalia psíquica que o afecta, é manifesta a existência de um fundadíssimo receio de que o arguido venha a cometer outros factos criminais graves, nomeadamente, contra as pessoas, tal como consta da perícia médica realizada ao aqui recorrente.
16. Na perícia é referido que atendendo ao quadro clínico do arguido e na ausência de adesão a um tratamento psicofarmacológico eficaz, será expectável que possam repetir-se factos semelhantes aos descritos.
17. Se o arguido, apenas de forma compulsiva adere ao tratamento e em liberdade consome álcool em excesso e estupefacientes, é manifesto que não será possível assegurar a adesão do arguido a um esquema terapêutico eficaz, porquanto com a sua conduta o arguido inviabiliza qualquer tratamento que se inicie e não tem qualquer insight para as consequências gravosas de tal comportamento.
18. Assim, bem andou a Mma Juiz ao não suspender a medida de segurança de internamento a aplicar ao arguido, porquanto não é de esperar que este adira a um tratamento eficaz para a doença de que padece.
19. No que concerne à indemnização a que o arguido foi condenado a pagar à assistente, face à factualidade provada, mostram-se preenchidos os pressupostos e requisitos de que lei faz depender a obrigação de indemnizar, sendo que o montante fixado afigura-se adequado e proporcional.
20. Nada encontramos que nos mereça censura na sentença ora recorrida, sendo que não se mostra violada qualquer norma ou princípio legal, pelo que deverá ser negado provimento ao recurso, confirmando-se in totum a mesma.”
Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos elaborando parecer no sentido da improcedência do recurso do arguido subscrevendo a resposta ao recurso apresentadas pelo M.º P.º em primeira instância.
Foi dado cumprimento do disposto no art.º 417º n.º 2 CPP não tendo sido apresentada qualquer resposta ao parecer.
II.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
Da sentença recorrida consta o seguinte:
“1-FACTOS PROVADOS Resultaram provados os seguintes factos com pertinência para a decisão: 1- O arguido e a ofendida SS mantiveram um relacionamento amoroso, durante cerca de 4 anos, encontrando-se separados desde Abril de 2019; 2 - Depois da separação a ofendida foi residir com os seus três filhos menores, fruto de relacionamento anterior, para a Rua ,,, em Lisboa, residindo o arguido na mesma rua e fracção mas na Cave E; 3 - Inicialmente o arguido ajudou em pequenas obras na residência da ofendida; 4 - No entanto, desentenderam-se e desde aí, na semana anterior a 25 de Maio de 2019, por não aceitar a separação, que o arguido verbalizava que a ofendida não podia ficar com a casa, partiu a respectiva porta de entrada por duas vezes, à machadada, e cortou a electricidade da habitação por cinco vezes e tentou incendiar a casa com recurso a diluente, deitando fogo ao contraplacado que a ofendida colocou a servir de porta; 5 - Neste período, em dia e hora não concretamente apurados, o arguido, quando a ofendida ia a passar por ele, passou-lhe uma rasteira, fazendo com que a mesma caísse ao solo; 6 - No dia 22 de Maio de 2019, cerca das 14 horas e 30 minutos, a ofendida encontrava-se em casa da sua mãe, situada em frente da sua, e deslocou-se à sua residência; 7 - A certa altura apercebeu-se que o arguido estava no exterior da habitação, e, sem que nada o fizesse prever, aquele, munido de um pau cujas características não foram concretamente apuradas, dirigiu-se à ofendida e utilizando a sua força física, atingiu-a com tal objecto nas pernas, com muita força, fazendo com que a ofendida caísse de imediato no chão, sem que conseguisse levantar-se, ao mesmo tempo que dizia “levanta-te daí que é hoje que te mato”, continuando o arguido a desferir-lhe pancadas com o pau, atingindo-a nos pés e chamando-lhe “puta, vaca, cabra, vou tirar-te da minha zona”; 8 - A ofendida, uma vez que o arguido lhe partiu os ossos das pernas, encontrava-se cheia de dores, das quais se queixava, perguntando o arguido se queria levar mais; 9 - Entretanto alguns vizinhos chamaram a polícia e o arguido colocou-se em fuga, abandonando o local; 10 - Anteriormente, em datas ainda não concretamente apuradas, o arguido, por diversas vezes disse à ofendida que a matava; 11 - Durante os 4 anos de relacionamento o arguido agrediu a ofendida por diversas vezes, com socos e pontapés por todo o corpo, tendo chegado a partir-lhe o maxilar e a bacia, obrigando a que estivesse internada em Hospital Egas Moniz, o que sucedeu no dia 30 de Julho de 2015, tendo-lhe sido diagnosticado traumatismo da face de ponto de impacto mandibular, aferia intra-oral para-sinfisiária, disoclusão, fractura dos dentes 1.1. e 1.2, maxilo-facial com fractura cominutiva do corpo esquerdo e fractura parassinfisária direita e sujeita a cirurgia; 12 - Igualmente durante os 4 anos de relacionamento, em ocasiões não concretamente apuradas, uma delas no dia 27 de Maio de 2017, o arguido puxou os cabelos à ofendida, provocando-lhe dores, empurrou-a e desferiu-lhe bofetadas; 13 - Era habitual o arguido dirigir à ofendida as expressões “porca, puta”; 14 - Cada vez que a ofendida tentava terminar o relacionamento o arguido agredia a ofendida e tomava-se possessivo; 15 - No dia 30 de Março de 2018, cerca das 2 horas e 10 minutos, no interior da residência, durante uma discussão, o arguido, de repente e sem que nada o fizesse prever, apertou o pescoço da ofendida, e de seguida desferiu-lhe vários socos, atingindo-a na cabeça e na face, causando-lhe dores e ferimentos no olho esquerdo e nos lábios; 16 - Na sequência dos factos ocorridos no dia 22 de Maio de 2019, a ofendida foi internada no Hospital São Francisco Xavier, até ao dia 4 de Junho de 2019, onde foi sujeita a cirurgia às duas pernas; 17 - Quando deu entrada no Hospital, a ofendida apresentava trauma directo dos membros inferiores, com deformidade evidente na pema, equimose no terço distai da pema esquerda, tendo sido imobilizada com tala gessada suropodálica, tendo sido sujeita a cirurgia por fractura metafisaria e diafisária da tíbia esquerda (extra-articular) e fractura segmentar da fíbula direita; 18 - Durante o restante mês de Maio e até, pelo menos, Julho de 2019, a ofendida deslocou-se de cadeira de rodas, necessitando do apoio de terceiros até para realizar a sua higiene pessoal não se encontrando ainda restabelecida; 19 - Ao longo do tempo, o arguido agiu sempre com o propósito de molestar física e psicologicamente a ofendida e de a perturbar na sua liberdade e segurança, o que conseguiu; 20 - Do relatório de perícia médico-legal que faz fls. 423 e seguintes, resulta que: “Na sequência da nossa avaliação no dia 07/08/2019, o arguido veio a ser internado no Hospital Prisional São João de Deus de 10/09/2019 a 02/10/2019, confirmando-se a presença de sintomatologia psicótica e alteração marcada do humor, compatível com o diagnóstico de Perturbação Afectiva Bipolar tipo I. Foi medicado com Olanzapina e Ácido Valpróico, com remissão da sintomatologia, tendo sido encaminhado para seguimento psiquiátrico pelo Dr. SMS no EP de Caxias, com a indicação para manter o tratamento psicofarmacológico a longo-prazo. ... O arguido é portador de anomalia psíquica grave e que era prévia aos factos em apreço no presente processo. Se bem que na entrevista não tenha sido possível esclarecer da existência de sintomas psicóticos à data dos factos que tivessem motivado directamente as alegadas agressões, parece-nos que existiria desorganização comportamental significativa, nomeadamente a nível do pensamento e do humor. Sendo certo que, à data dos factos o arguido mantinha consumos de álcool e de drogas, que podem ter contribuído, pelo menos em parte, para algumas das alterações comportamentais, e que habitualmente tais situações não relevam significativamente para a (in)imputabilidade, no caso em concreto terão a sua importância, no sentido em que, num individuo com patologia psicótica não devidamente medicado, poderão exacerbar e/ou condicionar o aparecimento de sintomas abnormes/psicóticos, bem como desorganização comportamental, impulsividade fácil e heteroagressividade. As explicações que o arguido fornece para os factos que, em parte, admite, parecem estar influenciadas por sintomas abnormes decorrentes da sua anomalia psíquica grave. Dito de outra forma, os factos parecem ter ocorrido por influencia de sintomas psiquiátricos, como ideias deliróiides/delirantes e alterações do humor. De facto, apesar de não termos apurado alucinações, parece ter havido auto-relacionação e desorganização conceptual, sendo até patente um aparente declínio cognitivo que consideramos dever-se a processo psicótico em curso. Este contexto, aliado ao consumo concomitante de drogas ilícitas, terá determinado dificuldade em o mesmo fazer uma correta avaliação, do que era, lícito, bem como de se determinar perante tal avaliação, motivo pelo qual consideramos que estarão presentes pressupostos médico- legais de INIMPUTABILIDADE para os factos em apreço. Admitida que foi a inimputabilidade, cumpre-nos nos termos do art. 91° C.P. esclarecer que a probabilidade de repetição de factos típicos semelhantes dependerá de surtos agudos da doença, que por sua vez está dependente da garantia de continuidade do tratamento psiquiátrico, da abstinência do consumo de drogas ilícitas, bem como de apoio sociofamiliar e psicoterapêutica. Segundo descrição do psiquiatra do Hospital Prisional, com a instituição do necessário tratamento e abstinência do consumo de drogas, a sintomatologia psiquiátrica remitiu rapidamente. Por outro lado, se bem que se admita que com o adequado tratamento, a probabilidade de repetição de factos típicos semelhantes seja baixa, o que é certo é que o arguido tem demonstrado ao longo dos anos a manutenção de consumos de estupefacientes. À data da avaliação pericial mantinha fraco insight/juízo critico face à situação patológica (i.e. considerava não ter qualquer doença psiquiátrica), e ainda quanto às consequências sociais da patologia (i.e. tinha dificuldades em estabelecer uma associação entre o ilícito penal e a patologia de que padece). O apoio familiar é fraco o que, aliado à estrutura de personalidade descrita no âmbito de processo-crime anterior, aumenta a probabilidade de repetição de factos típicos semelhantes. Por fim, o risco de violência avaliado no dia 07/08/2019 com o HCR-20 foi compatível com risco alto. Pelo exposto, somos de parecer que o risco de repetição de factos ilícitos semelhantes - leia-se perigosidade - é relevante. Nesse sentido, voltamos a reiterar a necessidade de acompanhamento psiquiátrico a longo-prazo e garantia da adesão ao necessário tratamento.”; 21- O CHLO - Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, E.P.E. é um hospital público, inserido no serviço Nacional de Saúde, que presta serviços de assistência médico-hospitalar; 22 - No exercício dessa sua actividade, prestou assistência médico-hospitalar a SS no dia 20 de Maio de 2019, em consequência de agressões por esta sofridas; 23 - Tais serviços alcançam um total de €1.809,95 (mil oitocentos e nove euros e noventa e cinco cêntimos) - documento de fls. 594 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido; 24 - O arguido é solteiro mas tem 3 (três) filhas de 21 (vinte e um), 19 (dezanove) e 17 (dezassete) anos de idade que não dependem economicamente dele; 25 – O arguido é pedreiro ladrilhador; 26 - O arguido auferia mensalmente cerca de €800,00 (oitocentos euros) em “biscates”; 27 - O arguido tem o 12° (décimo segundo) ano de escolaridade; 28 - No relatório social de fls. 724 a 727 consta que: “ (...) P. é natural de Lisboa, é o quarto de uma fratria de 6 elementos. O seu processo de sociabilização decorreu num ambiente de grande fragilidade e instabilidade, inserido numa família com acentuadas carências de ordem socioeconómica, integrado num bairro socialmente degradado onde o agregado familiar residiu vários anos numa casa abarracada no concelho de Lisboa. Descreve uma dinâmica familiar desestruturada e disfuncional, pautada pela negligência parental e reiterados maus tratos descrevendo uma manifesta conflitualidade e violência severa perpetrada pelo progenitor, quer na companheira, quer nos filhos. Concomitantemente, os hábitos etanólicos terão sido também nota marcante no seio familiar, comportamento aditivo que, alegadamente, foi mantido por ambos os progenitores. O arguido tinha 9 anos de idade quando ocorreu a separação dos progenitores, alegadamente, na sequência de um episódio de violência extrema perpetrado pelo progenitor numa das irmãs do arguido, abandonando a progenitora e as respetiva irmãs o agregado familiar. Mais tarde, P. , ter-se-á juntado com os restantes irmãos à progenitora com quem passou a residir. No que diz respeito ao percurso académico, o arguido realizou frequência escolar até ao T ano de escolaridade, contudo, a ausência de um suporte familiar adequado e a diminuta motivação e interesse no percurso formativo, determinaram o abandono escolar após a frequência do 8o ano de escolaridade aos 16 anos de idade. Segundo o próprio, terá sido contaminado pela desestruturação familiar, bem como pela incompreensão por parte dos progenitores relativamente à sua aptidão para as artes. Recorda que o facto de não lhe ter sido permitido o ingresso numa escola profissional na área das artes, terá agudizado sentimentos de revolta e frustração pré- existentes, vindo o arguido a evidenciar desajustamento comportamental no decorrer da adolescência. Neste contexto salienta-se que P. protagonizou dois episódios de violência dirigidos a funcionários do estabelecimento de ensino que frequentava à época, alegadamente desencadeados pelo consumo de estupefacientes em contexto de grupo de pares. Neste contexto antissocial, refere que foi alvo de uma medida tutelar educativa, no âmbito da qual permaneceu institucionalizado num Centro Educativo onde terá frequentado uma formação na área da eletricidade. Anos mais tarde, em horário pós-laboral veio a concluir o 12° ano de escolaridade através do processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) numa perspetiva de auto valorização. Do ponto de vista laboral, o arguido refere que iniciou a sua atividade profissional aos 16 anos de idade como ladrilhador na área da construção civil e descreve um percurso laborai caraterizado pelo desempenho desta atividade de forma precária que não lhe proporcionou condições de segurança e de estabilidade. Em termos de saúde, P. refere um percurso de consumo regular de álcool com início aos 8 anos de idade. Com 14 anos de idade, iniciou o consumo de Canábis e posteriormente Cocaína que, segundo o próprio, cessou aquando do início do relacionamento com a mãe das suas filhas. Contudo, refere que retomou os hábitos etanólicos e o consumo de cocaína após término do referido relacionamento, verbalizando que foi submetido a um programa de desabituação na Unidade de Alcoologia de Lisboa, sem obtenção de sucesso, mantendo os consumos até ao momento da presente detenção. Em 2013, na sequência de um quadro psiquiátrico que não sabe especificar, deu entrada na urgência psiquiátrica do Hospital São Francisco Xavier em Lisboa, referindo que posteriormente não recebeu acompanhamento em contexto de ambulatório. Quando deu entrada no estabelecimento prisional, P. revelou-se instável ao nível emocional e sem cumprir a medicação prescrita no acompanhamento psiquiátrico anterior. O arguido foi internado no Hospital Prisional de São João de Deus onde permaneceu sensivelmente um mês, tendo sido diagnosticado com Perturbação Bipolar. Do ponto de vista afetivo, verbaliza como de maior significado afetivo o relacionamento que iniciou em 1999 com a mãe das suas filhas, com quem viveu em União de Facto durante 5 anos, descrevendo contudo uma relação marcada por sucessivos períodos de instabilidade e conflito. Da referida relação nasceram 3 filhas, atualmente com 20, 18 e 17 anos de idade com quem o arguido refere manter contacto. Este não se trata do primeiro contacto do arguido com o sistema de administração da justiça. No âmbito do processo n° 466/13.9SFLSB P. foi condenado na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período mediante regime de prova pela prática de um crime de violência doméstica. (...) À data dos factos subjacentes à presente acusação, P. residia sozinho numa habitação de renda social, no bairro camarário do Casalinho da Ajuda na zona de Lisboa. Por se encontrar desempregado desde há longa data, refere que tentava fazer face às suas necessidades com o valor proveniente do Rendimento Social de Inserção (RSI) ao qual acresciam pequenas verbas económicas provenientes da realização de “biscates” na área da construção civil. O arguido refere ter consciência de que o consumo de estupefacientes e os hábitos etanólicos abusivos mantidos desde a adolescência, têm-se vindo a constituir como uma forma de alienação face a vivências emocionalmente frustrantes, à ansiedade e angustia vivenciadas. P. verbaliza que o recurso ao consumo de álcool e de estupefaciente é utilizado como estratégia de diminuir a ansiedade em momentos de maior vulnerabilidade. Segundo o próprio, reconhece a necessidade de manter a adesão ao tratamento farmacológico prescrito, bem como, continuar a beneficiar do acompanhamento do foro psiquiátrico e investir na manutenção da abstinência com o objetivo de mitigar comportamentos disruptivos. (...) Desde que se encontra preso no Estabelecimento Prisional de Caxias, o arguido apresenta um comportamento adequado e uma postura de acordo com as normas vigentes, mantendo um registo disciplinar isento de sanções. Apesar de considerar um período difícil tem vindo a adaptar-se à situação de reclusão, evidencia uma postura adequada e colaborante, quer com os serviços técnicos quer com o serviço de vigilância mostrando capacidade de integração e adaptação. Atendendo ao seu quadro clínico, P. é acompanhado nos serviços clínicos do estabelecimento prisional na consulta de psicologia e de psiquiatria, aderindo à terapêutica farmacológica prescrita aquando do seu internamento inicial no Hospital Prisional São João de Deus. Verifica-se que a reclusão não tem tido grande impacto ao nível do suporte sociofamiliar, na medida em que continua a contar com o apoio dos familiares, nomeadamente da progenitora e de duas das suas filhas das quais tem vindo a beneficiar de visitas no estabelecimento prisional. Relativamente à atual situação processual, o arguido manifesta relativa consciência da gravidade da sua conduta, ainda que a enquadre noutros motivos - o consumo de estupefacientes e ausência de medicação do foro psiquiátrico que, de alguma forma, utiliza para legitimar a sua conduta e a sua responsabilidade. Estes fatores de risco deverão ser objeto de intervenção especializada, em caso de condenação, no sentido de motivar uma capacidade para se vincular a um processo intrínseco de mudança, que privilegie o respeito pela integridade psíquica e física das pessoas com quem estabelece relações de afetivas e de significado. (...) Pelo que foi possível avaliar, P. apresenta um percurso de fragilidade e vulnerabilidades pessoais marcado pela ausência de um enquadramento familiar estruturante e exposição a modelos parentais pouco securizantes ou gratificantes do ponto de vista afetivo. Pelo percurso vivencial do arguido, verifica-se que se trata de um adulto com alguns hábitos de trabalho, onde se verifica pouca progressão e instabilidade ao nível laborai, passando por períodos em que está desempregado. Tem contacto anterior com o sistema de administração da justiça penal, o que em parte pode ter sido influenciado por um longo percurso de consumo aditivo que iniciou precocemente, pela doença de foro psiquiátrico e pela reduzida capacidade autocrítica e de controlo pessoal. Caso venha a ser condenado, o seu processo de reinserção social deverá ser direcionado para uma intervenção intensiva e acompanhamento clínico especializados, no âmbito dos fatores de risco associados ao consumo de estupefacientes, doença psiquiátrica e à prática de criminalidade, eliminando a minimização e legitimação que diminuem a responsabilidade do arguido pela sua conduta criminal, bem como, acompanhamento clínico no sentido da prevenção da recaída e manutenção da abstinência. Deverá também ser direcionado para a manutenção da adesão à terapêutica prescrita e, deverá ser trabalhada a sua motivação e competências para manter uma conduta de respeito pela sua integridade psíquica e de terceiros. (...)”; 29 - Por acórdão de 28.01.2014, transitado em julgado a 09.07.2014, proferido no âmbito do processo comum colectivo n° 466/13.9 SFLSB da 2a Vara Criminal de Lisboa foi o arguido condenado na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período com regime de prova pela prática em 27.04.2013 de um crime de violência doméstica - por despacho de 09.01.2018 foi declara extinta a pena. * 2 - FACTOS NÃO PROVADOS Não se provou que: 1- Era habitual o arguido dirigir à ofendida a expressão “não prestas na cama”. * 3 - MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
…
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P. (cfr. Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95).
No caso dos autos, face às conclusões da motivação dos recursos, as questões suscitadas são:
- Se os factos provados 1, 11, 12 e 14 se mostram correctamente fixados face à prova produzida;
- Se a medida de segurança deveria ser suspensa na sua execução;
- Se o montante indemnizatório fixado se mostra equitativamente bem fixado.
Apreciando.
Suscita o recorrente a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto dada como provada nos arts. 1, 11, 12 e 14, em suma, a dada como provada existência de um relacionamento amoroso entre o arguido e a ofendida antecedente aos factos integrantes do crime de violência doméstica.
Sustenta o recorrente que essa relação de namoro nunca existiu, isto com base nas suas próprias declarações e nos depoimentos prestados em audiência pela própria assistente, da testemunha MS, mãe da ofendida, da testemunha EO (vizinha do Arguido e da Ofendida), da testemunha RL (Agente da PSP), de todos fazendo citações parcelares e dos mesmos extraindo que essa relação de namoro era inexistente “porquanto: a) não frequentavam espaços públicos em conjunto, como por exemplo, o cinema; b) tinham "alguma" exclusividade; c) a ofendida não sentia necessidade de apresentar o Arguido, como seu namorado; d) a sua progenitora desconhecia tal relação; e) O Arguido e a Ofendida só afirmavam que eram namorados, quando estavam sob o efeito do álcool.”
Em sede de motivação da convicção do tribunal, face à posição do arguido em negar a existência dessa relação com a ofendida a qual qualificou como sendo somente de amizade, fundamentou-se essa existência nos seguintes moldes:
“A assistente SS explicou o seu relacionamento de namoro com o arguido tendo em 2015 começado a privar mais de perto, era “uma relação tipo amizade colorida” em que de vez em quando tinham relações sexuais e com o passar do tempo foram ficando mais próximos, tinham exclusividade, e explicou que o relacionamento amoroso com o arguido durou quatro anos acabando o ano passado (em fim de Abril/inicio de Maio)… A testemunha MS explicou o relacionamento da filha, aqui assistente, com o arguido que se comportavam como casal, eram namorados, sabendo que a filha ia dormir a casa do arguido,… A testemunha EO explicou que sendo vizinha do arguido e assistente viu o relacionamento entre eles que andavam juntos, namoravam… A testemunha RL explicou que no exercício da sua actividade profissional de Agente da P.S.P. tendo recebido chamada por ofensa à integridade física em 2019 se dirigiu ao local … tendo elaborado o auto de violência doméstica de fls. 3 a 7 dos autos após saber pela mãe da ofendida que eram namorados. … O arguido explicou que não mantinha com a ofendida nenhuma relação amorosa e as suas testemunhas de defesa também o explicaram mas tal não é credível. A versão do arguido que apenas se encontrava com a assistente para consumir produtos estupefacientes e álcool de que por vezes se envolviam sexualmente mas que não tinha com ela qualquer relação amorosa, apenas de amizade, não merece credibilidade atentos os depoimentos da assistente e das testemunhas MS, EO e RL. A assistente explicou que teve um relacionamento amoroso com o arguido tendo em 2015 começado a privar mais de perto, era “uma relação tipo amizade colorida” em que de vez em quando tinham relações sexuais e com o passar do tempo foram ficando mais próximos, tinham exclusividade, relação que durou quatro anos. A mãe da assistente explicou o relacionamento da filha com o arguido como comportamento de casal, namorados, a filha ia dormir a casa do arguido. A testemunha EO, vizinha do arguido e da assistente, explicou que “andavam juntos, namoravam” enquanto que a testemunha RL, Agente da P.S.P., explicou que soube que arguido e assistente eram namorados. Atentos os depoimentos da assistente e das testemunhas MS, EO e RL, a normalidade da vida e do acontecer, o Tribunal não acreditou na versão do arguido. Assim, o Tribunal ficou convencido de que o arguido e SS mantiveram um relacionamento amoroso, durante cerca de 4 anos, encontrando-se separados desde Abril de 2019.”
Quanto ao aspecto da suficiência probatória considerada pelo tribunal para afirmar da existência da relação de namoro entre o arguido e a assistente, podemos dizer que os excertos citados das declarações e depoimentos prestados em audiência não se mostram suficientemente reveladores de que a relação mantida entre ambos não possa ser categorizada como sendo de namoro, mesmo que não resultem nitidamente claros os elementos objectivos que o recorrente aponta como necessariamente caracterizadores daquele: a notoriedade e exclusividade.
Para esta discussão importa reter que a génese do relacionamento mantido entre ambos, no que o arguido se mostra coincidente com a assistente, assentou na partilha e consumo comum de droga por ambos, acompanhada de consumo comum de bebidas alcoólicas e apresentava manutenção de relações sexuais, partilha esporádica de cama em casa do arguido.
Seguindo a Dissertação de Mestrado “O Sentido e o Alcance da Inserção das Relações de Namoro e Equiparadas no Crime de Violência Doméstica – Reflexões Críticas acerca do Alargamento do Aipo” de Dora Faria de Dora Faria Calejo Machado Pires, UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA, CENTRO REGIONAL DO PORTO – FACULDADE DE DIREITO, Novembro de 2014, págs. 18 e seguintes: “Em abstrato, o namoro é uma fase do relacionamento amoroso para conhecer o outro, e não um fim em si, de comunhão de vida, que é própria do casamento ou da união de facto. É uma fase transitória que, com frequência acaba no rompimento amoroso, por as expectativas de um ou ambos os namorados não serem aquelas que esperavam82. O leque de definições possíveis para a relação de namoro será tão vasto e abrangente, quanto a época e cultura social em que o mesmo se insere83. Longe vai o tempo em que a, tendencialmente, única relação de namoro da vida era mantida pela janela da casa e caminhava em direção ao casamento; em que as relações tinham o seu início com o pedido “formal” de namoro e a aceitação por parte do progenitor da amada, ou com a promessa de casamento imposto pelos progenitores. Em termos gerais, o namoro será, hoje, um relacionamento entre duas pessoas que se atraem física e psicologicamente e que, mesmo duradouro, é desprovido de vínculo de natureza familiar, embora possa se encaminhar para tanto84. Ao contrário do que acontecia tradicionalmente, nos dias de hoje a sociedade considera ser perfeitamente aceitável que os casais desde cedo partilhem a cama de forma regular, que viajem juntos, que desenvolvam atividades diárias em conjunto, de forma pública, o que permite um conhecimento muito mais profundo do casal85. O projeto de vida que cada um tem de forma individual e independente, em que [o]ne person does not wonder about the other’s opinions, except perhaps in passing, and they both pursue their everyday goals and activities with little concern for the other86, dará lugar a uma relação pessoal comum quando se unirem as duas relações individuais numa só, assim [t]hrough self-disclosure, partners share personal details that create a sense of intimacy and build trust87. Tratar-se-á, portanto, de um compromisso entre duas pessoas que se relacionam por tempo indeterminado, partilhando e comungando afetos e interesses pessoais comuns. Regra geral, já não existe aquele pedido tradicional, sem prejuízo de se nos afigurar que a prova ou demonstração dessa ligação entre as duas partes se mostra relevante. 82Ac. TRC de 24-04-2012, proc. n.º 632/10.9PBAVR.C1. 83Por exemplo, [n]a Ásia e outras partes do mundo, onde o casamento frequentemente ocorre em idade mais jovem, o fenômeno de violência no namoro é rara e a violência praticada pelo parceiro íntimo começa mais cedo, em «Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher – Ação e produção de evidência» , Organização Pan-Americana da Saúde, p. 14, nota de rodapé n.º 1, disponível em http://www.who.int. 84LÚCIA MARIA MIGUEL DA SILVA LIMA, «A distinção entre o namoro e a união estável, relações esporádicas e coexistência de relações afetivas sob a ótica do Direito da Família», Revista do Ministério Público, n.º 105 – Jan/Mar 2006, p. 224. 85OLGA INÊS TESSARI, «Namoro atual: entrevista concedida para o Jornal Rudge Ramos, 2005, disponível em http://ajudaemocional.tripod.com/id230.html, apud ISAQUE SOARES RIBEIRO, «O contrato de namoro no ordenamento jurídico brasileiro», disponível em http://boletimjuridico.com.br. 86D. H. SOLOMON AND J. A. THEISS, «Relational Turbulence: What Doesn’t Kill Us Makes Us Stronger», The Dark Side of Close Relationships II, Edicted by William R. Cupach and Brian H. Spitzberg, Routledge, 2011, p. 198. 87D. H. Solomon and J. A. Theiss, ob. cit., p. 198.” E mais à ferente, a págs. 20 e seguintes:
“As relações de namoro, como é evidente, não preenchem (nem têm essa pretensão) todas as características associadas à conjugalidade, uma vez que, embora em princípio possam comungar da comunhão de cama, mesa e habitação intrínsecas à conjugalidade, não o fazem necessariamente de forma habitual. Sem prejuízo do acabado de referir, na mesma esteira da doutrina e jurisprudência já citadas, também se nos afigura que ficarão, desde logo, excluídos do tipo não apenas e obviamente as comumente designadas por “one night stand”, como outras relações afetivas ocasionais (de cariz exclusivamente sexual ou não) que ambos sabem ser a termo certo, tais como namoros de fim-de-semana ou de férias, findo o qual cada um pretenderá seguir os seus projetos individuais de vida e as relações de amizade91. Excluídas as relações que parecem não encontrar proteção no tipo legal, torna-se agora oportuno descortinar que outras relações, pelas suas características, justificam a integração destas no tipo por razões de política criminal e analogia substancial do desvalor ético-jurídico com as situações de violência no seio familiar, ou seja, aquelas relações de poder nas relações afetivas, com degradação e humilhação da vítima92. Daqui deflui que, tendo sentido o legislador a necessidade de prever específica e expressamente as relações de namoro no tipo do crime, parece-nos imperativo saber o que é incriminado. Embora a doutrina e a jurisprudência não tenham avançado com uma definição, tem tido o mérito de se poder retirar pelo menos uma limitação, um núcleo comum. Concordando que não é papel do Direito em geral ou do Direito Penal em particular, imiscuir-se nas relações sociais e afetivas93, não menos certo será que para incriminar determinadas condutas como a violência no namoro seria benéfico que o legislador afirmasse [tal como sucede com o casamento no CCiv., e com a união de facto, na Lei n.º 7/2001, e mesmo com a al. d) do n.º 1, do art. 152º, quando o legislador especificamente exemplifica a pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença (…)] em que consiste afinal tal relação afetiva ou, dito de outro modo, qual o conteúdo mínimo que uma relação entre duas pessoas deve ter para que possamos falar de uma relação afetiva de namoro “mínima” para cair dentro do âmbito do art. 152º. Tal iniciativa do legislador mostrar-se-ia oportuna, desde logo, pelas limitações interpretativas e de aplicação que a CRP exige em matéria de direito penal, para uma maior facilidade de determinação da existência da relação. Para uma melhor compreensão desta questão, desdobraremos as relações de namoro em dois níveis, dependendo do diferente grau de intensidade das mesmas: o namoro simples e o namoro qualificado94. O primeiro será aquele namoro revestido por um compromisso entre duas pessoas que estão ligadas por um vínculo afetivo que vai para além da mera amizade e das relações fortuitas; o segundo compreenderá já as características da relação “análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação”, e portanto que se trata de uma relação de namoro em que está subjacente um compromisso pessoal sólido, baseado na confiança, honestidade e solidariedade mútua, cujo envolvimento de vidas ou projeto de vida em comum já existe ou já é conjeturado95. Assim, ainda que se entendesse que este namoro “qualificado” não se integrava nas “relações análogas às dos cônjuges, ainda que sem coabitação”, não restarão agora dúvidas de que estas estão abrangidas por força, pelo menos, da inclusão das relações de namoro. Questão mais complexa será a relativa às relações de namoro “simples”. Mostrar-se-á agora oportuno trazer à colação as considerações jurisprudenciais tecidas a propósito dos modelos brasileiro e espanhol96. A relação de namoro para estes efeitos deverá ser aferida através dos circunstancialismos específicos reveladores de cada relação, como sejam a sua duração, a continuidade, a publicidade e outras. Embora não haja, naturalmente, uma influência direta entre o espaço de tempo decorrido entre o início e o termo de uma relação para se poder aferir da sua carga sentimental97, da confiança e solidariedade que aí exista, a mesma não deixa de ter importância. Em princípio, uma relação terá o seu início com a atração física e/ou intelectual, numa tentativa de conhecimento mútuo e de encontro de interesses. A intimidade98 pode ser caracterizada pela proximidade, pelo compromisso e exposição pessoal, traduzida como uma partilha entre o casal, de relações íntimas. Parece-nos, ainda, que a relação de namoro não será descaracterizada pela inexistência de atos sexuais entre o casal (v.g. por opção pessoal, por motivos religiosos, por doença), uma vez que a intimidade não depende deles. Desta forma, partilhamos a visão do STJ99 ao considerar que a exigência de intimidade, não se reporta necessariamente ao cariz sexual, embora seja este o caso mais comum. Também esta linha de raciocínio pode ser aplicada quanto ao dever de fidelidade. A doutrina tem entendido que este dever se manifesta numa dupla dimensão: no dever de fidelidade física, que se entende como a proibição de atos sexuais com terceiro; e de fidelidade moral, no sentido de ligação amorosa com terceiro100. Todavia, e embora não seja rigorosamente essa a dimensão que se transporta para as relações de namoro, também não deixará de ter relevância, sobretudo dentro do conjunto de indícios de que ora curamos. Mais adequado às relações de namoro parece ser a defendida por alguma doutrina estrangeira que entende o dever de fidelidade num sentido mais vago e menos sexual, como um dever de devoção, dedicação, lealdade e boa fé101. Embora a exclusividade da relação e a opção de fidelidade por parte dos namorados possa ser um indicador da existência de uma relação de namoro, não cremos que o contrário possa ser imperativo. Isto é, que pelo facto de não existir por parte de um ou de ambos os indivíduos uma opção de fidelidade obste, sem mais, à existência de uma relação, posto que pode acontecer (e acontece) que resulte de acordo do próprio casal. Todavia, admitindo, por hipótese, que não existe este acordo numa relação relativamente duradoura e que o parceiro infiel é o agressor, então a vítima ficaria desprotegida (face aos relacionamentos exclusivos) se se considerasse que o dever de fidelidade seria obrigatório para estes efeitos no sentido de obstar à qualificação de namoro para efeitos de violência doméstica102. Relativamente à publicidade103 ou notoriedade do namoro, em princípio esta relação, ainda que não seja conhecida pelo círculo familiar, há-de ser pelo menos conhecida por parte do círculo de amizade do casal. Não obstante, também aqui não nos parece que, se por hipótese, a relação não seja tornada pública (v.g. em virtude de um relacionamento já findo em que o ex-namorado continua a adotar comportamentos retaliatórios), que não deva esta atual relação não ser enquadrável no crime de violência doméstica, posto que também aqui configuraria uma desproteção da vítima. Aliás, situação por ventura paradigmática deste tipo de relações pouco conhecidas serão as relações de namoro entre duas pessoas do mesmo sexo. Relativamente à circunstância de o agressor admitir a existência de relação de namoro à data do crime, já será um indício forte da existência dessa relação. Porém, o contrário não deverá ser totalmente verdadeiro, no sentido em que a circunstância de o agressor não admitir a existência daquela relação como se de namoro se tratasse, não obsta a que da análise dos circunstancialismos próprios do caso seja possível comprovar que existia a relação de namoro exigida no art. 152º. Assim, o facto de os “namorados” não considerarem que há um “namoro” no sentido tradicional do pedido, parece-nos que não deve obstar a que seja considerada como “namoro” para efeitos de violência doméstica, conquanto se encontrem preenchidos alguns dos restantes critérios (com maior ou menor força). Do exposto resulta que só através da análise global da factualidade, tendo por base alguns critérios como os supra referidos, é que se poderá, primeiro, chegar à conclusão de que a relação sentimental e a grande proximidade se traduzem numa relação de namoro; e, em segundo, que essa relação importa o suficiente para que a violação dos direitos do parceiro seja considerada especial face aos restantes normativos penais. Sem esquecer, contudo, da dificuldade da comprovação de qualquer um destes critérios. Assim, caberá ao juiz o papel mais relevante face aos contornos do caso concreto em litígio, através daqueles elementos probatórios dos circunstancialismos específicos reveladores de cada relação, concluir ou não pela existência da relação de namoro para estes efeitos.” 89Como nota MANUEL ANTÓNIO FERREIRA ALVES, os estudos disponíveis revelam que, uma vez iniciada, a violência não só continua mas que, com o tempo, aumenta quer em frequência quer em gravidade. À medida que a violência prossegue, o ciclo respectivo modifica-se: a fase de emergência da violência que se torna cada vez mais curta e intensa; a fase do incidente crítico da agressão que se torna cada vez mais frequente; e a fase de reconciliação ou trégua que é cada vez menos duradoura e menos intensa, em «Violência e Vítimas dos Crimes, Vol. I – Adultos», (Coord. Carla Machado e Rui Abrunhosa Gonçalves), Quarteto, 2001, p. 62. 90Relatório Anual de Estatísticas elaborado pela APAV, disponível em http://www.apav.pt. 91Neste sentido, ANDRÉ LAMAS LEITE, «A violência relacional …», ob. cit., p. 52; PLÁCIDO CONDE FERNANDES, ob. cit., p. 31, ANTÓNIO LATAS, «As alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro», p. 24, disponível em http://www.tre.mj.pt/. 92MARGARIDA ALMEIDA, Seminário Sobre Violência Doméstica, 27 de Maio de 2013, in http://justicatv.com/index.php?p=672 (20-06-2014). 93 Neste sentido, ANDRÉ LAMAS LEITE, «Penas acessórias, questões de género, de violência doméstica e o tratamento jurídico-criminal dos “shoplifters”», em As alterações de 2013 aos Código Penal e de Processo Penal: uma reforma “cirúrgica”?, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 54. 98Intimidade, in Dicionário da Língua Portuguesa sem Acordo Ortográfico, Porto: Porto Editora, 2003-2014. [consult. 2014-11-02 12:30:58]. Disponível em: http://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa-aao/intimidade, e Priberam, dicionário online, disponível em http//:www.priberam.pt. 99Ac. STJ de 09-07-2014, proc. n.º 3076/11.1TBLLE.E1.S1. 94Tal como referido já no Ponto 4.4.2, referente ao modelo brasileiro. 95Como sucede nas uniões sem coabitação. 96Abordadas e desenvolvidas no Ponto 4.4. 97At some point in the evolution of acquaintances into commited romantic partners, individuals grapple with questions about the relationship: “Are these feelings I’m having infatuation or love?” “Is my partner seeing anyone else? Is this the kind of relationship that can last? (Knobloch & Solomon, 1999), D. H. SOLOMON AND J. A. THEISS, ob. cit., p. 201. 100Embora a propósito do dever de fidelidade conjugal, vide JORGE DUARTE PINHEIRO, ob. cit., p. 459. 101Neste sentido, HAUSER/HUET-WEILER, Traité de Droit Civil. La famille (Fondation et vie de la famille), 2ª ed., Paris, LGDJ, 1993, p. 746, apud JORGE DUARTE PINHEIRO, ob. cit., p. 459. 102Aliás, para CARLOS CASIMIRO NUNES E MARIA RAQUEL MATOS, ob. cit., p. 153, naturalmente, que se o agente mantiver uma relação afectiva, simultaneamente, com duas pessoas e praticar factos consubstanciadores de um crime de violência doméstica em relação às duas, não podemos excluir tal ilícito apenas pelo número de relações que o suspeito tem. Em sentido oposto, CATARINA SÁ GOMES, «O crime de maus tratos físicos e psíquicos infligidos ao cônjuge ou ao convivente em condições análogas às dos cônjuges», AAFDL, Lisboa, 2004, p. 69. 103Assim, ANDRÉ LAMAS LEITE, «Penas acessórias…», ob. cit., p. 54.
Servimo-nos deste excerto para afirmar que as relações de namoro, tal como moderna e socialmente se mostram desenvolvidas, abrangem uma multiplicidade de comportamentos e graus de interacção entre os namorados que fogem dos cânones a que vimos estando habituados a presenciar, não sendo hoje de exigir para qualificar esse tipo de relacionamento a existência de elementos como notoriedade, exclusividade, partilha de cama mesa e habitação e projecto de vida futura em comum.
Ora, apesar das respostas às perguntas da defesa do arguido - perguntas aquelas destinadas claramente a demonstrar que o relacionamento não era de namoro por entender ser necessária a existência dos cânones tradicionais aferidores do namoro, como seja, andar de mãos dadas, mostrarem-se como tal em público, saírem ambos e exibirem em ambos essa ligação pela família e círculo de amigos - que o recorrente quis pôr em destaque nas citações das declarações e depoimentos dos diversos intervenientes em audiência, as respostas apenas nos permitem dizer que o relacionamento de namoro não obedecia a esses critérios, antes se caracterizava por assentar e desenvolver naquilo que era a sua génese: o arguido e a assistente viviam e conviviam juntos para consumir droga e bebidas alcoólicas e ocasionalmente dormirem juntos e terem relações sexuais. Acrescem a estes elementos a sua duração e a continuidade que foram relatadas pela assistente e pelo próprio arguido.
Se virmos as citadas respostas da mãe da assistente “eu digo que eles eram namorados, porque a minha filha ia na casa dele e dormia lá e então em princípio são namorados.”, da assistente “Sinceramente «nunca falei.... nunca tive.... nunca foi necessário dizer que ele era meu namorado.” (o que se compreende pois ambos viviam para satisfazer a necessidade de consumo conjunto de estupefacientes e bebidas alcoólicas e, ocasionalmente, relacionamento sexual e partilha de cama), da testemunha EO (vizinha do Arguido e da Ofendida) “eu não sei o que tiveram...eu só sei que andavam juntos. Não fui da casa deles. … Porque eles mesmo diziam quando eles bebiam, ficavam a dizer isso.”.
A única testemunha arrolada pelo arguido que é taxativa em afirmar que não tinham um relacionamento amoroso é a mãe do arguido, AMN , mas ainda assim afirmou que ““nos últimos cinco anos a SS andava sempre com ele”.
Tudo isto nos conduz a que a matéria de facto impugnada se mostra assente em prova produzida em audiência cuja valoração permite concluir que entre o arguido e a assistente existiu um relacionamento de namoro, embora com aspectos muito específicos em resultado da vivência pessoal que mantinham com o consumo de droga e de bebidas alcoólicas, não se impondo a respectiva alteração para os não provados como dispõe o art.º 412º n.º 3 CPP.
A segunda das questões postas no recurso diz respeito à não aplicação da suspensão da execução da medida de segurança, o que constitui violação do disposto nos artigos 52º, 53º, 54º e 98º n.º 3 do Código Penal, pretendendo o recorrente que essa suspensão seja decretada face “à informação clinica datada de 16-042020, prestada pelo médico que acompanha o Arguido no estabelecimento prisional de Caxias” [a) Estado psíquico actual do arguido: Atendo à ausência de sinalização de necessidade de antecipação de consulta pela equipa de enfermagem. O seu estado actual será à partida sobreponível ao da última conservação efectuada a 27-11-2019 altura que se encontrava sem alterações do seu estado mental c) evolução do estado psíquico do Arguido desde a primeira observação até à presente data Remissão sintomática d) renitência ou não à administração da medicação Atendendo à ausência de sinalização pela equipa de enfermagem, à partida, não existirá renitência à administração de medicação. g) existência ou inexistência de estados psicóticos desde a primeira observação e até à presente data e em caso afirmativo em que circunstâncias ocorreram. Não»],
ao inserido no último parágrafo da perícia forense (a fls. 422) [«o adequado tratamento poderá vir a ser realizado em regime ambulatório compulsivo, ao abrigo do art. 29 da Lei 36/98. Face ao historial do arguido, no nosso entender, tal tratamento ambulatório poderia ser levado a cabo numa comunidade terapêutica, onde o Arguido pudesse residir, manter abstinência de consumo tóxicos e levar a cabo formação profissional com vista a poder, no futuro, ser reintegrando na sociedade e no mercado de trabalho, uma vez que, aparenta ter competências para tal»],
para concluir que o Tribunal a quo não valorou devidamente a prova pericial e a informação clinica junta aos autos.
A aplicação da medida de internamento assentou nos seguintes argumentos por parte do tribunal:
“Ficou provado que o arguido é portador de anomalia psíquica grave sofrendo de perturbação afectiva bipolar tipo I, doença mental grave, o que sucedia à data da prática dos factos - trata-se de uma doença mental com curso crónico, que condiciona uma necessidade permanente de medicação psicofarmacológica para manter a estabilização e prevenção de recaídas. Um doente com este tipo de patologia, que não tome a medicação necessária, vê agudizado o estado da sua psicose, o que determina um perigo dirigido a terceiros no contexto de crenças delirantes ou delírios (crenças falsa, inabaláveis e irredutíveis perante o confronto com a realidade). Para além disso, um doente neste estado de descompensação não se reconhece como doente, recusa qualquer tipo de ajuda ou tratamento, padecendo de alterações de pensamento e percepção, bem como de alterações graves ao nível do controlo de impulsos. Assim, no momento da prática dos factos, não tomando a medicação e mantendo consumos de álcool e estupefacientes, o arguido estava prejudicado na sua capacidade de decisão e na determinação de acordo com a avaliação da ilicitude do seu comportamento, ou seja, a anomalia psíquica de que padece implica que o arguido é incapaz de avaliar a ilicitude dos seus actos e de se determinar de acordo com a sua própria avaliação, tomando-o inimputável em razão de anomalia psíquica. Não sendo esta uma condição passageiranem susceptível de cura, constituindo por isso a perturbação afectiva bipolar tipo I de que o arguido padece uma anomalia psíquica crónica, existe perigo do arguido reincidir no tipo de actos de violência contra terceiros, como os factos que lhe são imputados nos presentes autos, sempre que se furte ao tratamento médico psiquiátrico adequado, como vem fazendo. Como consta do relatório da perícia médico-legal de fls. 423 dos autos, o arguido tem diagnóstico de Perturbação Afectiva Bipolar tipo I. Foi medicado com Olanzapina e Ácido Valpróico, com remissão da sintomatologia, tendo sido encaminhado para seguimento psiquiátrico no Estabelecimento Prisional de Caxias, com a indicação para manter o tratamento psicofarmacológico a longo-prazo. O arguido é portador de anomalia psíquica grave e que era prévia aos factos em apreço no presente processo. Se bem que na entrevista não tenha sido possível esclarecer da existência de sintomas psicóticos à data dos factos que tivessem motivado directamente as alegadas agressões, parece-nos que existiria desorganização comportamental significativa, nomeadamente a nível do pensamento e do humor. Sendo certo que, à data dos factos o arguido mantinha consumos de álcool e de drogas, que podem ter contribuído, pelo menos em parte, para algumas das alterações comportamentais, e que habitualmente tais situações não relevam significativamente para a (in)imputabilidade, no caso em concreto terão a sua importância, no sentido em que, num indivíduo com patologia psicótica não devidamente medicado, poderão exacerbar e/ou condicionar o aparecimento de sintomas abnormes/psicóticos, bem como desorganização comportamental, impulsividade fácil e heteroagressividade. As explicações que o arguido fornece para os factos que, em parte, admite, parecem estar influenciadas por sintomas abnormes decorrentes da sua anomalia psíquica grave. Dito de outra forma, os factos parecem ter ocorrido por influencia de sintomas psiquiátricos, como ideias deliróiides/delirantes e alterações do humor. De facto, apesar de não termos apurado alucinações, parece ter havido auto-relacionação e desorganização conceptual, sendo até patente um aparente declínio cognitivo que consideramos dever-se a processo psicótico em curso. Este contexto, aliado ao consumo concomitante de drogas ilícitas, terá determinado dificuldade em o mesmo fazer uma correta avaliação, do que era, lícito, bem como de se determinar perante tal avaliação, motivo pelo qual se considera que estarão presentes pressupostos médico-legais de INIMPUTABILIDADE para os factos em apreço. Admitida que foi a inimputabilidade, cumpre nos termos do artigo 91° do Código Penal esclarecer que a probabilidade de repetição de factos típicos semelhantes dependerá de surtos agudos da doença, que por sua vez está dependente da garantia de continuidade do tratamento psiquiátrico, da abstinência do consumo de drogas ilícitas, bem como de apoio sociofamiliar e psicoterapêutica. Segundo descrição do psiquiatra do Hospital Prisional, com a instituição do necessário tratamento e abstinência do consumo de drogas, a sintomatologia psiquiátrica remitiu rapidamente. Por outro lado, se bem que se admita que com o adequado tratamento, a probabilidade de repetição de factos típicos semelhantes seja baixa, o que é certo é que o arguido tem demonstrado ao longo dos anos a manutenção de consumos de estupefacientes. A data da avaliação pericial mantinha fraco insight/juízo critico face à situação patológica (i.e. considerava não ter qualquer doença psiquiátrica), e ainda quanto às consequências sociais da patologia (i.e. tinha dificuldades em estabelecer uma associação entre o ilícito penal e a patologia de que padece). O apoio familiar é fraco o que, aliado à estrutura de personalidade descrita no âmbito de processo-crime anterior, aumenta a probabilidade de repetição de factos típicos semelhantes. Por fim, o risco de violência avaliado no dia 07/08/2019 com o HCR-20 foi compatível com risco alto. Pelo exposto, somos de parecer que o risco de repetição de factos ilícitos semelhantes - leia-se perigosidade - é relevante. Nesse sentido, voltamos a reiterar a necessidade de acompanhamento psiquiátrico a longo-prazo e garantia da adesão ao necessário tratamento. Trata-se, assim, de doença mental com curso crónico, que condiciona uma necessidade permanente de medicação psicofarmacológica para manter a estabilização e prevenção de recaídas. No caso em apreço, o arguido encontrava-se, nas datas e período temporal à qual as mesmas são referidas, sem tratamento do seu quadro de psicose, tendo tido, por tal, recaídas ou sintomas de agudização, encontrando-se, assim, descompensado, ao nível mental, e instável, ao nível comportamental. Acresce o consumo abusivo de álcool e produtos estupefacientes que terá tido nesse período, o que exacerba a agressividade do indivíduo portador de “anomalia psíquica grave”, como a perturbação afectiva bipolar tipo I, consubstancia o “perigo” heterodirigido, no contexto das crenças delirantes ou delírios (e.g. crenças, falsas, inabaláveis e irredutíveis perante o confronto com a realidade). O que pode, assim, explicar quer os comportamentos e verbalizações, quer a prática dos factos pelo arguido. Sendo que eventuais ilícitos poderão ser compreensíveis, em exclusivo, no contexto psicótico, e.g. “anomalia psicótica grave” na qual o núcleo intrapsíquico afectado da forma primária é o pensamento e a sensopercepção, sendo que demais sintomas são subsidiários, e.g. “circulam” em redor destes, os doentes que dela padecem têm como denominador comum a ausência de capacidade de se pensarem como doentes, ou seja, falta de insight (in sight - olhar-se de fora para dentro). Característica esta que faz com que o risco de abandono da terapêutica, uma vez que não se consideram como doentes, ainda que compensados clinicamente, seja extremamente alto. E, por tal, qualquer tipo de psicose (e.g. funcional ou tóxica) em fase de agudização/descompensação, é paradigma de “anomalia psíquica grave” que consubstancia os pressupostos do artigo 12°, n°l e n°2 da Lei n° 36/98, de 24.07, pois as alterações do comportamento consequentes aos estados alterados do pensamento e percepção, bem como de alterações graves ao nível do controlo de impulsos, apenas decorrem do seu estado de doença mental não tratada e por tal, a Lei de Saúde Mental, não sendo um instrumento de prevenção criminal, mas sim um instrumento de tratamento, actua como tal, ao manter em tratamento os doentes portadores de “anomalia psíquica grave” que não tem, por força desta, a capacidade para se verem como doentes, não procurando ajuda, recusando tratamento ou abandoando a medicação. Sendo certo que a ausência de tratamento deteriora de forma acentuada o seu estado pois esta “anomalia psíquica grave” não tratada tem, assim, um impacto significativo no funcionamento psicossocial do indivíduo. Tratando-se de um doente grave, com uma “anomalia psíquica grave” a qual necessita de um acompanhamento em meio terapêutico, com a necessária supervisão clínica e cumprimento da terapêutica. Apesar do alegado cumprimento da medicação, toma-se evidente que esta não é suficiente, pese embora seja necessária para que o arguido atinja um estado de compensação - o que não se consegue num estabelecimento prisional, e sim num meio terapêutico como uma Unidade de Internamento Psiquiátrico de doentes agudos, como a Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital São João de Deus, Caxias.
… A situação do arguido, padecendo de anomalia psíquica que não controla, e a sucessão dos factos, revelam que a suspensão da execução do internamento não será suficiente para realizar as aludidas finalidades (preventivas) da medida de segurança.” (sublinhados e destaques nossos)
Da citação supra extrai-se que, em primeiro lugar, o tribunal valorou convenientemente o relatório pericial de fls. 423 e seguintes, de resto citado na matéria de facto e na motivação da convicção fáctica, e, em segundo lugar, desfila um conjunto, relevante e determinante, da necessidade de efectividade de cumprimento da medida de segurança aplicada. Na realidade, sendo certo que o cumprimento da medicação prescrita consegue estabilizar o doente, não menos certo que a evolução que o arguido vem sentindo, relatado na informação médica emitida pelo Hospital Prisional, só se obteve porque a adesão à medicação se conseguiu exactamente pela ambiente prisional hospitalar em que o recorrente se mostra inserido.
Posto em liberdade, e mais preponderantemente no ambiente social de origem, com fraco apoio familiar e não se mostrando resolvidos os comportamentos aditivos do recorrente, o perigo de recidiva da doença que o afecta é potenciado e, por arrastamento, relevante o risco de repetição de factos ilícitos semelhantes.
Assim, nenhuma censura merece a opção do tribunal na determinação da efectividade da medida de segurança aplicada.
Como terceira questão manifesta-se o recorrente quanto à fixação do valor da indemnização com recurso à equidade, com alegada violação do disposto nos artigos 488º n.º 1 e 489º n.ºs 1 e 2 do C. Civil, sustentando esse inconformismo com o facto de ter uma a débil situação económica, quer à época dos factos, quer num futuro, mais ou menos, próximo, pela realização de "biscaites" auferia o valor de €: 800,00, mensais, biscates que não asseguram certeza de rendimento, não tinha emprego à data dos factos, não tem emprego actualmente, nem o terá, previsivelmente num futuro próximo, uma vez que, está internado em consequência da medida de segurança aplicada, tudo para concluir que nunca conseguirá proporcionar à Assistente, a indemnização em que foi condenada, ficando, inquestionavelmente, privado dos alimentos necessários à sua sobrevivência.
Por outro lado, alega, o facto de a Assistente estar desempregada na actualidade não faz da mesma, uma pessoa mais e especialmente necessitada, é uma pessoa jovem, dinâmica, ainda na flor da idade, que certamente conseguirá obter rendimento proveniente do seu trabalho e certamente mais rapidamente que o Arguido.
O arbitramento da indemnização a favor da assistente assentou nos seguintes argumentos: “Nos termos do disposto no artigo 129° do Código Penal (em conjugação com o disposto nos artigos 483°, n° l, 496°, n° l e 562° e seguintes, todos do Código Civil): “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”. A reparação civil arbitrada em processo penal não é um efeito da condenação, o supra mencionado artigo apenas remete para a lei civil. Para além das sanções penais que venha a sofrer, o agente de um delito encontra-se obrigado a reparar o dano do ofendido por via da restituição do produto do crime ou da equivalente indemnização no plano jurídico-civilístico. A obrigação de indemnizar resultante da prática de factos ilícitos pressupõe a observância dos requisitos constantes do artigo 483°, n°l do Código Civil. Preceitua o artigo 483.°, n.º 1 do Código Civil que: “Aquele que, com dolo ou mera culpa violar ilicitamente os direitos de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.” Importa, assim, apurar a existência de um comportamento do agente dominável pela vontade, ilícito enquanto violador do direito de outrem, culposo no sentido de o agente optar livremente por conduta diversa daquela exigível pela ordem jurídica, a verificação de um dano e o nexo causal entre a conduta do agente e os danos que lhe sobrevieram. Só e apenas quando preenchidos cumulativamente os pressupostos acima indicados incorrerá o agente em responsabilidade civil por factos ilícitos e, eventualmente, no pagamento da respectiva indemnização. Em relação aos danos não patrimoniais, ou seja, prejuízos que, insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização - vide Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”, 1,10.ª, 2000, página 601. Tal situação encontra-se salvaguardada pela lei civil uma vez que o artigo 496°, n° 1 do Código Civil dispõe que: ‘'na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.” Foi peticionada pela assistente a condenação do arguido no pagamento de uma indemnização nos termos dos artigos 21°, n° l e 2 da Lei n° l 12/2009, de 16.09, e 82°-A do Código de Processo Penal. Assim e ponderando os factos provados, para reparação de tais danos não patrimoniais afigura-se-nos ajustado arbitrar à assistente demandante a quantia indemnizatória de € 3.000 (três mil euros). Como decorre do já decidido, o arguido/demandado foi declarado inimputável, nos termos do artigo 20°, n° 1 do Código Penal. Tal circunstância, também, no que respeita à responsabilidade civil, determina a aplicação de um regime especial. Com efeito, como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/4/2016, proferido no âmbito do processo n.º 152/14.2 GAMMV.C1, in www.dgsi.pt. «Nos termos do art. 483.°, n.º 1, do CC, só é obrigado a indemnizar pelos danos causados aquele que agir com dolo ou mera culpa.
(...) sendo inimputável, não pode em princípio responder pelos danos que causou com a sua actuação, conforme decorre do art. 488.°, do CC.
Porém, uma vez reunidos todos os pressupostos de ordem objectiva da responsabilidade civil - facto ilícito, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano - sendo a demandada inimputável, o tribunal, por motivos de equidade, pode condená-la a reparar, total ou parcialmente os danos, uma vez verificados os requisitos exigidos do art. 489.° do CC. ”. Dispõe o art. 489° do Código Civil: «1. Se o acto causador do dano tiver sido praticado por pessoa não imputável, pode esta, por motivos de equidade, ser condenada a repará-los, total ou parcialmente, desde que não seja possível obter a devida reparação das pessoas a quem incumbe a sua vigilância.
2. A indemnização será, todavia calculada de forma a não privar a pessoa não imputável dos alimentos necessários, conforme o seu estado e condição, nem dos meios indispensáveis para cumprir os seus deveres legais de alimentos». Em primeira linha a lei admite a possibilidade da pessoa inimputável seja condenada a indemnizar, total ou parcialmente, desde que não seja possível obter a reparação das pessoas a quem incumbe a sua vigilância, quando razões de equidade assim o imponham. O inimputável pode ser responsabilizado pelos danos que causar, quando os factos objectivos sejam integradores de um tipo de ilícito, justificando a sua responsabilidade como medida de protecção do lesado e não na culpa do agente (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/9/2008 - Proc. 512/04.7TAACB.Cl, in www.dgsi.pt/jtrc). As razões de equidade residem na justificação de haver necessidade de proteger a vítima ou lesado dos danos sofridos, desde que tal não represente um sacrifício insuportável para o inimputável. Nestes termos, devem fundamentar o recurso à equidade a necessidade do lesado e a possibilidade do inimputável. Antunes Varela refere que a pessoa inimputável deve ser condenada a indemnizar total ou parcialmente o lesado, no caso de não ser possível obter a reparação por parte da pessoa a quem incumbe a vigilância invocando como razões para recorrer à equidade: «porque o agente tenha bens por onde responder, porque o lesado tenha ficado em difícil situação económica, porque seja acentuada a diferença de condição económica entre um e outro, porque seja avultado o montante do prejuízo, porque seja particularmente grave a conduta do agente, porque seja bastante séria a violação cometida» - “Das Obrigações em Geral”, 10.a Ed., vol. I, pág. 564 e 565)». No caso vertente, pela matéria fáctica provada, não existem dúvidas de que estamos perante um facto ilícito praticado pelo arguido/demandado, em condições de ser considerado culposo, reprovável - se nas mesmas condições tivesse sido praticado por pessoa imputável - sendo inquestionável o nexo de causalidade adequado entre o facto ilícito e os danos sofridos pela assistente demandante. Por outro lado, dos factos dados como assentes, provou-se, também, que a assistente demandante não exerce qualquer actividade profissional e não ter rendimentos. Ante a exigência inserta no artigo 489°, n.º 2 do C.C. (que a equidade justifique a responsabilidade total ou parcial em face das circunstâncias concretas do caso e, em caso de atribuição de indemnização, que a mesma seja fixada de molde a não privar o inimputável dos meios necessários aos seus alimentos ou ao cumprimento dos seus deveres legais de alimentos), afigura-se-nos que resulta da factualidade provada as possibilidades económicas do demandado para o pagamento da indemnização. A atribuição da indemnização nestas condições (em que a pessoa demandada é inimputável e imperam razões de equidade) pressupõe, intrinsecamente, um justo equilíbrio entre a protecção da vítima e a tutela da subsistência do inimputável. Neste caso, razões de protecção da vítima pela gravidade dos factos cometidos e pelas consequências danosas que provocaram na mesma, sem que seja afectada a subsistência do inimputável, impõe o pagamento da indemnização. Pelo exposto para reparação dos danos não patrimoniais afigura-se-nos ajustado arbitrar à demandante a quantia indemnizatória de € 3.000 (três mil euros), quantia em que se condena o arguido/demandado a pagar, acrescida de juros, desde a presente decisão e a presente data, até integral pagamento à taxa de 4% dos juros civis.”
Como se constata da citação supra, a questão decorrente da situação económica do recorrente, enquanto responsabilizado pelos danos não patrimoniais que estão subjacentes á indemnização fixada, foi devidamente sopesada e, por isso, é que mesmo com recurso á equidade a indemnização só foi fixada em 3.000 euros.
O facto de não possuir bens ou rendimentos não é obstáculo á fixação de indemnização, quando muito constituirá obstáculo à execução da quantia indemnizatória. Mas isso não significa que o arguido não venha a obter bens ou rendimentos que permitam satisfazer o pagamento da indemnização fixada a favor da assistente.
Depois, sendo a equidade a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente dos critérios normativos fixados na lei, serão norteados por estes princípios que a indemnização haverá de ser arbitrada a quem a ela se considerar com direito, nesta parte se havendo de confirmar a decisão recorrida.
III.
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal em negar provimento ao recurso interposto arguido P. confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.
Feito e revisto pelo 1º signatário.
Lisboa, de 23 de Março de 2021.
João Carrola
Luís Gominho